Eleições
Ricardo Noblat: Lula contra Lula
Segundo turno no primeiro
Hoje ou no dia 28, data de um eventual segundo turno, o maior risco que corre o deputado Jair Bolsonaro (PSL) é se eleger presidente da República. O risco de Fernando Haddad (PT) é mínimo.
Bolsonaro foi o único candidato que cresceu nas pesquisas de intenção de voto do Ibope e do Datafolha divulgadas ontem à noite. Haddad e Ciro Gomes (PDT) permaneceram onde estavam.
Nas últimas 48 horas, Ciro e Haddad trocaram votos. Um subiu tomando voto do outro para mais tarde devolver. A Onda Ciro foi menor do que pareceu. Não houve Onda Haddad.
Uma ou duas vezes, o segundo turno será Lula contra Lula. O Lula do bem na pele de Haddad. O Lula do mal na pele de Bolsonaro. Nem Haddad se elegeria sem Lula, nem Bolsonaro.
Ganhe quem ganhar, será o último presidente da Era Lula que começou em 1989 com a eleição de Fernando Collor. Collor elegeu-se contra Lula. Fernando Henrique derrotou Lula duas vezes.
Eleito e reeleito, Lula elegeu e reelegeu Dilma. Imaginou voltar este ano. Mofa na cadeia. Em breve, deverá ser condenado de novo.
Bonner e Bolsonaro
Campeão de audiência
Por volta das 15h de ontem, depois de comprar um sanduiche de mortadela em uma padaria nas vizinhanças da TV Globo no bairro do Jardim Botânico, no Rio, o jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, foi saudado na rua por motoristas de táxi aos gritos de “Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro”.
Samuel Pessôa: Difícil debate
É ou não possível acabar com o déficit fiscal com imposto de 1% sobre fortunas?
Em um tuíte de 8 de setembro, um dos responsáveis pelo programa econômico do PT, Marcio Pochmann, escreveu: "Déficit primário nas contas públicas, estimado para 2019 pelo neoliberalismo de Temer, poderia ser superado pela cobrança de 1% sobre grandes fortunas. Solução para o Brasil tem, mas precisa do voto popular para garantir a renovação na política. O voto vale".
A afirmação tem duas características muito importantes. Primeira, é precisa e, portanto, facilmente verificável. Segunda, tem importantes implicações para a economia. Assevera que há uma maneira relativamente simples e indolor de resolver boa parte de nosso problema fiscal.
Vindo de um dos principais economistas do grupo político associado a um candidato bem colocado nas pesquisas eleitorais para a Presidência da República, a afirmação adquire enorme relevância.
Meu colega Alexandre Schwartsman, que ocupa este espaço às quartas-feiras, aceitando de forma iluminista os termos em que Pochmann estabeleceu o tema, resolveu verificar a veracidade da afirmação.
Baixou os dados da Receita Federal e documentou, em sua coluna de 12 de setembro, que essa base tributária não arrecadaria nem 10% do déficit fiscal.
Li com interesse a réplica de Pochmann a Alex nesta Folha na edição de 14 de setembro, procurando qual teria sido o erro cometido por Alex.
Pochmann discorreu sobre vários temas. Não houve menção aos números. Pochmann reagiu de forma idêntica à do batedor de carteira que, após o ato, vira de lado, levanta o braço e grita "pega ladrão!".
Penso, aliás, que, em debates dessa natureza --em que a questão debatida é muito clara e circunscrita--, a réplica não deveria ser publicada se não tratar diretamente do tema.
Na coluna de 26 de setembro, Alex escreve que Pochmann irá ganhar o merecido título de economista mais desonesto do Brasil.
Na edição de 28 de setembro, o professor de economia brasileira do departamento de administração da FEA-USP Paulo Feldmann reclama da falta de "decoro" de Alex com Pochmann. Afirma que em "economia não há uma única forma de enxergar ou interpretar fatos".
Ora, o debate não é de interpretação. Há um fato. É ou não possível acabar com o déficit fiscal com um imposto de 1% sobre grandes fortunas? Não há interpretação aqui. Trata-se de aplicar a alíquota de 1% sobre a base e saber se chega ou não perto de R$ 150 bilhões.
Não satisfeito, afirma Feldmann: "Segundo dados da Receita Federal, as 70 mil famílias (0,14% do total) mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%. Se os muito ricos passassem a pagar um imposto efetivo igual ao pago pela classe média, acabaríamos com o déficit primário. Simples assim".
Recoloca o debate em termos simples, claros e falseáveis.
Na sua resposta em 4 de outubro, novamente Alex mostra que os números de Feldmann não sobrevivem às quatro operações. A resposta dos dois ilusionistas na mesma edição do dia 4 é alegar o relativismo do conhecimento econômico --meus Deus, o debate é contábil!-- e afirmar que Alex trabalhou no mercado financeiro.
Os dois precisam mostrar aos leitores qual foi o erro de conta que Alex cometeu.
Jânio de Freitas, em coluna de 23 de setembro, observou ser insultante o procurador do Ministério Público Carlos Fernando do Santos Lima se aposentar com 54 anos e remuneração mensal de R$ 30 mil aproximadamente.
Faltou lembrar que, se a reforma da Previdência de Temer tivesse sido aprovada, ele teria de trabalhar até os 65 anos.
Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Bruno Boghossian: Campanha barulhenta só alimentou incertezas sobre futuro do país
Primeiro turno chega sem respostas para problemas e com dúvidas sobre democracia
Ficou no passado a esperança de que a eleição seria uma oportunidade de reencontro com a normalidade após o impeachment e a crise econômica. O domingo (7) pode terminar com a escolha de um presidente que representa mais riscos do que certezas ou com uma polarização que parece fora de controle.
O peso inédito das redes sociais inaugurou um novo modelo de disputa eleitoral. A influência modesta da TV reduziu o poder dos grandes partidos e multiplicou o número de vozes na arena política. Mas esse quadro produziu também um debate fechado em bolhas e um terreno fértil para discursos de ódio e para a propagação de mentiras.
Uma campanha atípica desaguou num cenário fora dos padrões. Os dois líderes das pesquisas chegaram a índices recordes de rejeição. Historicamente, analistas consideravam impossível eleger um candidato com taxa negativa acima de 30%. Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) estão para lá de 40%.
Um candidato precisou fazer campanha do hospital depois de sofrer um grave atentado durante um ato público. Outro substituiu seu padrinho político, que chegou a ter o apoio de quatro em cada dez eleitores depois que foi preso por corrupção.
Tantas circunstâncias excepcionais e momentos traumáticos transformaram a disputa mais importante em décadas numa barulheira. O fato de restarem tantas incertezas sobre o destino do país em 2019 indica que faltaram mensagens essenciais no meio de toda a confusão.
É grave que tenhamos chegado ao primeiro turno sob dúvidas em relação à democracia. Se a sociedade corre o risco de sair rachada das urnas, a primeira garantia que deveria ser dada por aqueles que pretendem chegar ao poder é de respeito ao outro lado. O líder nas pesquisas alimentou exatamente o contrário.
As dificuldades econômicas, a desigualdade e o esfarelamento da política demandam grandeza extraordinária do próximo governo. Sem um plano objetivo e sensato, o país continuará brigando à beira do abismo.
Vera Magalhães: Lula ou Jair? Ulysses
A Constituição é o antídoto tanto para a corrupção quanto para as tentações autoritárias
“Qualquer governante deste País pode ganhar as eleições e não cumprir aquilo que prometeu porque é mais um e o povo já sabe. Nós não podemos.” A frase é do histórico discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na Avenida Paulista na madrugada de 27 para 28 de outubro de 2002. O petista havia sido eleito presidente da República em sua quarta tentativa desde 1989, a eleição que retorna agora, 30 anos depois da promulgação da Constituição, para testar da maneira mais cabal até aqui sua capacidade de resistir a tentativas de solapá-la.
A frase parecia conter a consciência da responsabilidade, do ineditismo histórico que representava sua eleição num País como o Brasil e dos riscos que haveria caso ele falhasse. E ele não falhou, apenas.
Lula deliberadamente optou por outro caminho, que seu companheiro Antonio Palocci definiu como “sonho mirabolante”, mas que na verdade foi um projeto deliberado de assalto ao País para perpetuar seu projeto político no poder.
Agora, diante da queda desse projeto pela Lava Jato e sua prisão, não fez o que disse que faria, no mesmo discurso, caso “errasse”: “Pode ficar certo que eu não terei nenhuma dúvida de ir pra televisão pedir desculpas ao meu povo”. Não pediu, urdiu uma narrativa falsa e atentatória à Justiça e às instituições de que era um perseguido político, arquitetou um plano infalível para voltar ao poder a despeito de tudo e nos trouxe até aqui.
Preso, Lula abriu a porta para a possibilidade, antes considerada remota, de eleição de Jair Bolsonaro – e tudo que ela representa de negação da história que vai da redemocratização à sua própria chegada à Presidência.
Pela arrogância de se auto conceder a condição de “uma ideia”, Lula ignorou que o mal que causou com os crimes que cometeu era tão profundo que fez fermentar a ideia oposta à sua, num caldo que mistura a legítima repulsa à corrupção com ideias fascistas que antes não ousavam ser ditas em voz alta.
E aqueles que não são coniventes com os crimes do PT nem condescendentes com a relativização da democracia presente no projeto de Bolsonaro, como chegam a este 7 de outubro? Perplexos, amedrontados e algo descrentes no tal dia seguinte que escrevi há algumas semanas que chegaria. O que Bolsonaro e Fernando Haddad, o representante de Lula nesse repeteco de 1989, têm a dizer a essas pessoas? Até aqui, nada.
A última entrevista de Bolsonaro foi uma reafirmação de suas ideias rasas sobre como um conservadorismo jeca e opaco será a base “filosófica” de seu governo e como o fato de ter uma mãe, uma filha ou um sogro seriam provas de que não é racista nem misógino.
No mesmo dia, a participação de Haddad no debate da Globo foi uma reafirmação cínica dos crimes do PT, do “L” com os dedos ao cumprimentar os telespectadores à arrogante incapacidade de reconhecer mínimos erros, quando inquirido por Marina Silva, ou a mentira pura e simples de que os governos do PT foram responsáveis fiscalmente ou valorizaram a Petrobrás.
Diante de tamanha incapacidade dos dois líderes nas pesquisas – esses que foram escolhidos por Lula da prisão – de apontar o caminho que seguirão a partir de amanhã (se um deles for eleito ou se os dois forem disputar o segundo turno), resta ao País e aos que têm a democracia como bem inalienável se fiar em outro discurso, de outro outubro: o de Ulysses Guimarães em 5 de outubro de 1988.
“República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.” A arma para enfrentar corruptos e demagogos é a mesma: a Constituição que Ulysses promulgou naquele dia. Esperamos por ela como o “vigia espera a aurora”, como ele disse. Trataremos de zelar para que não venha o crepúsculo. Com ela nas mãos.
Bernardo Mello Franco: A eleição da incerteza
Brasil chega à oitava eleição presidencial desde o fim da ditadura. Nenhuma foi marcada por tantas incertezas e dúvidas sobre o futuro da democracia
O Brasil chega à oitava eleição presidencial desde o fim da ditadura militar. Nenhuma foi marcada por tanta incerteza. Nenhuma projetou tanta dúvida sobre o futuro da democracia no país. É difícil traçar paralelos com qualquer disputa anterior. O candidato que começou na frente foi preso e impedido de concorrer. O candidato que o substituiu na liderança levou uma facada na barriga.
A campanha sumiu das ruas. Passou a ser comandada da cadeia e do hospital. A polarização entre PT e PSDB, que deu o tom das últimas seis eleições, ficou pelo caminho. Depois de quatro derrotas seguidas, os tucanos perderam o controle sobre o voto conservador. Foram trocados por um outsider de extrema direita, que se filiou a uma legenda de aluguel no limite do prazo legal.
O horário eleitoral na TV, que inflacionava as negociações entre os partidos, virou mercadoria obsoleta. Quem conseguiu mais de cinco minutos de propaganda empacou nas pesquisas. Quem ficou com apenas oito segundos disparou na frente. A discussão política migrou para a tela do celular. Notícias e boatos passaram a se confundir na terra sem lei do WhatsApp. O TSE anunciou uma força-tarefa para combater as fake news. Ficou só na promessa.
Às vésperas da eleição, a boataria se espalhava à vontade pelas redes. A máquina do governo também deixou de importar. O candidato oficial do Planalto teve desempenho de nanico. O presidente mais impopular da História foi esquecido por candidatos e eleitores. Não serviu nem como saco de pancadas, como José Sarney em 1989. O país chegou à eleição na bancarrota. Pelas contas do IBGE, 27 milhões de trabalhadores estão desempregados ou subutilizados. Mesmo assim, a economia não foi o principal tema da campanha. O debate se deslocou para o campo moral e para os costumes.
O capitão soube surfar a onda conservadora. Com discurso moralista, prometeu combater a corrupção, reprimir o crime e restaurar a ordem. Aliou-se às igrejas evangélicas, aos ruralistas e à bancada da bala. Herdou o comando da tropa de Eduardo Cunha, que chefiou o impeachment e acabou na cadeia.
A imprensa internacional tenta entender como um candidato com ideias autoritárias, que exalta a tortura e já defendeu o fuzilamento de adversários, foi capaz de chegar tão longe.
Por aqui, o fenômeno é retratado como mera reação ao PT, que foi varrido do poder depois de vencer as últimas quatro eleições. O petismo paga o preço pelo fiasco do governo Dilma. Turbinada pela recessão e pelos escândalos, a rejeição ao partido se tornou uma muralha. Com Lula preso em Curitiba, a sigla esperou até a última hora para lançar o substituto Fernando Haddad.
Foi uma escolha arriscada, que pode apresentar uma conta alta hoje à noite. Blindado pela facada e sem comparecer a debates, Jair Bolsonaro chega ao dia da eleição com chance de vencer no primeiro turno. Não é o desfecho mais provável, mas a previsibilidade tem passado longe em 2018.
Luiz Werneck Vianna: Ao vencedor, as batatas
Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de feroz autocrítica
Um canal de TV de larga audiência transmite a sessão de abertura da Assembleia-Geral da ONU. Como é da tradição, cabe ao chefe de Estado do Brasil, o sr. Michel Temer, abrir os debates. O presidente Temer realiza seu pronunciamento com palavras ponderadas, desenvolvendo o tema da importância daquela organização para a paz e a cooperação solidária entre os povos, tal como tem sido a posição brasileira nas relações internacionais, que ele ali, mais uma vez, reafirmava, honrando os valores e princípios da nossa Carta constitucional e das nossas melhores tradições. O terceiro orador, o sr. Donald Trump, presidente da República dos Estados Unidos, um dos países fundadores da ONU, há décadas um dos principais protagonistas da cena mundial, em nome de um princípio de sua lavra, America first, confronta com um nacionalismo primitivo o espírito que animava aquela assembleia e que nos vem de duas grandes revoluções do século 19, a americana e a francesa, com que se abre a modernidade e aprendemos com Kant a manter viva a utopia realista da paz perpétua.
Volte-se ao canal televisivo e a palavra passa a seu comentarista político, jornalista de meia idade, com os cabelos encanecidos, que desqualifica sem mais o oportuno e feliz pronunciamento do presidente Temer, passando ao largo do patético discurso de Trump, merecedor do justo sarcasmo com que foi recebido por sua audiência. Cenas como essas falam mais que mil palavras, estava ali a revelação da estupidez política que nos trouxe ao miserável cenário da sucessão presidencial, que ora somos obrigados a purgar.
Lamenta-se, agora, a sorte nessas horas aziagas do nosso encontro com que as urnas nos esperam. Impreca-se contra o destino que nos teria roubado o futuro, posto em mãos desastradas de estrangeiros que não conhecem nem respeitam nossa História e seus feitos. O destino é inocente, fomos nós que criamos passo a passo a armadilha, salvo milagres - creio, embora seja absurdo -, que não temos mais como evitar. Fomos nós os autores da lenda urbana de que a corrupção estaria na raiz dos nossos males, criminalizando a política e os políticos com a arrogância de messiânicos refratários à avaliação das consequências dos seus atos, a proclamarem fiat iustitia, pereat Mundus.
O centro político, lugar estratégico em que se operou a bem-sucedida modernização burguesa do País, tornou-se um espaço vazio, recusando-se ao governo Temer, com sua história de dirigente do MDB, um clássico partido do centro, com sua natural inscrição nesse lugar reconhecida, em duas consecutivas eleições presidenciais, pelo PT - partido identificado como de esquerda pela crônica política, carimbo, aliás, recusado por seu principal dirigente -, que com ele se coligou, confiando-lhe a Vice-Presidência da República. Pranteia-se agora, com lágrimas de crocodilo, a má e imerecida sorte do finado centro político, que ora comparece às urnas, tudo indica, sem uma candidatura competitiva.
Contudo, o que é é. O artifício de negar a identidade ao centro político, de existência comprovada empiricamente em nossa sociedade há décadas, não tem como resistir ao império dos fatos. A iminência de um segundo turno eleitoral nos devolve, em clima de pânico, com o tempo fugindo das mãos, a busca pelo centro perdido. Sem ele como vencer as eleições, pior, como governar? Com Haddad teremos o indulto de Lula e a convocação de uma Assembleia Constituinte? Faltaria combinar com os russos, que, aliás, são muitos. Que economia nos espera com Bolsonaro, a do Pinochet, neoliberalismo com fuzis?
Como o gênio militar de Napoleão advertia, quando avaliava mapas de campanha, se o natural fosse arbitrariamente desconsiderado num plano, ele voltaria em galope. Nem sempre, pode-se acrescentar, em manobras afortunadas, dificílimas para os candidatos que devem disputar o segundo turno desprovidos como estão, contando apenas com seus preconceitos, de projetos de governo bem definidos. Tem-se pela frente um quadro de turbulência até que o novo governo consiga encontrar uma linha de ação compatível com o novo Congresso e com os novos governadores que nascerão das urnas. Na prática, essa incomum situação significa a abertura de um terceiro turno eleitoral, de tramitação exclusiva nos bastidores, quando só então serão conhecidos os rumos do novo governo.
O centro político, banido do salão, volta com força por todas as janelas. Tanto barulho por nada, retornamos ao ponto de partida, salvo se os estrategistas de plantão dos dois lados do tabuleiro já tenham decidido, no caso de vitória, levar a cabo o que ruminaram ao longo dessa paupérrima campanha eleitoral. O desenlace infeliz dessa imprudência, se vier, não deve tardar, e mente quem nega a força das nossas instituições, provada em tantos outros momentos críticos da nossa história recente. Os 30 anos da Carta de 88, a mais longeva da República, não foram em vão, a sociedade saberá preservá-la das sanhas dos cavaleiros da fortuna, ela já conhece o que perderá sem ela.
Mente igualmente quem se recusa a admitir a possibilidade de a nossa democracia estar sob risco, pois está, aqui e alhures. Sem triunfalismo, joga-se, nesta sucessão presidencial brasileira bem mais do que nossos negócios internos. Nossa presença no mundo importa para a paz, em particular para nuestra America. Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de uma feroz autocrítica, uma vez que não havia nada de inevitável nessa derrota que reconhecemos. Somos mais necessários que nunca, e fizemos nascer uma nova esquerda capaz de se articular com o liberalismo político, cuja missão desde agora é nos devolver aos eixos que nos são naturais.
Pelo andar da carruagem, pode-se prever que isso não deve demorar muito. Por fim, glória a Deus, há os milagres.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-RIO
Fernando Henrique Cardoso: Hora de voto
Mais do que nunca é preciso insistir em nossos valores, na democracia
A fragmentação partidária, os sentimentos exaltados e o personalismo triunfante não respondem às necessidades do povo e do País. Na vida política não basta ter ou imaginar que se tem razão, é preciso que a mensagem seja sentida pelas pessoas e que elas escutem e queiram avançar na direção proposta. Até agora o caminho das reformas e do equilíbrio não parece ser o preferido pela maioria. O eleitorado decidirá hoje os adversários que se enfrentarão no segundo turno. Ainda é tempo de parar a marcha da insensatez. Uma coisa é certa: o eleito ao final de outubro terá de obedecer à Constituição e tanto os que nele votaram como os que a ele se opuseram terão de respeitar o resultado das urnas.
O que está em jogo não é o partido tal ou qual, nem se o candidato é bom ou mau ser humano. Mas, sim, o que pretende e poderá fazer. Terá capacidade de juntar pessoas e forças políticas para governar? Dará rumo à Nação? Concordo com o que ele propõe e avalio que será capaz de fazê-lo? Para responder é preciso analisar o quadro político, social e econômico em que o novo presidente vai operar. Não se trata de escolher o candidato apenas por seus atributos pessoais nem pelo que dizem os partidos (os quais em geral silenciam sobre os verdadeiros problemas), mas, principalmente, pelo que o candidato já fez e por sua capacidade política.
Depois de 2013 os governos do PT levaram a economia à recessão. Como disse na carta que escrevi recentemente aos eleitores, há problemas gritantes no País, a desorganização das finanças públicas e o desemprego são sinais deles. A rigidez dos privilégios burocráticos dificulta cortar os gastos com o funcionalismo. As desigualdades gritantes da Previdência, em especial entre alguns servidores públicos e trabalhadores do setor privado, criam castas de beneficiários, muitos do quais se aposentam cedo com proventos muito acima do que seria justo receberem.
Diante dessas e de outras despesas obrigatórias, o governo federal acumulou nos últimos cinco anos déficits de R$ 540 bilhões. O que havia sido um superávit de cerca de 3% do PIB desde 1999, algo maquiado a partir do segundo governo Lula, se tornou um déficit de mais de 2% do PIB a partir de 2015, graças ao descalabro fiscal e ao desastre econômico produzido pelo governo Dilma. Acrescidos das despesas com juros, a sequência de déficits primários fez a dívida pública do governo federal se aproximar de R$ 4 trilhões e a do Estado brasileiro em seu conjunto superar os R$ 5 trilhões este ano.
A dívida total, já perto de 80% do PIB, continua a subir, a despeito da queda da taxa básica de juros nos dois últimos anos. No ritmo de crescimento que a dívida vem apresentando - ela se situava pouco acima de 50% do PIB em 2011 -, chegará um momento em que só com inflação alta, que corrói o valor real da despesa do governo, o Estado brasileiro poderá financiar-se. O roteiro desse filme todos os que têm mais de 50 anos conhecem muito bem. E ele termina mal, com o empobrecimento do País e, sobretudo, das pessoas socialmente mais vulneráveis. Voltaríamos assim a um passado tenebroso, sobretudo para os mais pobres.
O agravamento da crise seria dramático para uma sociedade desigual e fragilizada por cinco anos de recessão seguida de recuperação econômica anêmica. O desemprego atinge entre 12% e 13% da população ativa, cerca de 13 milhões de pessoas. Sem falar nos que estão ocupados, mas sem carteira de trabalho, cerca de 38 milhões, e afora os chamados “desalentados”, que desistiram de procurar emprego. A soma ultrapassa os 60 milhões de adultos que estão ou correm o risco de cair na pobreza ou na extrema pobreza.
Ao desemprego somam-se o medo da violência crescente, em alguns casos da própria polícia, e a expansão do crime organizado. A sensação de desordem, a insegurança e a agonia do desemprego são a realidade cotidiana de dezenas de milhões de pessoas. Para muitas não resta opção que não seja aderir ou acomodar-se ao crime organizado, ou encontrar consolo espiritual e solidariedade nas igrejas.
Como falar de “democracia” nestas circunstâncias, se falta o pão e a segurança é precária? Por trás está um sistema político regado a corrupção e uma cultura de permissão e leniência com quem atua, no andar de cima, à margem das leis. O povo vê nos partidos e nos candidatos mais ligados a eles os responsáveis por tudo isso. Procuradores e juízes, frequentemente com razão, mas não raro sem o zelo e o equilíbrio que se espera dos profissionais do Direito, reforçam a sensação de que toda a política é suja e nenhum político escapa à podridão.
Quase todos os candidatos, especialmente os que aparecem à frente, nem sequer abordam com seriedade os problemas reais que estão por trás do mal-estar das pessoas. Estas, no desespero, agarram-se a aparentes soluções polares, mais por identificação simbólica que por adesão racional. Sentem medo, quando não horror, da volta ao lulopetismo e aderem ao candidato que promete tudo resolver no grito, quando não na bala, ou, no polo oposto, juntam-se em torno da nostalgia de um passado idealizado que, se tentar se repetir, comprometerá gravemente o futuro do País.
Mais do que nunca, é preciso insistir em nossos valores, a democracia entre os principais. Além de valores, quem pede o voto do povo deve ser capaz, no mínimo, de reorganizar as finanças públicas e as pôr a serviço dos maiores interesses da população e do País. É por isso que votarei em Alckmin: ele não apenas diz, mas fez. Basta comparar os resultados das políticas públicas de seus governos, inclusive na segurança e na oferta de serviços de saúde e educação, com a situação dramática de alguns outros Estados e do governo federal. Entre os principais candidatos é quem pode juntar forças para dar rumo novo ao governo.
É preciso parar a marcha da insensatez. Ainda há tempo. A hora é agora.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da república
El País: Brasil vai às urnas guiado pelo ódio ao PT e o medo de Bolsonaro
Candidato do PSL e Fernando Haddad lideram as pesquisas nas eleições mais emocionais da democracia, que despertaram temor do retrocesso com o ex-militar e da volta da corrupção com petista
Dois sentimentos permeiam a campanha presidencial no Brasil de 2018 e poderão ser lembrados nos livros de história do futuro. A raiva e o medo forjaram a decisão de uma grande massa de eleitores que vai às urnas neste dia 7 e que, a priori, deve contar com um segundo turno se as pesquisas eleitorais estiverem certas. Se confirmadas, Jair Bolsonaro, do PSL, e Fernando Haddad, do PT, podem vir a zerar o cronômetro depois deste domingo e disputar os votos de 147 milhões de eleitores para ser o sucessor de Michel Temer no Palácio do Planalto. Bolsonaro vem com ampla vantagem, com 40% dos votos válidos, segundo a última pesquisa Datafolha. Se liquidar a fatura neste primeiro turno ou vencer o segundo, pode se tornar o primeiro presidente evangélico neopentecostal do Brasil.
Até as últimas horas deste sábado os demais candidatos tentavam a sorte seja no corpo a corpo dos militantes ou fervilhando o Whatsapp pedindo votos de última hora. Ciro Gomes (PDT), em terceiro, com 15% dos válidos, torce para ser a surpresa da vez e roubar votos de Haddad no campo da esquerda, mas os analistas veem poucas chances de isso acontecer pela distância que guarda do segundo colocado.
Geraldo Alckmin, que teve o apoio de uma coalizão de partidos que garantiram cinco minutos de TV, não saiu dos 7% das intenções de votos, o que vai deixar seu partido, por primeira vez desde a sua fundação, fora de um segundo turno da eleição. Em seguida vem Marina Silva (Rede) que desidratou nas pesquisas, e tornou-se miragem no retrovisor. Tinha posição de destaque nas primeiras pesquisas na pré-campanha, inclusive liderando a transferência de votos do ex-presidente Lula. Mas nem ela nem Alckmin parecem ter conseguido tocar o coração dos brasileiros para que saíssem do binômio “raivoso ou amedrontado”, que torna esta uma das eleições mais emocionais, para não dizer mercuriais ou irracionais. A ponto de as discussões sobre os outros cargos eletivos desta campanha terem ficado completamente em segundo plano. O Brasil vai eleger 27 governadores, 1059 deputados estaduais, 513 deputados federais, e votarão para renovar dois terços dos 81 senadores. Neste sábado, eleitores pediam sugestões de nomes para amigos e familiares para marcar as cédulas deste domingo. A esperança de renovação do Congresso é baixa, uma vez que as mudanças de regras eleitorais encurtaram a campanha e o fim do financiamento privado tornou a distribuição de verbas nos partidos mais fechada a novos candidatos. Vale apostar nos candidatos que já são mais conhecidos do eleitor.
O pleito vem num momento em que a esquerda no Brasil bateu cabeça, com a demora da definição do candidato do PT diante da insistência do ex-presidente Lula em ser candidato. O ex-presidente liderou com quase 40% as intenções de votos esta corrida eleitoral, mesmo sabendo que a Justiça dificilmente iria liberá-lo para ser candidato. O partido segurou o nome de seu eventual sucessor, enquanto negociou acordos para isolar Ciro Gomes para que ele não ocupasse o campo da esquerda nestas eleições. O PT abriu mão, em Pernambuco, da candidata a governadora Marília Arraes, que estava na frente das pesquisas. Tudo para evitar que o PSB, que tinha planos de reeleger Paulo Câmara no Estado, apoiasse Ciro.
Haddad foi confirmado candidato apenas em 11 de setembro no lugar de Lula que havia sido registrado inicialmente, e saiu de minguados 6% para os atuais 22% de intenções de voto, com a memória do legado de seu padrinho. É assim que o PT espera chegar ao segundo turno e tornar-se o contraponto a Bolsonaro. Se conseguir, terá a árdua missão de sair da espiral de ódio que seu nome evoca em metade do Brasil. Os antipetistas sentem raiva do seu partido, quando não nojo, e entendem como uma afronta ver o PT novamente no poder. Para eles, o ex-prefeito de São Paulo poderia trazer de volta um esquema de corrupção do partido desvendado pela Lava Jato. “Este é o momento de salvar nosso país e garantir alternância de poder. Porque se nesta eleição não garantirmos que vamos tirar o PT de uma vez por todas, estamos fadados a virar... Deus me livre... eu não quero imaginar nem sei o quê”, diz em vídeo distribuído a seus contatos Colin Butterfield, presidente da Cosan, uma das maiores empresas de agronegócios do Brasil, e fundador do movimento Vem pra Rua, que teve papel fundamental no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Como ele, políticos e empresários que surfaram há dois anos com a deposição do PT voltam a mexer os fios da política brasileira para dar suporte a Bolsonaro. O ódio ao PT tomou forma nos últimos tempos a ponto de seus detratores preferirem o flerte com um governo antidemocrático do que “os esquemas corruptos do PT”. Agora, Butterfield, um integrante da elite que aderiu a Bolsonaro, busca o efeito dominó que conheceu nos tempos dos movimentos que lotaram as ruas contra Rousseff em 2015 e 2016 para evitar o segundo turno. Vale tudo menos o PT, mesmo que Bolsonaro traga com ele um time de militares para o Governo num país mal resolvido com os ecos da ditadura, que deseje mexer na formação escolar “expurgando Paulo Freire”, ou trate de maneira vulgar as minorias do Brasil.
A naturalização do candidato e seu discurso corrosivo veio junto com o desempenho relâmpago do candidato de ultradireita, que partiu no início da campanha em meados de agosto com apoio mínimo da classe política e econômica e apenas sete segundos de propaganda eleitoral na TV, deixa atônito metade deste país que é todo um paradoxo. Ao mesmo tempo em que lidera as pesquisas, é rejeitado por 45% do eleitorado por suas posturas desumanas diante de questões sensíveis como os imigrantes venezuelanos em Roraima, ou a violência policial que mata inocentes. Mostra também facilidade para lançar suspeitas sobre assuntos sem ter provas, como é o caso das potenciais fraudes em urnas eletrônicas.
Bolsonaro passou parte da campanha hospitalizado pelo atentado a faca que sofreu em 6 de setembro em Juiz de Fora, Minas Gerais. O evento quase lhe tirou a vida, mas ajudou a humanizá-lo aos olhos do eleitor. Ganhou espaço na TV e poupou-se do desgaste dos debates em que o confronto com os demais candidatos poderiam roubar-lhe votos. Os astros acabaram se alinhando para abrir caminho ao candidato, que ainda recebeu a bênção dos evangélicos no final da campanha.
Em sintonia com o setor produtivo que o apoia, Bolsonaro promete crescimento adotando o receituário liberal. Ainda precisa provar que conseguirá colocar em marcha seu plano, apesar de ter mostrado divergências com seu futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Tudo apaziguado nesta reta final de campanha. Seu plano de governo promete eficiência para os empresários com a simplificação de processos, e a redução de ministérios. Já ganhou o apoio em massa da bancadas ruralista e evangélica no Congresso. O ex-capitão, porém, desperta pânico por suas colocações tóxicas que podem legitimar trágicos efeitos para as populações mais vulneráveis que já foram alvos constantes de suas zombarias, como os indígenas, as mulheres, ou a população negra. Suas colocações se refletem em seus planos objetivos, como o de unir o Ministério da Agricultura e do Meio Ambiente, o que deve deixar a população indígena, por exemplo, à mercê da pressnao dos ruralistas. Bolsonaro tem ofendido também a memória do país, negando crimes da ditadura e prometendo investir na linha da Escola sem Partido para tirar, segundo ele, a “doutrinação” das escolas. “Conversei muito sobre ensino a distância. Me disseram que ajuda a combater o marxismo”, disse Bolsonaro em agosto.
Haddad, por sua vez, precisaria superar a onda bolsonarista que se formou na reta final da campanha e a percepção de que ele não tem o comando de um eventual governo, mas sim o ex-presidente que está preso em Curitiba. Num eventual segundo turno, terá de buscar votos no campo que o rejeita hoje e para isso precisará matizar seu discurso com acenos ao centro, ao mesmo tempo em que mantém a base. Mas Haddad não é Lula e está longe de ser unanimidade no partido. Diante da necessidade de tranquilizar um mercado que o hostiliza precisaria de um projeto econômico potente para garantir o controle fiscal que as contas públicas demandas neste momento. Corre o risco de voltar ao dilema de Dilma quando assumiu o segundo governo e precisou chamar Joaquim Levy para a Fazenda.
Se vencer essa corrida de obstáculos, teria na presidência uma marcação absoluta dos opositores do PT e uma mídia que torce o nariz contra a longevidade do partido no poder. Para uns, uma eleição dele seria justiça divina que o Judiciário não cumpriu com Lula. Para outros, é uma vergonha internacional ser governado, na prática, por alguém orientado por um presidiário. No último dia de campanha, Haddad lançou uma Carta ao Povo Brasileiro, com mensagens que tranquilizassem a população. “Nossa ida ao segundo turno, quando deixaremos ainda mais clara a diferença entre os projetos que estão em disputa no Brasil. A maioria do povo brasileiro rejeita o projeto de intolerância e do fim de direitos do povo”, diz ele.
Seja quem for o presidente, no Congresso as eleições devem reforçar os freios conservadores, com a reeleição de ao menos 300 deputados, e reforço das bancadas evangélica, ruralista e da bala (a famosa Boi, Bíblia e Bala, BBB), o que deixa o país na mesma encruzilhada de sempre. Serão quatro anos de um país que se espanta hoje de ver o mesmo partido expulso em 2016 voltar numa posição confortável nesta eleição, e de um ex-militar que tirou do armário o conservadorismo de quem anseia um líder que se guia pelos princípios dos tempos da ditadura.
Correio Braziliense: Sua Excelência, O Eleitor
“As desigualdades sociais e a corrupção alimentam a desesperança e o ódio, contra a esperança e a razão. Entretanto, democracia é o melhor remédio para os males da nossa sociedade”
Por Luiz Carlos Azedo, do Correio Braziliense
Toda eleição é uma festa da democracia, uma esperança de mudança para melhor. Hoje, apesar da radicalização do processo eleitoral, não será diferente. Os brasileiros acreditam na democracia como forma de encontrar seu próprio caminho. São 147,3 milhões de eleitores aptos a votar. Eles vão escolher o novo presidente da República, 54 senadores, 513 deputados federais, 27 governadores dos estados e do Distrito Federal, além de 1509 deputados estaduais e distritais.
Desde a criação da primeira Câmara Municipal, em 1532, em São Vicente (SP), é a melhor maneira de escolher os governantes. Foi por meio desse exercício cívico, mesmo quando restrito ao Parlamento, que a democracia se impôs plenamente. Por duas vezes, em 1945 e 1989, renasceu das cinzas, com eleições livres e diretas para a Presidência da República.
Independentemente das paixões políticas e ideologias, as eleições têm possibilitado avanços político-institucionais, econômicos e sociais à sociedade brasileira. A agenda nacional depende da construção de maiorias e consensos políticos. De certa forma, desde a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, o povo brasileiro é o protagonista desses avanços.
Tancredo não chegou a tomar posse, o governo Sarney revogou o entulho autoritário e constituintes eleitos dotaram o país de uma Constituição cidadã que, na sexta-feira, completou 30 anos. A partir daí, a agenda nacional avançou, graças às eleições. Collor de Mello, o primeiro a ser eleito pelo voto direto, mesmo renunciando ao mandato para evitar o impeachment, deixou como legado a abertura da economia ao comércio mundial, essencial diante da globalização. Itamar Franco, o vice que assumiu seu lugar, com o Plano Real, enfrentou o problema da hiperinflação. Fernando Henrique Cardoso, grande artífice da política de estabilização monetária, eleito presidente da República, nos seus dois mandatos, realizou um grande programa de reformas do Estado, com as privatizações.
Coube ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seus dois mandatos, dar sequência a esses avanços, combater as desigualdades regionais e promover, com o Bolsa Família, uma política de inclusão social dos mais pobres. Entretanto, duas tarefas da agenda nacional não foram enfrentadas: a reforma da Previdência e a elevação da produtividade da economia, principalmente da indústria. Caberia à presidente Dilma Rousseff dar conta dessas reformas.
A mudança de rumo na economia, porém, com a adoção de uma “nova matriz econômica” voluntarista, pôs tudo a perder. A recessão e a inflação, além do descontrole fiscal, levaram Dilma ao impeachment. O vice Michel Temer, que assumiu a Presidência, herdou uma crise tríplice — econômica, ética e política — e as reformas ficaram no caminho. A reforma trabalhista foi aprovada, mas a da Previdência subiu no telhado.
A operação Lava-Jato atingiu todos os grandes partidos, o governo Temer e o Congresso. Lula foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, está preso e foi proibido de disputar as eleições pela Lei da Ficha Limpa. Além de interromper as reformas, a crise resultou num país dividido, radicalizado, decepcionado e embrutecido. Três anos de recessão e um ano de baixo crescimento levaram ao desemprego milhões de brasileiros, agravaram o desenvolvimento desigual e as iniquidades sociais, elevaram os índices de violência. Hoje, vão às urnas 12,9 milhões de desempregados, o que corresponde a 12,3% da força de trabalho do país.
Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), atualmente, 11,2% da população brasileira, ou seja, 23,3 milhões de pessoas, vivem abaixo da linha de pobreza, com renda média de R$ 232 ao mês. Entre 2014 e 2017, a pobreza cresceu 33%, atingindo 6,3 milhões de pessoas. O primeiro sinal dessa regressão veio em 2014, ano da reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff: houve redução de 58% na geração de empregos, que caiu de 1,49 milhão de vagas para apenas 623 mil empregos formais. Foi o pior resultado desde 1999. De dezembro de 2014 até o primeiro trimestre de 2017, já no governo Temer, foram oito trimestres de queda do PIB, a maior recessão da história do país.
O Brasil está numa gangorra. Após dois anos de retração, a economia voltou a crescer em 2017, porém, sem gerar empregos na escala necessária. O governo, devido à dívida pública, não tem recursos para investimentos. E o dólar sobe em razão da taxa de juros americana e da guerra comercial entre China e EUA. O país está dividido. A região Sudeste, a mais rica do país, que concentra 43,3% dos eleitores, e o Nordeste, com 26,6%, tomam rumos opostos na disputa eleitoral. As desigualdades sociais e a corrupção alimentam a desesperança e o ódio, contra a esperança e a razão. Entretanto, democracia é o melhor remédio para os males da nossa sociedade. Já temos uma tradição de eleições limpas e pacíficas. A vontade do eleitor é soberana, não pode ser afrontada. Qualquer que seja o resultado da eleição, um bom governo é uma construção política democrática, que começa com o voto secreto e direto. Quando o Brasil vai às urnas, o poder está nas mãos de Sua Excelência, o eleitor!
» MAPA ELEITORAL
Total de eleitores: 147.302.357
» Masculino: 69.901.037 (47,45%)
» Feminino: 77.337.919 (52,50%)
» Não informado: 63.401 (0,04%)
Por Região
Centro-Oeste: 10.747.116
Nordeste: 39.222.149
Norte: 11.533.833
Sudeste: 63.902.501
Sul: 21.396.031
Exterior: 500.727
Grau de instrução
» Analfabeto: 6.574.111 (6,80%)
» Ensino fundamental completo: 10.030.148 (6,80%)
» Ensino fundamental incompleto: 38.063.892 (25,84%)
» Ensino médio completo: 33.676.853 (22,86%)
» Ensino médio incompleto: 24.864.061 (16,88%)
» Lê e escreve: 13.147.187 (8,92%)
» Não informado: 56.359 (0,03%)
» Superior completo: 13.576.120 (9,21%)
» Superior incompleto: 7.313.626 (4,96%)
Congresso em Foco: Exército faz pacto para garantir a ordem institucional
Há um pacto entre os integrantes do Alto Comando do Exército para garantir a ordem institucional, independente do resultado das eleições
Pedro Paulo Rezende, Especial para o Congresso em Foco
O Alto Comando do Exército vai garantir a ordem institucional e não permitirá qualquer aventura promovida por inconformismo ideológico de candidato, seja qual for o resultado das eleições. Segundo um oficial que integra o colegiado, há um compromisso moral dos integrantes do organismo com o comandante da força terrestre, o general de exército Eduardo Villas Bôas. É um pacto que está acima da preferência política individual dos oficiais superiores, forjado pelo respeito a alguém que colocou como missão final de vida assegurar a transição da Presidência da República a um eleito dentro da normalidade constitucional.
Villas Bôas sofre de uma doença degenerativa motora grave. Os sintomas assemelham-se aos da esclerose lateral amiotrófica (ELA), ou "doença de Lou Gehrig". A síndrome desencadeia um processo de paralisia progressiva, que repercute na respiração, na fala e na deglutição, mas mantêm inalteradas as condições mentais do paciente.
O Alto Comando do Exército concentra os 16 oficiais de posto mais alto na organização (incluindo o comandante), o de general de exército, mais popularmente conhecido como general de quatro estrelas. Cabe a eles assessorar o comandante, estabelecer as políticas e resolver os temas comuns da força terrestre.
No último mês, todos os candidatos a presidente foram convidados a visitar os comandos militares. A rotina dos encontros abrangia uma exposição dos programas de cada força (incluindo também a Marinha e a Aeronáutica). No caso específico do Exército, era sempre reiterada a garantia de que o resultado das urnas será respeitado. Para o general Villas Bôas, a doença exigia um esforço extra para participar dessas reuniões.
General Villas Bôas
Hoje, as condições de saúde do comandante do Exército são tão graves que começaram a afetar os seus despachos com os oficiais do Alto Comando, que para poupá-lo passaram a tomar algumas decisões sem consultá-lo nos assuntos mais rotineiros. Quando há necessidade de sua presença em solenidade ou para receber alguma autoridade estrangeira ou nacional, a medicação é reforçada para suportar o sacrifício extra.
Democracia sob tutela militar
Os militares ganharam força no atual governo e não há qualquer exagero na afirmação de que as Forças Armadas hoje tutelam a frágil democracia brasileira. Vários fatores contribuíram para esse processo, que também colocou o comandante do Exército no papel de fiador da continuidade de Michel Temer na Presidência da República.
O primeiro deles veio do processo de impeachment de Dilma Rousseff. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, manteve contato estreito com o comandante do Exército até a cassação da chefe de Estado e a condução definitiva de Temer para o Palácio do Planalto. O objetivo era impedir confrontos entre os partidários contra e a favor do governo.
Depois, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, solicitou a abertura de dois inquéritos contra o presidente recém-efetivado. Embasou seus pedidos a partir de gravações feitas com consentimento do Ministério Público, por Joesley Batista, executivo da JBS, em uma visita fora da agenda, no meio da noite, ao Palácio do Jaburu. Um assessor de Temer, Rodrigo Rocha Loures, ainda foi preso em flagrante com R$ 480 mil em notas marcadas entregues por Batista.
Temer distribuiu benesses no Congresso e escapou. A Câmara negou autorização para que ele fosse investigado, o que o obrigaria a deixar o cargo, alegando que ele responderá pelos seus atos criminalmente após deixar o Planalto. Durante toda a polêmica sobre o assunto, Temer contou com as bênçãos de Villas Bôas. A razão era simples: para os militares, era melhor ter um governo fraco do que governo nenhum.
Até junho deste ano, o general Villas Bôas manteve uma rotina semanal: compartilhar e analisar os dados obtidos pela inteligência da força sobre a conjuntura institucional com a cúpula do Exército em Brasília e, por meio de teleconferência, com os comandantes de área. O objetivo desses encontros era avaliar os fatos na perspectiva do papel constitucional das Forças Armadas, que inclui “a defesa da pátria” e a “garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem”.
Nessas reuniões forjou-se o consenso – e aí está o “pacto” – de que uma ação de intervenção militar só se justificaria em um quadro de completa falência das instituições nacionais. A informação de que tal possibilidade chegara a ser cogitada pelo Exército nacional era um segredo que veio a público em 15 de setembro do ano passado, em uma conferência do secretário de Economia e Finanças, general de exército Antonio Hamilton Martins Mourão, na Loja Maçônica Grande Oriente de Brasília.
A quebra do pacto de silêncio foi o primeiro sinal de dissenso na força. Mourão passou para a reserva em fevereiro, depois de perder o comando militar do Sul e passar um tempo em um cargo importante, mas burocrático. Hoje, ocupa o posto de vice na chapa do candidato do Partido Social Liberal (PSL), o deputado Jair Messias Bolsonaro.
Apoio envergonhado
Dentro do Alto Comando, Bolsonaro é considerado um “mal menor”, mas enfrenta certas restrições. Os generais de exército não perdoam seus pecados de juventude. Por outro lado, alguns temem que um eventual governo do Partido dos Trabalhadores (PT) leve à radicalização da esquerda.
— Não vamos deixar que o país se transforme em uma Venezuela — disse um integrante do colegiado ao Congresso em Foco.
Os quatro-estrelas não esquecem que, quando estava na ativa, Bolsonaro planejou explodir bombas em quartéis da Vila Militar do Rio de Janeiro e destruir a Adutora do Guandu para protestar contra os baixos salários dos militares. Condenado em 1987 a 15 dias de cadeia pelo Conselho de Justificação (primeira instância da Justiça militar) e expulso da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, ele pediu passagem para a reserva e iniciou sua carreira política.
O general Leônidas Pires Gonçalves, que chefiava o Ministério do Exército, enviou o processo para o Superior Tribunal Militar (STM) solicitando o agravamento da pena por indisciplina e deslealdade. Ele queria expulsar e cassar a patente de capitão de Bolsonaro. Em 1988, o pedido foi negado, por falta de provas, por 9 a 4 votos. Os ministros seguiram o parecer do relator, general de Exército Sérgio Ary Pires, que considerou a punição aplicada pelo Conselho de Justificação correta.
Ary Pires era desafeto de Leônidas e se empenhou em minimizar as acusações. Em depoimento ao Centro de Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, o tenente-brigadeiro Cherubim Rosa Filho, que participou do julgamento, confirma a punição por indisciplina dada pela primeira instância.
Contra esse passado transgressor do candidato do PSL, porém, os generais contrapõem a questão da corrupção nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, revelada pelo escândalo do mensalão e pela Operação Lava Jato. O atentado contra Bolsonaro em Juiz de Fora, no dia 6 de setembro, acirrou ainda mais a rejeição ao PT e à esquerda em geral. Em resposta, Villas Bôas convocou uma reunião do Alto Comando, que deixou claro o repúdio da força terrestre ao ato.
A partir daí militares da reserva que integram a campanha de Bolsonaro, como o general Augusto Heleno, que tem bom conceito entre os ex-colegas de farda, começaram a se aproximar do colegiado. Apesar disso, a cúpula manteve o pacto de silêncio em respeito ao comandante do Exército. O general de Exército Geraldo Antônio Miotto, comandante militar do Sul (CMS), é um dos principais defensores dessa atitude de ponderação, e aos poucos, sua ascendência se torna mais forte entre os colegas, principalmente diante da ausência, cada vez maior, do comandante da força.
Villas Bôas, o El Cid
Um oficial do Alto Comando comparou a obstinação de Villas Bôas à do mítico herói espanhol El Cid Campeador, alcunha de Rodrigo Diaz de Vivar, herói da reconquista espanhola. Ele se tornou um símbolo do guerreiro cristão na luta contra os mouros.
Conta a lenda que, ferido de morte, El Cid manifestou seu desejo de continuar combatendo. Sua mulher, a princesa Ximena Díaz, vestiu o corpo do marido com sua melhor armadura, colocou-o sobre o cavalo para que, mesmo depois de morto, ele comandasse suas forças contra os inimigos da cristandade. A realidade foi bem menos romântica. Ele morreu em 1099, de causas naturais, e logo em seguida os mouros retomaram o Principado de Valência que El Cid conquistara e governou.
Neste ponto, Villas Bôas ultrapassou o famoso herói. Semiparalisado, ele continua como fiador da ordem institucional e não há quem o substitua, dado o imenso prestígio do comandante nas tropas do Exército. Elas veem com maus olhos os generais que deixam comandos militares e seguem para a Esplanada dos Ministérios.
Enquadram-se nessa categoria o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen; o ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna (visto como um subordinado do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann); e o assessor da presidência do Supremo, Fernando Azevedo e Silva, escolhido pelo ministro Dias Toffoli para ser a interface entre os militares e o Judiciário.
* Pedro Paulo Rezende, um dos jornalistas brasileiros com maior experiência na cobertura da área militar, já trabalhou nos jornais O Globo e Correio Braziliense e foi o correspondente brasileiro da mais importante publicação jornalística do setor, a Jane's Defence Weekly. É colaborador dos sites DefesaNet e Congresso em Foco.
El País: A prolongada e incômoda sombra dos militares nas eleições brasileiras
Exército retoma protagonismo no maior país da América Latina pela primeira vez em 30 anos de democracia
Por Afonso Benites, do El País
Pela primeira vez em 30 anos o Brasil vive uma campanha eleitoral sob a desconfortável sombra dos militares, que se tornaram, novamente, protagonistas na esfera pública. Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, encabeça as pesquisas para o primeiro turno das eleições presidenciais, que serão realizadas no domingo. Se vencer, seu vice-presidente será o ex-general Hamilton Mourão, que defendeu os torturadores da ditadura militar (1964-1985) e um novo golpe como solução para a crise política brasileira. Apesar de suas declarações controversas, em fevereiro deste ano ele deixou o Exército elogiado pelo comandante e general Eduardo Villas Bôas. Este também foi o ano em que o presidente Michel Temer tirou da cartola o general Walter Braga Netto para ser o interventor federal no Rio de Janeiro para controlar a descontrolada segurança pública do Estado e o general Joaquim Silva e Luna, nomeado como ministro da Defesa, o primeiro militar em 20 anos a ocupar esse cargo.
Há um ano o cenário era diferente: "as instituições brasileiras melhoraram. No passado estávamos sempre pensando nos generais. Agora não sabemos o nome de nenhum general, mas todo mundo conhece todos os ministros do Supremo Tribunal Federal", dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) em entrevista ao EL PAÍS em setembro do ano passado. Em muito pouco tempo, as coisas mudaram.
O comandante Villas Bôas se tornou um dos protagonistas deste ano eleitoral. Um dia antes de o Supremo Tribunal decidir sobre o futuro judicial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores, PT), em abril, ele publicou dois tuítes nos quais pressionava os juízes, repudiava a impunidade e dizia estar atento a suas "missões institucionais". Poucos meses depois, convidou todos os candidatos à Presidência para uma conversa incomum sobre questões nacionais, em um momento de dificuldades e cortes orçamentários, mesmo nas Forças Armadas. - Questionado, o Exército afirmou que as reuniões procuraram “discutir o tema Defesa Nacional, atinentes ao Exército Brasileiro, e ressaltar a importância da adoção de políticas que garantam o avanço indispensável dos programas estratégicos da Força”.
À beira de eleições imprevisíveis, o comandante chegou a dizer, em entrevista dada após o atentado sofrido por Bolsonaro, que o presidente eleito nas eleições poderia ter sua "legitimidade questionada", cruzando novamente, para muitos, uma linha vermelha em seus comentários políticos. Tudo isso em um contexto em que Bolsonaro afirma que só aceitará o resultado das eleições se for o vencedor, embora tenha moderado a ameaça na última semana.
O que o Exército fará? Esta questão não fazia parte do debate público brasileiro desde a transição democrática dos anos 80.
Os alarmes voltaram a disparar depois que o novo presidente do Supremo Tribunal, José Antonio Dias Toffoli, nomeou o general Fernando Azevedo e Silva como seu assessor com o beneplácito do todo-poderoso Villas Bôas. Azevedo e Silva também fez parte, de acordo com vários relatórios, da equipe que elaborou as propostas do governo de Bolsonaro.
Na segunda-feira, durante uma conferência, Toffoli disse que prefere o termo "movimento de 64" para se referir ao golpe que estabeleceu uma ditadura no país e atribuiu a intervenção militar à disputa política daqueles anos entre a direita e esquerda. Diz basear-se nos estudos do consagrado historiador Daniel Aarão Reis, mas o súbito exercício do revisionismo histórico em plena campanha lhe valeu duras críticas. "Toffoli, como muitos outros, tenta apaziguar a extrema direita com piscadelas conciliatórias. É um erro: historicamente os extremistas avançaram sobre concessões inconsistentes que os fortaleceram", analisa para El País o próprio Aarão Reis.
O aumento da presença militar nas eleições também se dá na esfera legislativa. Houve, neste ano, um aumento no número de candidatos que se declaram militares. São 932 nomes vinculados às Forças Armadas, às Polícias Militares ou aos Bombeiros Militares. Na eleição de 2014, eram 842.
Olhar para o passado
Para entender como o Brasil chegou até aqui, é preciso olhar para o passado. Durante quase um século, desde que o marechal Deodoro da Fonseca proclamou a república brasileira em 1889 até o final da ditadura militar (1964-1985), o Exército funcionou como uma espécie de "partido de uniforme" — como o catalogou o excelente historiador Boris Fausto— ou como um poder moderador. Os militares intervieram ativamente na política, mesmo como candidatos. E, quando necessário, foram mais longe, como aconteceu em 1956, quando evitaram que o presidente Juscelino Kubitschek fosse impedido de assumir o poder.
Com a Constituição de 1988, que consagrou a Nova República brasileira, os militares retornaram aos quartéis, sob as ordens de seu comandante máximo, o presidente da República civil eleito pelo povo. A presença militar foi reduzida pouco a pouco. Sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, os ministérios militares foram extintos e o Ministério da Defesa foi criado, ocupado até este ano por civis, uma tradição que Temer rompeu ao nomear este ano o general Silva e Luna.
Uma comissão da verdade criada durante o mandato de Dilma Rousseff (2011-2016) investigou os crimes da ditadura militar, mas o Brasil, ao contrário da Argentina e do Chile, nunca julgou os comandantes do regime autoritário. Mesmo depois de serem retirados do poder, os militares nunca chegaram a reconhecer os crimes da ditadura ou a pedir desculpas à sociedade. E sempre houve aqueles que continuaram a exaltar publicamente a "Revolução de 64" e sua "luta contra o comunismo e o terrorismo". Agora, pela primeira vez na democracia, eles têm um porta-voz de peso: o extremista Bolsonaro.
O candidato de direita deu um impulso fundamental àqueles que, na reserva, se juntaram a grupos de direita e anti-PT que, em 2015, começaram a ocupar as ruas para exigir o impeachment de Rousseff. Nesse contexto, as redes sociais se tornaram um importante canal de comunicação entre cidadãos e militares, e a travessia culminou com vários ex-militares se candidatando a governador ou deputado. Eles se apresentam como a reserva moral da nação em um momento de revolta contra políticos e instituições, e aproveitam o fato de que os cidadãos continuam a confiar principalmente nas Forças Armadas, de acordo com as pesquisas. Na democracia, o único ex-militar que se tornara político até agora era o próprio Bolsonaro, deputado federal há 28 anos.
São justamente os uniformizados que compõem o primeiro círculo de poder da equipe do atual candidato à presidência do país mais populoso e poderoso da América Latina. O conhecido general da reserva Augusto Heleno, que comandou a missão de paz da ONU no Haiti, se reúne duas vezes por semana com técnicos e outros militares para discutir temas como segurança pública, infraestrutura ou a questão indígena. Por sua vez, o general Aléssio Ribeiro Souto —que em uma entrevista recente disse que "os livros de história que não dizem a verdade [sobre o golpe militar] devem ser eliminados"— ajuda com as diretrizes para as políticas de educação e ciência. E há também Mourão, o poderoso candidato a vice-presidente de Bolsonaro, que se mostrou a favor de uma comissão de especialistas para redigir uma nova Constituição e defendeu, uma vez mais, que o presidente poderia dar um "autogolpe" em caso de "anarquia".
Os mais assombrados não param de fazer comparações diretas com o contexto do golpe militar dos anos 60. O historiador Aarão Reis enfatiza que são momentos distintos, especialmente no cenário geopolítico mundial. Mas, assinala, algo une os dois períodos: "Em ambos existe a força emergente da extrema direita, com a explicitação de nostalgias de um governo forte e até ditatorial, como alguns propõem".
Para a cientista política da Universidade de Brasília, Flavia Biroli, os militares assumem posições mais centrais ou expressivas no debate público, na medida em que existe uma abertura maior para se trazer a memória e o protagonismo no regime de 64 como algo aceitável na disputa política. "“No debate público, no modo de conformação do poder público, houve uma limitação da participação de militares na composição de governos, eles começam a demandar um lugar de fala mais forte depois que a Comissão Nacional de Verdade é implementada. A reação deles à comissão já apresentava registros que estão presentes de forma mais aberta no debate político-eleitoral”.
Biroli diz que os militares buscam fazer um revisionismo da história. “Os militares não aceitam que exista uma visão crítica e democrática, responsabilizando os militares e o Estado por crimes que ferem os direitos humanos”.
Demétrio Magnoli: Fux e as crianças
Imerso em sua arrogância, ministro diz que protegerá os cidadãos
Luiz Fux é um homem de muitos princípios — tantos, que seleciona o mais conveniente para cada circunstância. O juiz chegou ao STF quando sugeriu a José Dirceu que absolveria os réus do mensalão (“eu mato no peito”).
Já ministro, entre a lei e a palavra empenhada, optou pela primeira, condenando-os. Mais tarde, empurrou a lei para um bueiro e escolheu o corporativismo, estendendo o auxílio moradia a toda a magistratura. Agora, tritura a Constituição para reinstalar a censura prévia, proibindo a realização e a publicação de entrevistas com o presidiário Lula.
No seu despacho, o principista invoca os limites legais à propaganda eleitoral para justificar seu veto ao trabalho jornalístico, confundindo deliberadamente assuntos desconexos. Ele sabe que viola a lei. Mas o faz porque quer e pode, operando no terreno da desinstitucionalização do país e da anarquia judiciária.
A confirmação da liminar fuxiana pelo presidente da corte, Dias Toffoli, acelera a “autofagia” do Supremo (apud ministro Marco Aurélio). Mas, sobretudo, sedimenta um precedente: de direito dos cidadãos, a liberdade de imprensa fica rebaixada à concessão de uma reinventada “Divisão de Censura Federal”, que passa a funcionar clandestinamente no gabinete dos ministros do STF.
O episódio guarda um segredo. O pedido de liminar oriundo do Partido Novo — uma igrejinha de auto-intitulados liberais sempre prontos a apelar pelo veto de candidaturas e pela censura à imprensa — foi encaminhado ao presidente do STF, que estava no país, mas desviou-se misteriosamente até o colo de Fux. A decisão do Censor, derrubada por Lewandowski, acabou reimposta por um Toffoli ressurgido da noite escura. A triangulação entre o partido e dois ministros que fazem tabelinha tem os contornos clássicos de uma ação entre amigos. A exposição do segredo é, porém, menos relevante que o exame das bases filosóficas da restaurada censura prévia.
Num artigo recente, publicado pela Revista de Jornalismo ESPM, Eugênio Bucci e Carlos Eduardo Lins da Silva identificaram a emergência do “jusbonapartismo” — o poder bonapartista de um Judiciário que se ergue acima da lei. Eis a chave para decifrar o ato de censura prévia. Fux argumenta que a “relativização excepcional da liberdade de imprensa” (isto é, a censura prévia) destina-se a evitar a “desinformação do eleitor”, a “confusão do eleitorado”.
É direito criativo em estado puro: a fabricação expressa de uma Constituição alternativa. Imerso no lago de sua arrogância, o Censor declara que protegerá os cidadãos de si mesmos. A nação, formada por crianças, será tutelada por um ente de consciência paternal, que é ele mesmo.
Desde o mensalão, o PT clama aos céus pela implantação do “controle social da mídia”. No núcleo do conceito petista, encontra-se a noção de que uma representação da “sociedade” deve exercer a prerrogativa de censura, a fim de presevar os cidadãos indefesos de ideias venenosas propagadas pela “mídia”. Ironicamente, é Fux, esse militante improvável, quem realiza o sonho do partido. Só que no lugar de “conferências” “conselhos” ou “comitês populares” gerados pelo governo (isto é, de fato, pelo Partido), o ministro atribui ao STF o papel de Poder Tutelar.
Num tuíte de agosto, Trump referiu-se do seguinte modo aos jornalistas: “De propósito, eles causam grande divisão e desconfiança. Eles também podem provocar guerra! Eles são muito perigosos e doentes!”. O arco do “controle social da mídia” abrange correntes ultranacionalistas de direita nos EUA e na Europa e regimes autoritários de esquerda, como os de Cuba e da Venezuela. No Brasil, funciona como ponto de encontro do lulismo (“mídia golpista”) com o bolsonarismo (“mídia vermelha”). Fux, o Censor, não proíbe a entrevista de Lula por divergir do lulismo, mas por concordar doutrinariamente com ele.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.