Eleições
Bruno Boghossian: Bolsonaro deixa de exercer papel de líder diante de intolerância
Candidato usou retórica de desrespeito, mas deve condenar agressões com veemência
Jair Bolsonaro afirmou que dispensa o apoio de quem pratica violência contra seus opositores. No lugar de uma condenação veemente, publicou uma mensagem com um esforço banal de se descolar de ataques com motivação política registrados nos últimos dias: “A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência”.
A não ser que esteja concorrendo a vereador em Serra da Saudade (MG), Bolsonaro deveria estar mais preocupado. O próximo presidente vai assumir o comando do país num momento em que pessoas agridem e matam outras por razões políticas.
O presidenciável conhece como poucos a intolerância que esta eleição despertou. O bárbaro atentado que sofreu há pouco mais de um mês foi um sinal dramático de que a situação ameaçava sair do controle.
Na ocasião, seus adversários na disputa repudiaram o episódio, mas alguns deram de ombros. Embora tenha emitido um lamento, Dilma Rousseff disse que Bolsonaro plantou o ódio que se voltou contra ele. Recomenda-se que o candidato não reproduza a insensatez de seus rivais.
Quando o capoeirista Moa do Katendê foi morto com 12 facadas numa discussão política, Bolsonaro disse que o criminoso cometeu um “excesso”. A vítima declarava voto no PT. O assassino defendia o candidato do PSL e disse ter sido xingado. O presidenciável perguntou: “O que eu tenho a ver com isso?”.
A maioria dos eleitores de Bolsonaro obviamente reprova essa selvageria. É papel digno de um líder entrar em sintonia com seus apoiadores, manifestar repulsa e censurar qualquer comportamento agressivo.
Sem provas, o deputado diz suspeitar que alguns casos de violência são forjados para prejudicá-lo. Não custa demonstrar indignação enquanto aguarda as investigações.
O candidato conquistou apoio com uma retórica de desrespeito a adversários políticos e minorias. Um presidente não pode legitimar a intolerância. A panela foi destampada e há poucos indícios de que a temperatura vai cair após a eleição.
José Serra: Constituição na crise dos 30
Precisamos reagir contra as sinalizações de mudanças constitucionais radicais
Há 30 anos, completados semana passada, foi promulgada a atual Constituição, que Ulysses Guimarães batizou de “cidadã”. O texto resultou dos trabalhos da Constituinte eleita em 1986, da qual participei ativamente, mediante a apresentação de ao menos duas centenas de emendas, 60% delas aprovadas. Além disso, fui relator dos capítulos sobre orçamento, tributação e finanças.
Desde então sempre me alinhei à tese de que a maior virtude da Carta de 1988 é sua vocação garantidora de direitos. De fato, ela expressou o repúdio ao período autoritário (1964-1985) - repleto de pressões golpistas e agressões aos direitos individuais. A nova Carta consagrou esses direitos e a liberdade de opinião, manifestação e organização. Também criminalizou o racismo, aboliu o banimento e a pena de morte, afirmou a liberdade religiosa, o repúdio à tortura e aos tratamentos desumanos ou degradantes. Tudo condensado no artigo 5.º, formado por 78 dispositivos.
Além disso, outros avanços foram a concepção do SUS e a criação (de minha autoria) de um fundo que reuniu as contribuições do PIS-Pasep para tornar viável o seguro-desemprego e financiar investimentos. Importantes também foram os capítulos sobre finanças públicas e controle externo do Executivo e do Legislativo. Ampliaram-se as atribuições do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Aumentou também a abrangência do orçamento fiscal, que absorveu as rubricas de seguridade social e investimentos das estatais.
Do outro lado da balança estão os “defeitos” da Constituição de 1988, que vão da prolixidade ao seu caráter programático, abrigando minudências típicas de lei ordinária e estabelecendo não apenas as regras do jogo da sociedade, mas também os resultados das partidas.
Isso se deu, em parte, porque a convocação da Constituinte foi uma bandeira da oposição ao regime militar desde meados dos anos 70. Para a sociedade, ela aparecia como a grande saída para a volta da democracia e para o avanço do bem-estar material. Esperava-se que os problemas econômico-sociais fossem resolvidos pela Constituição.
Essa “responsabilidade” redentora da nova Carta acabou sendo ampliada pelo Congresso já em 1987, quando começou a Constituinte, precisamente depois do colapso do Plano Cruzado, que representou a primeira grande (e fracassada) tentativa de derrubar a superinflação. Esse colapso comprometeu o apoio político do governo presidido por José Sarney, que assumira o comando do Poder Executivo com a morte de Tancredo Neves, no início de 1985. O PMDB era o maior partido de sustentação do governo.
Naquela conjuntura conturbada, a maioria dos constituintes procurou responder à insatisfação social mediante a aprovação de dispositivos constitucionais detalhistas e cada vez mais generosos do ponto de vista social, federativo e regional. Assim, da arena da Constituinte brotou um texto prolixo e influenciado pelas contingências econômicas e políticas do momento. No critério de tamanho, somente as Constituições da Índia e da Nigéria são mais prolixas do que a nossa.
O corporativismo no interior da administração pública foi extremamente reforçado. Por exemplo, concedeu-se a estabilidade aos servidores públicos não concursados que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de promulgação da Carta. Abriu-se também o caminho para as isonomias salariais no setor público, um poderoso e perverso mecanismo de geração de despesas permanentes.
Em relação ao federalismo, o fato mais notável foi a acentuada redistribuição de receitas a favor de Estados e municípios, desacompanhada, no entanto, da transferência de encargos da União. Recente estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) concluiu que o sistema federativo brasileiro é um dos mais incoerentes do mundo: descentralização de receitas para os governos subnacionais e centralização de encargos para o governo central.
Diante desse histórico, cabe hoje perguntarmos o que fazer. Começo assinalando o que não se deve fazer: sou contra a convocação de uma nova Constituinte eleita pela população, que abriria caminho para instabilidade política e econômica sem igual. Não há por que imaginar que uma nova Constituinte faria tudo certo. Ao contrário.
Do mesmo modo, não me parece pertinente a instalação de um poder constituinte ao estilo Hugo Chávez ou na tradição do famoso AI-5. Isso representaria um golpe de Estado, desrespeitando frontalmente a atual Constituição, cujo artigo 60 é bastante claro: mudanças constitucionais podem ser propostas no processo parlamentar, com aprovação de 3/5 nas duas Casas, desde que não modifiquem a forma federativa de Estado, o voto secreto, direto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Combatendo o bom combate e respeitando as regras do jogo, tive a oportunidade de ser autor de 17 propostas de emenda constitucional, que resultaram em três importantes e históricas mudanças da nossa Lei Maior. A primeira possibilitou alterar as datas da revisão constitucional. A segunda revogou o bizarro dispositivo que fixava o teto de 12% para as taxas de juros reais da economia. A terceira - aprovada no ano passado - instituiu um novo regime para tornar viável a quitação das dívidas de precatórios pelos governos estaduais e municipais.
Mas a Constituição federal inegavelmente atravessa uma crise existencial. Precisamos reagir contra as atuais sinalizações de mudanças constitucionais radicais - emitidas por representações dos partidos que disputam o segundo turno para presidente -, tendo sempre conosco as palavras de Ulysses Guimarães: “A grande força da democracia é confessar-se falível de imperfeição e impureza, o que não acontece com os sistemas totalitários”.
* José Serra é senador (PSDB-SP)
William Waack: Sem resposta simples
Vista de fora do Brasil, a onda bolsonarista desafia interpretações
Vista de Nova York, onde estou palestrando para investidores estrangeiros, a onda que levou Bolsonaro aos seus 50 milhões de votos no primeiro turno é uma jabuticaba política brasileira ou simplesmente a expressão de um fenômeno autoritário com variadas ramificações mundo afora?
Pelo menos três elementos a política brasileira tem em comum com ondas semelhantes na Ásia, Europa e Estados Unidos. Eles são: o descrédito e a desconfiança do eleitor em relação a instituições tradicionais, incluindo perda de credibilidade dos grandes órgão de imprensa; a presença de fortes redes sociais que impulsionam “outsiders”; uma situação de crise ou paralisia na economia (no caso brasileiro, a pior recessão em gerações).
Aos elementos acima teríamos de acrescentar partidos desmoralizados, sistema político destruído, e as consequências da Lava Jato como expressão de indignação e raiva que vem já desde 2013. Ou seja, aos elementos comuns a muitos países somam-se fatores domésticos de alta relevância.
O “fenômeno político Bolsonaro” atraiu enorme atenção fora do Brasil – e dificuldades de interpretação idem. O mínimo denominador comum encontrado entre publicações normalmente divergentes entre si (como The Guardian ou Economist), por exemplo, foi o de ressaltar perigos severos à democracia. A palavra “fascista” aparece em publicações como Der Spiegel, revista importante num país no qual esse vocábulo tem peso muito especial. Mesmo o Financial Times, que provavelmente tem a melhor cobertura do Brasil na grande imprensa internacional, vê na figura de Bolsonaro o prenuncio de tempos duros – a inversão de uma tendência, segundo o FT, que o Brasil também simbolizara ao sair do regime militar há mais de 30 anos.
Para comediantes da telinha americana como John Oliver, a eleição brasileira virou piada pronta, com a exibição das aberrações de propaganda eleitoral produzida por candidatos a deputado, passando por Lula na cadeia (aqui fora se acha mesmo piada que um presidiário surgisse como favorito nas pesquisas eleitorais) e chegando até algumas das frases mais contundentes de Bolsonaro – aqui, segundo o humorista, acaba a graça.
A “guerra cultural” brasileira invadiu também o espectro de opiniões nos Estados Unidos, com o Wall Street Journal reconhecendo em editorial que progressistas no mundo inteiro ingressaram em “estado de ansiedade” desde que os brasileiros deram votação tão expressiva a Bolsonaro. Mas não será o próprio eleitor brasileiro que sabe melhor que ninguém de qual candidato precisa?, indagou o WSJ.
Quanto aos investidores estrangeiros, concentrados em grande número em Nova York, a política brasileira se resume a uma pergunta: “Can he deliver?” – Bolsonaro consegue entregar o que precisa ser feito, na perspectiva de quem pretende pôr dinheiro no nosso país, ou seja, ele consegue as reformas necessárias para atacar a questão do gasto público e a recuperação da capacidade de investimento na economia?
Confesso que não consegui dar a eles uma resposta simples. É óbvio que a onda do fim de semana passado mudou bastante a política e sugere desdobramentos de alcance maior do que a capacidade de se construir maiorias para votações na Câmara dos Deputados. A onda desenha uma oportunidade que pode ser ampliada com o “capital político”, como gostam de dizer os economistas, que Bolsonaro está acumulando.
Soa esperançoso? Depende para trazer resultados de uma capacidade de articulação e liderança políticas que até agora ninguém demonstrou.
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro larga na frente
“Em termos de votos válidos, Bolsonaro tem 58% e Haddad, 42%, ou seja, uma diferença de 16 pontos, que não é impossível de ser revertida, mas é difícil”
A realização de segundo turno obrigou Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) a buscar a maioria de votos válidos que faltou no domingo passado. Na pesquisa divulgada ontem pelo Datafolha, Bolsonaro larga bem na frente, com 49% de intenções de voto, e Haddad tem 36% dos votos totais, o que confirma as previsões quanto à deriva dos eleitores após o primeiro turno. Brancos e nulos somam 8%; não sabem, não respondeu, 6% dos eleitores.
Em termos de votos válidos, Bolsonaro tem 58% e Haddad, 42%, ou seja, uma diferença de 16 pontos, que não é impossível de ser revertida, mas é difícil. Para isso, Fernando Haddad mudou as cores da campanha, tirou a camiseta vermelha do Lula, livre! e pediu para beijar a mão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O tucano já pode cantarolar um velho samba do Bezerra da Silva: “A necessidade obrigou/ Você a me procurar. /Você era, orgulhosa. /Mas a necessidade acabou com a sua prosa.”
Embora à frente nas pesquisas, a equipe de Bolsonaro também pôs as barbas de molho. O general Augusto Heleno, um dos coordenadores de sua campanha, deu uma entrevista recomendando humildade aos correligionários. Bolsonaro, porém, não mudou o estilo e bate duro em Haddad, a quem chamou de “marmita de corrupto preso”, depois de ser criticado pelo petista, por não ir ao primeiro debate na TV, alegando proibição médica.
No Congresso, nesta semana, deputados reeleitos e derrotados trocavam informações sobre o tsunami eleitoral que varreu parte da antiga elite do Senado e também afastou da Câmara dezenas de cabeças coroadas. Há quatro blocos em formação.
Câmara
O primeiro bloco é liderado pelo PSL, o partido de Bolsonaro, que elegeu a segunda maior bancada da Câmara, com 52 deputados (tinha 8). A orientação de Bolsonaro é atrair parlamentares dos pequenos partidos que não conseguiram ultrapassar a cláusula de barreira, para se tornar a maior bancada da Casa. A movimentação, coordenada pelo deputado Onix Lorenzoni (DEM-RS), tem por objetivo articular uma base parlamentar de 300 parlamentares. A articulação fez a candidatura à reeleição do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), subir no telhado.
O segundo bloco é liderado pelo PT, que elegeu a maior bancada, com 56 parlamentares, um êxito inquestionável. No segundo turno, com as articulações feitas pela campanha de Haddad, agora sob comando do ex-governador e senador eleito Jaques Wagner, esse bloco deve incorporar os parlamentares do PDT, com 34 deputados, e PSB, com 32 deputados, além do PSol, com 10, e o PCdoB, com 9, mas que não alcançou o número de votos exigidos pela cláusula de barreira. Essa frente de esquerda pode se tornar uma oposição radical, se Bolsonaro vencer, ou nuclear a atração das forças ao centro, como aconteceu no governo Lula, caso Haddad vença as eleições. Com certeza, o bloco lançará um candidato à Presidência da Câmara.
O terceiro bloco deve ser articulado pelas bancadas do PP, com 37 deputados; e do MDB e do PSD, com 34 cada, e tentar agrupar os partidos menores que resistirem ao assédio do PSL. É a chamada turma do “Hay gobierno? Soy a favor”. Os três partidos estão encastelados na Esplanada dos Ministérios e serão os mais atingidos na formação do novo governo, em razão dos cargos que hoje ocupam. Um quarto bloco é constituído pelos partidos de esquerda mais moderada: o PSDB, com 29 deputados; o PPS, com oito; o PV, com quatro; e a Rede, com um. Esses partidos terão de se reinventar, qualquer que seja o vencedor do pleito.
Senado
No Senado, o MDB, elegeu sete senadores; Rede e PP têm cinco senadores cada um. DEM, PSD, PT, PSDB e PSL, quatro. Esse resultado alterou a correlação de forças na Casa, reduzindo o peso do MDB, que continua com a maior bancada, com 12 senadores. O PSDB tem nove; o PSD, sete; o DEM, seis; o PDT, seis; Podemos, cinco.
Tradicionalmente, o Senado elege o presidente indicado pela maior bancada e preenche os cargos na Mesa e presidências de comissões pelo critério da proporcionalidade. O senador Renan Calheiros(PMDB-CE), com a não reeleição de Eunício Oliveira, já se movimenta para voltar à Presidência da Casa. Acontece que apoia Haddad; se Bolsonaro vencer, a sua candidatura subirá no telhado, porque a tradição em relação à proporcionalidade poderá ser quebrada na eleição, o que nunca antes aconteceu.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-larga-na-frente/
Manuel Castells: Carta aberta aos intelectuais do mundo
O Brasil está em perigo: pode eleger um presidente fascista, defensor da ditadura militar, misógino, sexista, racista e xenófobo
Amigos intelectuais comprometidos com a democracia:
O Brasil está em perigo. E, com o Brasil, o mundo. Porque após a eleição de Trump, a tomada do poder por um Governo neofascista na Itália e a ascensão do neonazismo na Europa, o Brasil pode eleger um presidente fascista, defensor da ditadura militar, misógino, sexista, racista e xenófobo, que obteve 46% dos votos válidos no primeiro turno das eleições presidenciais. Não importa quem seja seu oponente. Fernando Haddad, a única alternativa possível, é um acadêmico respeitável e moderado, candidato do PT, um partido hoje desprestigiado por ter participado da corrupção generalizada do sistema político brasileiro.
Mas a questão não é o PT, e sim uma presidência de um Bolsonaro capaz de dizer a uma deputada, em público, que "não merecia ser estuprada por ele". Ou que o problema da ditadura não foi tortura, e sim que não tenha matado mais em vez de torturar. Em tal situação, nenhum intelectual, nenhum democrata, nenhuma pessoa responsável no mundo em que vivemos pode permanecer indiferente. Não represento ninguém além de mim mesmo. Não apoio nenhum partido. Simplesmente acredito que seja um caso de defesa da humanidade, porque se o Brasil, o país decisivo da América Latina, cair nas mãos deste desprezível e perigoso personagem e dos poderes fáticos que o apoiam, os irmãos Koch entre outros, teremos nos precipitado ainda mais na desintegração da ordem moral e social do planeta a qual estamos presenciando.
Por isso escrevo a todos vocês, àqueles que conheço e aos que gostaria de conhecer. Não para que subscrevam esta carta como se fosse um manifesto aos ditames dos políticos. E sim para pedir que cada um torne pública e, em termos pessoais, sua petição para uma participação ativa no segundo turno das eleições presidenciais em 28 de outubro, e nosso apoio contra o voto em Bolsonaro, argumentando, segundo a opinião de cada um, e divulgando sua carta por meio de seus canais pessoais, redes sociais, meios de comunicação, contatos políticos, qualquer formato que transmita nosso protesto contra a eleição do fascismo no Brasil. Muitos de nós temos contatos no Brasil, ou temos contatos que têm contatos. Contatemo-los. Uma mensagem por WhatsApp é suficiente ou uma chamada telefônica pessoal.
Não precisamos de uma hashtag. Somos pessoas, milhares, potencialmente falando para milhões, no mundo e no Brasil. E, como ao longo de nossa vida adquirimos, com nossa luta e integridade, uma certa autoridade moral, vamos utilizá-la neste momento antes que seja tarde demais. Farei isso, já estou fazendo. E simplesmente rogo para que cada um faça o que puder.
Limongi: “Líderes responsáveis não têm o direito de se isentar diante da insanidade de Bolsonaro”
Doutor em Ciência Política se diz chocado com inércia de lideranças, como o ex-presidente Fernando Henrique, diante do risco que candidato representa. “Está em jogo a barbárie”
Por Carla Kiménez, do El País
Salto no escuro com Governo obscurantista
Eu quero começar fazendo uma declaração quase que política, pensando como uma pessoa que é financiada para pensar. Eu sou pago pelo Estado brasileiro pra pensar e eu acho que eu tenho que fazer um pronunciamento público. Eu acho que a direita brasileira, o conservadorismo brasileiro - ou o que quer que seja, quem votou e apoiou Bolsonaro – está minimizando o risco que está correndo e está fazendo uma opção muito perigosa. A elite brasileira está dando um salto no escuro. Quer dizer, na verdade não está dando um salto no escuro, porque sabe o que está fazendo e está fazendo bobagem. Estamos aceitando a direita brasileira, o centro brasileiro está aceitando ser liderado por um cara que é um obscurantista, um retrógrado, um apologista da violência, um cara que apoia o golpe de Estado e tem saudade do regime militar.
Covardia inadmissível de Fernando Henrique
Essa direita brasileira, o centro incluído, criou um fantasma e foi gerando um temor desproporcional e descabido ao PT, como se nós estivéssemos de volta à Guerra Fria e o PT fosse uma ameaça comunista, totalitária, o que não é. Não há nenhum elemento, nenhuma informação objetiva que permita chegar a essa conclusão. O PT cometeu erros, cometeu erros sérios, mas eles são fichinhas se comparados ao que o Bolsonaro ameaça fazer e diz que vai fazer e cresceu fazendo. Uma parte do centro está se dizendo diante de uma escolha de Sofia e não está. Só tem um lado que não pode ser escolhido em hipótese alguma e as pessoas estão minimizando isso. Me deu arrepio ver que o Fernando Henrique Cardoso se declarou neutro, isso é uma irresponsabilidade, isso é uma covardia inadmissível. Eu fui presidente do CEBRAP, eu sou herdeiro do Fernando Henrique, eu salvei o CEBRAP de fechar. Eu estou até emocionado [a voz de Limongi fica embargada]. Não é possível que ele não se lembre do que ele sofreu, do que ele passou e que ele minimize isso. E pior! Ele declarou, inicialmente, que seria contra o Bolsonaro e que votaria no PT, agora ele que resolveu usar o Twitter, ele, covardemente, cede à pressão popular. Um intelectual não pode fazer isso, um intelectual tem compromisso. O Fernando Henrique não pode fazer isso.
“Cria cuervos”
Eu salvei o CEBRAP que ele [FH] criou, ia fechar. E eu assumi a presidência para salvar. Sacrifiquei parte da minha carreira acadêmica, fiquei quatro anos lá sem fazer nada, a não ser administrar cozinha de um lugar pra agora ouvir que isso aí [Bolsonaro] não é nada?! Esse cara não envolve risco? Não é possível que não se tenha parâmetro de comparação entre um cara que é apologista de um regime militar, o regime que perseguiu o senhor Fernando Henrique Cardoso, certo? O Fernando Henrique foi parar no pau-de-arara. Um cara que declara ter ódio ao Rubens Paiva, tem uma verdadeira fixação em falar mal do Rubens Paiva, do Vladimir Herzog, acha que aquilo foi um acidente de trabalho, [assassinato de ambos na ditadura], acha que aquilo estava certo. Alguém pode em sã consciência dizer que existe comparação entre o risco que o PT representa e o risco que o senhor Bolsonaro representa? Quem acha que vai tourear esse cara está sendo de uma ingenuidade absurda. Nós já vimos esse filme várias vezes, esse é o famoso Cria Cuervos. Nós estamos aceitando como se não fosse um risco um cara que é apologista da violência da ditadura militar, um cara que votou o impeachment da Dilma elogiando o [Brilhante] Ustra.
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Em jogo, a barbárie
Ninguém que critique o Bolsonaro está defendendo a Dilma ou necessariamente dizendo que PT é santo. É esse maniqueísmo que o centro e a direita brasileira aceitaram jogar e estão agora sendo vítimas dele sem perceber ou o que? Isso é uma insanidade que está acontecendo nesse país. Nós ainda temos chance de corrigir, mas só vai corrigir se gente como o Fernando Henrique Cardoso vier a público e falar como um intelectual e pensar na sua responsabilidade política. É um risco inacreditável que nós estamos correndo, uma irresponsabilidade que essas pessoas que começaram a nutrir um terror ao PT, um horror ao PT, vieram agora a público deixar escapar. Isso não tem cabimento! Isso não tem um termo de comparação. Uma tristeza ouvir a declaração do Xico Graziano dizendo que agora ia apoiar o Bolsonaro. Xico Graziano não tem memória? Não lembra o que aconteceu com ele quando ele se colocou contra, nas redes sociais, o Bolsonaro dizendo que as eleições de 2014 estavam sendo fraudadas? Quando ele saiu a público, corajosamente, para dizer que aquilo era uma besteira ele foi trucidado nas redes sociais por esse grupo de trogloditas que está por trás do Bolsonaro. Não tem meia palavra com esse cara, ele é um troglodita. Isso tem que ser dito, não tem como minimizar isso. Em nome do quê? De um temor que o PT volte a fazer uma política macroeconômica e expansionista? Tudo bem, o PT cometeu erros e tem uma dificuldade de fazer autocrítica. Mas e o senhor Bolsonaro fez alguma autocrítica? Ou, por que que nós devemos acreditar no senhor Bolsonaro paz e amor? O que está em jogo é a barbárie.
Ódio cego ao PT
As pessoas estão sendo vítimas do monstro que criaram, da imagem que criaram. [...] Depois de ser derrotado pela quarta vez pelo PT, ali o centro e a direita perderam a razão, saíram paro tudo ou nada. Mas se eu falo isso as pessoas vão minimizar dizendo "Ah, o cara é petista!" Eu quero falar: "Vamos pensar o que nós temos que fazer?". Não é possível sequer ficar neutro diante deste cenário. Não é uma Escolha de Sofia, só tem um lado, o resto é defesa pra gente sobreviver. E isso eu tô falando digamos assim dos "velhos": [José] Serra, Aloísio [Nunes], Fernando Henrique Cardoso, Xico Graziano [que saiu do PSDB para apoiar Bolsonaro]. Gente que não pode esquecer do que passou. Não pode se esquecer de Rubens Paiva, não pode se esquecer do [Vladimir] Herzog. Isso não pode ser minimizado. Não pode! Não tem como! Esse gênio que está saindo da garrafa, você não põem de volta. Vamos fazer um experimento mental e imaginar que o Haddad declarasse que o seu ministro da Economia será Marcos Lisboa. Cada um tem o [Paulo] Guedes que merece, certo? Então, por que o Fernando Haddad não poderia declarar que o seu ministro da Economia vai ser o Marcos Lisboa? O Marcos Lisboa hoje, por um acaso, é o patrão do Fernando Haddad porque o Fernando Haddad trabalha no Insper, então, ele tá lá dentro. O Marcos Lisboa já trabalhou para o PT, foi parte da equipe do PT. Por que a informação de que o Guedes trabalharia para o Bolsonaro dá mais garantia do que uma possibilidade do PT vir para o centro e ser pragmático.
Perseguição e censura
Lógico [que haverá perseguição]! É disso que estamos falando, censura vem aí se esse cara ganhar! Ele não tem trato com tolerância. Óbvio, vai testar as nossas instituições. Mas as nossas instituições têm se provado muito pouco capazes de lidar com esse perfil.
Desconfiança com urnas, levantada por Bolsonaro
Ele disse que não são capazes de lidar com fake news. E o pessoal diz, “eu não voto mais no PT porque o PT mente”. Sim, e aí vocês votam num cara que é apologista da fake news. Um cara que disse hoje que não vai assinar nada contra a fake news, porque ele pratica fake news, porque ele surfa nisso e é dado a teorias conspiratórias. Ele declarou que existe uma internacional fundada pela Dilma -está lá na entrevista que ele deu para Jovem Pan-, que existe uma internacional da fraude eleitoral da América Latina cuja sede está em Quito, no Equador. O cara é louco, o cara é um desequilibrado. Ele acredita nessas histórias. Essa história da fraude eleitoral é uma das teorias da conspiração mais malucas, a la época da Guerra Fria. [...] E o TSE e a Justiça brasileira foram brandos nisso, ao afastar qualquer hipótese de que isso teria acontecido lá no passado.
Entrevista do Bolsonaro à Record no dia do último debate
A lei eleitoral regula minuciosamente cada acesso à televisão. Isso não existe, tanto que quando há um debate há uma série de regulações: quem pode ser convidado, quem não pode ser convidado. Ninguém pode ser tratado diferente, ninguém pode ter mais tempo. Por que se abriu essa exceção para o Bolsonaro? Isso é inadmissível. Então, tem alguma coisa que está deixando as eleições se tornarem um vale tudo. Há uma sucessão de erros estratégicos. A gente sabe e qualquer estudos de ciências sociais, de interações sociais de pessoas agindo racionalmente com o horizonte limitado, quando você junta todas essas ações o resultado pode ser um resultado péssimo para todos. Está todo mundo agindo racionalmente, todo mundo defendendo seus interesses, lutando pelo seus interesses, mas na hora que interage o resultado é péssimo para todos. A maior parte dos eleitores não quer nenhum dos dois. Mas a elite política criou esse fantasma e o PT agiu equivocadamente, no meu ponto de vista, quanto a sua estratégia. O PT apostou em salvar o Lula, em se agarrar ao Lula e isso foi um erro. Tanto que o PT teve tantos votos quanto ele tem de preferência partidária. Ele ficou reduzido a sua base. Não se ganha eleição assim.
A razão não veio
Acho que ninguém, ninguém imaginou que viria essa violência que veio. Todo mundo achou que em algum momento a razão viria. E eventualmente o "se" não é possível. Você tem o contra factual. Você fala "se" isso tivesse acontecido talvez não tivesse ocorrido a facada, se o Bolsonaro não tivesse sido retirado da campanha, se ele não fosse calado de forma inadvertida, talvez nada disso tivesse ocorrido. O Bolsonaro ficou quieto e foi beneficiado. Receptador de todo esse ódio que se criou na sociedade brasileira pela sua própria elite.
Sem experiência
Eu falo: olha, você ganha mais do que 10 salários mínimos, você que optou pelo Bolsonaro, olha o vídeo desse pessoal quebrando a placa da Marielle, vê em quem você está votando. Quem você acha que está chamando? Está chamando a raposa pra tomar conta do galinheiro, quer dizer, e que garantias lhe dá o senhor Paulo Guedes? Esse cara não tem experiência pública nenhuma, é um desconhecido. Guedes vai nos fazer ter saudades de Guido. Guido vai ser um gênio comparado a Guedes. Não é porque passou por Chicago que você vira gênio. E não é só a esquerda que tem ideologia, a direita - e isso é o que é mais preocupante agora - está gerando uma ideologia perigosíssima. Uma ideologia de intransigências, de radicalismos, de negação de qualquer moderação.
Campanha no WhatsApp
Tem um subterrâneo acontecendo nas redes sociais que é a mesma coisa que aconteceu no Brexit, na Colômbia, nos Estados Unidos. Então, a gente está lutando com este demônio aqui, mas tem também o demônio do WhatsApp. Tem uma loucura rolando e tem uma nova tecnologia para se fazer campanha. Isso mudou. Eu estudo eleições e histórias das eleições há muito tempo e entendo como isso foi se transformando. Se você for olhar nos anos 40, quando o Brasil se redemocratiza, o principal recurso para se ganhar eleições era o caminhão, você precisava tirar eleitor do campo e transportar para cidade. Então, o recurso essencial pelo qual se brigava era o caminhão. Você tirava o caminhão do seu adversário, você ganhava as eleições. Daí chegou um momento que se começa a ter rádio, televisão e agora tem as redes sociais. Isso muda. Vai ter um momento em que essa novidade vai mais ou menos equiparar, os dois lados vão saber usar igual, mas por enquanto a direita está usando melhor, está sabendo usar, está pondo recurso nisso. Está havendo uma “Internacional de Direita”, como tem a “Internacional de Esquerda”. Tem uma tecnologia que está rolando, tem um know-how que está rolando, e esse pessoal se pôs a favor do Bolsonaro. E é um pessoal inconsequente. Nós temos uma direita inconsequente nascendo aqui e que está presente no mundo.
Extrema direita no Brasil
Sempre teve uma extrema direita no Brasil, tem uma parte dizendo que tem uma grande novidade, mas acho que a novidade é menor. Não pode esquecer que Paulo Maluf ganhou todas as eleições na cidade de São Paulo, depois da redemocratização, mesmo quando ele perdeu no Estado pra governador, ele ganhou na capital. Então sempre teve direita, não tem problema ter, é parte do jogo. Se o Bolsonaro ganhar não tem conversa, ele assume o poder e todo mundo aceita, o jogo é esse e o jogo só continua se você aceita brincar dentro das regras do jogo. A questão é se o Bolsonaro aceita jogar com as regras do jogo daqui pra frente.
Educação com Bolsonaro
Vamos pegar os economistas formados em Chicago, formados em Princeton, formados em Harvard que aceitam a ideia de que o grande problema do Brasil é a falta de investimento em capital humano, que o problema é a educação, que o brasileiro é pouco produtivo e que por isso estamos atrasados, por tanto toda e qualquer atenção no Brasil deve estar para a política pública. Essas pessoas têm medo do PT e da política macroeconômica do PT, mas não têm medo da política educacional que o senhor Bolsonaro vai aplicar. Porque ele quer colocar criança de volta pra casa, quer tirar criança de dentro da escola, porque isso faz parte do programa de governo dele [programa sugere a valorização da educação à distância]. Não pode dizer que não leu. O senhor Guedes não vai dar garantia para isso. Ele quer tirar criança da escola, porque ele não quer que as crianças sejam expostas a professores marxistas [programa de Bolsonaro destaca em vermelho ”um dos maiores males atuais é a doutrinação”]. E se as crianças voltam pra casa quem vai tomar conta de criança? Quem vai trabalhar? Olha o desarranjo econômico que esse cara pode gerar por uma insanidade ideológica. Todo mundo falou "ah, o PT é muito ideológico". E o senhor Bolsonaro é um poço de razão e de ciência? Ele é um energúmeno ideológico. Ele vai acabar com a educação no Brasil. Ele vai mandar a gente de volta para a Idade Média. Esse cara é um obscurantista. Ele vê um comunista em cada agente estatal. Aí ele se junta com a direita mais radical, neoliberal, que acha que todo agente do Estado é um paternalista protegendo um looser.
Arrecadações e possível corrupção
Quem vai ser o novo PC Farias [tesoureiro do ex-presidente Collor de Mello]? [Gustavo] Bebiano [presidente do PSL] será o PC Farias 2, certo? Sempre tem que ter um cara que controla todos os contratos, centraliza toda rede de negociações com os interesses, que precisam ser atendidos porque eles vivem de fornecer coisas para o Estado, etc. Essa negociação rola, vai rolar. Então, quem que vai fazer isso? Ou vai ser um dos filhos do Bolsonaro ou vai ser o Bebiano ou vão ser todos eles, cada um em uma área. A corrupção que vai rolar vai ser inacreditável porque é um bando de amadores, uns caras que nunca mexeram com Educação, nunca mexeram com Saúde, nunca mexeram com Ciência e Tecnologia, não sabem o que rola lá. O que vai aparecer de gente para eles vendendo projetos. A hora que muda o governo tá todo mundo caçando onde encaixar o projeto que ele não conseguiu vender ao governo anterior para o novo governo. E obviamente atrás de cada um deles tem um interesse se organizando. Foi isso que o PC Farias fez, vai ser isso que o senhor Bebiano vai fazer ou qualquer um que assumirá esse papel. Tudo bem a Dilma e a política econômica do Guido Mantega e a nova matriz econômica é inadmissível, é um erro crasso, ninguém justifica. Foi uma política macroeconômica eleitoral para ganhar eleição, quebrou o Brasil, foi uma irresponsabilidade. O PT não fez uma autocrítica, um absurdo, jogou dinheiro pela janela, delirou, tudo errado. PSDB também não fez diferente, mas não vamos falar que fizeram igual. Agora o que se está fazendo é uma escolha sem igual entre Bolsonaro e PT.
Crise mundial da democracia
Se for pensar internacionalmente, nós temos uma crise na democracia. Está todo mundo aturdido, é Trump, é Brexit, é Hungria, é Polônia, movimentos aparecendo em tudo quanto é canto, um desequilíbrio muito grande. Acho que tem uma coisa que é geral que deu uma desbalanceada, que talvez tenha a ver com essa mudança de tecnologia, de fazer campanha e o ritmo das tecnologias e adaptação que precisa ter entre o modelo antigo de se conquistar voto e o modelo atual. Mudou e acho que está todo mundo meio baratinado. A forma como a opinião pública reage aos fatos, a velocidade agora é outra. O eleitor está muito mais volátil e uma parte do eleitorado está saindo da política totalmente. O turnout [comparecimento nas urnas] na Europa foi lá pra baixo, nos Estados Unidos foi lá para baixo, então, o centro moderado está saindo, os radicais ficam e a política ganha outra dimensão. Tem alguma loucura acontecendo. Nós não sabemos se isso vai se reequilibrar.
Salvação
O Bolsonaro foi candidato a presidente da Câmara dos Deputados há dois anos, sabe quantos votos ele teve? Quatro. Então, ele era um patinho feio e era desconsiderado, mesmo. Ele era um marginal que ninguém considerava como um player. O pessoal do mercado financeiro o adotou, muito provavelmente trouxe junto essas tecnologias de comunicação e ele foi feito. Uma parte do empresariado o elegeu como a salvação contra o PT.
Partido de Bolsonaro forte no Congresso
Ele ganhou um Congresso mais próximo para ele [elegeu 52 deputados, a segunda bancada da Câmara]. Mas boa parte desses caras não fizeram política, está chegando lá. Kim Kataguiri, que já acha que pode ser presidente do Congresso, é um cara sem senso. Ele tem lá um monte de gente que acha que vai resolver tudo no grito. Sabe-se lá, o [Alexandre] Frota... como vai se comportar? Uma incógnita. Em geral caras como esse desaparecem porque não sabem fazer política. E política é um saco.. Tem de se conversar o dia inteiro.
Política no WhatsApp X política real
No Congresso a política é outra coisa. Tem gente que quando vai lá se prova bom. Caso do Romário. Fez uma agenda legal. É um cara que se deu ao trabalho de aprender um novo business. Essa ideia de que político profissional é um mal... ainda bem que tem político profissional. Houve uma renovação grande, e criou-se um espaço vazio que ninguém sabem quem vai ocupar. E quem vai chegar à presidência do Senado? Da Câmara? Ninguém vai dar a presidência da Casa ao Kim Kataguiri [eleito deputado federal por São Paulo], aquilo é extremamente complexo. O que fez do Eduardo Cunha aquela pessoa imensamente poderosa? A capacidade de conhecer aquilo, como aquilo funciona. O cara era uma máquina. Sabe tudo, tinha controle sobre absolutamente tudo, com três celulares. Não é coisa para amador. Tem um voluntarismo bobo que tomou conta da juventude e empresários. De que tudo com boa vontade se resolve... as pessoas entram em conflito.
Maldição do impeachment
Foi um erro cavalar em todas as dimensões. Procurei alertar naquela época sobre com quem centro e a direita estava se aliando. Foram para Temer e Cunha. Eles só queriam salvar a própria pele. Pensou-se no dream team na economia e estaria tudo salvo. Você não faz a sociedade com o diabo e não paga um preço.Sociedade com o Bolsonaro você vai pagar um preço e é altíssimo. O preço com o PT é extremamente mais baixo. O PT tem uma reputação. Bolsonaro é um novato. É alguém que não se pode confiar. Quem acredita em racionalidade da informação, pega passado, balanço, futuro, como você pode pegar as informações dele, e dizer que é confiável? É um cara mentiroso, de maneira asquerosa e populista dizendo que adotou o mercado. Claramente para obter o poder. Daí criticam PT porque faz algumas coisas. [Bolsonaro] é um cara que começou a vida como terrorista durante a democracia. É esse cara que vão querer? Lideranças responsáveis não têm o direito de não se posicionar e deixar passar esta insanidade. O caso mais terrível é o nazismo. Pensava-se que [Hitler] era um tonto que a gente controla.
Elio Gaspari: Jaques Wagner entra em campo
Fernando Haddad e o comissariado petista querem costurar uma “frente democrática” para derrotar Jair Bolsonaro e puseram em campo o ex-ministro e ex-governador da Bahia Jaques Wagner. Se conseguirem, no mínimo, levantam o nível da campanha.
Wagner é competente, e seu desempenho na Bahia comprova isso. Governou o estado de 2007 a 2015, elegeu o sucessor que, por sua vez, acaba de se reeleger. Se lhe faltasse credencial, no início do ano defendia uma chapa com Ciro Gomes e Haddad na vice. Foi atropelado pelo oráculo de Curitiba, recolheu-se e foi tratar de sua campanha para o Senado.
As duas principais pontas dessa costura são Ciro Gomes e Fernando Henrique Cardoso. Ciro tem um capital eleitoral e já disse que “ele não”. Ainda falta para que entre na campanha de Haddad. Ele seria um corpo estranho no estilo que Haddad apresentou no primeiro turno. A questão será saber em que tipo de campanha e de propostas cabem os dois.
Só o tempo dirá onde o PT estava com a cabeça quando atropelou-o e, sobretudo, quando Dilma Rousseff descumpriu a palavra dada ao irmão de Ciro, que lhe oferecia uma cadeira de senadora pelo Ceará. Roberto Mangabeira Unger, velho amigo dos Gomes, já conversou com Haddad.
A ponta de Fernando Henrique Cardoso é mais delicada. Ele está fechado em copas, numa dupla negativa: “Não concordo com o reacionarismo cultural e o descompromisso institucional de uns vitoriosos e tampouco com a corrupção sistêmica e com o apoio ao arbítrio na Venezuela e em outros países.” Para tirá-lo dessa posição, será necessária muita conversa. Mesmo assim, FHC sabe o peso biográfico de um eventual silêncio. São duas costuras possíveis para Jaques Wagner.
Uma parte do fenômeno Bolsonaro saiu do rancor petista, da eternizada adoração oracular a Lula e, sobretudo, da resistência dos comissários à autocrítica. Muitas pessoas podem até votar em Haddad, mas se o preço for defender a moralidade petista no balcão de uma lanchonete, acabam votando no capitão. O rancor produzido pela onipotência virou veneno e ainda está lá.
Mesmo depois do massacre de domingo, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse o seguinte: “Nós vamos fazer um chamamento a todos os democratas. (...) Não temos restrição, se as pessoas tiverem noção do que está em jogo no Brasil e defenderem a democracia, têm que estar nessa caminhada.”
Quem a ouvisse acreditaria que falava a uma plateia de militantes. “Têm que estar”, por que, cara pálida? A causa democrática não precisa do toque de clarim do PT, é justo o contrário.
A ideia segundo a qual o programa do PT precisa apenas de ajustes é suicida. Quem propõe uma frente democrática não fala essa língua, até porque, felizmente, os comissários já jogaram no mar a proposta de uma Constituinte. A maior frente já construída na política brasileira foi a das Diretas Já, de 1984. Nela entrou até Tancredo Neves, que, com fina percepção, a considerava “necessária, porém lírica”.
Na sua fala ao “Jornal Nacional”, Jair Bolsonaro desautorizou a sugestão de Constituinte de sábios e a referência ao “autogolpe” de seu vice Hamilton (e não Augusto) Mourão. Fica combinado assim. Faltou esclarecer o significado de uma frase na sua saudação de domingo: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil.”
Sem ativistas, não há democracia. Não existiriam o PT, nem o PRTB de Levy Fidelix com seu Aerotrem. Bolsonaro também precisa de um filtro moderador, mas talvez a banda golpista de seu eleitorado nem o queira.
Eliane Brum: Como resistir em tempos brutos
Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo
Cubro eleições como jornalista desde que elas voltaram a existir no Brasil. Minha estreia como repórter, junto com o Brasil que recém havia emergido do longo e tenebroso inverno da ditadura, foi em 1988, nas eleições para prefeito. A primeira eleição presidencial foi em 1989. Fernando Collor de Mello, segundo a capa da revista Veja, “o caçador de marajás”, foi eleito. O filho do coronelismo de Alagoas proclamava que Lula, o filho do sertão nordestino, tinha um aparelho de som maior que o dele em casa. As pessoas acreditavam que Lula era mais rico que Collor, porque muita gente gosta mesmo é de acreditar, em qualquer coisa que lhe convém. Na época, Edir Macedo, o poderoso dono da Igreja Universal do Reino de Deus, já se chamava de bispo e era o feliz proprietário de um império religioso. Mas bem mais modesto do que hoje, quando seu império tornou-se religioso-político-midiático.
Naquela época Edir já conversava diretamente com o Estado Maior do Céu e anunciou aos fiéis que o próprio Espírito Santo havia lhe informado que Collor era o cara. Ou Edir foi enganado pelo Espírito Santo, os mais estudados em temas bíblicos podem nos dizer se isso é possível, ou ele ouviu sussurros mais terrenos e se confundiu. Ou então ele simplesmente mentiu. Entre a possibilidade de o Espírito Santo ter mentido ou Edir Macedo ter mentido usando o nome do Espírito Santo, me parece mais prudente apostar na idoneidade do Espírito Santo. Mas as pessoas evangélicas, as realmente evangélicas, que me digam se meu pensamento tem lógica ou não. Nesta eleição, Edir declarou que Jair Bolsonaro (PSL) é o cara. É acompanhado na preferência por outros coronéis da religião, como Silas Malafaia, que me chamou de “vagabunda” em 2011, em entrevista ao The New York Times. Um exemplo do tratamento destinado às mulheres por esses homens que dizem falar em nome de Deus enquanto contam o dinheiro suado dos fiéis. E uma perfeita identificação com seu candidato a presidente, que afirmou não estuprar uma deputada porque ela não mereceria por ser “muito feia”, assim como afirmou que as mulheres são produto de uma “fraquejada” do macho no ato sexual.
Me dou a licença deste primeiro parágrafo porque completo, neste primeiro turno de 2018, 30 anos cobrindo eleições. Acompanhei todas as campanhas eleitorais da redemocratização do Brasil, do que se convencionou chamar de Nova República. E nunca, em 30 anos, vi o que vi nesta eleição de 2018.
Vi as pessoas adoecendo, estranguladas por uma espécie de pânico paralisante. Vi amigos combativos, acostumados à dureza da luta, prostrados pelo sentimento de impotência diante da possibilidade de um homem como Jair Bolsonaro, um homem que diz o que ele é capaz de dizer, vencer. Vi pessoas chorando dia após dia. Recebi centenas de mensagens no WhatsApp com as mesmas quatro frases, a maioria delas vindas de mulheres.
“Estou em pânico.”
“Estou assustada.”
“Estou com medo.”
“Estou apavorada.”
1) Na eleição determinada pelo fenômeno da autoverdade, a melancolia adoece o corpo
Jair Bolsonaro, aquele que é chamado de “coiso” nas redes sociais, ganhou esta eleição mesmo antes da votação no primeiro turno. O Brasil está mergulhado numa crise ampla, complexa, que é muito mais do que uma crise econômica e política. É uma crise também de identidade e de palavra, como tantas vezes já escrevi aqui nos últimos anos. A pobreza está aumentando, a mortalidade infantil voltou a crescer, doenças que estavam erradicadas são novamente ameaças, por falta de cobertura vacinal eficiente. A malária retornou com toda a força na região amazônica. E a febre amarela ressurgiu no Sudeste do país. A violência no campo aumentou, e a Amazônia e o Cerrado estão ainda mais ameaçados pelo desmatamento. O Brasil tem ainda 13 milhões de desempregados e um número crescente de pessoas que parou de procurar uma vaga porque sequer tem esperança de voltar a ter trabalho.
A campanha de Bolsonaro reduziu a eleição a uma batalha de memes e de ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp
Jair Bolsonaro venceu mesmo antes deste domingo, 7 de outubro, porque, num cenário tão grave, sua candidatura conseguiu impedir qualquer debate sério. Sua candidatura interditou a discussão das ideias, a criação de um projeto para o Brasil. A campanha eleitoral ficou reduzida a uma batalha de memes e a ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp, onde cheguei a receber uma mensagem que dizia o seguinte: “Já está encomendado daqui de Novo Hamburgo-RS, 100 touros para serem sacrificados para Satanás em favor do babuê Luiz Inácio Lula da Silva, bruxo, pela perturbação das eleições, e para favorecê-lo. Crianças também serão sacrificadas no altar de Belzebu”. E as pessoas do grupo de evangélicos, ligado à Assembleia de Deus, pareciam acreditar seriamente nisso. Várias pessoas deste grupo têm dificuldades para escrever, mas o português deste post era corretíssimo. Em áudios e vídeos amplamente disseminados pelo WhatsApp, líderes religiosos desenhavam o apocalipse caso Bolsonaro fosse derrotado —ou caso o PT vencesse. Sem serem incomodados pelas instituições que têm a obrigação de preservar a lisura das eleições.
Jair Bolsonaro venceu porque em vez de usarmos o momento da campanha para debatermos projetos, o tempo foi gasto em explicar o autoexplicável: explicar por que razão não é aceitável votar num candidato que diz que negros de quilombos não servem nem para a procriação, que é melhor ter um filho morto num acidente de trânsito do que namorando “um bigodudo” (certamente ele nunca perdeu um filho para dizer algo assim), que seus filhos jamais vão namorar uma negra porque “são muito bem educados”, que as mulheres têm que ganhar menos porque engravidam, que é a favor da tortura e que a ditadura civil-militardeveria ter matado pelo menos uns 30 mil e que se morrerem inocentes tudo bem (desde, claro, que não sejam da sua família). Alguém que é vítima de um ataque à faca e, em vez de convocar o país para a paz, como cabe a um líder responsável em momentos de gravidade, faz sinal de atirar da cama de hospital como se tivesse cinco anos de idade. Alguém que diz uma coisa e depois disse que não disse o que está gravado em áudio e vídeo que disse. Alguém que os apoiadores têm que começar o discurso dizendo: “Ele não é o mais inteligente... nem o mais preparado, mas...”.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ser o mais votado no primeiro turno porque, mesmo defendendo a barbárie, foi o escolhido de quase 50 milhões de brasileiros. E, quando é preciso explicar por que não é possível escolher um candidato que faça essas declarações e acredite nelas, esta batalha já está perdida. Explicar que uma mulher não nasce de uma fraquejada de um homem nem deve ganhar menos porque engravida? Explicar que não é melhor ter um filho morto em acidente do que gay? Explicar que não é possível falar que um negro nem para procriar serve? Explicar que não é possível matar e torturar? Não faz sentido ter que explicar isso. Nenhum sentido.
Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade
Por não fazer nenhum sentido, também não faz nenhuma diferença explicar. Vivemos o que tenho definido como “autoverdade”: o conteúdo não importa, importa o ato de dizer. Assim, checar os fatos também não importa, porque os fatos não importam. O ato de dizer é confundido com “autenticidade”, com “sinceridade”, com “verdade”. Não importa o que seja dito. A estética foi colocada no lugar da ética. A “verdade” tornou-se uma escolha pessoal. É o indivíduo levado à radicalidade. Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade. E, tanto quanto a pós-verdade, ela ecoa a lógica das redes sociais na internet e suas bolhas.
A democracia pode ser uma grande festa em que cabem todas as diferenças. A democracia só é democracia, aliás, quando cabem todas as diferenças. Projetos que não acolham as diferenças, que querem eliminar —e inclusive exterminar— as diferenças e executar aqueles que encarnam as diferenças, estes não cabem na democracia. Porque defender a eliminação dos diferentes, dizendo que não deveriam existir ou que valem menos que os outros, não é uma opinião, mas um crime. Um crime previsto pela legislação brasileira, mas curiosamente este crime persistente nesta campanha não tem sido identificado como crime e punido pelas instituições responsáveis.
Bolsonaro ganhou mesmo antes de ganhar porque não apenas ampliou o ódio, mas também sequestrou o debate
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ficar em primeiro lugar no primeiro turno da eleição porque todos os debates importantes para o Brasil foram suspensos, todas as discussões em andamento se perderam, e o cotidiano foi reduzido a espasmos. Ele não apenas ampliou o ódio, ele também sequestrou o debate. Este tempo já foi perdido por quem aposta na democracia. Mas o tempo não foi perdido para os que apostam no caos, porque o ódio foi ampliado e os muros ficaram ainda maiores e mais difíceis de serem atravessados por qualquer diálogo.
Jair Bolsonaro vem ganhando há muito tempo porque nem mesmo precisou explicar como seu guru econômico e futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, o ultraliberal que é desprezado pelos liberais moderados, propõe uma mudança que cobrará mais impostos dos pobres e menos dos ricos. Ou como seu vice, Hamilton Mourão, chama o décimo-terceiro salário do trabalhador de “jabuticaba”. Nem isso ele precisou explicar, até porque o médico teria desaconselhado debates na Globo mas permitido entrevistas no mesmo horário para a Record.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ter ganhado um número expressivo de votos no primeiro turno porque conseguiu mergulhar uma parte das pessoas numa paralisia amedrontada, como se estivessem estragadas por dentro. Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens.
É o seguinte.
Jair Bolsonaro ganhou, mesmo antes de ganhar, mas não pode continuar ganhando. E a primeira luta acontece dentro de cada um. Não renunciem à sua subjetividade. Não permitam que roubem a sua voz e a sua força. Não deixem a vida ser tomada pelo medo. É preciso lutar neste segundo turno para o autoritarismo não se instalar no Brasil pelo voto, mais uma contradição da democracia. E é preciso resistir primeiro nas pequenas coisas do cotidiano. No amor, na amizade, no sexo, no prazer de ver um filme ou ouvir uma música, num café bem coado. No que uma amiga minha chama de “cotidianices”. E, principalmente, no prazer de estar junto. Como disse alguém na minha página do Facebook: “Mesmo se tudo der errado, o que me interessa agora é que meus filhos saibam que a mãe deles lutou contra o horror”.
Não permitam que “o coiso” corrompa seu espírito. Aprendam com as crianças que leram Harry Potter: se os dementadores (criaturas que controlam, oprimem e derrotam roubando a alegria) se aproximarem, comam chocolate para combatê-los. Parece uma referência demasiado infantil, mas J. K. Howling sabia o que escrevia: a comida e a música são o que faz a maioria dos refugiados conseguirem viver longe das suas pátrias e mátrias, porque acionam lugares da mente que a opressão não alcança. Só com a batalha ganha dentro de cada um, é possível ter mais força no que o poeta do Xingu Élio Alves da Silva refere-se como “Eu+ Um”. Sozinhos nós contamos apenas como um. Como Um+Um+Um... nós somos milhões.
2) Democracia, autoritarismo e a omissão das instituições que deveriam combater os crimes
Há muitos desafios neste segundo turno de Jair Bolsonaro com Fernando Haddad (PT). Se Lula fosse um estadista, ele teria apoiado um nome fora do PT. Alguém que pudesse aglutinar a esquerda e o centro, como Ciro Gomes (PDT). E Haddad poderia ter sido o vice. Mas Lula, infelizmente para o país, não é um estadista. Lula é um grande líder, mas não um estadista. Moveu-se nesta eleição por vingança, não pelo bem do Brasil. Quis mostrar que, mesmo de dentro da cadeia, poderia dominar a campanha.
É possível entender a sua raiva, já que estava em primeiro lugar nas pesquisas e foi impedido de ser candidato. Nem mesmo dar entrevista pode. Como jornalista, já fiz entrevistas com dezenas de presos, essa proibição é uma arbitrariedade. É possível entender a sua raiva, mas de uma liderança se espera que domine a raiva e seja capaz de pensar nos interesses do país acima dos seus. Lula não foi capaz. E cá estamos.
A eleição do contra vai se acirrar no segundo turno – e muito
Essa eleição, desde o início, foi a eleição “do contra”. E a eleição do “contra” vai se acirrar no segundo turno. Contra Bolsonaro X Contra o PT. O país inteiro sabe que há uma avalanche antipetista. Que se manifesta como ódio. Os motivos são variados. Uma parte concentra, inclusive, ódio pelas virtudes do PT no poder, como as cotas raciais nas universidades e a ampliação dos direitos das empregadas domésticas.
Estas duas ações do PT no governo explicam grande parte do ódio, sem que assim ele seja nomeado. Foram essas duas políticas que alteraram as relações de poder e confrontaram de fato privilégios, já que Lula jamais mexeu na renda dos mais ricos. Mas ele e Dilma Rousseff mexeram, sim, no equilíbrio de poder, concreto e simbólico, quando os negros entraram nas universidades e quando as domésticas deixaram de ser uma versão contemporânea da escravidão para se tornar mais uma categoria explorada de trabalhadores, entre tantas outras. Essas políticas, não concessões do governo, mas reconhecimento de lutas históricas, geraram mudanças que são imparáveis e seguiram confrontando privilégios mesmo depois que o PT foi afastado do poder pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Uma parte, na qual me incluo, terá que segurar o estômago para votar num partido que reeditou o projeto da ditadura civil-militar na Amazônia, reduzindo a floresta a objeto de exploração, evidenciado nas grandes hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, e na expulsão dos povos da floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá que tampar o nariz para votar num partido que assinou a lei antiterrorismo e que usou a Força Nacional para perseguir e reprimir manifestantes e trabalhadores nas cidades e na floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá pesadelos para votar num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...). Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha. Nada que mereça esse nome.
Uma parte dos eleitores de Bolsonaro usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável: é um truque
Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma — ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar —então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é.
Ou então você estava muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo. Acontece. E em geral a gente se arrepende do que faz nestes momentos quando a respiração volta ao normal, mas as consequências se estendem, às vezes pela vida toda. Mas agora tem outra chance, e essa é definitiva. É preciso deixar a raiva de lado e votar com a razão, escolher com consciência. Porque se a dupla de “profissionais da violência”, como o próprio Hamilton Mourão definiu, assumir o poder, será muito grave para o país. Quando se vota em profissionais de violência é preciso saber o que esperar.
Quem defende a violência contra outras pessoas apenas porque são diferentes ou porque confrontam seus privilégios é um corrupto. Mesmo que nunca tenha se corrompido pelo dinheiro, é a alma que é corrompida. Então, não é possível se esconder atrás da corrupção. Nem começar nenhum discurso com “Ele não é inteligente nem preparado, mas...”. Neste caso, é preciso assumir o real desejo de exterminar os que são diferentes. Não dá para votar num racista sem ser racista, num homofóbico sem ser homofóbico, num machista sem ser machista. Este é um limite. Ao fazê-lo, se você não era, se torna um. Mesmo que você for mulher ou homossexual ou negro. E este voto fará parte de sua história. É também o seu legado para os que virão.
O fato de a eleição ser “do contra” não autoriza a imprensa e outros espaços de documentação, análise e interpretação da realidade a igualar o inigualável. Não se trata de dois iguais. Não é isso o que acontece hoje no Brasil. Há um projeto autoritário para o país, que está negando a própria democracia. Jair Bolsonaro efetivamente disse que só aceitaria o resultado da eleição se fosse o vencedor. Depois voltou atrás, mas voltar atrás não elimina aquilo que disse quando exerceu sua tão propagada “sinceridade”. Seu vice, Hamilton Mourão, efetivamente disse que era possível, depois de eleito, em caso de “anarquia”, dar um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.
Bolsonaro já deixou claro, mais de uma vez, que só aceitará o resultado das eleições se vencer, e mesmo assim as instituições não tomam providências à altura da gravidade dessa campanha contra a democracia
A primeira declaração de Bolsonaro, logo após o resultado do primeiro turno, foi justamente questionar a lisura do sistema de apuração dos votos: “Se tivesse confiança no sistema eletrônico, já teríamos o nome do novo presidente”. Mais uma vez ele ataca o avançado sistema de apuração do Brasil, uma das poucas coisas que dão inveja em países muito mais ricos, de não funcionar. E deixa claríssimo que, se não ganhar no segundo turno, é porque as urnas eletrônicas foram fraudadas. É uma ameaça nada velada ao processo democrático, a de que não aceitará o resultado de eleição, a não ser em caso de vitória. E é um ataque persistente com o objetivo de corroer a confiança do eleitor nas urnas eletrônicas, para tê-lo do seu lado caso o resultado do segundo turno não lhe dê a vitória. Isso é gravíssimo. E as instituições não tomam providências à altura.
E há o outro projeto que disputa este segundo turno, que tem vários problemas que precisam ser apontados e radiografados, mas que não está confrontando a democracia. O PT confrontou a democracia, quando foi governo, na sua atuação na Amazônia e na repressão aos manifestantes e às manifestações contra as grandes hidrelétricas e contra a Copa do Mundo. Mas o projeto de Fernando Haddad não é um projeto antidemocrático nem o candidato ameaça se rebelar contra o resultado das urnas ou contra a própria democracia, como faz seu oponente. Haddad precisa esmiuçar muito mais o seu projeto durante o debate do segundo turno, e se comprometer muito mais com os direitos dos povos da floresta, mas não representa um projeto autoritário como seu adversário.
Estes são os fatos.
3) Parte da imprensa e do judiciário atuam partidariamente, mas se declaram imparciais
A cobertura —ou a não cobertura— do movimento #EleNão serviu de alerta para um problema que pode se agravar neste segundo turno. Uma mulher negra, de origem periférica e anarquista iniciou um protesto autônomo pelo Facebook: Mulheres Unidas Contra Bolsonaro. Hoje, a página, que só aceita mulheres, tem quatro milhões de seguidoras. A partir deste espaço, foi gerado um movimento com a hashtag #EleNão. Este movimento levou às ruas do Brasil e do mundo, em 29 de setembro, centenas de milhares de pessoas para protestar contra o que a candidatura de Bolsonaro representa. Só essa história já é extraordinária, além do grande potencial simbólico de que são as mulheres pobres, a maioria negras, que se colocaram no caminho do projeto autoritário de Jair Bolsonaro. #EleNão realizou a maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil.
O que a TV fez? Quase ignorou as manifestações. Qualquer um pode lembrar com riqueza de detalhes como a Globo cobriu ao vivo as grandes manifestações pelo impeachment e contra o PT. Nunca poderemos saber com precisão o quanto a própria cobertura influenciou o número de pessoas nas ruas. Em qualquer manual de jornalismo, centenas de milhares de pessoas nas ruas do Brasil e do mundo, pela primeira vez não a favor de um candidato ou de ideias, mas contra um candidato e suas ideias, é uma tremenda notícia. Mas a manifestação foi quase ignorada. E, quando foi abordada, em alguns casos os movimentos pró e contra foram apresentados como se tivessem tido a mesma proporção.
Os grandes jornais deram fotos na capa, mas preferiram outras manchetes. A maioria também se limitou a dizer que houve manifestações contra e houve manifestações a favor, como se tivesse sido tudo igual. A quem isso ajuda? Não ao país, e certamente não ao bom jornalismo. A cobertura que dá o mesmo peso a dois lados com pesos diferentes lembrou muito a cobertura da mudança climática durante vários anos: meia dúzia de cientistas, parte deles financiada por grandes emissores de CO2, defendendo que o aquecimento global não era causado por ação humana, ganhavam o mesmo espaço nos jornais que o consenso de mais de 95% dos cientistas mais respeitados do mundo, afirmando que a o aquecimento global é causado por ação humana. Essa distorção da realidade era chamada de “isenção”. E cá estamos, o planeta corroendo-se a cada dia mais.
A Polícia Militar, que costuma dimensionar o número de pessoas nos eventos e nas manifestações, desta vez preferiu não fazer a contagem. Simples assim. Um movimento histórico ficou sem números porque a força de segurança do Estado serviu a seus próprios interesses privados ( e à sua própria escolha eleitoral), sem maiores contestações. Como se isso pudesse ser de alguma forma normal ou aceitável.
A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo depois da entrevista chapa-branca com Bolsonaro
Será preciso observar com toda a atenção como o que se chama de “grande imprensa” ou “mídia tradicional” se comportará neste segundo turno, especialmente as TVs. A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo ao colocar a entrevista chapa-branca com Jair Bolsonaro no horário do debate da Globo entre os presidenciáveis, em 4 de outubro. Eram só perguntas para Bolsonaro chutar para o gol. Um assessor de imprensa de Bolsonaro não faria melhor.
O candidato disse-que-não-disse-o-que-disse-e-que-está-gravado-que-disse e não houve nenhuma contestação por parte do entrevistador. Sem contar a edição apelativa. Em nenhum outro momento da história, Edir Macedo, comandante da Igreja Universal do Reino de Deus e do grupo Record, fundiu tão completamente o projeto de poder, mídia e religião como nesta entrevista, ocorrida dias depois de ele ter apoiado Bolsonaro publicamente. Ao contrário. A Record, por vários anos, fez um visível esforço para separar as esferas, pelo menos para o público ver, com o objetivo de ganhar credibilidade como um grupo sério de comunicação. Essa farsa acabou. E o fato de Edir acreditar que não é preciso mais fazer de conta é um forte indicativo do que está por vir.
Por outro lado, a Globo continua cada vez mais perto do outro lado do paraíso. Apostou todas as suas fichas no impeachment de Dilma Rousseff. Conseguiu, articulada a várias outras forças. Apostou todas as suas fichas na renúncia de Michel Temer após as denúncias de corrupção que divulgou com exclusividade. Não conseguiu, porque as outras forças seguiam achando que era melhor continuar com ele, já que a corrupção, se importou para o povo, nunca importou para os articuladores do impeachment. A aposta num candidato de centro, que poderia reacomodar as forças que sempre estiveram no poder, falhou.
A Globo vive o inferno de ser odiada pelos dois candidatos que disputam o segundo turno
A Globo encontra-se no momento entre duas oposições que têm em comum apenas o ódio à Globo: Bolsonaro e o PT. Em resumo: o próximo presidente, que determinará o destino das grandiosas verbas publicitárias do governo, odiará a Globo. Mas este é apenas o retrato do momento. As forças sempre tendem a se reacomodar para manter seu poder ou o que é possível manter dele. No governo Lula, o então presidente esqueceu até a edição fraudulenta do debate de 1989, decisiva para a sua derrota, e empreendeu uma espécie de namoro sério com o maior grupo de comunicação do Brasil.
Para que lado será acomodado —e a que preço— é o que será preciso acompanhar. Contra a acomodação da Globo com Bolsonaro há um adversário poderoso: esta é a grande chance da Record e do projeto de poder de Edir Macedo. A divulgação da entrevista com Bolsonaro na Record, na mesma hora do debate na Globo, a que o candidato em primeiro lugar nas pesquisas disse que não poderia comparecer por razões de saúde, deverá ser só o primeiro confronto. Quem assistiu ao debate esvaziado da Globo, com aqueles candidatos engravatados, exceção para Marina Silva e para Guilherme Boulos, e aquele formato sonolento de sempre, com aquela descontração de maquete, comprovou mais uma vez que esta foi a campanha do WhatsApp. O ritmo agora é outro —e a linguagem também.
Sergio Moro é o que mais envergonha o judiciário, mas está longe de ser o único
Como se comportará a parcela da imprensa que apostou numa saída de centro (e não levou) deverá ser observado de muito perto neste segundo turno. Este também será o grande desafio para o jornalismo ou se fortalecer, mostrando o quanto é insubstituível numa democracia, ou então descer pelo ralo da irrelevância como nunca antes. Se a pauta jornalística servir para rearranjar os projetos de poder das empresas de mídia, acabou. Ainda falta uma autocrítica profunda de parte da imprensa sobre o seu papel no impeachment e já vem outro desafio muito mais intrincado. Vamos torcer para que a maior parte da imprensa se mostre à altura, porque o Brasil precisa muito de jornalismo sério.
Outro protagonista que precisa ser observado com muita atenção é o judiciário que não faz justiça, mas faz muita política partidária. A liberação de Sergio Moro de parte da delação de Antonio Palocci, uma delação feita em abril, sem novidade e escassas provas, a seis dias da eleição, é uma afronta ao Brasil. E já não é a primeira afronta ao Brasil feita por Moro. Esse personagem acredita que é herói, mas corre o risco de entrar para a história como um vilão. As palavras usadas por Tasso Jereissati para definir o que aconteceu com o PSDB servem para Moro: “engolido pela tentação do poder”. O juiz se comporta como se a lei fosse a sua vontade, transformando-se não num xerife, como gostam de chamá-lo, mas num coronel pago por dinheiro público.
Moro é o que mais envergonha o judiciário, seguido de pertíssimo por Gilmar Mendes, e agora também por Luiz Fux e Dias Toffoli. Mas está longe de ser o único. Toda essa crise é também a história de uma longa série de abusos de juízes, de todas as instâncias, incluindo os do Supremo Tribunal Federal, que esqueceram que são servidores públicos, o que significa servir à população cumprindo à Constituição, não aos seus projetos privados de poder e aos seus egos mais inflados que boneco de manifestação. É preciso ficar muito atento a como o judiciário vai se comportar no segundo turno mais complicado da jovem democracia brasileira.
Há ainda o que se chama de “Mercado”. Quem é este “Mercado”, algo que é pronunciado como se não se tratasse de gente. Basta ver as manchetes dos jornais da Europa e dos Estados Unidos, para constatar que uma vitória de Bolsonaro é vista como a vitória de um ditador. Como isso ajudaria o Brasil nas relações econômicas e políticas internacionais? A própria The Economist, a bíblia dos liberais, definiu Bolsonaro “como a maior ameaça da América Latina”. Mas os porta-vozes do “Mercado” no Brasil estão eufóricos com a possibilidade de um homofóbico, racista, misógino defensor da ditadura assumir o poder. Bolsonaro cresce nas pesquisas, a Bolsa sobe e o dólar cai. Como disse um destes iluminados, Felipe Miranda, da Empiricus, em entrevista ao El País Brasil, ao avaliar uma “situação hipotética”: caso o Congresso fosse fechado e uma reforma da previdência aprovada na marra, a bolsa subiria.
É autoexplicativo.
4) Como tornar a eleição do contra uma eleição a favor
A corrosão do cotidiano no Brasil é uma imagem explícita nas ruas de cada dia. Nos últimos anos, as calçadas voltaram ser habitadas por vivos que parecem cadáveres. E nós, que não perdemos nossas casas, passamos por esses seres humanos como mortos que parecem vivos. Porque fingir que não vemos a dor dos outros também mata. Esse Brasil precisa mudar. E não será com as pessoas apontando armas umas para as outras que isso vai acontecer.
Nem será com o medo. Quando sinto que a opressão me estrangula, e o medo tenta se infiltrar nos meus ossos, recorro à literatura. A arte conversa com o mais profundo da gente, por isso foi tão atacada pelas milícias da internet. A arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós.
Recorro especialmente a uma autora que viveu a repressão de uma forma muito intensa, uma alemã que viveu a ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Em um livro de ensaios, Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio(Companhia das Letras), Herta Müller, ganhadora do Nobel de Literatura de 2009, escreve sobre a resistência, a resistência nas pequenas coisas, naquilo que chama de “naturalidade”. E que a minha amiga chama de “cotidianices”.
“Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”
Compartilho um trecho com vocês, em que ela fala da infiltração do nazismo nos corações e mentes dos “cidadãos de bem”:
“A naturalidade, aprendi a partir dos poemas de Theodor Kramer, é a coisa menos extenuante que temos. Ela está no momento e não tem um nome, para existir ela precisa se manter despercebida, porque nós também precisamos nos deixar despercebidos dela. Os poemas mostram de uma maneira agudamente clara como a naturalidade pode se extraviar quando é cassada pela arbitrariedade política.
Os poemas de Kramer mostram que o escândalo não começa pelo extermínio dos judeus nos campos de concentração, mas anos antes, com o roubo da naturalidade nas casas, cafés, lojas, bondes ou parques pela maioria dos correligionários. Que, no nazismo, a política era feita não somente pelos convictos, mas também pelos ignorantes subservientes. (...) Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”.
Todos aqueles que não se viraram contra essa política eram parte dela.
Herta conta que os judeus viviam neste tempo o roubo diário da naturalidade. Me parece que, neste primeiro turno, com a ameaça concreta do domínio da opressão, ainda que o projeto autoritário alcance o poder pelo voto, parte dos brasileiros, os mais frágeis muito antes, viveram o roubo diário da naturalidade de uma outra maneira. A ameaça de perder a possibilidade já foi vivida como perda da possibilidade. E então a possibilidade dos pequenos atos deixou de existir. E, vale repetir: esta é a primeira vitória do opressor.
Mais uma vez, a tessitura do presente foi suspensa por um projeto autoritário. A democracia, no Brasil, vive aos soluços, interrompida pela exceção. Tem sido essa a nossa história. Quando começamos a discutir um projeto original de país, quando os indígenas e os negros e as mulheres começam a ocupar novos espaços de poder, o processo é interrompido. Quando começamos a ter paz, a guerra recomeça. Porque, de fato, a guerra contra os mais frágeis nunca parou. Arrefeceu, algumas vezes, mas nunca parou. Desta vez, a perversão é que, até agora, o projeto autoritário vem se estabelecendo com a roupagem da democracia.
Mesmo votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos favor
Bolsonaro define esse momento: aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas realizando crimes previstos na legislação desta democracia, como racismo, sem ser punido; aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas se perder no segundo turno é porque o sistema de apuração foi fraudado, se perder não aceitará a derrota; disputa dentro da democracia, mas só aceita um resultado, o da sua vitória. Essa deslógica é a lógica dos perversos. E enlouquece. Viemos sendo adoecidos – e enlouquecidos – desde que Eduardo Cunha (MDB) afirmava os maiores absurdos e nada acontecia, porque ele só podia ser afastado e preso depois de fazer o serviço sujo do impeachment.
Mais uma vez o tecimento do presente foi suspenso. Mas não podemos permitir que nossos dias sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas. Há que se resistir ao devoramento das almas.
Essa eleição foi sequestrada pelo “contra”. Ser contra é —e foi— muito importante. E será. Em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra. Contra o autoritarismo. Contra a opressão. Contra a ameaça da ditadura. Contra o extermínio das minorias. Contra o sequestro da liberdade. Mas, mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor. Ou as almas se envenenam. E a gente adoece por dentro, o estrago interno que Freud chama de melancolia.
Temos que ser contra e ao mesmo tempo ir tecendo um projeto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. Um projeto de futuro onde possamos viver. O presente no Brasil não será possível sem voltar a imaginar um futuro. É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo. Sonhar com um país, sonhar com uma vida. É pelo desejo que nos humanizamos. Resistir nas próximas três semanas é principalmente desejar uma vida viva – vivendo uma vida viva. Se conseguirmos, voltaremos a ganhar mesmo antes de ganhar.
Aprendi com os povos da floresta amazônica, que tiveram suas vidas destruídas junto com a floresta mais de uma vez, e que resistem e resistem e resistem, que o principal instrumento de resistência é a alegria. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. Mas eles já sabiam disso muito antes. Metem o dedo na cara do opressor, que continua lá, e riem por gostar de rir. Riem só por desaforo.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Luiz Carlos Azedo: Haddad atrás de apoios
“Haddad começou a cair na real. Tenta moderar o discurso e ampliar alianças para vencer as eleições”
O PT corre atrás de aliados no segundo turno, na esperança de que Fernando Haddad, o candidato da legenda à Presidência, consiga reverter a vantagem de Jair Bolsonaro (PSL) na disputa pelo Palácio do Planalto. Ontem, a presidente do PT, Gleisi Hoffman, anunciou que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu a Haddad para que não o visite mais na prisão. Na segunda-feira, o petista foi à carceragem da Polícia Federal, em Curitiba, para receber instruções do seu chefe político. O resultado da visita foi um desastre, captado pelas pesquisas qualitativas, porque Lula agora não transfere mais votos, só rejeição. A retórica petista nas redes sociais também atrapalha o ex-prefeito de São Paulo, porque insiste no discurso “nós contra eles” e tripudia da derrota dos adversários que poderiam ser aliados no segundo turno.
Haddad começou a cair na real. Tenta moderar o discurso e ampliar alianças para vencer as eleições, mas esse objetivo, aparentemente, não é um consenso entre os militantes. Temem a repetição do que aconteceu com Dilma Rousseff, que mudou o discurso após a reeleição, em 2014, e isso foi visto como estelionato eleitoral. Mas o petista tenta desfazer a imagem de que é um candidato radical, sem compromisso com a Constituição, que acabou reforçada pelas visitas semanais a Lula para receber instruções eleitorais. Os encontros alimentam os ataques dos adversários, com o argumento de que o presidente da República não pode ser preposto de um político condenado e preso por corrupção e lavagem de dinheiro, como é o caso de Lula.
Ontem, o PSB anunciou apoio a Haddad, mas liberou os candidatos a governador em Brasília, Rodrigo Rollemberg, e São Paulo, Márcio França, que concorrem à reeleição. Ambos estão numa sinuca de bico: se fizerem aliança com o petista, perderão as eleições, pois estão atrás de Ibaneis (MDB) e João Doria(PSDB), respectivamente, em estados onde Bolsonaro venceu o primeiro turno com mais de 50% dos votos válidos. O PSol também anunciou apoio a Haddad. Hoje, haverá reunião do PDT para decidir a posição no segundo turno, com a presença de Ciro Gomes, que foi o terceiro colocado no primeiro turno e se tornou um grande eleitor. Além de vencer as eleições no seu estado, o Ceará, com a votação que obteve, levou o pleito para o segundo turno.
Neutralidade
O PSDB decidiu manter neutralidade na disputa de segundo turno, a partir do posicionamento de Geraldo Alckmin, presidente da legenda. A reunião da cúpula do partido, porém, foi um barraco. Houve uma discussão ríspida entre João Doria, candidato ao Palácio dos Bandeirantes, que declarou apoio a Bolsonaro, e o próprio Alckmin, que se considera traído no primeiro turno pelo ex-prefeito de São Paulo. Doria foi um grande ausente na campanha do tucano no estado. O senador José Serra também defendeu a neutralidade, com o argumento de que os eleitores desejam o PSDB na oposição a Bolsonaro e Haddad.
Essa também deve ser a posição do PPS, cuja executiva se reunirá hoje, e da Rede, que deverá oficializar sua posição amanhã. A propósito, Roberto Freire, presidente do PPS, e Marina Silva, candidata da Rede, já anunciaram essa intenção e iniciaram uma reaproximação política, que pode resultar na fusão dos dois partidos. A Rede não conseguiu atingir a cláusula de barreira, mas obteve um resultado excepcional da disputa pelo Senado; busca aproximação com o PPS e o PV para a criação de um novo partido, que possa reunir também outras lideranças do chamado centro democrático. A movimentação conta com a simpatia do apresentador Luciano Huck, que fez generosas doações para alguns candidatos das três legendas.
O PP também anunciou neutralidade. Elegeu a terceira maior bancada da Câmara, atrás apenas do PT e do PSL, mas teve uma presença meio esquizofrênica na campanha eleitoral. Indicou a senadora gaúcha Ana Amélia para vice de Alckmin, porém, cristianizou o tucano e se dividiu entre o apoio a Bolsonaro, nos estados do Sul, e a Haddad, no Nordeste. Possivelmente, esse cenário se manterá no segundo turno. Outro partido que anunciou neutralidade foi o Novo, de João Amoêdo, que teve um desempenho surpreendente nas eleições, ultrapassando Marina, Alvaro Dias (Podemos) e Henrique Meirelles (MDB). Pesou na decisão a disputa em Minas Gerais, onde o partido surpreendeu o governador Fernando Pimentel (PT), que ficou fora do segundo turno, e o candidato do PSDB, Anastasia, que liderava a disputa. Romeu Zema, do Novo, declarou ontem que não descartaria apoio de nenhum partido, nem o de Pimentel.
O principal partido a anunciar apoio a Bolsonaro foi o PTB, que distribuiu uma nota ontem. O presidente da legenda, Roberto Jefferson, não se pronunciou. Ao contrário de Haddad, que fez um movimento ostensivo de atração dos partidos de esquerda, Bolsonaro se manteve ao largo das legendas. Manteve o discurso de que vai reduzir o número de ministérios e formar uma equipe de governo de notáveis, sem toma lá dá cá.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-haddad-atras-de-apoios/
Monica De Bolle: A economia na escuridão
Ambos planos econômicos sofrem da mesma carência: não há conteúdo, não há diretriz, não há clareza
Cerca de 24 horas depois da apuração que deu a Jair Bolsonaro e Fernando Haddad a certeza de que haverão de se enfrentar no segundo turno das eleições, ambos falaram ao Jornal Nacional. Indagados sobre as ideias ventiladas durante a campanha de reescrever a Constituição que acaba de completar 30 anos, ambos afirmaram ter mudado de ideia. Pressionados sobre seus programas econômicos, os candidatos tergiversaram. Falaram por alto em reforma tributária, privatizações, e teto de gastos. Contudo não deram nenhuma indicação do que de fato pretendem fazer.
Mais cedo, o candidato Jair Bolsonaro havia postado vídeo nas redes sociais onde ao seu lado estava o assessor econômico Paulo Guedes. Guedes não disse palavra, enquanto Bolsonaro expôs sem deixar dúvidas que os planos de privatização antes anunciados por seu guru da economia seriam bem mais modestos do que este antecipara em entrevistas e sabatinas para emissoras de TV antes do sumiço e silêncio que precederam as semanas antes do primeiro turno. Referindo-se aos planos de privatização, disse Bolsonaro que empresas “estratégicas” como Banco do Brasil, Eletrobrás, Caixa Econômica Federal, e Petrobrás não seriam vendidas.
Dentre essa lista a única empresa realmente “estratégica” é a Petrobrás, que ainda mantém o monopólio em algumas operações. Privatizar monopólios nunca é uma boa ideia, mas não parece ser a isso que Bolsonaro se referia.
Em relação ao ajuste fiscal imediato, na ausência de cortes de gastos, não há muita alternativa que a de aumentar impostos. Bolsonaro, entretanto, rechaçou a ideia de Paulo Guedes de recriar a CPMF e nada sugeriu como alternativa. Falou sobre isentar indivíduos com renda até cinco salários mínimos do imposto de renda – assim como fez Haddad – e afirmou que adotaria alíquota única para outras faixas de renda de 20%. Ou seja, prometeu reduzir impostos diante de situação calamitosa para as contas públicas brasileiras. Mas mercados insistem em não enxergar o populismo implícito.
A questão da nova carteira de trabalho verde e amarela proposta por Bolsonaro tampouco está bem detalhada e não há nenhuma avaliação sobre se estaria ou não em consonância com a isonomia do trabalhador garantida pela Constituição. Por fim, prometeu o candidato reduzir o número de ministérios substancialmente sem levar em conta as restrições que isso imporia à construção de uma coalizão estável. Com a maior fragmentação do Congresso, cargos públicos serão ainda mais necessários para a formulação de coalizões – é triste, mas é a realidade brasileira. Falar em redução de ministérios nessas circunstâncias é demagogia pura que muitos insistem em não enxergar. Provavelmente será a primeira promessa a ser abandonada por um eventual presidente Bolsonaro.
Do lado de Fernando Haddad há, como no campo de Bolsonaro, muita fumaça e pouquíssima substância. O candidato fala em simplificar tributos com a introdução do imposto sobre o valor adicionado, mas não dá detalhes sobre como isso será feito. Fala em tributar dividendos, o que considero uma boa ideia diante da regressividade da estrutura tributária brasileira, mas não diz nada sobre alíquotas. Diz que vai revogar o teto dos gastos – já escrevi sobre os problemas do teto atual nesse espaço –, mas não diz o que vai colocar em seu lugar. Embora o atual teto tenha vários defeitos, é necessário que tenhamos mecanismos de controle das despesas, ou seja, é preciso ter algum tipo de teto, com formulação melhor do que a atual.
Haddad também afirma que fará uma reforma bancária sem dar detalhes, mas que de princípio soa bastante intervencionista. Tudo o que não precisamos é de mais intervencionismo. Promete que vai revogar a reforma trabalhista de Temer, mas não diz se fará outra melhor. Insiste no duplo mandato para o Banco Central, o que não seria uma má ideia a princípio salvo pelo fato de Dilma ter tentado instituí-lo na marra, o que acabou não funcionando. Por fim, não há clareza alguma sobre o que pretende na área da reforma da Previdência.
O balanço geral dos planos dos candidatos, portanto, é que ambos sofrem da mesma carência: não há conteúdo, não há diretriz, não há clareza. Enquanto mercados surtam de euforia com a fantasia que criaram sobre Bolsonaro, corremos o risco de não saber nada do que pretendem ambos os candidatos para colocar nos eixos a economia. Isso é grave.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
El País: Plano econômico de Paulo Guedes, guru de Bolsonaro, depende de uma ‘bala de prata’ para funcionar
Propostas de privatizações e reformas "radicais" na Previdência e no sistema tributário demandam a arte de negociar com 30 partidos que estão representados no Congresso
Apesar de as propostas econômicas serem lidas como “uma boa carta de intenções” e gerarem entusiasmo entre os jovens operadores das mesas de negociação, os atores mais experientes do mercado financeiro se mostram mais céticos e levantam dúvidas sobre a viabilidade de tais promessas. A leitura geral é que o plano econômico de Guedes para o governo de Bolsonaro depende de uma “bala de prata” para dar certo. Ele propõe a reestruturação da área econômica, com dois organismos principais, o Ministério de Economia e o Banco Central, formal e politicamente independentes. Quanto à Reforma da Previdência, cuja necessidade é um consenso entre os analistas de mercado, o plano prevê a mudança do sistema atual de repartição (pagamento dos aposentados é feito pelos trabalhadores ativos) pelo modelo de contas individuais de capitalização (cada trabalhador contribuirá durante a vida para sustentar seu benefício previdenciário). E aqui surgem as primeiras críticas. “Essa proposta de reforma radical da Previdência é suspeita, porque eles falam de capitalização, mas não deixam claro como seria feita essa transição. O Guedes diz que pagaria o custo com as privatizações, mas o processo de privatização é longo, então isso não está claro”, avalia Silvio Cascione, analista para o Brasil da consultoria de risco Eurasia.
Cascione acrescenta que também há desconfiança sobre o “amplo programa de privatizações” que aparece no plano de governo de Bolsonaro, mas sem especificar quantas ou quais das 147 empresas da União seriam vendidas. O objetivo seria utilizar todos os recursos obtidos com as privatizações para pagar a dívida pública. “Muita gente gosta da ambição do Guedes, quando ele fala nas privatizações radicais, mas também há investidores que acham que esse discurso vai desinflar com o tempo”, comenta o analista.
Para Amaury Fonseca Júnior, sócio fundador da Vision Brazil Investments, gestora de recursos focada em investidores institucionais, para resolver a questão da dívida pública, qualquer Governo deve priorizar a reforma tributária. O plano esboçado por Guedes prevê a simplificação e unificação de tributos federais e a descentralização e municipalização de impostos. O economista chegou a afirmar, conforme revelado pela Folha de S. Paulo, que pretendia recriar um imposto nos moldes da CPMF, que incide sobre movimentação financeira, além de criar uma alíquota única do Imposto de Renda de 20% para pessoas físicas e jurídicas – e aplicar a mesma taxa na tributação da distribuição de lucros e dividendos. Por outro lado, ele estudava eliminar a contribuição patronal para a Previdência, que incide sobre a folha de salário – que tem a mesma alíquota, de 20%. “Para chegar nesses 20%, as contas públicas precisariam estar muito bem equilibradas. Essa coisa da CPMF não agradou o mercado”, comenta Júnior.
Bolsonaro e seus aliados, que sempre defenderam que em um eventual governo do candidato os impostos seriam reduzidos, apressaram-se em tentar explicar as declarações de Guedes, que chegou a rebaixar a cifra para os 15%, mas o estrago já estava feito. “O país tem um problema clássico de déficit fiscal. As cifras de 20% ou mesmo 15% são totalmente impraticáveis”, afirma Ricardo Sennes, economista e diretor da consultoria Prospectiva. Para Sennes, esse é “só o primeiro exemplo de inconsistência” na campanha. “Ele foi fazendo cálculos e viu que em vez de diminuir, tinha era que aumentar impostos, porque a conta não fechava. Parece fazer declarações sem ver números básicos de economia”, critica ele, que vê no “guru econômico” do candidato alguém “tão neófito quanto Bolsonaro”.
Em entrevista ao Jornal Nacional, Jair Bolsonaro voltou a tratar do tema: "A proposta do nosso economista Paulo Guedes é que quem ganhe até 5 mínimos não descontará Imposto de Renda. E acima disso, uma tabela de 20% para todos. Não pretendemos recriar a CPMF, eu fui um dos que votou contra a CPMF no passado", afirmou. A reportagem entrou em contato com Paulo Guedes para responder aos comentários dos analistas, mas não obteve resposta.
Trajetória
Guedes, de 68 anos, de fato, tem uma breve experiência na carreira política. Ele assessorou o então candidato à presidência Guilherme Afif Domingos, em 1989, sendo um crítico dos projetos econômicos do período, principalmente do Plano Real. Tendo feito fortuna no ramo financeiro do Rio de Janeiro, o economista foi um dos fundadores do Ibmec, criado como instituto de pesquisa voltado para o mercado financeiro, do think thank Instituto Millennium e do Banco Pactual. Também investiu na Abril Educação com Roberto e Giancarlo Civita, donos da Editora Abril, até criar, em 2006, a BR Investimentos (comprada depois) pela Bozano Investimentos. Hoje, concilia seu tempo entre a assessoria de Bolsonaro e a empresa. Guedes acredita que o deputado, que construiu sua carreira como estatista, está “aprendendo” a ser um liberal-democrata, mesmo elogiando a ditadura militar, conforme contou em entrevista a EL PAÍS realizada em agosto.
O “Posto Ipiranga” de Bolsonaro se apresenta como um intelectual que não foi devidamente reconhecido por seus colegas. “Nos anos 80, participei de todos os debates econômicos do Brasil a favor do tripé macroeconômico e da reforma da Previdência. E de fazer no Brasil as reformas que foram feitas no Chile: banco central independente, câmbio flutuante, equilíbrio fiscal e o regime de capitalização da previdência”, contou durante a entrevista para este jornal, lamentando que, em vez disso, se realizassem as “tolices” do Plano Cruzado e do Plano Collor.
Sua estadia no Chile, como professor universitário durante o regime do ditador Augusto Pinochet, é justamente um dos pontos mais controversos de sua trajetória. “Eu não me sinto nem um pouco culpado ou responsável por ser um bom economista. É a mesma coisa que você ser dono do Starbucks e aí entra um ditador e toma um café lá na sua loja. Eu era um professor. O Brasil tinha reserva de mercado na universidade. Minha produção acadêmica era muito superior ao que se praticava nas universidades aqui. Mas, por ser de Chicago, eu fui convidado pra dar aula na FGV, no IMPA e na PUC em tempo parcial. Não podia ser tempo integral porque eu não pertencia a nenhuma tribo ideológica. Não é que fui pro Chile, pra ditadura... Eu recebi um convite de tempo integral na Universidade do Chile e fiquei seis meses”, justificou-se.
Guedes afirma que tinha “um sonho acadêmico”, mas alguns dos seus pares desmentem a afirmação. Edmar Bacha, um dos responsáveis pelo Plano Real e contemporâneo de Guedes na PUC, afirmou à revista Piauí que o colega “nunca nem sequer tentou o tempo integral. Até porque, para isso, precisaria publicar artigos, escrever textos para discussão, e ele não demonstrou disposição”. Já Elena Landau, diretora do BNDES durante o governo de FHC, classifica o ex-professor como “megalomaníaco”. “Ele tem as mesmas ideias de vender ativos para solucionar a dívida pública desde 1990 e já era criticado naquela época”, disse ela ao EL PAÍS.
Governabilidade
Mesmo entre os que veem com bons olhos as propostas econômicas de Guedes, admitem que sua implementação está sujeita a um cenário político amigável. E, caso chegue ao Planalto, Bolsonaro, , terá de coordenar um Congresso com 30 partidos. Muito embora tenha eleito 52 deputados pelo PSL, e tenha o apoio declarado da bancada dos ruralistas e evangélicos, na prática será necessário alinhar muitos interesses que afetam diretamente a população que não deve assistir a tudo impassível. “A política é a arte do possível. Muitas das ideias são esboçadas de maneira genérica e é preciso ver se, na prática, seria de fato possível aprová-las. É o caso da reforma tributária, que envolve diferentes interesses no pacto federativo”, explica Ricardo Schweitzer, sócio-fundador e analista de ações na Nord Research. “Privatização, reforma da Previdência... são temas difíceis em qualquer governo de coalizão. Acredito que Bolsonaro consiga aprovar parte dessas propostas, mas vai ser um processo muito arrastado”, concorda Silvio Cascione, da Eurasia. Após ter apoio dos deputados para a reforma trabalhista e o teto de gastos, a reforma da Previdência ficou travada no Governo Temer.
Monica de Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos e Mercados Emergentes da Universidade Johns Hopkins, em Washington, é mais categórica: "Há uma “síndrome de ingenuidade aguda” do mercado em relação a Guedes e Bolsonaro. O presidencialismo de coalizão não permite conduzir reformas tão radicais. Temer era um operador de chão do Congresso e não conseguiu. Presidencialismo e Estado mínimo são incompatíveis". A especialista considera que o entusiasmo de parte do mercado financeiro pela candidatura do ex-militar "só se explica pelo medo de que o PT ganhe" as eleições.
Ricardo Sennes, da Prospectiva, explica que a agenda de privatizações agrada o mercado financeiro de curto prazo, mas não aos investidores internacionais, que "realmente injetam dinheiro no país". Ele pondera que o enxugamento de políticas de fomento e isenção fiscal feriria o interesse de vários setores. "Se você desmonta a Caixa Econômica Federal, a construção civil e setores de infraestrutura perdem crédito. Pode-se dizer o mesmo da relação entre o agronegócio e o Banco do Brasil, que faz até perdão de dívida quando as safras não vão bem. Essas propostas seriam, então, o desmonte da política de financiamento agrícola", diz.
Sobre a possibilidade de conseguir apoio político para essa agenda, Sennes diz que fazer um plano de governo em dois meses é "muito complicado". "Há uma leitura de que governabilidade se consegue depois de eleito, mas essa postura me parece mais um wishful thinking [um excesso de otimismo] do mercado do que uma avaliação de fato do panorama atual", conclui.
El País: Morte, ameaças e intimidação. O discurso de Bolsonaro inflama radicais
Em Salvador, capoeirista Moa do Katendê foi assassinado por criticar o presidenciável de extrema direita. Minorias relatam ameaças e medo. Entidades cobram candidato.
O ódio que se encrustou na disputa eleitoral fez ao menos uma morte algumas horas depois de que 147 milhões de brasileiros se dirigiram às urnas. O mestre de capoeira e ativista cultural Romoaldo Rosário da Costa, mais conhecido como Moa do Katendê, de 63 anos, foi assassinado com 12 facadas na madrugada da segunda-feira, em um bar de Salvador. O autor confesso do crime, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, disse à polícia que o assassinato teve motivação política. De acordo com a declaração que deu às autoridades, Santana, que votou e defendeu o candidato de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL), discutia com o dono do local, que votou em Fernando Haddad (PT), quando Moa uniu-se à conversa para também defender o petista. O assassino, então, foi à casa, pegou uma peixeira e voltou ao bar para atacar o capoeirista. A delegada Milena Calmon, responsável pelo caso, descreveu Santana ao EL PAÍS como um homem “intolerante e agressivo”.
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Agressões motivadas por um ambiente de ódio na política já haviam irrompido na campanha ao longo do primeiro turno. O próprio Bolsonaro foi vítima de uma facada no dia 6 de setembro durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG) —o agressor, Adélio Bispo de Oliveira, que segundo a Polícia Federal agiu sozinho, alegou motivação política. O candidato passou para o segundo turno com quase 50 milhões de votos adotando um discurso de extrema direita que parece influenciar os atos de uma parcela mais radical de seus eleitores. Na noite desta terça-feira, um estudante recém-formado, cuja identidade foi preservada, foi agredido na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, por usar um boné do MST. A vítima, que estava reunida com amigos em uma praça do campus, foi espancado por membros de uma torcida organizada local sob gritos de “Aqui é Bolsonaro”, segundo testemunhas. “Eram uns 10 homens. Eles chegaram a quebrar garrafas na cabeça do rapaz”, conta M.H.O., presidente do Diretório Central de Estudantes, que presenciou a agressão e fez a denúncia. Os agressores também teriam depredado a Casa do Estudante da universidade, cujas janelas foram quebradas. A polícia foi acionada, mas os homens fugiram do local. A vítima foi atendida por uma ambulância e passa bem. “Seguiremos acompanhando as investigações. Temos que resistir”, diz M.H.O.
Questionado por jornalistas, Bolsonaro taxou o assassinato do capoeirista e outras agressões de "excessos" e disse lamentar os episódios de violência. "Quem levou a facada fui eu, pô. O cara lá que tem uma camisa minha e comete um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?", indagou. Ele também disse que o clima "não está tão bélico assim" e que os casos ocorridos até agora são isolados. Espera que não ocorram mais. "Eu lamento, peço ao pessoal que não pratique isso, mas não tenho controle sobre milhões e milhões de pessoas que me apoiam. Agora, a violência vem do outro lado, a intolerância vem do outro lado. Eu sou a prova viva disso daí".
Para o doutor em Direito Henrique Abel, a resposta de Bolsonaro às agressões foi insuficiente e "mostra um desinteresse da parte dele em orientar seus seguidores". Algo que, em sua opinião, seria muito fácil fazer: bastaria "estabelecer uma diretriz, que teria um impacto psicológico muito importante" entre seus eleitores mais radicalizados. "Ele prefere sair com uma evasiva. Então, sim, há uma responsabilidade. Não diretamente, mas ele é considerado um símbolo e legitima práticas e condutas ilícitas ou abertamente criminosas, como dizer que ele iria 'fuzilar a petralhada' do Acre", argumenta. E acrescenta: "Mesmo que em um eventual governo ele não chegue a dar uma ordem de matar ou torturar alguém, o simples fato de simbolicamente legitimar essas práticas representa, aos olhos de quem será governado por ele, uma interpretação de que passam a ser permitidas. E de que não há nada de errado com elas".
Jornalistas estão na mira
Jornalistas também entraram na mira de agressores. No domingo, uma jornalista pernambucana, cuja identidade foi preservada, prestou queixa na polícia dizendo ter sido atacada por dois homens ao sair do colégio onde votou no Recife. Depois de terem visto seu crachá, os indivíduos —um deles com uma camiseta de Bolsonaro— chamaram-na de “riquinha de esquerda”, agrediram-na e ameaçaram estuprá-la, conta ela. Quando um carro passou buzinando, os criminosos fugiram do local e a jornalista foi às autoridades. O caso foi relatado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que registrou 137 episódios de agressão de profissionais da comunicação ao longo de 2018 "em contexto político, partidário e eleitoral". A entidade contabiliza "75 ataques por meios digitais (com 64 profissionais afetados) e outros 62 casos físicos (com 60 atingidos)". "A maior parte das ocorrências físicas", diz a Abraji, "está relacionada à cobertura de manifestações ou eventos de grande repercussão ligados a eleições".
Nos últimos dias, a jornalista Míriam Leitão, que trabalha em O Globo e na TV Globo, vem sofrendo uma série de ataques virtuais após opinar, no programa Bom Dia Brasil, que o PT e Bolsonaro não são equiparáveis: enquanto o primeiro sempre jogou de acordo com as regras democráticas, o segundo teve uma vida pública marcada pela defesa da tortura e da ditadura. Logo depois desse comentário, começou a circular mensagens falsas dizendo que Leitão foi presa em 1968 após roubar, armada com um revólver calibre 38, 80.000 cruzeiros de uma agência do banco Banespa. A imagem que circula com a mensagem é do momento em que foi presa e torturada pela ditadura militar em 1972, quando tinha 19 anos, por pertencer ao PCdoB na época.
Quem também sofreu agressões verbais foi a irmã da vereadora Marielle Franco(PSOL), brutalmente executada no dia 14 de março —ainda não se sabe por quem. Um dia depois das eleições, Anielle Franco andava perto de um shopping carioca com sua filha Mariah, de dois anos, no colo. Não usava nenhum tipo de broche, camiseta ou bandeira. Uma com a roupa da creche, a outra com a roupa do trabalho. Isso não impediu, conta Anielle, que fosse reconhecida por homens vestindo a camiseta de Bolsonaro, que se aproximaram e começaram a chamá-la de “piranha” e a gritar que ela era “da esquerda de merda” ou “sai daí feminista”.
“Hoje eu tive medo! Medo mesmo. Não deveria, mas tive. Foi assustador. Ainda mais com minha filha no colo”, relatou Anielle em seu perfil no Facebook. “Não estou escrevendo para que ninguém tenha pena. Mas para que repensem sua maneira de fazer política. Por conta de um antipetismo vocês preferem propagar o ódio e a violência?! O seu candidato, em suma, defende esse tipo de postura, e outras coisa bem piores!”
O medo tornou-se um sentimento comum entre muitos cidadãos pertencentes à comunidade negra, LGBTQ e outras minorias atacadas por Bolsonaro em inúmeras ocasiões —agora, na reta final da campanha, ele negou as ofensas, que estão registradas em vídeos. O presidenciável é réu no Supremo Tribunal Federal por incitação ao estupro por ter dito à deputada Maria do Rosário que não a violaria porque “ela não merece”. Bolsonaro enaltece a ditadura militar e já defendeu a tortura. Também já fez declarações racistas e misóginas, assim como já disse: “Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”.
“Um governo de Bolsonaro dá medo porque ele é muito extremista, mas é ainda mais assustador ver que as pessoas que vão se sentir legitimadas a praticar esse discurso de ódio e violência”, resumiu Júlia*, lésbica, de 30 anos, depois de votar na Vila Formosa, zona leste de São Paulo, no domingo. Esse sentimento é compartilhado pela candomblecista Janaí Martins do Nascimento, paulistana de 35 anos. “O cara é totalmente contra o Estado laico e mesmo com o Estado sendo laico, já é difícil para gente. O que eu posso esperar dele em relação a minha religião? Nada. Para mim, ele vai destruir tudo”, disse ela no domingo. “Eu só vim votar por medo dele”, acrescentou.
Sombra do medo
Três dias antes das eleições, viralizou nas redes sociais um vídeo em que um grupo de homens (alguns deles torcedores do Palmeiras) entoavam um cântico homofóbico no metrô de São Paulo: “Ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado”. Para Henrique Barum, homem gay de 23 anos, essas atitudes são um exemplo da banalização da violência. “Eu cresci sofrendo bullying, escutando que era um ‘veadinho de merda’ e agora escuto que um possível presidente vai matar gente como eu. Já estamos vivendo a ditadura do medo”, diz o estudante, que se mudou há oito meses de Pelotas (RS) para Portugal, onde faz mestrado em Estudos Culturais.
Barum conta que, no domingo, quando se confirmou que o candidato do PSL iria para o segundo turno com 46% dos votos, seus pais telefonaram, preocupados. “Olhando para mim, qualquer pessoa sabe que sou gay. Trabalho com maquiagem e saio maquiado nas ruas. Eu sei que, durante esse governo, não me sentiria confortável de me expressar como sou”. O estudante diz estar dividido entre o “alívio” de estar longe do país e a “angústia”. “Penso em amigos e familiares que estão na mesma situação que eu. Por mais que eu queira lutar ao lado deles, meus pais dizem que minha segurança é prioridade. Pedem que fique aqui, que eles virão me visitar”.
Gabriela Reis, pernambucana de 25 anos, anda com medo de sair com a namorada em Caruaru, onde vivem. Ela, mulher negra e lésbica, diz que já está acostumada aos “olhares feios” quando sai de turbante na rua, mas sente que agora a situação será pior. “Há muita tensão e vejo mais olhares agressivos para nós. As pessoas se sentem mais seguras para expor seus preconceitos. O que antes era só olhar, agora pode virar agressão, porque o discurso do Bolsonaro naturaliza a violência”, conta.
Para o paulistano Lucas*, de 36 anos, esse receio se concretizou no domingo. Ele e o namorado estavam em um engarrafamento na capital paulista, quando outros motoristas começaram a “cortar” seu veículo para ocupar o corredor exclusivo de ônibus. O namorado de Lucas buzinou para reclamar e lhes choveram xingamentos como “veados” e “vão dar o cu”. “Respondi a agressão jogando beijos para eles, e então um dos carros, um veículo grande, caro, de cor prata, virou à direita e passou por nós apontando uma arma, também prateada. O motorista era um senhor de uns 50 anos”, conta.
Depois que compartilhou o ocorrido com amigos, Lucas escutou mais relatos de agressões homofóbicas ocorridas durante os últimos dias. Um de seus colegas, que estava com uma camiseta rosa no metrô, ouviu de outros passageiros: “aproveita agora, porque daqui a pouco veado não vai mais existir”. O maior medo do paulistano é a institucionalização desse preconceito, com leis que revoguem o direito ao matrimônio igualitário ou que dificultem ainda mais o acesso ao trabalho e serviços de saúde para LGBTs. “Tenho medo de que o governo possa nos converter em cidadãos ‘ficha-suja’, que nos considere quase criminosos”, confessa.
Higor S., de 22 anos, é da pequena Serra Talhada, em Pernambuco —a terra de Lampião, estereótipo de “cabra macho”—, mas conta que nunca tinha sofrido homofobia antes das eleições. “Minha tia me acompanhou para votar, justamente porque tinha medo de que eu sofresse agressões, mas voltei para casa sozinho. Passei por uma laje onde um grupo de homens de camiseta verde e amarela fazia um churrasco e escutei risadinhas e gritos de ‘bichinha’. Percebi que apontavam para mim e um deles gritou: ‘É melhor já ir se acostumando, que isso aí [referindo-se à homossexualidade] vai acabar logo’, relembra o estudante, que correu para casa.
Higor já havia sido agredido dias antes por um eleitor de Bolsonaro na sala de aula. “Ele me mandou tomar naquele lugar e seus amigos tiveram que segurá-lo para ele não me bater”. Ele conta que ele o namorado, que já saíam pouco juntos, agora acham melhor não se expor mais publicamente. “Todos sabemos que não é o Bolsonaro que vai sair matando a gente, mas seus apoiadores vão se sentir legitimados para fazer isso”, lamenta e, depois de alguns segundos em silêncio, acrescenta: “Espero estar errado”.