Eleições

Luiz Carlos Azedo: O piloto sumiu

“Haddad não esperava que a transferência de votos do petista batesse no teto tão cedo, bem abaixo da rejeição que fez Bolsonaro subir ainda mais e quase vencer no primeiro turno”

O candidato do PT à Presidência da República, Fenando Haddad, volta ao horário eleitoral hoje repaginado, vestido de verde-amarelo e com um discurso paz e amor. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu mentor intelectual e chefe político, desaparecerá da propaganda do petista. Resta saber se a dissimulação, que atende aos apelos dos setores “golpistas” que querem apoiá-lo como “um mal menor”, trará votos suficientes para vencer o pleito ou se a tática tipo “o piloto sumiu” confundirá ainda mais os eleitores. O tracking de ontem mostrava que Bolsonaro continua subindo e Haddad, caindo: a distância entre os dois seria de 18 pontos percentuais, com 10% de nulos e brancos.

Haddad mudou completamente a linha de campanha. Para chegar ao segundo turno, o PT alimentou a tática do ódio nas eleições, com o discurso “nós contra eles”, pois Lula considerava Bolsonaro o adversário ideal a ser batido no segundo turno. Quem eram “eles”? Os “golpistas neoliberais”, claro. Um post do petista Breno Altman, do site Opera Mundi, nas redes sociais, intitulado “Quem é o inimigo principal?”, no momento em que essa linha política passou a ser questionada internamente no PT, ilustra como Haddad chegou ao segundo turno: “São diferentes os alvos da primeira e da segunda volta, a meu juízo. No primeiro turno, os inimigos principais são os partidos e candidatos que comandam o bloco golpista, a começar por Geraldo Alckmin, mas se estendendo a Meirelles, Alvaro Dias, Amoedo e Marina Silva. A centro-direita deve continuar a ser destroçada por sua cumplicidade com o impeachment e a agenda antipopular, antidemocrática e antinacional do governo Temer. Sua destruição política é fundamental para a regeneração do país. Caso haja alguma chance, em algum momento, de levantar a cabeça, toda artilharia possível deve ser voltada para aniquilar os aliados de Temer.”

Intérprete fiel da lógica política petista, Altman antecipava o que viria depois: “No segundo turno, por óbvio, o inimigo principal será o neofascismo representado por Jair Bolsonaro. A inversão de objetivos táticos é tudo o que deseja o partido do golpe para buscar um caminho que enfraqueça a polarização entre Haddad e o capitão reformado, dando algum fôlego para uma candidatura de centro que possa ser apresentada como ‘mais viável’, ‘mais moderada’, para derrotar o neofascismo.” Haddad manteve a rotina de visitas semanais a Lula, vestiu a camiseta vermelha da campanha Lula livre e chegou ao segundo turno sem mudar o discurso. Não esperava, porém, que a transferência de votos do petista batesse no teto tão cedo, bem abaixo da rejeição que fez Bolsonaro subir ainda mais e quase vencer no primeiro turno.

“Aconteça o que aconteça, na delícia ou na dor, um objetivo estratégico terá sido alcançado nessas eleições: a destruição da centro-direita, do centro golpista, como alternativa viável para o comando do país”, disparou Altman, quando isso aconteceu. “A soma do arco Alckmin-Marina, somando Amoedo, Meirelles e Alvaro Dias, mal chega a 20% das intenções de voto. Essa é uma vitória importante do campo popular, que pavimenta o segundo turno e a marcha rumo ao triunfo em 28 de outubro.” Essa estratégia, porém, se tornou uma maldição para Haddad. A maioria dos partidos derrotados no primeiro turno optou pela neutralidade, alguns já se posicionam para permanecer em oposição, outros para aderir ao novo governo, vença Bolsonaro ou Haddad. Por ora, acompanham o jogo da arquibancada.
Tática do medo

Entretanto, ninguém morre de véspera numa eleição tão disputada, ainda mais para presidente da República. Desde a reeleição de Lula, o PT tem uma fórmula eficaz para disputar o segundo turno: a tática do medo. Não será diferente agora, com a ajuda de atitudes fascistas dos partidários de Bolsonaro. Poderia ter sido usada antes, mas isso não interessava, porque o objetivo era o atual confronto. O problema de quem vende a alma a Mefistófeles, como Dr. Fausto, é que o Diabo quererá o seu corpo no inferno. Foi o que aconteceu com Haddad. Bolsonaro é acusado de machista, misógino e homofóbico, isso despertou os maus instintos das profundezas de uma sociedade traumatizada pela violência, pela corrupção e pela desestruturação das famílias. Essa narrativa até agora não foi capaz de superar a força do antipetismo, porque o partido governou como uma espécie de erva daninha.

Bolsonaro, porém, sentiu a pressão em relação a temas que atingem diretamente a população mais pobre. Nas eleições de 2006, quando Lula foi reeleito, Alckmin foi derrotado porque se disseminou que ele venderia a Petrobras e o Banco do Brasil e acabaria com o Programa Bolsa Família, que abriga 13 milhões de famílias. A tática se repetiu contra José Serra, em 2010, e Aécio Neves, em 2014. Agora está sendo usada novamente. Não foi à toa que Bolsonaro anunciou que não pretende privatizar as estatais e vai criar o 13º do Bolsa Família. A radicalização e a disseminação do ódio nas redes sociais, por uma militância que não mede as consequências do que escreve, já evoluem para confrontos físicos, que precisam ser contidos, porque isso a sociedade não suporta. Não fazem parte do jogo democrático, são atitudes realmente fascistas.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-piloto-sumiu/


El País: Uma eleição que demoliu todos os padrões de campanha no Brasil

Tempo de propaganda na TV, quantidade de recursos e peso de medalhões foram postos em questão. Ferramentas de comunicação e turbulência política influenciaram diretamente nos resultados

Por Rodolfo Borges, do El País

Éneas Carneiro se estabeleceu no folclore político nacional por conta dos breves 15 segundos que tinha para passar sua mensagem no horário eleitoral gratuito. Quase 30 anos depois daquela eleição de 1989 em que o Brasil conheceu o candidato do Prona, um presidenciável com metade de seu tempo de propaganda na tevê passou ao segundo turno com 46,03% dos votos. Os oito segundos do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) eram 39 vezes mais breves do que os 5 minutos e 33 segundos de Geraldo Alckmin (PSBD), que terminou o primeiro turno na humilde quarta colocação, com apenas 4,76% dos votos, apesar de reunir a maior coligação da corrida presidencial, com nove partidos, e de ter acesso a 185,8 milhões de reais de fundo eleitoral —o PSL, de Bolsonaro, recebeu 9 milhões de reais. Esse e outros resultados do primeiro turno desta eleição não respeitaram os padrões estabelecidos durante as últimas décadas. E talvez esses padrões nunca voltem a existir, avisa o cientista político Carlos Melo.

Outro paradigma revertido nestas eleições foi a importância de medalhões históricos no Congresso. A Câmara Federal passou neste ano pela maior renovação desde 1994, com 52% de mudanças, acima dos 40% projetados pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A renovação no Senado, de 87%, foi ainda mais expressiva. A eleição deixou de fora medalhões como o atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), além de Cassio Cunha Lima (PSDB-PB), vice-presidente da Casa, e Cristovam Buarque (PPS-DF) —dos nomes históricos do Congresso, Renan Calheiros (MDB-AL) foi um dos únicos a se reeleger. Alguns deles deixarão o Congresso Nacional por conta das turbulências que tomaram conta da política brasileira nos últimos anos, capitaneadas pela Operação Lava Jato e pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que está entre os derrotados na eleição deste ano.

Para o cientista político Jairo Pimentel Jr., um dos grandes determinantes para o desfecho da eleição foi a falta de referência para o eleitor. “Importaram menos as questões relativas à avaliação de governo. Era consensual que o [presidente Michel] Temer tinha um Governo ruim, seja para a direita ou para a esquerda. Quando os eleitores perdem a referência, tudo pode acontecer”, diz o pesquisador do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp/FGV). Foi nessas condições que o partido Novo, que disputou sua primeira eleição, conseguiu eleger oito deputados federais e colocou seu candidato ao Governo de Minas Gerais, Romeu Zema, no segundo turno. Outro resultado surpreendente: a Rede, cuja candidata à presidência, Marina Silva, teve menos votos que Cabo Daciolo (Patriota), terá uma bancada com cinco senadores, mas apenas um deputado federal.

Assim, enquanto o PSDB teve sua bancada reduzida de 49 para 29 deputados, com a perda do maior número de parlamentares na Câmara, e ainda luta para eleger pelo menos um governador, o PSL surfou na onda Bolsonaro para saltar de um deputado eleito em 2014 para 52 neste ano, o maior crescimento. Segundo Pimentel Jr., as campanhas dos partidos, cuja probabilidade de influenciar no resultado da eleição costuma ser calculada em torno de 10%, fizeram menos diferença neste ano, e isso inclui a tevê — é a primeira vez desde a redemocratização que um candidato com um dos menores tempos de propaganda passa para o segundo turno. "O Brasil e o mundo são outros nos últimos quatro anos", resume Carlos Melo.

"Em 2014, quem se elegeu foi a Dilma, e o segundo colocado foi o Aécio [Neves]. A Dilma não se elegeu senadora neste ano e o Aécio teve de ser candidato a deputado federal para não perder o foto privilegiado. Aconteceu de tudo: impeachment, Lava Jato, muita denúncia, muito desalento, estourou a violência urbana. O Estado mais simbólico do país, o Rio de Janeiro, está sob intervenção do Governo federal por conta da violência", resume o cientista político, que segue: "O maior líder popular da história do Brasil está preso. O presidente da República exerce mandato porque conseguiu um abrigo da Câmara dos Deputados e porque o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] o protegeu". Para Melo, comparar a eleição atual com a anterior não faz sentido, porque todas as condições são diferentes.

Gastos de campanha

Apesar de todas as mudanças e surpresas, o poder financeiro seguiu, em alguns casos, predominando nesta eleição, que não contou com doações de empresas, mas com um fundo eleitoral público. A deputada mais votada no Distrito Federal, por exemplo, foi Flávia Arruda (PR), mulher do ex-governador José Roberto Arruda e dona do maior orçamento na disputa regional, com 2,4 milhões de reais repassados pelo partido —ela declarou gastos de 1,38 milhões de reais. Já Marcel Van Hattem (Novo), cujo partido tem como política não usar o fundo partidário, se elegeu para a Câmara Federal com o maior número de votos no Rio Grande do Sul gastando 423.020 reais — ele declarou 719.742, 75 reais em doações recebidas. O segundo colocado no Estado, Onyx Lorenzoni (DEM), teve 166.337 votos a menos que o novato Hattem, mas gastou mais do que o dobro: 956.679,17 de reais.

Por outro lado, a candidata a deputada estadual mais votada da história em São Paulo, Janaína Paschoal (PSL), só precisou gastar 27.949 reais para receber 2 milhões de votos. E os 2 milhões de reais gastos pelo senador Romero Jucá (MDB) não foram suficientes para mantê-lo no cargo pelo sétimo mandato consecutivo. Faltaram 426 votos para ele superar Mecias de Jesus (PRB), o segundo colocado na corrida pelo Senado em Roraima. Líder no Senado dos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, Jucá pode ser considerada uma das vítimas da Lava Jato e da impopularidade recorde do atual presidente nesta campanha.

O senador ficou marcado, no início do Governo Temer, em maio de 2016, por comentar em gravação vazada que era preciso "estancar a sangria" provocada pela operação. A Lava Jato também acertou em cheio candidaturas como a o ex-governador Beto Richa (PSDB), que chegou a ser preso durante a campanha e não conseguiu se eleger ao Senado. Outro ex-governador, Anthony Garotinho (PR), ficou de fora da eleição no Rio de Janeiro por conta de uma condenação por improbidade administrativa, em um dos vários casos em que juízes e procuradores influíram diretamente na eleição.

A operação policial que dita os rumos da política nacional desde 2014 desarrumou a dinâmica partidária estabelecida desde a redemocratização, enfraquecendo os polos PT e PSDB. "Os eleitores sempre buscam simplificar a realidade para tomar uma decisão, porque a realidade é muito complexa. O que fica no meio termo acaba perdendo força para os polos binários enquanto referência. Se o Bolsonaro ou o PSL vão conseguir consolidar isso, é um dúvida. Leva tempo. O fato é que o PSDB perdeu essa força de polarização com o PT, diz Jairo Pimentel Jr.

O cientista político lembra que a próxima eleição já não terá coligações para cargos proporcionais e que a cláusula de barreira será mais rígida, o que deve contribuir para a simplificação do sistema político. "O ideal é que a dinâmica partidária seja mais estável, para que o eleitor tenha referências de longo prazo, de como os partidos pensam e atuam, tanto no Governo quanto na oposição", diz, acrescentando que a tendência é que surja um novo arranjo do sistema partidário. "A simplificação da política importante para que o eleitor se sinta seguro com o sistema. Ele não tem tempo para ficar estudando ou pensando sobre a política, quer uma referência mais elementar, basilar, para tomar a melhor decisão possível".


Eliane Brum: “O ódio deitou no meu divã”

Relatos de psicanalistas revelam a violência que cresce e se infiltra no Brasil com a possibilidade de Jair Bolsonaro chegar à presidência da República

Ele entra sem dizer uma palavra e logo começa a chorar. Pergunto o que aconteceu e ele me diz, assustado, que foi abordado por um cara da faculdade, com as seguintes palavras:

Depois, é a menina que já entra chorando e me diz:

— Sil, me ajuda... não sei o que fazer... você não vai acreditar no que aconteceu comigo hoje... Eu estava na escola e fui pegar um livro no meu armário... Tinha uma folha de papel...

Aí ela me mostra uma foto no celular, porque entregou a tal folha na diretoria, com esta mensagem aqui:

– Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!!

O relato, feito pelas redes sociais, é da psicanalista Silvia Bellintani, pouco antes do primeiro turno das eleições. Devidamente autorizada pelos pacientes, ela conta o que escutou de dois deles no seu consultório, numa mesma tarde: ele, homossexual, 19 anos; ela, heterossexual, 17 anos, feminista.

Nos últimos dias, começaram a circular posts de psicanalistas e psicólogos que decidiram levar para o debate público o que escutam no seu consultório. Sem expor os pacientes, mas apontando o que vem acontecendo na sociedade brasileira apenas pela possibilidade, bastante grande, de um homem como Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura e da violência, assumir a presidência do país.

Em um post intitulado “Ser analista sob o ódio”, Ilana Katz escreveu:

“Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como fake news o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro, e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro. Essas não são conversas de WhatsApp. Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula. Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos”.

"Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar"

Várias instituições de psicanálise fizeram manifestos pela democracia –e contra a opressão representada pela candidatura de extrema direita. Entre elas, a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano:

“A política da psicanálise se associa à ética do bem-dizer e nos leva a fazer frente ao discurso do ódio ao outro, em pleno Estado democrático. O discurso do analista deve circular na pólis e, quando nos dirigimos ao mundo, o silêncio do ‘terror conformista’ não nos cabe”.

Psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise também posicionaram-se, propondo “um movimento de circulação de breves relatos do que tem sido escutado nas ruas do país sobre os efeitos nefastos que a ameaça do fascismo é capaz de provocar”. Em texto veiculado nas redes, afirmam:

“Quando o valor das palavras é banalizado, a ponto de o pior poder ser dito por um candidato à presidência da República, como se fossem apenas palavras ao ar, perdemos a noção de que estamos escrevendo, com elas, nossa história. Perdemos a noção de que palavras se cravam na história, nos ouvidos e nos corpos de um país. Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar. E nunca se sabe ao certo, de antemão, onde será. Não será sem consequências nos fazermos de surdos para o pior. Escutemos, pois”.

Em seguida, enumeram alguns relatos escutados nas ruas do Brasil nos últimos dias:

“Uma amiga estava amamentando seu filho, que tem menos de um ano, em uma padaria próxima à sua casa, quando passaram dois caras e um deles gritou, olhando pra ela: ‘Quando ele ganhar, essas vagabundas não vão mais poder fazer isso!’”;

“Um casal de meninas anda na rua e ouve de um passante: ‘Aproveita, porque o 17 vem aí!’”;

“Depois de uma longa conversa com alguém, na tentativa de argumentar contra o que representa o ‘Coiso’, o alguém perde os argumentos e enuncia a verdade velada. 'Ah, quer saber, foda-se se ele defende a tortura. Comunista pode ser torturado!’”;

“Meu enteado andando na rua com camiseta da faculdade (UERJ) ouviu de cinco homens passando de carro: isso vai acabar quando o mito ganhar, você estuda nessa merda e nunca vai ganhar dinheiro”;

“Minha filha, ontem, na saída da escola, foi abordada por um cara, que, por conta do adesivo do Haddad, que ela trazia colado na camisa, mandou essa: 'Fica esperta que eu sou do exército Bolsonaro que esfola comunista'".

A crise no Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra

Tenho escrito há anos que a crise do Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra. Quando tudo pode ser dito, nada mais diz. As palavras, no Brasil, se tornaram palavras fantasmas, porque nada movem. Essa realidade ficou explícita quando Jair Bolsonaro, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores da ditadura, responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas e pela tortura de centenas –e nada aconteceu.

Nesta eleição, seus filhos e apoiadores vestiram camisetas com o rosto do torturador e as palavras “Ustra vive!” – e, mais uma vez, nada aconteceu. Enquanto isso, mães ainda choram por seus filhos assassinados por Ustra – e mulheres torturadas por ele, que levaram choques elétricos nos seios e vaginas e tiveram baratas e ratos enfiados nos seus corpos, ainda acordam gritando à noite.

Se as palavras se tornam cartas extraviadas, cartas que não chegam ao seu destino, o diálogo é interditado, e o ódio se instala. O fenômeno Bolsonaro pode ser compreendido também a partir do esvaziamento das palavras. É uma resposta possível para o fato de que quase 50 milhões de brasileiros foram capazes de votar em alguém que diz o que Bolsonaro diz. Muitos deles, inclusive assistindo a vídeos em que ele diz o que diz, negam que ele disse o que diz. Veem, mas não veem. Ouvem, mas não escutam.

Sem diálogo, as palavras perfuram os corpos. É urgente que as palavras voltem a dizer no Brasil –ou elas serão cada vez mais balas perdidas. E sabemos que balas perdidas acham corpos. É este o movimento dos psicanalistas que escolheram não se omitir neste momento de tanta gravidade para o Brasil, certamente o momento mais grave da história recente do país, talvez o momento mais grave desde o golpe de 1964.

Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país

O ódio ao PT, explicação dada por parte dos que votam em Bolsonaro e por muitos que pretendem votar em branco ou anular o voto ou se abster de votar não é a doença, mas o sintoma. Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país. É no divã dos psicanalistas, em que a palavra tem espaço e carne, que essa escuridão emerge em todo o seu horror.

Ao iniciar o seu relato, Silvia Belintani afirma: "Eu poderia dizer que estou sem palavras para descrever o que testemunhei hoje no meu consultório. Mas tive o dever de encontrá-las, para não deixar que algo assim, gravíssimo, fique sem registro”. E, mais adiante: “O cenário das eleições sequer foi definido, mas já encoraja o sadismo e promete ser palco do terror. Fico imaginando o que vem pela frente”.

Em seu post, Ilana Katz faz uma análise profunda sobre o papel de um analista também neste momento (abaixo reproduzo o post). E afirma: “O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?”

E termina:

“Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio. Para que os odiadores e os odiados possam seguir se deslocando de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim”.

"Ser analista sob o ódio"

Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como “fake news” o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro.

Essas não são conversas de WhatsApp.

Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula.

Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos. Ouço as histórias, tento escutar, procuro as sutis diferenças. No esforço de escutar esses sujeitos, brigo comigo para abandonar o ritmo do WhatsApp. Aqui, assim como lá, não há trégua porque não há outro tema. Há odiados e odiadores. E eu aprendo, mais uma vez, que ódio varia pouco, e permite poucas variações também.

As palavras, em looping, não permitem que o sujeito possa se dizer. São as mesmas palavras que ocupam o discurso de uns (corrupção-ladrão- quadrilha-dinheiro-justiça. Eu-não-sou-idiota), e o mesmo medo que distribui os termos dos outros (fascismo-direitos sociais-apanhar-fugir-lutar. Medo-pânico-medo).

O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?

O estancamento do dizer é uma tarefa do analista na clínica. É preciso fazer isso trabalhar. É preciso procurar a ligação particular entre esses termos em cada história. Drenar o ódio e oferecer a chance da subjetivação das experiências. Como direção, tocar o gozo, alçar responsabilidade subjetiva.

Por força e exercício do ofício de psicanalistas, sabemos o que a palavra quer dizer como possibilidade para o sujeito e para suas formas de laço. Para que seja possível um viver com os outros. É assim que aprendemos que psicanálise e democracia se fazem valer do mesmo princípio condicionante, que é a circulação livre das palavras. A diferença entre clínica e espaço público guarda a também fundamental diferença dos níveis de tratamento que a palavra que circula deve receber. A tão famosa neutralidade do analista só vale se, sustentada no Desejo do Analista, garantir a possibilidade de que aquele que fala seja o mais livre possível na sua relação com o que diz.

No exercício do seu ofício, um psicanalista suporta, em sua clínica, a hiância entre o singular e o coletivo que o sintoma sustenta. Por força e exercício do ofício, um psicanalista se responsabiliza pelo que a psicanálise e a clínica lhe ensinam sobre o que é o controle do dizer, que é também o controle do pensar e do limite do gesto de um outro. Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio.

Para que os odiadores e os odiados possam seguir deslocando-se de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim.”

(Ilana Katz, psicanalista, São Paulo)


Míriam Leitão: A democracia em momento extremo

Qual dos dois candidatos do segundo turno teria melhores condições de governabilidade? Como a composição do Congresso é mais de centro-direita, seria Jair Bolsonaro, diz o cientista político Carlos Pereira, da FGV.

Carlos Ranulfo, da UFMG, discorda, lembrando que o PT governou com a mesma coalizão. Pereira acha que Bolsonaro está avisando que tentará governar sem passar pelos partidos, como Collor fez. Isso traz sucesso, no primeiro momento, e conflito, depois. Já o PT, lembra Ranulfo, se aprisionou no discurso do golpe e Fernando Haddad teria que mudar essa postura.

Não será fácil para ninguém, na verdade. A entrevista que fiz com os dois cientistas políticos mostra visões diferentes sobre o que acontecerá na sempre difícil relação entre Executivo e Congresso no Brasil. O primeiro momento é o da lua de mel, no qual todos os presidentes tiveram sucesso, mas depois pode haver grandes dificuldades. Carlos Ranulfo acha “um erro enorme” colocar o PT como extrema-esquerda.

— Isso não existe, ninguém jamais colocou o PT como extrema-esquerda, a gente faz entrevistas com parlamentares e pergunta como eles posicionam os partidos. Ele se moderou brutalmente, como todos os partidos de esquerda — diz Carlos Ranulfo, mas Carlos Pereira discorda.

— Acho que o antipetismo não surge por acaso, foi por erros dramáticos do PT nos últimos anos. O PT namorou muito tempo o iliberalismo. A própria campanha de Haddad não reconhece as instituições judiciais que puniram Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. E aí é que está o meu receio. De ele não conseguir ofertar compromissos críveis de respeitar as instituições de controle. O partido vai sofrer uma pressão interna muito grande no sentido de controlar a PF, o MP, a mídia — diz Carlos Pereira.

Ranulfo define como “retórica” as críticas do PT às instituições democráticas e acha que a ameaça vem de Bolsonaro:

—Não há comparação em riscos à democracia. Numa escala de 1 a 10, Bolsonaro é 8, e o PT é 1, na minha opinião.

Carlos Pereira acha que como o PT foi objeto de muita punição e, na eventualidade de voltar ao poder, mesmo depois das punições que sofreu, é “quase racional esperar desse mesmo partido uma ação no sentido de tentar coibir essas instituições que geraram perdas não triviais para ele”. A resposta de Ranulfo é que esse mesmo raciocínio teria que caber ao Alckmin, já que, argumenta, o PSDB também foi atingido pelo combate à corrupção. “Perillo foi preso, Beto Richa, o Aécio sumiu do mapa, o Azambuja teve busca e apreensão”.

Os dois concordam que a democracia no Brasil não está ameaçada. Pelo menos num primeiro momento. Carlos Pereira diz o seguinte:
— Temos instituições muito sólidas. Eu tenho receio das reações da sociedade às ações do próximo governo. Se o Haddad tentar limitar as instituições de controle, a sociedade vai reagir. Se Bolsonaro desrespeitar as instituições legislativas, a sociedade vai reagir. E essas reações tendem a ter uma escala de outro nível de violência.

— É claro que a democracia não está ameaçada, mas eu não subestimo o risco de um eventual governo Bolsonaro. A relação dele com a democracia é muito ruim e ele está estimulando na sociedade agressões, violência. Isso é parte de uma onda muito conhecida no mundo — diz Ranulfo.

Houve muita renovação no Congresso, mas a mediana da Câmara continuou sendo de centro-direita. Isso, segundo Carlos Pereira, daria mais condições de governabilidade a um governo Jair Bolsonaro. Carlos Ranulfo acha que, mesmo com a renovação, a tendência é a mesma com a qual o PT governou. Pereira acha que haverá problema se Bolsonaro cumprir a promessa de tentar repetir o estilo Collor de Mello. Diz que há uma “literatura bem estabelecida” sobre o fenômeno de se relacionar diretamente com o público sem as intermediações legislativas e partidárias, falando diretamente com o eleitor através da mídia social.

— Esta mesma literatura argumenta que essa estratégia é muito bem-sucedida no curto prazo. O presidente é muito popular porque sai das urnas com muita autoridade. Mas cria progressivamente animosidade e, na primeira vulnerabilidade que o presidente tenha, o custo pode subir. Neste cenário, eu tenho muito medo de conflitos que coloquem em risco a ordem democrática — diz Carlos Pereira.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Roberto Dias: Democracia boa não é só a nossa, não

Esquerda jogou fora valores e caiu em armadilhas lógicas

Há enormes razões para não votar em Jair Bolsonaro. O problema é que existem também imensos motivos para não votar no PT.

No bolsonarismo, a agressividade embala a tosquice de sempre. A novidade vem da esquerda, que jogou fora valores, justamente o que diz prezar, e caiu em armadilhas lógicas. ​

A mais evidente é negar a democracia ao afirmar defendê-la. Dizer que votar em Bolsonaro é indefensável acaba sendo, esse sim, um argumento indefensável. Declarar que corrupção não é desculpa para votar no capitão embute premissa absurda: a de que um cidadão precisa de desculpa para exercer um direito.

A esquerda aponta (corretamente) o preconceito contra o Nordeste, que parou Bolsonaro. Mas ridiculariza SP por suas opções legislativas.

O veto à entrevista de Lula para a Folha foi (acertadamente) chamado de censura. Mas quando se anunciou a entrevista de Bolsonaro à Record, a esquerda gritou por censura.

O autoritarismo do elenão começa no nome. Mas há um problema: pela lei brasileira, só a Justiça pode vetar alguém. Segundo ela, Bolsonaro pode se candidatar, e ele, Lula, não. Aliás, é possível encontrar vídeos com inúmeras barbaridades ditas por Lula. A diferença? Para Lula tudo virava piada de salão —e para ele, Bolsonaro, não (nem deveria).

A banalização do termo fascismo mostra que ignorância histórica não é monopólio da direita. A seguir a lógica de quem acha que qualquer eleitor de Bolsonaro é um torturador em repouso, seria o caso de proteger a carteira cada vez que se aproximasse um petista. Trata-se de raciocínio esgarçado até perder o sentido.

A esquerda apontava ameaça democrática no bolsonarismo sem interlocução com o Congresso. Enquanto essa crítica era repetida, o PSL fazia campanha para eleger a nova grande bancada da Câmara. Ficou mais difícil sustentar o ataque por aí.

Numa luta legítima por corações e votos, muita gente da esquerda foi perdendo a lógica pelo caminho. Democracia boa não é só a nossa, não.

*Roberto Dias é secretário de Redação da Folha.


Fernando Canzian: Nova 'Classe D/E' do Congresso é incógnita com Bolsonaro

Segundo turno pode ser um passeio para o capitão; choque de realidade fica para depois

O primeiro turno da eleição trouxe uma espécie de invasão da "classe D/E" da política, e é ela que dará as cartas no Congresso. Embora tenha alguns contornos extravagantes e deputados pitorescos, essa nova turma é bastante representativa da sociedade em que vivemos. Isso vinha se desenhando há anos e põe fim à fase em que parlamentares do baixo (ou baixo-baixo) clero tinham de se fazer representar via pressões para cima, por meio de intermediários mais tradicionais que mantinham feudos no parlamento. Se Jair Bolsonaro (PSL) acabar eleito, essa transição de baixo para cima ficará completa. O desafio é que o novo arranjo não parece combinar muito com a agenda liberal que o candidato líder nas pesquisas agora abraça.

Na falta de coisa melhor, empresários e o mercado vêm apostando tudo em Bolsonaro, apesar do entulho retrógrado que ele traz consigo. Qual é a alternativa?

Desde do início da campanha, Fernando Haddad (PT) apenas reforçou o que os próprios petistas querem ouvir, chovendo no molhado ao encerrar o primeiro turno com Dilma Rousseff em Minas e ao começar o segundo com Lula em Curitiba.Na primeira oportunidade que teve, no Jornal Nacional de segunda (8), voltou a detonar o "teto dos gastos", que garante alguma previsibilidade no gasto público, e o sistema financeiro.Já o discurso de Bolsonaro e a equipe econômica que se desenha vai no sentido contrário, de cortes, racionalização de ministérios e da agenda liberal de Paulo Guedes, seu futuro ministro da Economia —já que Fazenda e Planejamento seriam fundidos.Na quarta (9), porém,

Bolsonaro jogou a tolha sobre a aprovação da reforma da Previdência que está no Congresso, embaçando pela primeira vez, e de forma não trivial, o entusiasmo do mercado em torno dele —o dólar subiu e a Bolsa caiu como resultado.Isso indica que toda a discussão em torno do tema crucial para as contas públicas terá de ser refeita, o que levará tempo diante de pontos espinhosos. Os benefícios dos PMs, que hoje se aposentam aos 49 anos em média serão mexidos? E os dos militares? Qual a economia que o novo projeto trará? Nesse contexto, o PT, que seguirá oposição, terá a maior bancada na Câmara, com 56 cadeiras. E pouco ou nada se sabe ainda dessa nova “classe D/E” que chega à Câmara. E qual preço cobrará de um novo governo que promete o fim da fisiologia.

*Fernando Canzian é jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.

Gustavo Bizelli : Os fascistas são a minoria

Quase metade do Brasil votou contra a democracia?

Jornalistas, cronistas e analistas políticos avaliam que os resultados das eleições vêm de uma onda conservadora, uma radicalização ou um sentimento de ódio ao partido adversário. Penso que poucos captaram até o momento os reais movimentos que nos levaram a esses resultados.

Bolsonaro se estabelece em 17% das intenções de voto e por meses lá permanece. Conheço alguns desses eleitores. Querem ter a liberdade de comprar uma arma, acreditam que bandidos sejam mais defendidos que as vítimas; uns poucos apoiam a pena de morte, não nutrem simpatia por minorias, negros e homossexuais, e em geral estão cansados das "safadezas", termo que generaliza corrupção e incompetência.

Não são pessoas ruins, mas têm um pensamento menos progressista. Tachá-los de fascistas, no entanto, parece exagerado.

Bolsonaro só sai da margem de erro dos 17% quando fica claro que Lula de fato não será candidato e que Fernando Haddad --que até então minguava com 2% a 4% nas pesquisas-- passa a receber votos que seriam de Lula e inflavam a votação de Marina e o contingente de nulos e de brancos.

Antipetismo, então? Quase isso!

Os 29% de votos que se somaram aos primeiros 17% não foram rapidamente migrando para Bolsonaro. Quanto mais pura a rejeição ao petismo, mais rápido o capitão recebeu tais votos. Quanto mais ponderado e informado, mais o eleitor tardou a embarcar na candidatura 17.

Mas, com o decorrer dos dias, ficava cada vez mais claro que a opção a Bolsonaro seria a volta de uma política de governo que, esta sim, é muito rejeitada. Estatais aparelhadas e a serviço de projetos políticos, capitalismo de compadre, déficit primário, perda do grau de investimento, BNDES financiando apoiadores e obras em outros países, uma névoa de projeto de poder bolivariano na América Latina, uma política externa marcada pela ideologia e não pela eficiência, controle dos meios de comunicação, tudo regado a corrupção.

Não é possível que se acredite que quase metade do Brasil votante optou por posições duvidosas quanto à democracia ou retrocessos na agenda progressista. Os eleitores que migraram para a candidatura 17 foram em blocos, engolindo a seco os pontos de rejeição para evitar o pesadelo da volta da nova matriz econômica e do jeito petista de governar.

Os últimos dois blocos que migraram para a candidatura, o primeiro entre quinta (4) e sexta-feira (5), que mudou o patamar de 36% para 41% das intenções de voto, e o segundo entre sábado (6) e domingo (7), que decretaram a subida final de 41% para 46%, são majoritariamente formados por pessoas progressistas, democráticas, que acreditam na igualdade de gênero, nas liberdades individuais, na necessidade de apoio aos mais pobres e nos direitos humanos, mesmo de pessoas que cometem delitos.

Tais pessoas não acreditam, porém, que essa agenda poderá ser alterada por essa candidatura. Acreditam, sim, que a sociedade e o país possuam bases e instituições sólidas que não permitirão retrocesso em conquistas de comportamentos, hábitos, costumes, liberdades etc.

Por outro lado, tais pessoas têm certeza de que, com um novo governo petista, a velha nova matriz econômica e o jeito petista de governar estarão conosco em 1º de janeiro.

O discurso aparentemente oportuno de união dos democratas não conquistará os 29% de eleitores que embarcaram na candidatura 17 por não querer a volta da política petista, e tão pouco chegará aos ouvidos dos 17% de eleitorado mais aderente de Bolsonaro.

Apenas a confiança de que a política praticada anteriormente pelo regime petista é considerada equivocada pelos seus autores e que nunca mais será repetida poderia conquistar eleitores que já optaram por dizer não à sua volta, a uma nova Carta aos Brasileiros. Mas tal discurso, neste momento, pareceria mais que oportuno; pareceria oportunista.

*Gustavo Bizelli é economista formado pela Unesp, pós-graduado pela FGV e especialista em inteligência de mercado pela Universidade da Califórnia; sócio da consultoria Diferencial Pesquisa de Mercado


Nelson de Sá: Solavancos esfriam 'amor' por Bolsonaro no mercado externo

'Investidores deveriam esperar a eleição', aconselha FT, citando sinais contra reforma da Previdência

WSJ noticia investigação por ‘suposta fraude’ com fundos de pensão

No Wall Street Journal, “Alto assessor de Bolsonaro é investigado por suposta fraude de investimento”. Logo abaixo, “Paulo Guedes é considerado um potencial ministro das finanças se Bolsonaro vencer”. E foram suas as “propostas de livre mercado que ganharam apoio do mercado financeiro”.

O jornal ouve de analista brasileira de finanças que, mesmo se a investigação “levar à queda de Guedes”, ele poderia ser substituído por outro de mesma linha. Os investidores estariam “mais preocupados com as declarações de Bolsonaro, abaixando o tom da necessidade de mudanças na Previdência”.
Também no Financial Times, “Procuradores brasileiros investigam assessor econômico de Bolsonaro”. Logo abaixo, o inquérito é “por suspeita de fraude do financista nos investimentos de fundos de pensão”.

O jornal destacou depois a análise “Investidores deveriam esperar a eleição”, listando a declaração do articulador político de Bolsonaro contra a reforma da Previdência no Congresso; o silêncio imposto pelo próprio candidato a Guedes; e por fim, “na quarta, a Folha estampou a notícia de que o financista estava sob investigação. Mr. Guedes não pôde ser encontrado para comentar”. O FT fecha com um alerta:

“Os investidores podem estar amando os acontecimentos no Brasil até agora. Um caminho sábio pode ser esperar para ver como eles vão terminar.”

TÁTICA DO MEDO
Os dois enviados do britânico Guardian à eleição brasileira, Tom e Dom Phillips, produziram longa reportagem sobre a “tática do medo” amplificada por Bolsonaro neste início de campanha para o segundo turno, sob o título “A nova Venezuela?”. No segundo enunciado, “O candidato de extrema direita buscou, com evidência escassa, vincular seu oponente do Partido dos Trabalhadores aos problemas do país vizinho”.

Observam que Donald Trump, em artigo no USA Today, também começou agora a usar a sombra venezuelana contra os democratas, “radicais socialistas”, na eleição legislativa nos EUA.

FUKUYAMA, O COMUNISTA
O filósofo Francis Fukuyama, de Stanford e referência do pensamento conservador das últimas décadas nos EUA, afirmou em mídia social que é “aflitiva” a aprovação de Bolsonaro pelos “mercados financeiros” —e também ele virou alvo de ataques. Depois ironizou:
“Muitos brasileiros parecem pensar que eu sou um comunista porque estou preocupado com uma presidência Bolsonaro. E você pensa que os americanos estão polarizados...”

LGBTQ, PROTEJAM-SE!
Influenciadores como o youtuber Rafucko noticiaram: “LGBTQ, protejam-se! Grindr emite alerta porque tem gente usando o app para atrair homens gays para emboscadas”. O aplicativo, citando preocupações de usuários “após a recente eleição”, aconselhou tomar “as medidas necessárias para manter-se seguro” (acima).
A violência homofóbica, entre outras, já repercute em veículos europeus como Le Monde.

PROVAVELMENTE
Em contraposição ao editorial de capa da própria revista, coluna de Michael Reid na nova Economist, com a ilustração acima, cita declaração do comandante do Exército para afirmar que os militares, "mais provavelmente, vão conter Bolsonaro" --e não apoiar seu autoritarismo.

* Nelson de Sá é jornalista, foi editor da Ilustrada.


Alberto Aggio: Dias de espanto

Entre a catástrofe e o desastre, nossa frágil democracia terá de resistir para sobreviver

Aos homens é facultada, sob determinadas circunstâncias, a escolha de como viver e, surpreendentemente, de experimentar também formas de como morrer. Mais precisamente, de como morrer num sentido especulativo resultante de escolhas no transcurso da vida.

No final da década de 90 do século passado, o antropólogo mexicano Roger Bartra escreveu um pequeno artigo que toca nesse tema. A partir do contexto latino-americano, Bartra sugere quatro formas de experimentar a morte intelectual. A primeira é buscar a fama a qualquer custo, num campo específico de atuação ou na mídia. A segunda é tornar-se um especialista e conselheiro profissional. A terceira é o que ele chama de “morte mercantil”, uma opção assumida pelos escritores dos best-sellers do momento. Em todas se verifica a presença do vírus democrático (ou a massificação da cultura) na causa mortis. Por fim, a morte lenta, que ataca os intelectuais de esquerda que perderam seus referenciais depois do colapso do “comunismo histórico”. Eles continuam sua pregação utópica, mas demarcada por um pragmatismo cada vez mais explícito. Sem condescendência, Bartra termina o artigo brincando com os leitores a respeito da “sua morte intelectual”. Diz ele: “Eu já escolhi a minha... Mas não direi qual é!”.

Evidentemente, existem outras formas de vivenciar a morte intelectual. Há de tudo, desde a voz solitária do tribuno republicano pregando a refundação do Estado até os velhos líderes estudantis que se tornam gourmets famosos e apreciam viajar pelo mundo. Embora no campo da esquerda quase todos os intelectuais vivenciem, de alguma maneira, essa experiência, há situações drásticas como, por exemplo, a de Fernando Haddad, que decidiu experimentar a sua morte intelectual de maneira explícita e em praça pública quando assumiu, na atual campanha eleitoral, o papel de fantoche de Lula, preso em Curitiba por corrupção e com mais processos a serem julgados de gravidade similar à daquele que o condenou.

Em nosso tempo, não só os intelectuais experimentam a diversidade de formas de se aproximar ou consumar a “sua morte”. Hoje sabemos, pelo livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt Como as Democracias Morrem (Zahar, 2018), que também as democracias morrem não apenas por golpes de força, como antigamente. Embora as críticas feitas ao livro por Marcus André Melo em artigos recentes mereçam atenta leitura, especialmente sua crítica a respeito do desconhecimento da situação brasileira pelos autores, notadamente do papel desestabilizador da democracia promovido pelo PT.

Acontece que, ainda não estando consumada a sua morte, há atores, personalidades e mesmo partidos que começam a flertar vivamente com a experiência da morte política. A recente campanha eleitoral e seus resultados exibiram essa aproximação. O Brasil foi revolvido de cima a baixo. O resultado do primeiro turno não deixa dúvidas: acabaram-se os pactos que foram construídos durante a resistência ao regime ditatorial e mesmo os que foram estabelecidos com a democratização. Não há dúvida que os alicerces da chamada Constituição cidadã estão sendo atacados sem pena. A lúcida orientação de composição de frentes e alianças políticas articuladas em torno do centro político fracassou e isso denota o fim de uma era, sem que saibamos precisamente se está a nascer algo minimamente próximo do que foi a nossa experiência democrática até aqui. A tentativa de construção de um centro político afirmativo e autônomo não se consumou por muitas razões, a começar pela desconfiança nessa ideia mesma. Não são poucos os que entendem, apesar de ser um argumento anacrônico, que o centro é apenas um território de passagem entre a direita e a esquerda, os polos substantivos da política organizada.

Os atores que ganharam corpo desde 2013 e especialmente em 2015/2016 resolveram sair à luz do dia e disputar um jogo que cada vez mais se foi definindo como de soma zero, no qual o vencedor leva tudo. Os extremos predominaram, mas o eleitor não os sancionou em função de seus projetos para o País. O “fora isso” ou “fora aquilo” e o “nós contra eles” produziram um campo de hostilidades que fez vicejar a intolerância e o ódio. O rechaço aos políticos e aos partidos ganhou corações e mentes e instaurou o reino da antipolítica em suas diferentes versões: das visões plebeias às neoliberais, todos passaram a buscar um mundo à sua imagem e semelhança. É a vitória da cultura narcísica e a derrota da cultura democrática.

A chegada de dois polos excêntricos ao segundo turno não foi um raio em céu azul. O colapso do centro político acabou produzindo uma situação paradoxal: ele passa a ser o objeto de desejo dos dois extremos. O centro está morto. Viva o centro! Sua conquista será o que vai definir o segundo turno. E, no caso brasileiro, não apenas a futura governabilidade, mas a possibilidade real de o País continuar a viver em democracia.

Mas não será nenhuma mudança cosmética que garantirá a conquista do centro político. Os dois polos têm obsessões indisfarçáveis de visíveis inclinações autoritárias. À esquerda, não será a ancilosada noção de “frente única” (uma “frente de esquerda” ao velho estilo) o que vai angariar apoio em defesa da democracia. Haddad não passa de um construto enganoso de Lula. Não representa nem une os democratas brasileiros. Bolsonaro é a regressão aos anos pré-democracia e uma ameaça iliberal evidente.

Entre a catástrofe e o desastre, nossa frágil democracia terá de resistir para seguir respirando e ganhar sobrevida. É um momento difícil, no qual somente nos serve o “pessimismo da razão”. E o mais trágico é que não há nenhum locus facilmente reconhecível que vocalize algum “otimismo da vontade”. Atônitos, os brasileiros seguem os sinais de alerta buscando evitar, de alguma maneira, uma aproximação com a morte da democracia.


Zeina Latif: A hora é agora

O segundo turno deveria ser a oportunidade para os candidatos exporem suas plataformas econômicas

Um desavisado que desembarcasse no Brasil hoje e analisasse as campanhas dos candidatos à Presidência da República não diria que o País enfrenta a mais grave crise fiscal e econômica de sua história. Muitas campanhas se esquivaram dos problemas econômicos.
Do lado dos eleitores, apesar da renovação da política em curso, nós não mudamos tanto assim. Ainda nos iludimos com políticos que infantilizam a sociedade.

O foco da campanha do primeiro turno de Fernando Haddad foi vender a imagem de que ele é o escolhido de Lula. Para manter a fidelidade do voto de esquerda, repetiu mantras do passado e negou a culpa de Dilma na crise econômica. Para o Brasil voltar a crescer, bastaria aumentar os gastos públicos, o que significa uma negação da crise fiscal.

Já a campanha de Jair Bolsonaro foi concentrada em temas relacionados a costumes, segurança e corrupção. Seu discurso na economia passa a mensagem subliminar de que não será necessário grande esforço para equilibrar as contas públicas e promover o crescimento. Bastaria acabar com a corrupção e conchavos políticos, e avançar em algumas privatizações.

Evitar temas econômicos polêmicos em campanhas é algo esperado, mas se foi longe demais. Diante da grave crise, há elevados riscos envolvidos nessa estratégia, pois se reduz a legitimidade para conduzir as necessárias reformas adiante.

Exemplo recente foi a campanha de 2014. Dilma Rousseff negou os problemas fiscais e, como resultado, defrontou-se com a resistência de seu próprio partido para a aprovação do ajuste fiscal e teve ainda de lidar com a participação de parlamentares petistas na aprovação da chamada pauta-bomba do Congresso.

Segundo a imprensa, nem mesmo Lula conseguiu convencer os petistas sobre a importância das medidas de ajuste e, assim, evitar dissidências. A campanha do segundo turno deveria ser a oportunidade para os candidatos exporem e ajustarem suas plataformas econômicas. Alguma descida de palanque é necessária e recomendável, deixando de lado bravatas e omissões oportunistas.

Alguns ajustes no discurso começaram após o resultado do primeiro turno. Haddad negou a intenção de uma nova Constituição e defendeu a reforma da Previdência para acabar com privilégios, que é o que não falta em nossas regras previdenciárias. Para conquistar a confiança de investidores e produtores, mais ajustes no seu discurso serão necessários, como na aceitação da agenda de privatizações e concessões. O discurso de Bolsonaro não traz grandes mudanças, mas reforça a tendência de afastamento da agenda liberal do economista Paulo Guedes.

Apesar de Guedes defender o prosseguimento da proposta de reforma da Previdência de Michel Temer, com possível aprovação ainda este ano, Bolsonaro a rejeitou. O candidato fala em propor uma nova reforma, com foco nos “marajás” do funcionalismo, com uma transição bastante lenta e mantendo o tratamento diferenciado a membros das Forças Armadas e da polícia militar. Ele não cita a necessária reforma do INSS. Tudo muito tímido diante do tamanho do desafio, inclusive nas finanças estaduais.

Bolsonaro promete ainda reduzir a carga tributária, com isenção do imposto de renda para quem recebe até 5 salários mínimos – algo também defendido por Haddad –, sem dizer de onde virão os recursos. Sobre o programa de privatizações, o deputado nega aquela que deveria ser prioritária: a da Eletrobrás; uma empresa deficitária e sem capacidade de investimento, ameaçando a oferta de energia elétrica em todo o País.

A visão de que não é necessário fazer um ajuste estrutural nas contas públicas é bastante disseminada na sociedade. De um lado, há aqueles que defendem mais gastos e manutenção de privilégios. De outro, os que acreditam que o combate à corrupção resolve a crise e que basta vontade política para privatizar empresas estatais e cortar gastos.

A campanha presidencial nos empurrou ainda mais para esta armadilha e poderá custar caro ao novo presidente.

*Zeina latiff é economista-chefe da XP Investimentos


Ricardo Noblat: Tudo pode acontecer, inclusive nada

Faltam 17 dias para o segundo turno da eleição presidencial. A campanha sequer recomeçou. Dez dias antes da eleição em primeiro turno, quem seria capaz de prever mesmo com base nas pesquisas de intenção de voto que um tsunami político varreria o país como de fato varreu no último domingo?

Dilma Rousseff (PT) era tratada como a provável senadora mais votada em Minas Gerais. No Rio, o juiz Wilson Witzel (PSL) corria atrás de Eduardo Paes (DEM) e de Romário (PSB). Paulo Skaf (PMDB) e João Doria (PSDB) apareciam empatados na disputa pelo governo paulista. E Fernando Haddad (PT) temia ser atropelado por Ciro Gomes (PDT).

Dilma ficou em quarto lugar. Despediu-se de Minas. Witzel deixou Paes comendo poeira e agora ameaça prendê-lo se for alvo de notícias falsas que afetem sua honra. Skaf anunciou apoio a Márcio França (PSB) que enfrentará Doria na condição de favorito. E caberá a Haddad enfrentar Bolsonaro com o apoio de Ciro, mas sem sua presença na televisão.

Bolsonaro derrotou Haddad no primeiro turno com 17 pontos percentuais na soma dos votos válidos, descontados os nulos e brancos. Na primeira pesquisa Datafolha de intenção de votos no segundo turno, 16 pontos percentuais separam Bolsonaro de Haddad. Eleição acaba quando acaba, ensinam os sábios. Mas não será fácil para Haddad virar esta a seu favor.

No primeiro turno, ele teve 29,28% dos votos válidos. Bolsonaro, 46,03%. Os demais candidatos, 53,77%. Para se eleger, Haddad, hoje, não poderia perder um só voto dos que teve e atrair todos os votos que tiveram Ciro, Geraldo Alckmin (PSDB), Amoedo (PARTIDO NOVO) e Cabo Daciolo (PATRIOTA). E Bolsonaro não poderia ganhar um único voto a mais.

Nas duas primeiras pesquisas de intenção de voto do Datafolha no segundo turno da eleição de 2014, Aécio Neves saiu na frente de Dilma que tentava se reeleger e que tivera mais votos do que ele no primeiro turno. Foi só nos últimos dez dias de campanha que Dilma ultrapassou Aécio nas pesquisas. Elegeu-se com 51,6% dos votos na eleição mais apertada desde o fim da ditadura militar de 64.

Haddad imaginava reduzir a vantagem de Bolsonaro por meio dos debates já marcados entre os candidatos, mas debates não haverá tão cedo. Bolsonaro alega que ainda não foi liberado para tal pelos médicos. E mesmo que seja liberado, ainda avaliará se os debates poderão ajudá-lo ou não. Se concluir o contrário, não irá a nenhum. A facada que levou é o álibi perfeito para fugir ao confronto.

Só quem perde com o cancelamento dos debates é Haddad.

Haddad não é mais Lula
Movimento tardio

Onde antes você lia: “Haddad é Lula e Lula é Haddad”; agora leia: “Presidente Haddad, vice Manuela”. Onde antes havia vermelho, agora há azul, amarelo e verde. Lula sumiu.

A mudança no visual das peças de campanha de Fernando Haddad (PT) poderá não lhe garantir mais votos, mas é possível que diminua a resistência ao seu nome.

O candidato do PT quer se transformar no candidato de uma frente democrática onde caberá quem queira entrar. A mudança chega tarde quando são mínimas as condições de ele se dar bem.


Rubens Ricupero: O dever dos neutros

É preciso lutar por uma frente democrática

"Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível". Rui Barbosa (1849-1923) pronunciou essas palavras em Buenos Aires (1916) no contexto da Primeira Guerra Mundial. Neutralidade, explicava, "não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça".

A clareza da distinção pode ajudar-nos a enfrentar o dilema eleitoral na definição do dicionário: situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas. Vejamos em concreto se há diferença entre essas saídas.

Não há lugar, creio, para imparcialidade entre quem quer retirar o Brasil do Acordo de Paris sobre clima e quem deseja honrá-lo. Tampouco sou imparcial entre quem defende a proteção dos ecossistemas tal como prescrito na lei e os que atacam suposta indústria de multas do Ibama contra desmatadores ilegais.

Os mesmos que tencionam suprimir o Ministério do Meio Ambiente e subordiná-lo ao da Agricultura em ótica meramente produtivista, sem olhar as consequências de devastação ambiental e da concentração de renda.

Entre os defensores da Constituição, da democracia liberal, da tolerância, da diversidade, da civilidade na vida política e seus detratores, escolho sem hesitar os primeiros. Coloco-me ao lado dos promotores dos direitos humanos, da prioridade de combater a desigualdade, suprimir a miséria; sou contra os críticos de tais posições.

Prefiro diplomacia que preserve o papel construtivo do Brasil como fator de moderação e equilíbrio no continente e no mundo aos que advogam atitudes que nos isolariam da maioria da humanidade.

Um exemplo é a intenção de Bolsonaro de transferir a Jerusalém nossa embaixada em Israel na ausência de acordo com todos os interessados. Isso nos relegaria a situação ridícula, abaixo do Paraguai, que teve o bom senso de recuar dessa tresloucada ideia.

Entre valores e contravalores não tenho o direito de ser neutro. Darei meu voto ao candidato que encarnar valores absolutos e inegociáveis como os mencionados acima.

Dito isso, penso que o dever dos neutros é ir além do voto e lutar por uma frente democrática que una o mais amplo espectro de opinião possível.

Concordo com os pontos levantados por Celso Rocha de Barros no artigo publicado por esta Folha na última segunda-feira (8). Por definição, uma aliança não deve refletir hegemonia de nenhum partido. Tem de acolher a exigência popular de combate à corrupção, ajuste fiscal, responsabilidade no uso de recursos escassos --o que falta no programa do PT, além da autocrítica.

Não se vai ganhar só com o PT e a esquerda. Reconhecer esse fato obriga a ter um programa de mínimo denominador comum que conquiste os moderados.

E, no caso de difícil vitória, dê garantia a todos de que se terá um governo não sectário, pacificador e unificador da sociedade brasileira.

*Rubens Ricupero, diplomata, ex-embaixador do Brasil em Washington (1991-1993) e Roma (1995); ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (1993-1994 e 1994, governo Itamar)