Eleições

Carlos Andreazza: A eleição delirante

Desqualificar Bolsonaro pelo que não é só nos afastará da pergunta urgente, do mundo real: ele tem competência para governar? Não

Bolsonaro não é fascista, e sua eleição não imporá um regime de exceção. Isso é confortável delírio na boca de perdedor nunca capaz de compreender o adversário, e desespero sem vergonha de quem, representante de um partido para cujo projeto de permanência no poder pilhou-se o Estado, ora se apresenta como merecedor de um voto moralmente superior. Aliás, a pregação do deputado como nazistão serve de gatilho libertador para que muitos constrangidos com a roubalheira lulopetista possam agora votar no PT maquiados de “ele não” e olhar desde cima a forma como os bárbaros, os que não votam no cavalo de presidiário, jogam o país na incerteza.

Que tal botar a bola no chão, baixar a pretensão de que seja possível votar bem em 2018 e entender que a democracia brasileira está desqualificada não por causa de Bolsonaro, mas em decorrência do longo processo de depauperação da política que o tornaria imbatível?

Não sejamos oportunistas. O sujeito não vem para destruir direitos nem para aterrar as instituições — não mais do que os lulopetistas, os que sucatearam a institucionalidade com a sindicalização da máquina pública e com o embuste do tal golpe, e que insistiram numa candidatura impossível apenas para alimentar a narrativa de Lula como vítima, perseguido político, inimigo de juízes e procuradores por cuja cultura jacobinista, afinal, são responsáveis. Ainda assim, sobreviveremos. A democracia sobreviverá. A questão é outra.

Bolsonaro é autoritário e iliberal, defensor de nicho corporativo e de passado avesso ao reformismo, com um histórico de manifestações reacionárias e de realizações inexistentes, que encaixou discurso conservador, moralizador e voluntarista, projetando ser, uma vez eleito, aquilo que jamais foi, em função de quem já se forma uma nova corte, de extração collorida, com familiares como interlocutores privilegiados e uma órbita gulosa e influente de lobistas, e a respeito de quem, portanto, só uma pergunta se deveria fazer — a única que não se faz: tem competência para governar? Alguém é capaz de desenhar o programa bolsonarista de gestão para o país? Ou a agenda será exclusivamente o combate à corrupção, como se tal fosse o principal problema (está longe de ser)? Falo do mundo real, aquele em que as pessoas precisam de emprego e em que o risco não é de venezuelização nem de ascensão do Hitler, mas de se eleger uma nova Dilma.

Em vez de a histeria que anuncia o provável futuro presidente como aquele que virá para cassar a democracia, melhor seria empenhar esforço em compreender o que é orgânico fenômeno político e as limitações de quem o materializa. A ascensão de Bolsonaro, por exemplo, pode ser explicada pelo comportamento de Haddad no segundo turno, dedicado a convencer o eleitor de que, luloposte do líder preso de um projeto partidário de poder que assaltou o Estado por 13 anos, de súbito encarna a esperança democrática do país.

Enquanto se tenta enfiar esse desrespeito à inteligência alheia goela abaixo do brasileiro, Bolsonaro se explica: é o guardião dos sentimentos antilulopetista e antipolítica. Não apenas. A constituição de seu mais antigo discurso — o que radicalizou o senso de urgência à pauta da segurança pública — é aula de engajamento. O deputado jamais se expressou publicamente senão para defender um dos mais sensíveis interesses daqueles a quem pede voto: a propriedade privada. Aí incluído o que se pode chamar de patrimônio imaterial e que abarca família, religião e educação; conjunto de valores caríssimos a uma sociedade que é difusamente conservadora, mas que tem sido desprezada pela imposição de uma agenda elitista-progressista que em nada atende às necessidades mais básicas das gentes que pisam no chão e que, no ambiente da política partidária, une e fulmina PT e PSDB.

Não que Bolsonaro tenha simplesmente identificado vitrines muito óbvias no mercado eleitoral e então exposto seu produto ali. Não. Ele sem dúvida reconhecera o potencial desses espaços, mas não eram óbvios nem pareciam vagos quando os encampou. Grande parte do fenômeno que representa emana disto: o deputado já estava ali quando a consciência social brasileira moveu-se para lá. Não é exagero dizer que seja criação de uma militância espontânea que o descobriu naquele lugar e que passou a recortar suas falas, aquelas em defesa de valores tradicionais, dando-lhes molho pop, a própria origem do “mito”. Esse perfil foi criado por seus admiradores na internet a partir da natureza beligerante da atuação que desenvolveu na Câmara — e ele apenas o assumiu. O Bolsonaro que conhecemos é a incorporação da forma como interpretado por seus potenciais eleitores.

Não é um meme, porém. Ou não somente. Mas a expressão ressentida de uma revolta popular gestada lentamente, a do pai que nunca sabe se a filha chegará em casa. Xingar o mensageiro, pois, é ofender o mesmo cidadão, então virtuoso, que no passado elegeu FHC e Lula. Desqualificá-lo pelo que não é só nos afastará da pergunta urgente, a do mundo real, a da ressaca encomendada: Bolsonaro tem competência para governar?

Não.


Folha de S. Paulo: Forças ocultas na política terão que se civilizar, diz Giannotti

Professor de filosofia diz que não se governa com ameaças e que vitória de Bolsonaro levará conservadores a moderação

Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A eventual eleição de Jair Bolsonaro (PSL) vai jogar conspiradores e golpistas na dança política, afirma José Arthur Giannotti, 88, um dos mais influentes professores de filosofia do país, que já deu aulas na USP, da qual se aposentou, e na Universidade Columbia, em Nova York.

E essa é uma boa notícia, segundo ele. "A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas”, disse à Folha. "Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como bandido. Eles serão obrigados a se civilizar."

Um dos primeiros intelectuais a dizer que os tucanos caminhavam para a morte, em 2014, Giannotti afirma que não há chance de renascimento do PSDB, partido do qual já foi considerado um ideólogo informal. Mas defende que um partido de centro é essencial. "Para conter o discurso e a prática velha do PT. E para conter essa onda que acredita na violência pela violência."

Ele elogia o desmonte do sistema político provocado pela onda conservadora por achar que ela abrirá a estrutura extremamente fechada. Ele nem esperou o repórter perguntar para começar a falar.

Nós estávamos numa negação política. O Congresso fechado nele mesmo, armado para se reproduzir. O governo isolado, incapaz de enfrentar as crises econômicas e sociais. Estávamos num fechamento total. E a Lava Jato denunciando, num processo jurídico-político, na medida em que atua juridicamente mas com intenções políticas. Sua intenção é jogar uma bomba atômica no processo político.

Por que a polaridade PT-PSDB foi varrida?
Foi varrida porque ao PSDB faltaram lideranças, faltou se renovar. Quando você chega ao [João] Doria, que é pura aparência, é o fim. Nós vivemos numa sociedade do espetáculo, mas com o Doria você só tem espetáculo, não tem conteúdo político. O PSDB ficou dividido entre o Alckmin e oDoria. Do outro lado, o PT levou o país a uma recessão brutal por causa de uma série de equívocos econômicos. Esta eleição recupera e amplia 2013 [movimento contra alta de tarifas de transporte que depois começou a questionar a agenda dos partidos e a eficiência do Estado].

O que o sr. achou do resultado das eleições? 
Estou contente porque esse movimento antidemocrático, que é profundo e ocorre no mundo inteiro, representa o capitalismo atual, que é o capitalismo de conhecimento. Isso exige uma universidade que faça pesquisa, e o lulismo transformou a universidade num processo de ascensão social: você sai de secretária 3 para secretária 1. Os tucanos também fizeram isso em SP.

A eleição trouxe essa violência toda para o jogo político. Nós temos uma violência insustentável: morre mais gente aqui do que na guerra da Síria. A eleição foi um banho de soda cáustica revelando as nervuras da real luta política.

Essa onda conservadora tem relação com a violência?
Evidente. Mas é também uma reação violenta. Não esqueça também que o PT achava todo mundo que não fosse petista um canalha, golpista. A violência na política não está apenas no lado fascista, mas está do lado do populismo. Ao trazer a violência para a disputa, você traz inclusive os milicos para a política. Em vez de ficarem conspirando entre eles, uma parte da conspiração vai para a política. Porque a conspiração vai continuar.

Há perigo de golpe?
Esse perigo diminuiu. Agora tem menos risco de golpe porque as pessoas que eram golpistas encapuzadas passaram a ser golpistas dentro da dança política. Viraram parte da instituição. O golpe pode vir no impeachment do Bolsonaro. Em seis meses ele não vai ter essa aprovação que tem porque não vai resolver a crise econômica. Está todo mundo assustado, mas o resultado é bom.

Não há razão para susto?
Pelo contrário. Temos que fincar as nossas razões democráticas e começar a combater as causas dessa violência toda. O país está se preparando para sair da crise com crescimento de 1,5%, como se estivéssemos no século 19. Quais são essas causas? O petismo imaginou que existia um capitalismo brasileiro com características diferentes do mundial. Isso não dá num capitalismo de conhecimento.

O PSDB pode renascer?
Não. O fundamental é que renasça o centro. Porque não existe política sem centro. Para conter o discurso e a prática velha do PT. E, por outro lado, para conter essa onda que acredita na violência pela violência.

Por que o voto nos extremos?
O eleitor foi para os extremos porque ele raivosamente se apegou às promessas do PT, que foram frustradas. Essa raiva faz parte da tradição política, mas ela piorou. Nunca vi tanta violência, nem em 1964. Porque agora há muito ódio. E a violência está dos dois lados. Muitas vezes os que são contra Bolsonaro têm uma violência bolsonarista.

Há outras razões para o voto nos extremos?
Há. O eleitor vive num mundo violento e acha que só a violência resolve. Para acabar com a violência, ele acha que é bandido na cadeia ou morto. Isso não funciona no mundo real. Você só resolve isso criando instituições democráticas. Você tem de criar empregos, tem de esclarecer como será a reforma da Previdência e acabar com vantagens.

Quais vantagens?
As vantagens do funcionalismo, como auxílio-moradia. Quando você tira as vantagens, dizem que estão tirando direitos. Desculpe, mas estão tirando vantagens. Sou beneficiário disso também. Todos nós tivemos aposentadoria integral na USP. Eu me lembro quando estava construindo esta casa, eu peguei o [o filósofo francês Michel] Foucault e ia levá-lo para a faculdade [de Filosofia], mas tive que passar na obra. O Foucault perguntou: “Você tem bens pessoais, herança? Porque um professor na França jamais faria uma casa desse tipo”. Todo mundo tinha esses privilégios na USP. Há benefícios para militares, professores e juízes que nenhum país do mundo tem. Isso tem de acabar.

Dá para pacificar o país?
A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas. Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como um bandido. Eles serão obrigados a se civilizar. Não dá para ter também um país tão pobre. Isso não é mais tolerável.

Bolsonaro ataca mulheres, negros, gays e indígenas. Isso significa um retrocesso comportamental ou ele fala por um Brasil que é conservador mesmo?
Uma parte do país é conservadora. Mas esse discurso é uma estratégia, uma forma de se mostrar como durão. Isso pode ter repercussões muito ruins. Uma coisa é um deputado dizer que não estupra uma deputada porque ela é feia. Se um presidente disser isso, sofre impeachment. Esse comportamento é inaceitável para um presidente. Ou ele muda ou cai. Na eleição tínhamos que escolher entre duas crises.

Quais?
A crise que vem junto com Bolsonaro, com violência e não democracia, ou o impeachment por estelionato eleitoral do PT. Tudo indica que, pelo plano de governo que o Lula tinha montado, não daria para cumprir as promessas. O Brasil está encalacrado e só vai desatar quando o sistema político ficar mais moderno e democrático. Antes estava inteiramente fechado. Agora desarrumou tudo. Que bom!


Luiz Carlos Azedo: A volta do marmiteiro

“A campanha nas redes sociais continua sendo um fator decisivo na eleição. Com a paridade de tempo de televisão, ganha ainda mais importância”

Na pesquisa do Ibope divulgada ontem, na qual Jair Bolsonaro (PSL) aparece com 59% dos votos válidos e Fernando Haddad (PT), com 41%, o dado mais significativo é a rejeição. O candidato do PSL tem mais simpatizantes convictos: 41% votariam nele com certeza e 35% não votariam de jeito nenhum, enquanto 47% não escolheriam o petista em nenhuma hipótese e 28% manifestaram certeza na escolha. Esses dados sinalizam certo congelamento do cenário eleitoral, apesar do reinício da campanha de tevê e rádio, com muita virulência de ambas as partes.

Bolsonaro não tem nenhum motivo para mudar o rumo de sua campanha, ainda mais agora, que conseguiu a paridade estratégica do tempo de televisão e rádio, o que não acontecia no primeiro turno. Está apenas afinando o discurso, para reforçar sua posição defensiva em relação aos ataques do petista quanto a temas como misoginia e homofobia, além de conter a violência dos seus cabos eleitorais. No mais, o discurso é o mesmo. Não houve um fato novo de campanha que o obrigasse a mudar de postura. Já o cavalo de pau de Haddad na própria campanha, que no primeiro turno ignorou Bolsonaro e concentrou seus ataques no tucano Geraldo Alckmin, não foi convincente para mudar os índices de rejeição dos eleitores em relação a Lula e ao PT.

O candidato petista não fez autocrítica dos erros do PT e não se desvinculou do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; de certa forma, está engessado quanto a isso, pois provocaria uma crise na campanha. A chantagem moral como tática para atrair setores do chamado “centro democrático” também não funcionou. Até Fernando Henrique Cardoso, que sempre se mostrou aberto ao diálogo com Haddad, reclamou dessas pressões. A pesquisa também mostra que 9% do eleitorado pretendem votar nulo ou branco. É um resultado muito próximo do segundo turno de 2014, disputadíssimo, no qual somaram pouco mais 7%. Àquela época, Dilma Rousseff (PT) derrotou Aécio Neves (PSDB) por 51,64% a 48,36% dos votos.

Bolsonaro já abriu 18 pontos percentuais de vantagem nos votos válidos desde o primeiro turno, quando ficou à frente de Haddad por 46% a 29%. A campanha nas redes sociais continua sendo um fator decisivo na eleição. Com a paridade de tempo de televisão, ganha ainda mais importância. “Nos últimos dias, as menções aos candidatos têm ficado numa proporção média de 60 x 40, com ampla vantagem para o capitão. O grande volume de menções ao candidato do PSL revela que a sua militância venceu a guerra da internet e o impulsiona nesta reta final. Sem um fato novo, as eleições estão definidas”, avalia o analista digital Sérgio Denicoli, da AP Exata. Segundo ele, há uma relação direta entre o volume de menções nas redes sociais e a intenção de votos, num universo de 145 cidades brasileiras.

Bateu no teto
“Fernando Haddad chegou a crescer nas redes, no início da semana, cooptando alguns eleitores que não o escolheram no primeiro turno, mas parece ter batido num teto e pode até mesmo encolher, se não mostrar alguma liderança que atraia forças à sua campanha. Nos últimos dias, as redes mantiveram Bolsonaro como o candidato com mais menções”, avalia Denicoli.

“Qualquer declaração do candidato do PSL tem um reflexo imediato, o que revela que os seus apoiadores estão mais engajados, conseguindo uma grande presença on-line, que consolida e cristaliza a posição de liderança que alcançou”. Nas últimas 48 horas, a hashtag mais usada no Twitter, nas 145 principais cidades do país, foi #marmitadecorrupto, uma alusão às declarações de Bolsonaro relacionadas às visitas de Haddad ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba.

Por ironia, Bolsonaro exuma um chiste da campanha eleitoral de 1945 que derrotou a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes (UDN). Numa manobra de última hora, os getulistas apoiaram o marechal Eurico Gaspar Dutra (PSD). O candidato da UDN havia declarado que não precisava dos votos da “malta de desocupados” que apoiava Vargas e, por isso, foi acusado de desprezar os trabalhadores que levavam marmitas para o trabalho.

Uma marchinha de Waldomiro Lobo, na voz de Murilo Caldas, liquidou a fatura: “Marmiteiro, marmiteiro, / Todo mundo grita / Porque lá na minha casa / Só se papa de marmita / Vamos entrar pro cordão dos marmiteiros / E quem não tiver pandeiro / Na marmita vai tocar / E quem não tocar / Quá, quá, quá / Nós vamos cantar, nós vamos cantar.”

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-volta-do-marmiteiro/


Marco Aurélio Nogueira: A frente em favor de Haddad

Manifestos de apoio e declarações de artistas são insuficientes para fazer a pedra se mover em outra direção. Cabe ao PT dar o primeiro passo, o mais decisivo

Muitas vezes se tem a impressão de que o PT não está de fato empenhado em ganhar as eleições presidenciais de 2018.

Se estivesse, estaria buscando dar materialidade à “frente democrática e progressista” que intelectuais, ativistas democráticos e o próprio Haddad dizem querer constituir, mas que, até agora, não saiu do papel.

O PT nunca soube lidar bem com a ideia de “frente democrática”. É um dos problemas do partido, uma das nódoas mais fortes de sua trajetória. Sempre se indispôs contra todas as tentativas de unir os democratas e de trabalhar em conjunto com eles. Sempre desejou ser farinha de outro saco, diferente, a única capacitada para olhar pelos pobres e oprimidos.

Se, agora, mostra-se disposto a mudar de posição, deve ser saudado e aplaudido.

O desafio é imenso e só será vencido se houver concessões, serenidade e sinalizações claras.

Não é produtivo proclamar a intenção e pouco fazer para convertê-la em fato. Conversas com personalidades, suavização da linguagem da campanha e movimentos de repaginação simbólica, como a troca do vermelho pelo verde-e-amarelo, são úteis mas ajudam pouco, ou quase nada. Não chegam ao fundamental.

Se a ideia de união dos democratas contra Bolsonaro for para valer, Haddad tem de ir mais longe. Precisa abandonar a narrativa adotada até agora pelo PT, a do golpe, da perseguição ao Lula, do nós contra eles, da culpa dos outros, da manipulação da mídia, da completa inocência do partido. Precisa propor e organizar uma mesa de entendimentos com os setores democráticos de centro, de centro-esquerda e de centro-direita, dos social-democratas aos liberais, na qual, de modo aberto e transparente, seja acordado um programa comum para o próximo ciclo governamental.

Tal programa comum não poderá se concentrar somente na resistência ao autoritarismo encarnado na campanha de Bolsonaro. Pode partir dele e enfatizá-lo, mas precisa estabelecer com clareza mínima um plano de recuperação econômica, de reforma do Estado, de contenção dos gastos públicos. Precisa jogar fora ideias apressadas e pouco democráticas acumuladas pela cultura petista ao longo do tempo, como a do controle social da mídia e a da postergação da reforma da Previdência.

Terá de mostrar generosidade sincera, não instrumental, com os aliados que deseja incorporar à batalha contra Bolsonaro.

Não se trata de “fazer autocrítica” ou de bater no peito para pedir desculpas pelos erros cometidos, coisa que não acontecerá. Mas de mostrar humildade e intenção sincera de contribuir para que os democratas se aproximem entre si. De interagir com os adversários e com os que pensam de forma diferente não como inimigos a serem combatidos, mas como parceiros que merecem tratamento de respeito, sem qualquer rasgo de superioridade moral, sem vetos ideológicos ou programáticos, sem arrogância.

Se os democratas aceitarão o desafio é uma questão em aberto, que só poderá ter resolução cabal depois que Haddad e o PT derem o primeiro passo, o mais decisivo.

Não adianta falar que todos os democratas estão “obrigados” a atuar contra o autoritarismo sem fazer gestos claros em favor dessa ideia, sem cortar a própria carne. Gestos que precisam começar pelo abandono de pretensões hegemônicas e pela incorporação de uma disposição clara de compartilhar passos e propostas com os eventuais aliados.

Manifestos de apoio e declarações de artistas não farão a pedra se mover em outra direção. Cabe ao PT e a seu candidato mostrarem que estão à altura da hora presente.

Faltam 15 dias. É um tempo escasso, que precisa ser aproveitado com coragem e grandeza de espírito.

Se a operação for rapidamente posta em prática, com sabedoria política e energia cívica, pode ser que se consiga reverter um quadro que parece a essa altura tragicamente consolidado.


El País: ‘Onda Bolsonaro’ deve impulsionar projetos conservadores no Congresso

Se eleito, capitão reformado do Exército poderá utilizar propostas como a revogação do Estatuto do Desarmamento ou a ‘Escola sem Partido’ para dar resposta rápida a seus apoiadores

Por Ricardo Della Coletta, do El País

"É certamente o Congresso mais conservador desde a redemocratização". É assim que Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), define a configuração do Parlamento brasileiro depois das eleições de 7 de outubro, quando estiveram em jogo as 513 cadeiras da Câmara dos Deputados e dois terços das do Senado Federal. Um perfil conservador aprofundado pela "onda Jair Bolsonaro", o candidato a presidente da República que é o favorito para ganhar o segundo turno. Partidos de centro-direita como o PSDB e o MDB viram suas bancadas diminuir na Câmara na mesma medida em que o PSL, sigla do capitão reformado do Exército, ganhou espaço.

O tamanho das consequências desse fenômeno, segundo cientistas políticos, ainda depende de duas condicionantes. Primeiro, da confirmação da vitória de Bolsonaro no próximo dia 28; e, segundo, das opções estratégicas que o novo presidente tomará: se eleito, Bolsonaro utilizará seu capital político para tentar levar adiante as complicadas reformas econômicas, como a da Previdência, ou colocará a força do Palácio do Planalto para aprovar projetos ligados aos costumes e que atendem aos seus eleitores mais conservadores e à chamada bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia)?

A resposta divide especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. "A gente assiste a um movimento de ampliação dos conservadores no Congresso desde o final da década passada, mas agora parece que eles têm força para de fato tentar impor uma agenda, especialmente se o Bolsonaro vencer", avalia Oswaldo do Amaral, professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com ele, Bolsonaro tende a utilizar a pauta mais conservadora para dar uma "resposta rápida" aos seus apoiadores, principalmente diante das dificuldades que ele deve enfrentar para pactuar uma reforma da Previdência, por exemplo. "Então o [projeto da] Escola sem Partido, a revogação do Estatuto do Desarmamento e a redução da maioridade penal são temas que devem entrar na agenda".

Antônio Queiroz, do Diap, vai na mesma linha. Ele acredita que as chances do avanço de uma pauta conservadora aumentam principalmente no que depender de projetos de lei, que não requerem maiorias qualificadas nas votações. É o caso, por exemplo, da flexibilização do Estatuto do Desarmamento e do Escola Sem Partido, uma polêmica proposta que altera as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e estabelece que, no ensino, os valores de ordem familiar devem prevalecer sobre aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa. Embora Bolsonaro seja a favor de reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, o diretor do Diap avalia que, como isso depende de uma emenda constitucional, haveria mais obstáculos em aprová-la.

Desde o fim da apuração dos votos, o Diap tem cruzado dados sobre os eleitores para medir o tamanho das frentes temáticas do Congresso, como a do agronegócio, a evangélica ou a da segurança pública. Os dados mostram, por exemplo, que houve uma drástica redução do número de parlamentares ligados ao sindicalismo. Foram eleitos 33 membros da bancada sindical, 18 a menos do que no pleito passado.

Segundo cálculos preliminares do Diap, as bancadas da agropecuária e evangélica tiveram uma "pequena redução" neste ano, mas as propostas que essas frentes encampam ganham força por terem estado presentes em todo o processo eleitoral, principalmente no discurso de Bolsonaro. Segundo Antônio Queiroz, houve um forte aumento do número de parlamentares ligados à bancada da bala e que defendem soluções "linha-dura" no tema da segurança pública.

Os temas caros a essas bancadas tendem a ganhar impulso também porque Bolsonaro já deu sinais de que quer negociar diretamente com essas frentes suprapartidárias. No início de outubro, por exemplo, ele recebeu o apoio formal da bancada ruralista.

Dificuldades
André Borges, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), concorda que o perfil da Câmara ficou "mais extremo", marcado ao mesmo tempo pelo enfraquecimento dos partidos de centro, por um tímido crescimento das legendas de esquerda e um claro avanço das siglas mais à direita. Ele pondera, no entanto, que um eventual governo Bolsonaro deverá enfrentar grandes dificuldades para levar sua pauta adiante, tanto na área econômica quanto numa agenda moral.

"Se olharmos para pesquisas de opinião, no caso da redução da maioridade penal, é quase um consenso. A última pesquisa Datafolha mostra que mais de 80% da população é favorável, só que tem um aspecto que as pessoas se esquecem: o custo fiscal disso para os Estados. Então provavelmente não interesse aos governadores apoiar isso", diz Borges.

Mesmo casos supostamente mais simples, como a revogação do Estatuto do Desarmamento, dependeriam da capacidade de um eventual governo Bolsonaro realizar acordos que cheguem mais além do que seu núcleo duro de aliados no PSL. Trata-se de uma capacidade de negociação que o capitão reformado do Exército ainda não demonstrou. "Ele e as pessoas mais próximas que o assessoram não têm nenhuma experiência de governo. Nem de prefeituras sequer", diz Borges. "Eu apostaria que eles vão levar um bom tempo batendo cabeça até aprenderem".


Folha de S. Paulo: Haddad precisa representar mais que o seu partido, diz Marcos Nobre

Filósofo diz que único caminho para o ex-prefeito é abrir mão do protagonismo petista e atrair adversários para seu governo

Patrícia Campos Mello e Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Há apenas um caminho para Fernando Haddad (PT) conseguir o feito improvável de derrotar Jair Bolsonaro (PSL) na eleição: mostrar que ele, Haddad, não é o candidato do PT, mas sim o de uma frente democrática.

Palavras, porém, não bastarão para convencer o eleitor e possíveis aliados de que o governo dele seria radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT: o partido terá de ceder poder e fazer gestos concretos, adverte o professor de filosofia da Unicamp Marcos Nobre.

Na avaliação de Nobre, o primeiro passo de Haddad deveria ser abrir mão de se candidatar à reeleição, caso eleito, e afirmar que Ciro Gomes(PDT) será o candidato dessa frente democrática em 2022.

O segundo passo seria incorporar pontos do programa de outros candidatos, de forma unilateral, sem exigir apoio em troca. Isso valeria para qualquer legenda que não tenha anunciado apoio a Bolsonaro, como a Rede de Marina Silva e o PSDB.

O PT também deveria renunciar a uma candidatura à presidência da Câmara, embora tenha a maior bancada, e integrar a sua campanha nomes como Nelson Jobim, para a pasta da Segurança, Joaquim Barbosa, sinalizando um compromisso com o combate à corrupção, e Marina no Meio Ambiente.

“Se quiser ser o candidato do PT, Haddad vai perder, e o peso de uma possível regressão autoritária ficará sobre as costas do PT; o partido tem uma tarefa histórica e, se jogar fora essa chance, as pessoas vão perguntar: por que então não deixaram o Ciro? ”

O senhor falou em artigo recente que, mais uma vez, o PT tem uma chance de renascimento. Qual seria o caminho para o candidato Haddad vencer as eleições, com essa vantagem tão grande para Bolsonaro? 

Se quiser ganhar, Haddad tem que ser o candidato de uma frente de defesa das instituições democráticas. Se quiser ser o candidato do PT, vai perder. E o peso de uma possível regressão autoritária vai cair sobre as costas do PT.

E como construir essa frente? 

Haddad deveria sinalizar claramente para o eleitorado que o governo dele será radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT.

A primeira coisa é chamar Ciro Gomes e dizer: “Eu abro mão de me candidatar à reeleição se for eleito e acho que nessa frente que montamos Ciro deveria ser nosso candidato em 2022”. Com isso, afasta-se o medo que as pessoas têm de que o PT vai se perpetuar no poder.

A segunda coisa é tomar pontos programáticos não só dos partidos que apoiarão Haddad, como PSOL, PDT e PSB, mas também tomar de outras candidaturas, de maneira unilateral, sem ter o apoio deles. De todas as forças políticas que disseram que não votam no Bolsonaro, ele tomaria unilateralmente os pontos do programa , sem negociar, sinalizando: “eu quero você dentro do meu governo”.

Poderia adotar, por exemplo, a agenda ambiental de Marina Silva, a proposta de Alckmin de criação de uma força de segurança nacional. Precisa abrir espaço para que Marina e Ciro participem. Deveria chamar uma figura como Joaquim Barbosa para representar, dentro do governo, o combate à corrupção. Chamar Nelson Jobim para ser responsável pela segurança pública.

Haddad precisa fazer movimentos nesse sentido. Se não fizer, não estará querendo de fato ampliar a sua base, não mostrará empenho em fazer um governo diferente.

É um desafio histórico, uma oportunidade de refundação. Para sair das cordas, o PT precisa de ajuda. E o PT pedindo ajuda, precisa também distribuir poder, de verdade.

Mas lideranças como Ciro, Marina e Fernando Henrique Cardoso têm se mostrado resistentes a um apoio aberto a Haddad... 

O que acabei de dizer significa fazer gestos concretos na direção dessas pessoas. Não é apenas, “eu quero conversar com você”. Palavras não bastam.

São gestos concretos para se formar uma frente. Uma frente não se forma apenas porque do outro lado há um risco à democracia. “És responsável pelo segundo turno que conquistas” —o “Pequeno Príncipe” aplicado à política.

Não pode simplesmente dizer, “perdemos”. Pode perder, evidentemente, mas tem que de fato tentar.

Pelo que conhecemos do DNA do PT, vê alguma chance de isso realmente acontecer?

Quando se tem uma tarefa histórica na sua frente, as pessoas e as instituições mudam. A situação é completamente diferente da de qualquer outra eleição. Se Haddad jogar essa chance fora, carregará esse peso. Vão perguntar: “por que, então, não deixou o Ciro ir?”.

Então Haddad deveria dizer ao eleitor: “Eu proponho essa frente e quero te convencer de que esse governo será muito diferente de todos os outros, que o PT não terá o protagonismo que teve nos governos anteriores. Então quero que seu voto, que hoje é de Bolsonaro, venha para mim. Mas se isso for impossível para você, se sua ojeriza ao PT é superior a qualquer outro sentimento, então, por favor, não vote em Bolsonaro”. Isso ele poderia dizer ao eleitor do PSDB.

Se FHC se mantiver neutro, isso mancha a biografia dele? 

Se queremos formar uma frente que tenha por princípio aceitar toda e qualquer pessoa que defenda as instituições democráticas, não pode ter pedágio. O primeiro pedágio é começar a acusar as pessoas. A formação dessa frente é uma dança, e cabe a Haddad dar o primeiro passo. São vários passos simultâneos.

Por enquanto, parece que a abordagem do PT tem um pedágio, usa a mensagem de “ou você nos apoia, ou apoia o fascismo”...

Também não digo que essa seja a abordagem do PT. Não quero botar pedágio nem de um lado, nem do outro. Cabe a Haddad, não ao PT, dar o primeiro passo.

Isso são sinais para o eleitorado, as pessoas têm que perceber isso. Haddad tem que dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho que esse sistema funcione de maneira diferente. Meu adversário quer que esse sistema seja destruído. Isso é que está em jogo”.

O senhor sente um movimento de setores da sociedade e da imprensa para normalizar Bolsonaro, ou existe de fato um exagero nessa ideia de que ele fará um governo autoritário? 

A normalização está sendo feita há muito pela mídia tradicional e pelo mercado. No momento em que ficou claro que as forças anti-PT e antissistema confluíram para a candidatura dele, passaram a tentar civilizar Bolsonaro.

Mas Bolsonaro já deixou absolutamente claro que é incivilizável. Há uma ilusão da elite pensante de que é um candidato controlável. Pergunto: se o New York Times fosse um jornal brasileiro, o que teria feito com Bolsonaro?

Bom, mas existe a discussão sobre o posicionamento do NYT em relação a Trump, que seria panfletário e enviesado, em comparação, por exemplo, com o Washington Post, que adotaria postura crítica, mas com maior distanciamento... 

O NYT tomou uma decisão: Trump não é um candidato normal, as instituições estão em risco, e nesse momento as regras mudam. O WP resolveu tratar Trump como um candidato normal. A imprensa brasileira foi WP, não o NYT. Acho a posição do WP equivocada.

E não estou aqui comparando Trump a Bolsonaro. São incomparáveis. Um dos movimentos mais fortes de normalização de Bolsonaro é compará-lo a Trump.

Nunca houve uma ditadura militar nos EUA. Nunca o cara que ganhou uma eleição nos EUA apoiou uma ditadura militar. As instituições americanas têm uma solidez que aguenta o Trump. Imagine um presidente autoritário no Brasil, com instituições em colapso, como são as nossas? Não há instituição democrática que aguente Jair Bolsonaro.

O fato de o PSL, o partido de Bolsonaro, ter feito a segunda maior bancada da Câmara, e que provavelmente será engordada com deputados de partidos nanicos que devem migrar para ele, isso não significa que haverá governabilidade? 

O partido com a maior bancada, o PT, tem apenas 11% da Câmara. A fragmentação é gigantesca. Você precisa ter uma capacidade de articulação, de reorganização do sistema, que o Bolsonaro não tem. A única resposta que poderá dar é truculência. Ele não tem equipe, nenhum requisito para reorganizar o sistema. Reorganizar o sistema não tem nada a ver com ter maioria parlamentar.

O risco de que o sistema político não consiga se reorganizar é muito alto. E, se não se reorganizar, a hipótese de um golpe volta à mesa.

Quando o senhor menciona a possibilidade de golpe, estamos falando de um golpe clássico ou algo mais insidioso, os golpes graduais, em sistemas com eleições, que vêm ocorrendo em países como Turquia e Venezuela? 

Seria uma mistura de Filipinas com Turquia. Nas Filipinas, virou uma coisa do tipo: você tem algum problema para resolver com seu vizinho, com lideranças indígenas, pode resolver que o Estado não vai mais arbitrar. O Estado deixa de arbitrar conflitos violentos na sociedade.

O senhor vê isso como uma possibilidade no Brasil? 

Isso já está acontecendo e vai piorar. Se Bolsonaro tivesse alguma responsabilidade, iria para a TV e diria para essas pessoas: parem. Só que ele tem um problema. Se disser para essas pessoas pararem, está aceitando que é responsável por essa violência. Então temos um impasse. Esse é o lado Filipinas. O outro lado é o de estrangular as liberdades, como é no caso da Turquia.

Como sabemos, a mídia tradicional está em crise profunda. Caso ele ganhe, teremos um presidente com tendências claramente autoritárias num momento em que a imprensa está com dificuldades enormes. Então é a receita para ter restrição, para o governo ir para cima da imprensa.

Você elege seus próprios canais oficiais, segue com campanha em redes sociais, em que não há nenhum controle, e diz : “não acredite em nada que a mídia tradicional diga”.

*Marcos Nobre, 53, é professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap. É mestre e doutor em filosofia pela USP. Escreveu os livros “Imobilismo em Movimento” (Companhia das Letras, 2013) e “Como Nasce o Novo” (Todavia, 2018)


El País: De ator pornô a herdeiro da monarquia, a eclética bancada de Bolsonaro na Câmara

PSL elegeu 52 deputados e espera chegar aos 90, por conta da cláusula de barreira Militares, líderes pró-impeachment de Dilma e outsiders se colaram na figura do presidenciável

Por Afonso Benites, do El País

Militares, policiais, outsiders, ator que já gravou filme pornô, descendente da família real brasileira, ex-nadador olímpico, líderes de movimentos pró- impeachment de Dilma Rousseff (PT), jornalista processada por plágio, candidatos à reeleição ou apenas concorrentes fracassados em outras disputas que colaram sua imagem à de Jair Bolsonaro. Assim é formada a eclética bancada que o partido do presidenciável, o PSL, fez na Câmara dos Deputados neste ano. Entre seus 52 eleitos, a segunda com maior representatividade no Legislativo atrás apenas da do PT, há três que se declararam negros, 14 pardos e 35 brancos. Nove são mulheres. A frente da bala é expressiva: ao menos 22 já trabalharam ou atuam em órgãos de segurança privada ou pública, como as Forças Armadas, empresas particulares, polícias Civil, Federal, Militar e Rodoviária Federal. A média de idade é jovem, 45 anos. E quase a metade, 24, nunca havia disputado um mandato eletivo.

A quantidade de eleitos surpreendeu até mesmo os bolsonaristas mais otimistas. “Não esperávamos chegar a esse número. A grande verdade é que a indignação social, felizmente, não estava só na cabeça do Bolsonaro e na minha cabeça, mas na de toda a sociedade. O Bolsonaro apenas acendeu a faísca e todos viram que ali tem luz”, disse Luciano Bivar, o presidente licenciado do PSL. Ele estima que a bancada pode ainda chegar a 90 parlamentares. O motivo é a cláusula de barreira que passou a valer neste ano para o Congresso Nacional. As legendas que não atingiram ao menos nove deputados eleitos em nove Estados distintos ou não chegaram a 1,5% do total de votos válidos passarão a ter restrições no acesso a fundos públicos. Assim, uma migração em massa não está descartada. Há 14 partidos nessa situação.

Bivar alugou o partido que preside desde a fundação, na década de 1990, para Bolsonaro concorrer. Cedeu temporariamente a presidência da legenda ao advogado Gustavo Bebianno, um dos assessores mais próximos do presidenciável. Dessa maneira, Bebianno cercou-se de pessoas de confiança dele e de seu chefe nos diretórios estaduais. Daí pra frente, foi só delimitar quem seriam os potenciais puxadores de votos que poderiam ajudar a eleger uma bancada maior. Esses receberam alguns recursos financeiros do partido para ajudar em suas campanhas. Valores que variavam 39 reais a 1,8 milhão de reais.

Foi na região Sudeste, a mais populosa do país e com maior número de assentos na Câmara, que o PSL elegeu o maior número de seus parlamentares: 29. Foram 12 no Rio de Janeiro, dez em São Paulo, seis em Minas Gerais e um no Espírito Santo. No Sul, obteve êxito nos três Estados. Foram dez deputados, assim distribuídos: quatro em Santa Catarina, três no Paraná e três no Rio Grande do Sul. No Centro Oeste, mais cinco. Foram dois em Goiás, dois no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso. No Nordeste, região que serviu de muro anti-Bolsonaro no primeiro turno, foram cinco: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia —um representante em cada. Na região Norte, mais três ao total, em Amazonas, Rondônia e Roraima. Na sequência, alguns dos parlamentares que se destacaram por suas atuações na campanha ou antes dela mesmo começar.

Os campeões de votos

Em 2014, o policial federal Eduardo já havia notado o peso que o sobrenome de seu pai traria à sua pretensão política. Quando concorreu pelo Estado de São Paulo, mesmo pouco conhecido, obteve 82.224 votos e se elegeu pela média. Neste ano, contudo, diante da superexposição de Jair Bolsonaro, a onda para ele foi maior. Chegou a 1,8 milhão de votos e bateu o recorde de deputado federal mais votado da história brasileira. Na atual campanha ficou marcado por, entre outras razões, ter dito durante um ato de apoio ao seu pai que “mulheres de direita são mais bonitas do que as de esquerda”. “Não mostram o peito na rua e não defecam para protestar”, afirmou. “Ou seja, as mulheres de direita são muito mais higiênicas que as da esquerda”.

Outra puxadora e recordista de votos foi a jornalista Joice Hasselman, que teve mais 1 milhão de votos também pelo Estado de São Paulo. Entre a direita brasileira, ela já foi apontada como “a musa da operação Lava Jato”. Ex-repórter da revista Veja, já foi acusada de plagiar 65 reportagens. Ela nega a irregularidade e, quando da acusação, falou que o sindicato de jornalistas do Paraná, que constatou a fraude, representava a escória do jornalismo. De qualquer maneira, na atual campanha eleitoral, ela foi responsável por disseminar alguns dos boatos que inundaram as redes sociais e os grupos de WhatsApp de Bolsonaro, uma das principais ferramentas de divulgação do candidato. Entre eles o de que um meio de comunicação teria recebido 600 milhões de reais para “detonar” a candidatura de Bolsonaro e outro de que o criminoso Adélio Bispo de Oliveira, que esfaqueou o presidenciável, concederia uma entrevista para atribuir o crime à campanha dele. Seus principais financiadores foram a direção do PSL e o empresário Sebastião Bonfim Filho, da rede de materiais esportivos Centauro.

No Rio de Janeiro, o campeão de votos foi o militar Hélio Fernando Barbosa Lopes, o Hélio Negão. Ele teve 345.234 votos. Seu crescimento exponencial, em comparação com outras eleições, deu-se por conta da proximidade com Bolsonaro, que lhe emprestou o sobrenome para amenizar a pecha de “racista” que seus opositores tentam colar nele. Além disso, o comitê do presidenciável bancou os 45.000 reais da campanha do candidato a deputado. Há dois anos, Hélio concorreu para vereador de Nova Iguaçu e teve míseros 480 votos.

Os radicais

Alguns dos destaques entre os que pregam discursos extremistas são:

Tio Trusti (MS), dono de um estabelecimento em Campo Grande que diz ser um bar de opressores. Um de seus jingles pregava que, com ele, “vagabundo não vai ter vez”. “Chegou tio Trusti, osso duro de roer. Malandro e maconheiro ele vai mandar prender”.

Nelson Barbudo (MT). Produtor rural e ex-vereador, Barbudo foi o mais votado em seu Estado com discurso radical contra criminosos e comunistas. Conhecido por ostentar uma barba longa e sempre usar chapéu, em um dos vídeos de sua campanha ele dizia: “Vou meter o chapéu na cara daqueles comunistas, lá [na Câmara]”.

Delegado Waldir (GO) foi pela segunda eleição consecutiva o mais votado de Goiás. Em seu primeiro mandato, não aprovou nenhum dos 52 projetos protocolados e se destacou porque disse que estava sendo comprado na Comissão de Constituição e Justiça para votar a favor de um relatório que pedia o arquivamento de uma denúncia criminal contra o presidente Michel Temer (MDB). Na campanha de 2018, sempre ostentava o sinal de armas e dizia que seu número nas urnas era o 17 do calibre e o 00 que representa a algema.

Carlos Jordy (RJ), apelidado de filhote de Bolsonaro frequentemente faz discursos contra feministas. É vereador em Niterói e já teve vários embates contra representantes da esquerda.

General Girão (RN) já defendeu que militares voltassem a usar as espadas, “para colocar o Brasil no rumo certo”. É a primeira eleição que ele disputou.

Daniel Silveira (RJ) o policial militar que se notabilizou por destruir uma placa de rua que levava o nome da vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL).

Lideranças pró-impeachment

Nesse grupo estão: a gerente Carla Zambelli (SP) e a advogada Alê Silva (MG), ambas do movimento Nas Ruas; o ex-ator pornô Alexandre Frota (SP) que participou de vários grupos antipetistas; Heitor Freire (CE), do Movimento Direita Ceará, e Caroline de Toni (SC), que era do Movimento Brasil Livre e protocolou um dos pedidos de impeachment da então presidente Dilma Rousseff e do ministro do Supremo Tribunal Federal José Antonio Dias Toffoli.

Algo comum entre esse grupo é o apoio junto ao empresariado. Com exceção de Heitor Freire, cuja maior parte dos recursos de sua campanha provieram do partido, os demais foram financiados por empresários, ruralistas ou advogados. Zambelli, por exemplo, recebeu recursos de Flávio Rocha, o ex-presidenciável que é dono das lojas Riachuelo, e de Sebastião Bonfim Filho, da rede de materiais esportivos Centauro.

O príncipe e o atleta

Entre os que já eram famosos antes de aderirem ao bolsonarismo, estão o ex-nadador olímpico e campeão pan-americano Luiz Lima e o cientista político e herdeiro da monarquia brasileira Luiz Philippe de Orleans Bragança.

Para se eleger pelo Rio de Janeiro, Lima participou do movimento Renova BR, organizado pelo empresário Eduardo Mufarrej e que tinha como objetivo trazer novas caras para a política brasileira. O ex-nadador recebeu quase 230.000 reais principalmente de investidores e mega empresários, como Abílio Diniz (que preside o Conselho de Administração da BRF), Paulo de Senna Nogueira Batista e Roberto Lombardi de Barros.

Já o “príncipe” Luiz Philippe investiu ele próprio em sua campanha juntamente com Terence Michael Pih, que possui empreiteira e empresas aduaneiras. Cotado para ser o vice de Bolsonaro, o membro da família real foi preterido pelo General Hamilton Mourão. A razão, foi a falta de proximidade entre ele e o presidenciável. Uma fonte confidenciou o EL PAÍS que Bolsonaro temia ser traído por Luiz Philippe. “Entre o príncipe e o general, ele optou pelo militar pela lealdade. O príncipe é mais preparado, mas talvez ele não fosse tão fiel quanto o Mourão. Por isso, a escolha”, disse um graduado assessor de Bolsonaro. Ainda assim, se eleito, o capitão reformado diz que conta com os serviços do herdeiro real no parlamento.

Herdeiros

Ainda na seara “herdeiros” (sem contar Eduardo Bolsonaro) outros dois eleitos se aproveitaram de seus familiares para se elegerem. Filho do deputado federal Delegado Fernando Francischini, um dos mais próximos de Bolsonaro, o deputado estadual Felipe Francischini (PR) se valeu da fama e da estrutura de campanha de seu pai. O delegado concorreria a senador nessa eleição, mas como não teria tempo de TV por estar num partido até então nanico e por querer ter mobilidade para acompanhar as agendas de Bolsonaro, ele desistiu de disputar o Congresso. Acabou “trocando” de lugar com seu filho e se elegeu estadual com votação recorde.

A outra herdeira foi a médica Soraya Manato (ES). Em sua primeira eleição ela obteve os votos que costumavam eleger seu marido, Carlos Manato, por quatro mandatos consecutivos. Ele concorreu, sem sucesso para o Governo capixaba.

Neolideranças

Outros dois parlamentares se destacaram como aliados de primeira hora de Bolsonaro em seus Estados para garantirem suas vagas na Câmara o paraibano Julian Lemos e o mineiro Marcelo Álvaro Antônio. Alçado a vice-presidente nacional do PSL, o dono de uma empresa de segurança Julian conheceu o presidenciável há quase quatro anos, quando foi trabalhar em um evento que tinha o militar como palestrante. Julian conseguiu evitar que manifestantes impedissem a palestra de Bolsonaro e se aproximou rapidamente deles. Tornou-se, então, o elo do presidenciável com o Nordeste e indicou a agência que faz suas peças publicitárias. Todos os 286.000 reais recebidos por sua campanha até o momento foram entregues pelo PSL.

Antes de chegar ao PSL, Marcelo já havia passado por três legendas distintas PRP, PMB e PR. Os discursos radicais o levaram ao PSL, que abriu uma trincheira para Bolsonaro desvendar em Minas Gerais. Em 2014, se elegeu para o primeiro mandato com pouco mais de 60.000 votos. Agora, com quase quatro vezes mais votos foi o deputado mais votado de seu Estado. O impulsionamento de seu nome se deu, principalmente, pelo fenômeno Bolsonaro. No dia em que o presidenciável foi esfaqueado em Juiz de Fora, Marcelo estava ao seu lado e é visto, em vários vídeos, carregando o candidato pelos braços.

No Congresso, a tendência é que essa bancada – que hoje representa 10,1% dos parlamentares – caminhe unida e ainda mais reforçada por simpatizantes de Bolsonaro que se elegeram por outras legendas, como Onyx Lorenzoni (DEM-RS), Kim Kataguiri (DEM-SP), Sargento Fahur (PSD-PR), Delegado Éder Mauro (PSD-PA) e Capitão Augusto (PR-SP).

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O Estado de S. Paulo: ‘É preciso nova bibliografia para escolas’, diz assessor de Bolsonaro para a Educação

General que ajuda a fazer plano de Educação quer retirada de livros com ‘ideologia’ e ensino da ‘verdade sobre 64’ 

Por Renata Agostini, de O Estado de S.Paulo

À frente do grupo que elabora propostas para o Ministério de Educação de um eventual governo de Jair Bolsonaro (PSL), o general Aléssio Ribeiro Souto diz que “é muito forte a ideia” de se fazer ampla revisão dos currículos e das bibliografias usadas nas escolas para evitar que crianças sejam expostas a ideologias e conteúdo impróprio. Ele defende que professores exponham a "verdade" sobre o “regime de 1964”, narrando, por exemplo, mortes “dos dois lados”. "Existe a verdade, quer se queira ou não. E ela nem sempre tem sido retratada", afirmou o general em entrevista ao Estado.

Ex-chefe do Centro Tecnológico do Exército, foi chamado a coordenar debates de ciência e tecnologia, mas acabou acumulando educação “por afinidade”. Contrário à política de cotas, defende a “prevalência do mérito” e diz que, se a ideia for aceita por Bolsonaro, serão estudadas medidas “não traumáticas” para substituir as regras. “Querem atribuir a Bolsonaro condição ditatorial. É chamado até de nazista. É mentira deslavada”, disse.

Qual a proposta para o desenho do Ministério da Educação?

Há preferência do grupo por manter educação e ciência e tecnologia separados. Achamos que ambos cabem na nova quantidade de ministérios, que será reduzida, mas não entramos na questão. É preciso valorizar os professores e os cientistas, não importa em qual estrutura organizacional estejam. Preconizamos que esporte e cultura devam estar dentro do Ministério da Educação. Ah, o pessoal da cultura é contra. Mas isso é uma besteira tão grande. O Estado pode ser pequeno. O importante é a funcionalidade e a gestão.

Quais as mudanças na área da educação o senhor vê como prioritárias?

Levantamos 14 “ideias básicas” para educação. Elas incluem valorização dos professores, motivação dos alunos, treinamento continuado dos 2,6 milhões professores que aí estão, alteração da formação das licenciaturas, revisão completa dos processos educacionais da base curricular, efetivo emprego dos recursos. Há muito dinheiro indo para o ralo da corrupção e há má gestão pura e simples. Você não pode dobrar o recurso para a educação, mas pode a cada ano aumentar 0,5% a mais do que a média do orçamento e, assim, em dado momento, terá aumento real.

Preveem reorganização na destinação dos recursos?

Em qualquer país razoável, 30% ou 40% dos recursos são destinados ao ensino superior. Este ano, aqui, a matriz deve ter chegado a 70% dos recursos para o ensino superior. Precisamos alterar, mas não se faz facilmente, porque teria de mandar metade das pessoas embora, professores e funcionários. Não é assim que as coisas acontecem, não queremos o regime ditatorial. Na democracia é diferente, tem de ser pactuado, aos poucos. Nossas “14 ideias básicas” darão resultado em médio e longo prazos. Para ter transformação efetiva da sociedade, como ocorreu no Japão e na Finlândia, precisamos de 60 anos. Estamos pensando em medidas para o curtíssimo prazo, como replicar a experiência de escolas públicas de bom desempenho para outras do mesmo Estado. Além disso, tudo que é de médio e longo prazo tem de ser desencadeado agora. Valorizar professor não dá resultado agora, mas tem de começar agora.

Inclui melhorar a remuneração?

A remuneração é quinto ou sexto tópico a se considerar. Pagar muito bem é uma absoluta impossibilidade agora. Antes disso, precisa do discurso de que magistério é importante. Os professores que estão aí precisam começar a acreditar que são importantes, porque hoje ninguém quer ser professor. Discurso, formação, aperfeiçoamento dos que já estão aí, resgate da autoridade do professor. Depois dos pais, tem de ter a ideia de que, em segundo lugar, reverenciamos professores. É absolutamente inaceitável a agressão ao professor. Isso tem de ser reprimido.

Como fazer isso nas escolas públicas?

Dentro dos meios democráticos e legais. Aquele que ameaçar agredir o professor, que dirigiu a palavra mal dita para o professor, tem de haver repressão. Democrática.

Como é repressão democrática?

Tem de ser retirado da sala. E, se agredir, polícia. Vai a polícia, leva as crianças e atua naquele que agrediu fisicamente através do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para os menores. E, para os adultos, polícia pura e simples. Delegacia. Não pode haver dúvida quanto a isso.

Mas há propostas de modificações?

O candidato Jair Bolsonaro é acusado de misógino porque queria a punição de alguém que estuprou a namorada e depois a matou. E a punição desse menor? Na minha visão, o menor bandido deve ser preso. Mas vai colocar na prisão junto dos maiores? Não. No pavilhão dos menores bandidos, precisa ter tratamento do psicólogo, educador etc. Agora, nesse sentido, o ECA tem de ser mudado. Se ele permite que bandidos sejam protegidos, discordo. Assim que eu vejo.

Isso está na proposta?

Não entramos nesse tipo de detalhamento agora. Estamos levando as ideias básicas que passarão pela equipe de transição e para quem for o ministro.

Como ficará a política de cotas?

Uma das ideias básicas é a prevalência do mérito. O País deve chegar ao momento que não precisará de cotas. A cota é um remendo. Sou de família extremamente modesta, saí de casa aos sete anos de idade. Sou neto de negro e bisneto de índia. Nunca precisei disso, porque o Estado, a sociedade e a Nação me propiciaram educação pública de qualidade.

Cotas então não são necessárias?

Elas estão sendo necessárias para alguns e mal utilizada por outros para resolver um problema de má gestão governamental. Nossa proposta é a prevalência do mérito. Mas como fazer? Eliminar agora? É preciso equilíbrio. Que tal ensino complementar aos desassistidos?

Quem são os desassistidos?

Pobre branco de olhos azuis não tem direito? Existem no Nordeste e no Rio Grande do Sul. No meu dicionário, não pode ter cor para o ser humano. Que tal se, em vez de cota, propiciarmos ensino adicional, correção dos erros existentes, complementariedade?

O senhor fala em reforço escolar, mas a cota garante o ingresso na universidade.

Quis mencionar minha posição pessoal. Nossa equipe não está tratando especificamente disso. Se a ideia da prevalência do mérito for acolhida por Bolsonaro, estudaremos soluções não traumáticas (para mudar a política atual). Querem atribuir ao Bolsonaro a condição ditatorial. É chamado até de nazistas. É mentira deslavada.

Como ficariam Prouni e Fies?

Achamos que é preciso continuar o financiamento do estudo. O País nunca vai transformar os pobres em ricos. Não é todo mundo que chegará lá. Mas os mais talentosos entre os pobres precisam ter acesso ao nível superior. O Prouni requer estudo, mas, pelo que li, não vejo razão para pensar em acabar.

Por que é necessário revisar o currículo escolar?

É muito forte a ideia básica de revisão dos processos curriculares, das bibliografias. Isso precisa ser muito cuidado para não termos absurdos que vimos na TV como livros distribuídos para crianças de sete anos que deixa mães estupefatas. Determinadas coisas são responsabilidade dois pais. A escola tem de tratar do problema, mas não tem de influenciar para uma direção ideológica. E, nesse sentido, estamos colocando uma revisão completa dessas questões curriculares.

Com qual objetivo?

Impedir que tenhamos na escola a orientação de um determinado partido ou corrente ideológica em dado momento. Isso é inaceitável. Foi pregado pelo Bolsonaro que ele vai combater num eventual governo dele a ideologização das escolas, a transmissão das questões relacionadas à sexualidade, à ideologia de gênero, que é um direito inalienável dos pais. Ele transmitiu isso e por isso me convenceu de que eu poderia contribuir para a campanha dele.

E se um pai desejasse que o professor ensinasse criacionismo em vez de a teoria da evolução?

Isso que eu saiba não está errado. Foram questões históricas que ocorreram. Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa, que é o que as escolas orientadas ideologicamente querem fazer, mudar a opinião que a criança traz de casa. Cabe citar o criacionismo, o darwinismo, mas não cabe querer tratar que criacionismo não existe.

Mas no currículo escolar não consta o criacionismo. Fala-se da teoria da evolução.

A questão toda é que muito da escola na atualidade está voltada para a orientação ideológica, tenta convencer de aspectos políticos e até religiosos. Houve Darwin? Houve, temos de conhecê-lo. Não é para concordar, tem de saber que existiu.

O senhor já se manifestou a favor de retirar livros que não contassem “a verdade” sobre 1964.

A única coisa que vou falar sobre 64 é que eu só aceito ler e debater aspectos do regime de 64 à luz da liberdade e de praticar a verdade, a coragem e a ética. Fora disso, sequer aceito a ideia de debater.

O senhor entende que os livros de história não refletem a verdade ao tratar 1964 como golpe militar?

Não entro na questão de golpe, porque é algo menor. Há quem diga que o afastamento da Dilma, feito no âmbito do Congresso e do Poder Judiciário, foi golpe. Felizmente, o povo mineiro disse para ela: você não estava falando a verdade. Impediram que ela fosse eleita. A questão da palavra golpe me parece menor. Agora, sonegar para crianças de dez, 12, 16 anos o que ocorreu? Não concordo. Não gostaria de falar mais sobre o assunto.

Mas é preciso esclarecer sua posição.

Não tenho medo de debater com transparência. No período de 1945, cerca de 400 e poucos brasileiros morreram para derrotar o nazismo. Em 1964, houve 450 mortes dentre aqueles que queriam implantar a ditadura do proletariado. Mas houve 117 mortes daqueles que não queriam. Quando você trata dos problemas e das mortes - e guerra traz mortes - tem de tratar dos dois lados. Existe a verdade, quer se queira ou não. E ela nem sempre tem sido retratada. Com frequência, minhas filhas chegam em casa falando coisas que não posso aceitar. Mas não está no livro de história, está na boca do professor.

Como pretende atacar isso?

Orientar toda a cadeia de gestão, até o professor na sala de aula, que nós buscamos a paz e a harmonia através da democracia e de praticar a verdade. E não usar a mentira e a canalhice. E aí é a mudança que Bolsonaro ofereceu ao povo brasileiro e foi acolhida majoritariamente.


Morris Kachani: E agora, Gabeira?

Seja como guerrilheiro, exilado, militante dos direitos humanos, ambientalista, deputado, jornalista ou escritor, Fernando Gabeira se dedica à vida política brasileira há praticamente meio século.

Gabeira foi filiado ao PT até 2003, quando se deu um rompimento rumoroso com Lula e seu séquito. Foi também colega de Jair Bolsonaro por 16 anos, na Câmara dos Deputados.

Ele, autor do clássico “O que é isso, companheiro?”, que entre tantas revolucionou os costumes com a icônica tanga de crochê rosa, no começo dos 80, e mais recentemente recebeu um ‘abraço hetero’ de Bolsonaro, com o ex-capitão dizendo-se apaixonado, em entrevista na GloboNews, há dois meses.

Gabeira construiu uma trajetória original e de respeito, e em suas palavras talvez estejam algumas chaves para se entender o tempo de hoje.

“Eu acho que a sobrevivência da democracia não está ameaçada, mas a qualidade dela, sim. A situação brasileira pode ser um pouco mais aproximada com a situação dos Estados Unidos, onde a regressão autoritária acontece de uma certa maneira contrabalanceada pelas instituições, pela justiça, mídia, parlamento”.

“As circunstâncias eleitorais que levam o Bolsonaro e essa vitória são circunstâncias que não podem ser muito reduzidas à visão de que é só a direita que está chegando ao governo. Existem não somente várias visões de direita, como muita gente que é basicamente contra a corrupção.

Não significa que todo o eleitorado que vota no Bolsonaro pensa como ele. É muito comum você ouvir: “eu voto no Bolsonaro apesar das coisas que ele pensa”. É um raciocínio, um cálculo que as pessoas fizeram julgando muito com a presença do PT do outro lado. E ele, muito sabiamente, explorou isso desde o princípio”.

“Não acho Bolsonaro preparado para ser presidente. Acho que ele vai ter que ser preparado sendo presidente. O Bolsonaro é um deputado do baixo clero que praticamente ignorou o debate parlamentar. Colocou que aquilo era o sistema e que ele seria contra aquele sistema.

Trabalhei com ele na Câmara num contexto de concordâncias na questão da luta contra a corrupção, e num contexto de divergências a respeito de gays, negros, mulheres, toda essa temática”.

“Eu não posso tomar o Haddad como candidato. Na verdade, ele é a pessoa determinada por um grupo que se recusa a fazer uma autocrítica de toda a roubalheira que houve no país, e que está propondo à sociedade – de uma forma que considero inadequada –, que ela dê um cheque em branco para voltarem e fazerem a mesma coisa. Se você não faz uma autocrítica sobre aquilo tudo que aconteceu – e há uma montanha de provas –, e se dispõe a ganhar de novo o governo, é porque você quer continuar fazendo o mesmo”.

“Eu acho que vamos ter uma possibilidade – quem sabe num horizonte próximo –, de todas aquelas pessoas que estavam separadas começarem a se unir um pouco em torno de uma possibilidade de uma frente democrática que não seja essa caricatura que o PT propôs.

Uma frente democrática com pessoas, sem partidos querendo hegemonia; sem essa perspectiva eleitoral imediata. Uma frente democrática que pudesse temperar o caminho, moderar o caminho. E as próximas eleições fariam seu ajuste”.

“A ditadura é algo fora do horizonte. As Forças Armadas vão manter uma relação de autonomia em relação a Bolsonaro. Eu acho até que potencialmente, como elemento moderador. Existe no pensamento militar uma visão mais moderada do que do Bolsonaro. Ele é a versão mais popular, com uma série de impurezas que nem sempre os militares consideram uma coisa sensata”.

“Collor veio num contexto ainda de uma eleição analógica. O Bolsonaro veio num contexto de uma eleição digital. Ele tem muitos admiradores que o apoiam, e existe também um corpo de militantes na internet que defendem suas posições. Algo que o Collor não tinha. Ele não tinha ninguém. E o Bolsonaro tem, progressivamente, alguns setores intelectuais que começam de alguma maneira a aparecer em sua defesa. Então, ele tem, no meu entender, uma base mais enraizada que a do Collor”.

“Os elementos do programa do PT que se parecem com o projeto venezuelano foram amplamente discutidos. Este programa surgiu de uma análise do impeachment baseada na presunção de que o partido não procurou tomar o poder, mas apenas vencer as eleições. Uma proposta de Assembleia Constituinte, controle social da mídia e conselhos populares acaba parecendo com o que se passa na Venezuela. E finalmente as entrevistas de José Dirceu sobre o tema, falando em controlar o Judiciário e tomar realmente o poder. Tenho a impressão de que, se o PT vencer as eleições com esse programa, a oposição teria que ser um pouco mais enérgica”.

“Quando esse tema cultural, racial e sexual entrou na campanha, de uma certa maneira abriu um pouco a caixa de Pandora na sociedade, porque veio de cima pra baixo. Agora é necessário tapá-la. Mas, vamos fazer o gênio voltar de novo pra garrafa?

O ideal é começar a baixar o tom, porque grande parte da resistência, da animosidade que o Bolsonaro tem com os movimentos minoritários – seja de gays, mulheres, negros – é que ele os vê muito associados à esquerda e ao PT. Ele os vê como uma continuação do PT.

Na verdade esse é um problema brasileiro. Esses movimentos ficaram muito dependentes do poder do governo, às vezes até financeiramente. E se associaram com a esquerda.

Naturalmente, existe uma visão religiosa, missionária, que tende a se transportar para a política e deseja, de uma certa maneira, uniformizar o comportamento. Essa é a visão conservadora mais clássica, inclusive de alguns setores evangélicos.

É importante que não haja nem grandes vitoriosos, nem grandes derrotados. Mas, que se chegue a uma sociedade onde as pessoas compreendam que elas não são donas do único modo bom de viver. Precisam ter uma tolerância”.

“O que torna as questões mais difíceis, em primeiro lugar é que o momento é de crise econômica, de individualismo. A Europa está acossada por imigrantes, e lá surgiu um movimento de defesa dos postos de trabalho, enfim, um movimento anti-imigrante. O mesmo que mobilizou o Trump.

Portanto, podemos dizer que a crise que está acontecendo é resultado de uma situação econômica muito difícil, na qual as pessoas querem se proteger, mais do que pensar na solidariedade. Parece que nesse momento da História, as forças que dominam ou caminham para o poder, são forças que visam mais a proteção dos seus lugares”.

*

Gostaria de saber sua interpretação desse momento que estamos vivendo.

Houve um vendaval. Eu não esperava esse vendaval. Eu achava que essa eleição ainda poderia ter sido dominada pelos velhos nomes que detinham dinheiro. Mas eu estava pensando em categorias antigas, de campanhas feitas com muito dinheiro, com tempo de televisão e com farta distribuição de material.

O fato dessa ter sido a primeira campanha que se realizou basicamente no território digital fez com que todas essas questões fossem subvertidas. E assim foi possível que a resposta nas ruas a uma ideia de renovação fosse a mais ampla possível, independente dos recursos verificados nas mãos dos partidos tradicionais.

Você acha que o recado que vem das urnas é esse, de renovação?

De uma tentativa de renovação. O recado básico que vem das urnas é uma condenação do PT.

Está vencendo as eleições, e é muito improvável que haja uma mudança no quadro, aquele que encarnou de uma forma mais contundente o antipetismo.

Você acha que a democracia está ameaçada?

Citando um estudioso da Fundação Getúlio Vargas, Matias Spektor, eu acho que a sobrevivência da democracia não está ameaçada, mas a qualidade dela, sim.

E ameaçada não somente pelos fatores imediatos, que são as eleições no Brasil, mas por um conjunto de fatores que ocorrem em escala mundial. Veja o peso que hoje têm as fake news, por exemplo.

À medida que a democracia se amplia e se coloca basicamente nas redes, ela está sujeita também a forças positivas e negativas.

Nós ganhamos qualidade com o fato de estarmos no mundo digital, mas perdemos com o fato dos defeitos do país aparecerem com mais clareza nesse mundo. No passado nós fazíamos campanhas nas quais éramos emissores para grandes receptores. Falávamos na televisão para telespectadores; falávamos em comício para militantes reunidos e para o povo.

Mas agora, com a internet, o modo de comunicação se transformou bastante; o modo de se fazer política também se transformou bastante.

Li um artigo do Marcos Nobre que falava sobre uma ameaça – ainda que longínqua – de “regressão autoritária à maneira da Turquia”.

Eu acho que a situação brasileira pode ser um pouco mais aproximada com a situação dos Estados Unidos, onde a regressão autoritária acontece de uma certa maneira contrabalanceada pelas instituições, pela justiça, mídia, parlamento.

O Donald Trump, nos Estados Unidos, evidentemente tem uma série de dificuldades para aplicar toda sua política, porque as próprias instituições em movimento, e a própria opinião pública que ainda se expressa pela internet e nos meios de comunicação clássicos, conseguem impedir que ele faça alguma coisa a mais.

As circunstâncias eleitorais que levam o Bolsonaro e essa vitória são circunstâncias que não podem ser muito reduzidas à visão de que é só a direita que está chegando ao governo. Existem não somente várias visões de direita, como muita gente que é basicamente contra a corrupção. Gostariam apenas de ter um governo mais decente.

Nós não sabemos ainda como será, mas eu creio que existem dois contrapontos importantes como oposição democrática ao Jair Bolsonaro: as instituições e a mídia. São contrapontos que podem, de alguma maneira, fazer com que as instituições funcionem.

Agora, a perda da qualidade da democracia é um tema que tem que ser discutido mais amplamente. Nós estamos no Brasil ainda sem uma reforma política. Isso não foi uma reforma política, como muitas pessoas acham. Foi apenas uma renovação, cujo conteúdo ainda não conhecemos completamente. Precisamos ver qual é o viés dessa renovação.

Eu creio que é possível determinar alguns pontos que me parecem claros: houve uma renovação ideológica no sentido de que muitos candidatos que defendem o liberalismo econômico e são um pouco hesitantes no liberalismo dos costumes, na liberdade individual mais ampla, saíram vitoriosos nessas eleições. Os deputados mais votados em São Paulo nessa linha são jovens que defendem o liberalismo. Você vai para o Rio Grande do Sul e é o mesmo tom.

Portanto, surge uma nova geração de deputados que defendem o liberalismo, o que não é novo no Brasil, mas é uma nova geração. No período anterior, quem defendia o liberalismo eram setores conservadores clássicos. Agora, essa geração de jovens liberais vem de um processo conquistado na internet, e surge com a ideia de levar o liberalismo de uma forma ideológica.

Temos agora que ver como esse liberalismo ideológico vai respeitar as amplas liberdades individuais, ou até que ponto ele quer fazer um acordo com o conservadorismo nos costumes. Essa combinação de conservadorismo e liberais tende a certas tensões no futuro, quando determinados temas entrarem em debate.

É o caso do meio ambiente. Essa ideia de fundir o Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura. Bolsonaro esquece que o meio ambiente são as grandes metrópoles, a questão da redução das emissões, a defesa dos mares. Como um agricultor que vai dirigir o Meio Ambiente e Agricultura vai ter a dimensão de todos esses problemas?

Em alguns momentos sinto apreensão e tristeza – e não sou o único.

Pra mim é uma jornada muito difícil. De um lado, eu conheço bastante bem o Bolsonaro, conheço o que ele representa. Atuei com ele dezesseis anos na Câmara dos Deputados. Discordamos muito, sobretudo nessa questão de costumes. Por outro lado, eu vejo o PT, que eu conheço também com todas suas características. Inclusive com um programa rancoroso, que você sente que eles não estavam preparados para a vitória, queriam mais era fazer um discurso de vingança.

O que acontece é que são situações muito indesejadas por mim. Mas é a realidade, e eu tenho que trabalhar com ela. Uma realidade que, até certo ponto, eu gostaria de ter evitado. Algumas advertências não foram ouvidas, algumas ideias foram recusadas e, ao longo do tempo o campo chamado progressista cada vez se comprometeu mais com o PT. Com o destino do PT, depois com o destino do Lula, depois com o Lula preso, com soltar o Lula. E o Brasil foi ficando à mercê.

Você trabalhou dezesseis anos com o Jair Bolsonaro.

Isso. Num contexto de concordâncias na questão da luta contra a corrupção, e num contexto de divergências a respeito de gays, negros, mulheres, toda essa temática.

A luta dele contra a corrupção é legítima?

Eu acho que ele me pareceu, durante esse período, um cara bastante voltado contra isso.

Agora, a luta dele contra a corrupção ganha uma dimensão maior quando se trata do PT. Ele associa a corrupção ao PT, e é um pouco mais tolerante à corrupção em outras áreas e outros partidos. O próprio partido dele que era o PP. Mas eu acho que ele fez isso como uma estratégia de sobrevivência. Ele procurou centrar a luta dele contra a corrupção somente dentro do quadro do PT.

Temos que ver até que ponto ele realmente é capaz de combater a corrupção em outras áreas e outros partidos.

Você acha que ele é uma pessoa preparada para ser presidente?

Não, não acho. Acho que ele vai ter que ser preparado sendo presidente. Não há outro caminho mais, porque essa reflexão sobre ser ou não preparado tem um peso durante a campanha, mas tem outro peso depois que o cara praticamente já venceu.

Agora ele vai ter que se preparar. Pelo que eu leio nos jornais, está tentando criar uma equipe. Ele vai encontrar um país num momento muito difícil, um Congresso fragmentado, a crise econômica tal como está. E vai ter que responder algumas propostas que não são de fácil resposta, como a questão da segurança pública, por exemplo.

Ele foi um bom deputado?

Durante uma fase muito grande do trabalho dele, ele era um deputado basicamente voltado para um sindicalismo ligado a setores militares, às viúvas de militares, aposentadoria de militares. Ele era muito voltado para o voto militar. Num determinado momento, ele começou a se destacar também na questão de combate aos direitos humanos, tal como era defendido pelo PT; e combate também ao que ele via como um crescimento do movimento gay.

Ele percebeu que com isso podia dar um passo. Já na última eleição, ele foi o deputado mais votado do Estado do Rio, com 374 mil votos. Ele já tinha saído da condição de líder sindical entre militares e passado para uma condição de um líder conservador. Preocupado com o movimento gay, com os direitos humanos, tal como estavam sendo interpretados.

E ele, muito sabiamente, procurou se fixar em adversários. Então ele procurou polarizar com a Maria do Rosário no tema direitos humanos, e polarizar com o Jean Wyllys no tema movimento gay.

Através dessa polarização, conseguiu ampliar muito o raio de influência. E ele fala uma série de frases provocativas que sabe que terão boa repercussão entre seus potenciais eleitores. A imprensa cai na armadilha e destaca apenas o lado mais contundente do que ele fala. Aí, no dia seguinte, ele diz apenas: “tiraram do contexto o que eu disse”.

Quando ele sentiu que por esse caminho ele crescia, passou a percorrer o Brasil já querendo se tornar presidente. Nesse percurso, ele enfatizava principalmente dois temas: um era a questão da segurança pública – que é um tema basicamente nacional. E o outro era a questão da corrupção.

Começou a ser recebido cada vez mais por multidões, porque o processo foi muito alimentado pela internet. Desde o princípio, ele é um candidato que se fez pela internet. A imagem dele nos meios de comunicação era sempre muito ambígua, até um pouco negativa.

E essa ligação dele com os militares? Como você enxerga os militares hoje no Brasil? Tem alguma coisa a ver com o que foi?

A julgar pelo que disse o Ministro da Marinha, os militares afirmam o seguinte: pode haver um ou outro candidato mais identificado com as Forças Armadas, mas as Forças Armadas não têm candidato. Elas vão se manter no ponto que têm que estar.

Inicialmente ele vai se escorar em alguns ministros militares, mas as Forças Armadas vão manter uma relação de autonomia em relação a ele. Eu acho até que potencialmente, como elemento moderador.

Existe no pensamento militar uma visão mais moderada do que do Bolsonaro. Ele é a versão mais popular, com uma série de impurezas que nem sempre os militares consideram uma coisa sensata.

A ditadura é algo fora do nosso horizonte?

Eu acho que sim. Acho que a força da democracia no Brasil é muito grande. Como eu disse, a ditadura seria a morte da democracia, e eu temo apenas pela perda da qualidade. Possivelmente, perderemos a qualidade em alguns pontos.

Eu creio que, apesar de tudo, existe uma certa vitalidade democrática na sociedade brasileira. E essa vitalidade democrática associada às instituições e aos setores da mídia mais críticos e independentes, fazem uma base para que você evite qualquer coisa ruim e tente ver como é possível melhorar a qualidade da democracia.

Uma das coisas que melhoraria a qualidade da democracia é se houvesse uma reforma política. As eleições reduziram o número de partidos, mas no parlamento esse número aumentou. O parlamento ainda é um lugar difícil de se dialogar, por causa do fracionamento, por causa da pulverização. Isso é um fator que temos que examinar também.

Você acha que as liberdades individuais estão ameaçadas?

Essa questão é um pouco difícil de definir agora. Em termos de declarações, já houve um compromisso de que a liberdade de imprensa não será tocada. As outras liberdades individuais ficam por conta, não só da defesa que farão dela os opositores do Bolsonaro, como seus próprios eleitores, que não são necessariamente conservadores, mas também liberais que votaram porque queriam um esquema liberal na economia.

Você enxerga ecos de Collor nessa história toda?

Eu acho mais difícil. O Collor veio no auge de uma decadência do governo Sarney, e com uma palavra de ordem de combate à corrupção. Isso foi muito bem recebido no país.

E o Collor veio num contexto ainda de uma eleição analógica. O Bolsonaro veio num contexto de uma eleição digital. Ele tem muitos admiradores que o apoiam, e existe também um corpo de militantes na internet que defendem suas posições. Algo que o Collor não tinha. Ele não tinha ninguém. E o Bolsonaro tem, progressivamente, alguns setores intelectuais que começam de alguma maneira a aparecer em sua defesa. Então, ele tem, no meu entender, uma base mais enraizada que a do Collor.

Você já sabe mais claramente em quem vai votar ou em que não vai votar?

Já afirmei em meus artigos que serei oposição a qualquer um dos dois.

Seria o mesmo nível de oposição para os dois lados?

Eu igualei os níveis quando falei no tema, porque eu estava considerando uma variável que é comum aos dois: a crise econômica brasileira. O perigo de nós entrarmos numa crise maior ainda.

Qualquer tipo de oposição que se faça num contexto desses tem que ser mais cuidadosa.

Eu faria também uma oposição cuidadosa ao PT, porque eu ia querer que as coisas não degringolassem e a democracia fosse pro espaço. Da mesma maneira farei uma oposição cuidadosa ao Bolsonaro, por causa dos mesmos motivos.

Agora, evidentemente que em termos pessoais, o tratamento que o PT daria a mim é diferente do que o tratamento que o Bolsonaro dará. Porque, ao longo desses anos, Bolsonaro e eu estivemos numa mesma trincheira contra a corrupção, e denunciando, cada um com seus argumentos e suas personalidades, aquilo que achava que estava errado no governo do PT.

Mas o PT voltou com um programa de características muito vingativas na sua formulação, inclusive o controle da mídia, a possibilidade de uma Assembleia Constituinte. Enfim, alguns elementos que parecem um pouco com o que aconteceu na Venezuela.

Tenho a impressão de que, se o PT vencer as eleições com esse programa, a oposição teria que ser um pouco mais enérgica.

Você fala em “venezuelização”. Não seria um exagero?

Os elementos do programa do PT que se parecem com o projeto venezuelano foram amplamente discutidos. Este programa surgiu de uma análise do impeachment baseada na presunção de que o partido não procurou tomar o poder, mas apenas vencer as eleições. Uma proposta de Assembleia Constituinte, controle social da mídia e conselhos populares acaba parecendo com o que se passa na Venezuela. E finalmente as entrevistas de José Dirceu sobre o tema, falando em controlar o Judiciário e tomar realmente o poder.

O Haddad, pessoalmente, é um cara que tem mais a ver com você do que o Bolsonaro. Ou não?

Muito mais, não há dúvida. O problema é que o Haddad é apenas uma pessoa que colocaram ali. Eu não posso tomar o Haddad como candidato. Na verdade, ele é a pessoa determinada por um grupo que se recusa a fazer uma autocrítica de toda a roubalheira que houve no país, e que está propondo à sociedade – de uma forma que considerado inadequada –, que ela dê um cheque em branco para voltarem e fazerem a mesma coisa. Se você não faz uma autocrítica sobre aquilo tudo que aconteceu – e há uma montanha de provas –, e se dispõe a ganhar de novo o governo, é porque você quer continuar fazendo o mesmo.

O próprio Haddad pode possivelmente ter consciência de que houve erros. Mas ele não tem autonomia nem coragem pra dizer que houve.

Se o apoio fosse para o Ciro teria sido outra história, talvez.

Por que a esquerda não marchou com o Ciro? Por que ela marchou dividida? Esta é uma das características históricas que provocam a derrota.

Por que ela não se afastou do PT, e não foi feito um grupo com o PT apoiando? Por que insistiu em ligar o destino dela ao Lula, e ligando o destino dela ao Lula, evidentemente não venceu e não deixou o outro ser competitivo?

Eu não sei se essa alternativa sairia vitoriosa. Possivelmente, ela seria também varrida pela onda.

E o PSDB ficou no meio do caminho.

Se você observar os resultados agora, verá que o PSDB não pôde se comportar como o verdadeiro adversário do PT e da corrupção, porque tinha um flanco muito vulnerável. O próprio Alckmin estava sob investigação. Houve o caso do Aécio. O PSDB foi confundido com o velho sistema de corrupção.

Houve um erro tático. Eles acharam que primeiro precisavam derrotar o Bolsonaro pra depois enfrentar o PT. Então usaram um período grande na luta contra o Bolsonaro, que ficou muito só como aquela pessoa que era genuinamente anti-PT.

E a Marina?

Ela não conseguiu convencer muito. Primeiro porque ela teve dificuldades de acompanhar o cenário político e até ambiental do Brasil. Ela deu a impressão de que desaparece e aparece de quatro em quatro anos. Além do mais, o partido dela já veio mais enfraquecido, sem grandes condições.

Eu acho que não era o momento da Marina.

No dia que foi anunciado que ela teve menos votos que o Daciolo, na Suécia, a academia do Nobel estava dando o prêmio a dois economistas que defendiam a tese do desenvolvimento sustentável. Esse tema, que é um tema mundialmente importante, não tinha aqui no Brasil, nessa conjuntura, a mesma importância no coração e na cabeça dos eleitores.

Essa escalada de violência nas eleições é assustadora.

Sem dúvida. Eu descrevo no meu trabalho parlamentar que o Bolsonaro dizia muitas bobagens. Que o problema era achar um nível de debate que não fosse baixo. Porque eu acho que o debate no parlamento contribui muito para abrir a caixa de Pandora da sociedade.

Quando esse tema cultural, racial e sexual entrou na campanha, de uma certa maneira abriu um pouco a caixa de Pandora na sociedade, porque veio de cima pra baixo. Agora é necessário tapá-la. Mas, vamos fazer o gênio voltar de novo pra garrafa?

O ideal é começar a baixar o tom, porque grande parte da resistência, da animosidade que o Bolsonaro tem com os movimentos minoritários – seja de gays, mulheres, negros – é que ele os vê muito associados à esquerda e ao PT. Ele os vê como uma continuação do PT.

Na verdade esse é um problema brasileiro. Esses movimentos ficaram muito dependentes do poder do governo, às vezes até financeiramente. E se associaram com a esquerda.

Naturalmente, existe uma visão religiosa, missionária, que tende a se transportar para a política e deseja, de uma certa maneira, uniformizar o comportamento. Essa é a visão conservadora mais clássica, inclusive de alguns setores evangélicos.

É importante que não haja nem grandes vitoriosos, nem grandes derrotados. Mas, que se chegue a uma sociedade onde as pessoas compreendam que elas não são donas do único modo bom de viver. Precisam ter tolerância.

Até as relações pessoais estão um pouco esgarçadas.

Eu acho que o que esgarça muito as relações – e o próprio debate político – é uma perspectiva missionária. Uma suposição de que você tem a forma de vida que é válida pra todos.

Você enxerga luz no fim do túnel?

Estou enxergando alguma. Mas é muito cedo pra ver se é a luz mesmo, ou se é algum trem que vem na outra direção. Ainda preciso de um tempo.

O povo brasileiro escolheu até o momento – e não creio que haja uma reviravolta – um novo presidente. Ele tem legitimidade, uma equipe de governo, uma filosofia. Em todo princípio você tem que esperar um pouco pra ver se realmente é uma luz ou se vem um trem na direção oposta.

Existe uma crise ética por trás disso tudo.

É difícil você dizer que existe uma crise ética, porque na verdade a questão ética teve um grande papel nas eleições. A população teve uma oposição, digamos assim, de punir muitos dos candidatos que tiveram desvios éticos. Muita gente foi afastada do Congresso porque estava envolvida com a Lava Jato. Esse dado já mostra uma preocupação ética.

Agora, o que torna as questões mais difíceis, em primeiro lugar é que o momento é de crise econômica, de individualismo. A Europa está acossada por imigrantes, e lá surgiu um movimento de defesa dos postos de trabalho, enfim, um movimento anti-imigrante. O mesmo que mobilizou o Trump.

Portanto, podemos dizer que a crise que está acontecendo é resultado de uma situação econômica muito difícil, na qual as pessoas querem se proteger, mais do que pensar na solidariedade. Parece que nesse momento da história, as forças que dominam ou caminham para o poder, são forças que visam mais a proteção dos seus lugares.

Por que você largou a política?

A política partidária e a representação no Congresso foi muito estéril nos últimos anos. Houve uma resistência tal dos setores mais comprometidos com a corrupção, que eles dificultavam muito o trabalho no Congresso.

E eu senti em um certo período, sobretudo o período final, que eu – apesar de estar no Congresso –, não estava realizando aquilo que eu precisava realizar. Eu me sentia em dívida com as pessoas. Então resolvi que não era possível, naquele contexto, fazer alguma coisa.

Por duas vezes fui candidato nas eleições majoritárias, nas quais, evidentemente eu sabia que não tinha o perfil de um cara que ia vencer. Mas quase venci uma no Rio de Janeiro.

Acredito que posso fazer um pouco mais fora do parlamento.

Eu gosto do meu trabalho tal como ele está agora. Gosto muito de ver o dia nascer e o dia morrer. E na Câmara dos Deputados, no Congresso, você não vê isso, entende? Você não vê a passagem do tempo. Chega um momento da sua vida que você quer aproveitar um pouco mais.

Então você acha que ainda dá pra ter esperança?

Eu acho que nós temos que, primeiro admitir que a realidade é essa, e tentar dentro dessa realidade redimensionar os sonhos, as perspectivas.

O problema que se coloca agora é garantir que a democracia tenha seu curso, e que os vencedores coloquem em ação suas propostas, e ao longo do caminho a gente vai vendo.

Acho que começou uma nova fase. Não posso afirmar claramente se é melhor ou pior do que a outra, mas eu posso dizer que é uma nova fase que o povo brasileiro escolheu. Temos que trabalhar com essa realidade.

Tenho esse blog há um ano e meio e a única entrevista que fiz e não publiquei, porque ficou muito ruim, foi com o Major Olímpio, eleito senador.

Ele é de um nível muito baixo.

Eu fico achando que o Bolsonaro é isso: baixo clero.

Todos são baixo clero. O Bolsonaro é um deputado do baixo clero que seguiu essa trajetória. Ele praticamente ignorou o debate parlamentar. Colocou que aquilo era o sistema e que ele seria contra aquele sistema, que a mídia também fazia parte do sistema, e que ele teria que lutar contra tudo isso através dos instrumentos possíveis pra ele, que eram a internet.

Ele ter mais votos nas classes média e alta – as mais instruídas, supostamente – não é esquisito?

É esquisito. Mas a classe instruída, e a maioria das pessoas, se colocou nesse dilema entre a volta do PT e uma pessoa nova. O que não significa que todo o eleitorado que vota no Bolsonaro pensa como ele. É muito comum você ouvir: “eu voto no Bolsonaro apesar das coisas que ele pensa”. É um raciocínio, um cálculo que as pessoas fizeram julgando muito com a presença do PT do outro lado. E ele, muito sabiamente, explorou isso desde o princípio.

No final das contas, é muito ruim, mas não é o fim do mundo. É isso que você acha?

Eu espero que não seja. Eu farei de tudo para que não seja.

Eu acho que vamos ter uma possibilidade – quem sabe num horizonte próximo – , de todas aquelas pessoas que estavam separadas começarem a se unir um pouco em torno de uma possibilidade de uma frente democrática que não seja essa caricatura que o PT propôs.

Uma frente democrática com pessoas, sem partidos querendo hegemonia; sem essa perspectiva eleitoral imediata. Uma frente democrática que pudesse temperar o caminho, moderar o caminho. E as próximas eleições fariam seu ajuste.

Quando Bolsonaro, ou alguns de seus partidários, falam sobre a ditadura militar em tom saudosista, ou minimizando seus excessos, como isso repercute para você?

Representa ainda ressentimento sobre um período encerrado. De um modo geral, eles reclamam da Comissão da Verdade e reclamam também das versões sobre o período militar. Acham parcial. Creio, ou pelo menos espero, que todos saibam que as condições de 64 são diferentes das atuais. Concordo com a ideia de um amplo levantamento do período. Mas isso só seria possível com a entrega dos documentos militares do período. No momento, não querem.


Samuel Pessôa: A hora maior do PT

Partido, porém, preferiu manter sua pureza ideológica na oposição

Em tom emotivo de “sangue, suor e lágrimas”, ecoando filme que recentemente saiu de cartaz sobre a luta de Churchill para convencer os políticos ingleses a não fazer acordo com Hitler, meu colega Celso Barros, na coluna de segunda-feira (8), fez chamamento ao PT: “Que seja digno de sua hora!”.

Que supere ressentimentos, reconheça erros, se distancie das ditaduras latino-americanas, e que seja capaz de construir um programa econômico que incorpore todas as forças democráticas, da centro-direita até a esquerda.

Esse programa envolveria, na minha visão: reforma da Previdência na linha da de Michel Temer; elevação da carga tributária sobre os mais ricos; congelamento por alguns anos dos salários nominais dos servidores; congelamento por alguns anos do valor real do salário mínimo; alguma flexibilização do teto do gasto para permitir elevação do investimento, na linha dos Planos Pilotos de Investimento do acordo que tínhamos com o FMI; entre tantas outras medidas.

Adicionalmente teriam de ser abandonadas ideias como ampliar a participação social no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), controle social da mídia, e outras formas de democracia direta.

Tudo isto para evitar que Fernando Haddad, e com ele as forças democráticas, seja derrotado no segundo turno pelas forças autoritárias.

O movimento teve início com a autocrítica de Tasso Jereissati (PSDB), propositalmente antes do primeiro turno. Evidentemente o PT não aceitou o gesto.

Celso não percebeu. Seu chamamento requer mais do que o PT pode dar. Renegar Cuba, Venezuela, Nicarágua e fazer um claro movimento para o centro significa, entre outras medidas, repensar toda a narrativa que foi construída sobre como chegamos até aqui.

Refazer a narrativa não é algo menor. Requer abertura e capacidade de enxergar o outro que somente os verdadeiros democratas têm.

Para o PT, o crescimento da direita é de responsabilidade da campanha eleitoral reacionária que José Serra fez em 2010. Para o PT, a profundidade da crise é culpa de Aécio Neves que não aceitou o resultado eleitoral de 2014. Para o PT, o desastre da Venezuela, a maior tragédia social que se abateu sobre a América Latina nos últimos 50 anos pelo menos, é culpa da oposição venezuelana reacionária.

Essencialmente a culpa é do grupo político que perdeu as últimas cinco eleições.

Uma das características dos movimentos autoritários é acreditar piamente em suas próprias narrativas.

Mesmo Haddad, que representa o melhor do PT e na pessoa física é um democrata convicto, está cego. Não enxerga a outra margem do rio. Ficará em sua trincheira.

O PT, apesar do que parecia, não foi civilizado pela queda do Muro de Berlim.

José Álvaro Moisés, Francisco Weffort, Paulo Delgado, Airton Soares, Cristovam Buarque, Marina Silva, Eduardo Jorge, Hélio Bicudo, Marta Suplicy e tantos outros verdadeiros social-democratas saíram do partido.

A eleição saiu muito barata para o partido. O PT está no lucro: sólida bancada na Câmara e três governos estaduais, com a possibilidade de ganhar um quarto. O partido se prepara para fazer oposição a Jair Bolsonaro e talvez ganhar em 2022.

Entre atender ao chamamento de Celso de liderar uma frente democrática ampla ou manter a sua “pureza ideológica” na oposição, o PT optou pelo segundo caminho.

Votarei nulo ou em Haddad. Bolsonaro é o mal maior. No entanto, deverá ganhar. O PT tem dado mostras de que não está à altura de sua hora maior.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Bruno Boghossian: Mentiras e vilões imaginários afastam campanha do mundo real

Os problemas do Brasil são gigantes, mas há gente em campanha para derrotar moinhos de vento. Fantasmas, notícias falsas e teorias da conspiração vêm produzindo nesta eleição inimigos tão enganosos quanto os rivais imaginários que viviam na cabeça de Dom Quixote.

É mentira que um filho de Jair Bolsonaro tenha saído às ruas com uma camiseta com inscrição preconceituosa contra eleitores nordestinos. A montagem malfeita foi compartilhada 73 mil vezes por um único perfil no Facebook até ser contestada.

É mentira que o PT tenha aprovado um “plano de dominação comunista”. A frase circula há anos, com base em teses de uma corrente do partido que nunca foram adotadas pela sigla ou por seus candidatos.

É mentira que Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, tenha proposto o confisco de cadernetas de poupança no mesmo dia em que fez críticas ao 13º salário. Um blog publicou a informação falsa, que foi replicada por milhares de pessoas —incluindo um deputado federal.

É mentira que Fernando Haddad tenha dito que Lula é “o verdadeiro filho de Deus” e que “a igreja vai pagar caro” por sua prisão. A frase inventada tenta ressuscitar um pânico religioso sem fundamento. Foi divulgada por um eleitor de Bolsonaro e reproduzida mais de 80 mil vezes.

A imprensa verificou e desmentiu essa boataria. O combate a notícias falsas e a indignação com absurdos, como se vê, não são seletivos.

Há dois dias, Bolsonaro tratou os meios de comunicação como adversários e alegou que eles trabalham para desgastá-lo. Repetiu o discurso vazio dos poderosos de sempre.

O jornalismo independente é crítico de modo geral. Foi assim que vieram à luz erros e escândalos de Collor, FHC, Lula, Dilma e Temer —e de seus opositores. Nenhum partido, afinal, deve exigir obediência e aplauso irrestrito da imprensa.

A contestação e a fiscalização dos candidatos ajudam a expor problemas e mantêm a campanha no mundo real. O eleitor não deve se mover por vilões fabricados pela ficção.


Elio Gaspari: O delegado viu paz e amor na suástica

Quem marcou a barriga da jovem inverteu a perna do S, mas sabia muito bem o que estava fazendo

Uma jovem de 19 anos contou na terça-feira à polícia de Porto Alegre que na noite anterior vestia uma camiseta com o slogan “Ele Não”, desceu de um ônibus e foi agredida por três pessoas. Contou ainda que, imobilizada, fizeram-lhe seis talhos na barriga, marcando-a com uma suástica.

Ainda não se conhecem as circunstâncias do episódio, e na quinta-feira a jovem, que não teve o nome revelado, desistiu da denúncia. A investigação prossegue. Um dia antes da desistência, o delegado Paulo César Jardim, tendo visto uma fotografia dos ferimentos, deu uma entrevista aos repórteres Kelly Matos e Pedro Quintana com suas observações preliminares.

Ele repetiu seis vezes que ali não havia uma suástica. Informando que é um “especialista nesta área”, revelou que a cruz gamada do nazismo não tem aquele formato, pois a perna do “S” estava invertida. Segundo Jardim, “o que temos é um símbolo milenar religioso budista, símbolo de amor, paz e harmonia”. (A fotografia está na rede, bem como os 16 minutos do áudio da entrevista.)

Quando lhe perguntaram se havia sentido em uma pessoa marcar a canivete um “símbolo de amor, paz e harmonia”, ele respondeu o seguinte: “Quem fez, foi, sei lá (...) Papai Noel, enfim, o que a gente tem é isto”. Categórico, acrescentou: “Não é uma suástica, isso eu afirmo com absoluta convicção”.

O delegado foi didático: “O movimento neonazista, quando ele iniciou, a partir de 1930, ele precisava ser representado por símbolo, um lado esotérico, (...) O que é que aquelas pessoas que circundavam Hitler decidiram? Decidiram que buscariam um símbolo que trouxesse confusão e trouxesse harmonia para o povo alemão. Então o que é que eles pegaram? Pegaram o símbolo budista de paz, amor e fraternidade e inverteram ele”.

Tudo errado. O nazismo (nada a ver com “neo”) bem como a suástica surgiram em 1920, e ela não chegou à Alemanha pelo caminho da cultura indiana. Até sua apropriação pelo Partido Nacional Socialista, tinha vários significados, inclusive o de trazer sorte. Para Hitler, tratava-se de um símbolo do arianismo e da pureza racial.

Sejam quais forem as circunstâncias do episódio, quando aparece uma pessoa com uma suástica na barriga e um delegado como o doutor Jardim diz o que ele disse, algo de muito ruim está acontecendo.

Paris, 8 de junho de 1942
Hélène Berr tinha um diário. Tinha 21 anos, era judia e rica. Passava os dias na Sorbonne estudando literatura inglesa, tocava violino e estava apaixonada, de bem com a vida. Ela escreveu:

“Hoje é o primeiro dia em que me sinto num feriado. O tempo está glorioso e a chuva de ontem trouxe ar fresco. Os pássaros estão cantando. É também o primeiro dia em que vou usar a estrela amarela. Esses são os dois lados da vida de hoje: juventude, beleza e ar puro, tudo numa só linda manhã: a barbaridade e o mal, representados nesta estrela amarela.”

Enquanto Anne Frank escreveu seu diário no sótão de Amsterdã onde vivia escondida com a família, Hélène vivia o ocaso da paz dos judeus franceses. Deportada para a Alemanha, três meses antes da libertação de Paris, ela morreu em 1945 no campo de concentração de Bergen-Belsen, pouco antes da chegada das tropas inglesas.

Quem marcou a barriga da jovem gaúcha inverteu o traço da suástica, mas sabia o que estava fazendo.

Caos jurídico
Juízes e procuradores estragaram o equilíbrio da eleição, comprometeram a neutralidade dos poderes constituídos e afetaram a qualidade de suas próprias posturas.

O juiz Sergio Moro liberou um pedaço desconexo e inconclusivo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci, atual hóspede da Federal de Curitiba. Fez isso seis dias antes da eleição.

O juiz Marcelo Bretas, a quem se deve o encarceramento de Sérgio Cabral, felicitou publicamente os dois senadores eleitos pelo Rio de Janeiro.

Já o Ministério Público Federal de Brasília soltou a informação de que o economista Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” de Jair Bolsonaro, está sendo investigado porque encontraram-se “indícios relevantes” de malfeitos nas suas transações financeiras com fundos de pensão estatais. Fez isso dias antes do segundo turno da eleição.

Moro e o MP de Brasília não precisavam permitir que suas ações fossem confundidas com o calendário eleitoral. Bretas não precisava botar suas preferências eleitorais na vitrine.

Os doutores atiraram para todos os lados. Falta de sorte para quem os paga acreditando que são servidores neutros ou, pelo menos, discretos.

Já o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, diz que a deposição de João Goulart, em 1964, não foi “golpe” nem “revolução”, mas “movimento”. Faltou encaixar o “movimento” no Ato Institucional nº 5, que suspendeu o habeas corpus e fechou o Congresso.

As palavras de Toffoli ofendem a memória de Francisco Campos, um tremendo jurista, encantado por ditaduras. Foi ele quem construiu o conceito de “revolução” ao redigir o preâmbulo do Ato Institucional de abril de 1964. Campos não se incomodaria com o descarte da palavra que usou. Como zelava pelo vernáculo e pelo direito, sofreria ao saber que um regime teria virado um “movimento”.

Recordar é viver
Quem estudou o maremoto da eleição acha que sua origem está nas manifestações de 2013, quando milhões de pessoas tomaram as ruas para reclamar de tudo.

Em abril já havia acontecido protestos contra os aumentos de tarifas de transportes em Porto Alegre e Goiás. Nas noites de 6 e 7 de junho, a PM paulista transformou o centro da cidade numa praça de guerra.

Na noite do dia 10, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad estavam em Paris, participando de um evento. À noite, num jantar, fizeram uma dupla interpartidária e cantaram “Trem das Onze”.

Abin
Está passando em branco na campanha presidencial o tema do fortalecimento da Abin. A Agência Brasileira de Inteligência seria um órgão capacitado a informar ao presidente da República quem são os colaboradores que pretende levar para o governo.

Como a Abin sucedeu ao falecido Serviço Nacional de Informações, herdou a urucubaca do ancestral. A documentação conhecida do SNI permite dizer que ele funcionava como guarda pretoriana, metia-se onde não devia e tinha uma competência pra lá de discutível. Hoje a Abin tem servidores concursados e deve ser capaz de informar que um gatuno, gatuno é.

Olhando-se para os prontuários de muitas autoridades nomeadas nas últimas décadas, percebe-se que os presidentes ignoram fatos básicos, como se não soubessem que a avenida Atlântica é paralela à Nossa Senhora de Copacabana.

Utilizando-se o filtro consultivo da Abin, fica registrado que ela mostrou o que havia de podre na biografia do escolhido e retira-se de quem nomeia o álibi do “eu não sabia”.