Eleições

Ricardo Noblat: PT vira-casaca

Salve a delação premiada

O que dizia o PT quando um dos seus membros ou parceiros era preso por suspeita de corrupção e poderia delatar?

Que a prisão fora feita justamente para isso – para que delatasse, comprometendo o partido. E que por isso era absurda.

Quando a delação se consumava, o PT dizia que era mentirosa, que fora negociada em troca de menos tempo na cadeia.

A considerar-se que Fernando Haddad, pelo menos até o domingo dia 28, fala pelo partido, o PT mudou de ideia.

Sobre a suspeita de que empresários financiaram campanha via WhatsApp para favorecer Jair Bolsonaro, ensinou Haddad

– Se você prender um empresário desses, ele vai fazer delação premiada. Basta prender um que vai ter delação premiada e vão entregar a quadrilha toda.

Alô! Alô! Mudou Haddad ou mudou o PT? Mudaram os dois? E não explicarão por que mudaram? Ainda dá tempo.

Prisão só é admissível depois que se investiga, recolhem-se provas mínimas e se monta uma base que a justifique.

E não se faz isso às pressas. Há ritos a serem respeitados. Prazos que não se pode atropelar. Todo cuidado é pouco.

De todo modo, é bom saber que o PT avançou e já não desqualifica mais as prisões que possam resultar na confissão de crimes.


Demétrio Magnoli: É fácil propor espelhismo entre Bolsonaro e Haddad, mas seria à base de sofismas

Um leitor solicita que eu produza a "carta que Bolsonaro não escreverá", como complemento da "carta que Haddad não escreverá" (Folha, 13/10). Fazê-lo, porém, seria sugerir uma simetria que não existe.

Há simetria se uma figura no plano pode ser dividida em partes de tal modo que elas coincidam exatamente, quando sobrepostas. A simetria perfeita é uma construção matemática. Na biologia, na arquitetura e na arte registram-se simetrias quase perfeitas. Em política, existem simetrias estruturais, mas não simetrias formais.

Exemplo clássico: os totalitarismos nazista e stalinista, tal como descritos por Hanna Arendt. Mesmo se seus regimes exibiram formas muito distintas, Hitler e Stalin seriam capazes de reconhecer, um no outro, as suas próprias imagens. Isso não acontece com os dois candidatos presidenciais restantes.

Nas simetrias axiais, o eixo de simetria separa a figura em metades espelhadas. É fácil propor espelhismos políticos entre Bolsonaro e Haddad. O empreendimento, contudo, sustenta-se à base de sofismas.

A linguagem da violência é um traço comum ao PT e a Bolsonaro. Mas eles procedem de modo assimétrico. Os alvos do PT que insulta ("fascista”, “racista") ou tenta excluir alguém do debate público ("inimigo do povo") são adversários políticos definidos. Já os alvos de Bolsonaro são, além de adversários singulares, grupos sociais inteiros: mulheres, gays, quilombolas. (Nota: o descarrego de Marilena Chaui, "eu odeio a classe média", não é regra, mas exceção).

A violência, ela mesma, também aproxima os antagonistas. Mas não há simetria. O PT habituou-se a praticar violência simbólica, via militantes que irrompem aos berros em debates políticos e eventos acadêmicos ou se organizam em “atos de repúdio” contra figuras públicas. Já os “camisas amarelas” bolsonaristas inauguram, antes ainda do desfecho eleitoral, a prática da violência física contra pessoas comuns que expressam opiniões divergentes. (Nota: o atentado sofrido por Bolsonaro partiu de um indivíduo desequilibrado, não de uma turba militante).

Tanto o PT como Bolsonaro devem ser reprovados no teste do repúdio a regimes ditatoriais. O PT brada contra ditaduras “de direita”, mas acalenta as “de esquerda”; Bolsonaro faz o contrário.

Também aí, inexiste simetria. O apoio do PT às ditaduras cubana e venezuelana exprime-se genericamente. A nostalgia de Bolsonaro pela ditadura militar brasileira inclui o elogio da tortura e a celebração de torturadores. O silêncio de Haddad diante da morte de Fernando Albán, um opositor sob custódia da polícia política de Maduro, num caso similar ao de Vladimir Herzog, não equivale às homenagens de Bolsonaro ao coronel Brilhante Ustra. As duas posturas são repulsivas, mas assimétricas.

A prova decisiva de que a simetria é falsa encontra-se na história. O PT é fruto da transição da ditadura para a democracia. O partido, principal máquina eleitoral e parlamentar do Brasil, só pode existir no ambiente de liberdades oferecido pelo regime democrático.

Nos seus longos anos poder, apesar de uma certa retórica voltada para dentro, o lulismo respeitou a regra do jogo —inclusive quando seus dirigentes foram condenados e encarcerados. Já Bolsonaro é fruto de uma crise da democracia: o movimento pela “intervenção militar” que acompanhou, como sombra agourenta, o processo do impeachment. A seleção de seu vice e de um círculo de conselheiros militares arromba a porta que separava a política dos quartéis.

Mesmo nas circunstâncias atuais, Haddad não assinará uma crítica dos erros de política econômica, dos crimes de corrupção e das taras ideológicas do PT pois é prisioneiro do lulismo. Se corresse riscos eleitorais, Bolsonaro assinaria um termo falso de imorredouro amor pela democracia pois não está preso a nenhuma estrutura política estável.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


João Domingos: Capacidade de governar

A governabilidade depende de credibilidade, diálogo, base forte no Congresso

Em uma eleição nada parecida com as anteriores, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) já falaram mal um do outro até não ter mais jeito. Buscam se mostrar como opostos. E são. Até na forma de divulgar o programa de governo. Bolsonaro libera o dele a conta-gotas, o que é uma prática bastante comum na política de todo o mundo, pois torna possível medir a aceitação ou rejeição de determinada proposta. Haddad apresentou um programa completo, um catatau que aos poucos vai sendo modificado para se adaptar ao pensamento do próprio candidato, visto que o primeiro fora pensado para a eventual candidatura do ex-presidente Lula, como a convocação de uma Assembleia Constituinte.

Como essa é uma eleição carregada de novidades e atipicidades, o brasileiro não deverá ver um debate entre os dois finalistas ao Palácio do Planalto. Pelas redes sociais e pela propaganda no rádio e na TV, os mais de 140 milhões de eleitores tentam entender o que um e outro pensam a respeito de temas que dizem respeito ao cotidiano do cidadão, a exemplo do combate ao desemprego, da melhoria dos serviços públicos de saúde, transporte, segurança, educação e também em relação ao futuro do País. Vamos para a frente ou vamos para trás?

O futuro do País. Essa é uma questão muito importante. Um deles, Bolsonaro ou Haddad, será eleito daqui a oito dias. Terá o escolhido pelas urnas, e essa é a decisão que vale, independentemente de tendências ideológicas, competência para governar o País, pacificar a sociedade? Ou se sentará na cadeira de presidente, no Palácio do Planalto, por um gosto pessoal ou para cumprir uma tarefa partidária?

Eleito em 1989 com uma votação expressiva, Fernando Collor mostrava tanta confiança que, um dia depois da posse, baixou uma medida provisória que confiscou todos os ativos financeiros dos cidadãos que o haviam elegido presidente, o chamado confisco da poupança. Foi uma medida tão drástica e traumática que em 2001 o Congresso aprovou uma emenda constitucional proibindo o presidente da República de editar medida provisória “que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro”. Collor assumiu o mandato em 15 de março de 1990. Em 2 de outubro de 1992, sem nenhum apoio no Congresso, e com o processo de impeachment contra ele já instaurado no Senado, foi afastado da Presidência. Em seu lugar assumiu Itamar Franco, que fez um governo de pacificação e salvação nacional.

A construção da governabilidade depende de vários fatores. Um deles é básico: a capacidade que o eleito tem para montar uma equipe de credibilidade, ter o comando sobre ela, mas não centralizar tudo em torno de si, uma base forte no Congresso, diálogo com os outros poderes e com os diversos setores da sociedade. Lula, por exemplo, conseguiu montar uma equipe forte e variada. Ante a desconfiança do mercado buscou no PSDB, com o qual havia disputado o segundo turno da eleição, o seu presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que construíra a carreira no BankBoston. Seu ministro da Fazenda foi o médico Antonio Palocci, que durante a campanha tivera uma aproximação muito forte com o mercado e com os empresários.

Já Dilma Rousseff foi apresentada como a gestora das gestoras. Sua gestão, no entanto, foi um fracasso. Ela não tinha jogo de cintura para negociar com o Congresso, não gostava de se reunir com os políticos, centralizava tudo e provocava tanto medo físico em alguns de seus ministros que vários preferiam ficar longe do Palácio do Planalto. Como Collor, Dilma sofreu um processo de impeachment e teve o mandato cassado. Talvez a marca maior dela tenha sido a mudança que impôs ao substantivo comum de dois gêneros presidente, trocando-o por presidenta.


El País: Nem Bolsonaro nem Haddad: eleitores optam por votar nulo no segundo turno

De um lado, a leitura de um futuro nebuloso, de outro, a de um passado de erros. Entre direita e esquerda, uma massa de eleitores que se recusam a votar nos dois candidatos

Por Beá Lima

Bruno Santos* tem 21 anos e não vai escolher um candidato a presidente no próximo dia 28. Em sua opinião, há um acirramento na disputa destas eleições, mas as urnas são apenas um reflexo das ruas, que já vêm sendo palco de atos de intolerância contra as minorias há tempos. “Para mim, votar nesse segundo turno significa alimentar uma narrativa cheia de dicotomias heroicas, esquerda contra a direita, o bom contra o mau candidato. Seja quem vença as eleições, o cenário não muda. Todos os candidatos estão se aproveitando do medo”, explica o paulistano.

À direita estão os eleitores de Bolsonaro, candidato à frente na corrida eleitoral, com propostas pouco específicas e um discurso conservador. O capitão da reserva aposta em uma estratégia de campanha polêmica e “antissistema” que alerta para o perigo de uma suposta ditadura socialista, ou de o Brasil virar a Venezuela, caso a oposição vença as eleições. À esquerda, os de Haddad, candidato substituto do ex-presidente Lula nas eleições presidenciais, com propostas de reavivar o projeto do PT, e que baseia sua mensagem na ideia de que sua eleição significa a defesa da democracia em oposição à volta do autoritarismo, representado por Bolsonaro, um admirador da ditadura militar.

“Ficou no ar essa de votar contra o fascismo ou votar contra o comunismo e nenhum dos dois representa isso, na minha visão", afirma Fernando Teló, 29 anos, morador de Maringá (Paraná), zona eleitoral em que 60,1% dos votantes escolheu Bolsonaro no primeiro turno. O jovem se refere ao cenário político partidário do segundo turno como um “Grenal Eleitoral”, em referência ao clássico entre os times Grêmio e Internacional, e confessa que tem evitado falar de política. "Me sinto obrigado a pisar em ovos nesse assunto, ficou tudo mais delicado e as pessoas ficaram imprevisíveis. Evito ainda mais s quando se trata do Bolsonaro, pois tem número maior de eleitores dele aqui”.

Jennifer Ferreira* mora na periferia de São Paulo e também tem sentido receio em relação aos apoiadores do Bolsonaro.“Eu tive que bloquear um cara que nem me conhecia e veio me perseguir no Facebook porque eu tinha repudiado em um comentário as agressões sofridas pela MC Banana [que é transexual]. É uma loucura, parece que estamos voltando à ditadura". Mas, apesar de a jovem de 23 anos temer a eleição de Bolsonaro, ela não acredita que mais um governo do PT seja a saída. Durante a gestão Haddad, ela morou embaixo do Viaduto Alcântara Machado e relata que lutou contra pelo menos três tentativas de remoção de sua casa. “Eu não votei no primeiro e não tô com nenhuma vontade de ir votar no segundo. Morei na rua e sei que os de baixo sempre sofrem.”

A descrença na política inclusiva do PT também está presente na justificativa de Bruno que não vê nas propostas de Haddad uma realidade possível para seu cotidiano que, segundo ele, é marcado pela precariedade dos subempregos e privatização do ensino superior. "O Haddad enche a boca pra falar do FIES e se esquece das pessoas que se endividaram por não conseguir arcar com os custos do ensino privado", conta o jovem, referindo-se ao programa de crédito estudantil que é uma das vitrines da gestão Haddad no Ministério da Educação. Há três anos ele tenta ingressar numa universidade pública.

Juntos, os três jovens representam o sentimento de uma parte dos brasileiros nestas eleições de 2018, em que 30 milhões de eleitores não compareceram às urnas no primeiro turno, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O nível de abstenção, de 20,3%, é o mais alto desde as eleições de 1998, quando 21,5% do eleitorado não votou, apesar de o voto ser obrigatório. Há 12 anos, o índice de abstenção tem sido crescente. Em 2006, 16,8% da população não compareceu às eleições presidenciais. Em 2010, o índice foi de 18,1%. Em 2014 chegou a 19,4% e agora passou para 20,3%, segundo o TSE. Apesar do aumento, a socióloga Fátima Pacheco Jordão acredita que esses números não sejam estatisticamente relevantes, por conta da margem de erro e de cadastros desatualizados na Justiça Eleitoral.

A militância pelo voto de misericórdia

No terreno minado das eleições, há desentendimentos por todos os lados e tem sobrado farpa até para quem não acredita que tomar partido diante da polarização seja a solução. Evânio Cézar, 25 anos, morador de Areado, Minas Gerais, está decidido a anular seu voto e, ao se posicionar entre os amigos, relata que tem sido pressionado a votar para salvar o país. O mineiro relatou que os apoiadores de Bolsonaro têm sido mais incisivos em conquistar seu voto para evitar uma possível ditadura bolivariana. “Os argumentos são de que ele realmente vai mudar o Brasil e tirar o PT da presidência”. Ele complementa dizendo que se sente intimidado a tomar um lado, mas que percebe as pessoas mais alienadas: “Às vezes me dá medo porque percebo que só estão indo na onda da internet, sem levar em conta uma boa proposta de Governo para o Brasil.”

Já Tássia Farssura (foto principal, acima) , 34 anos, paulistana que também já optou pelo voto nulo, reclama ter sido mais abordada por eleitores do Haddad, candidato em desvantagem na corrida eleitoral e que, de fato, precisa conseguir converter alguns indecisos. “Chegaram a apelar: você quer bolsa de doutorado, fazer pesquisa e vai deixar o Bolsonaro entrar?", conta a mestra em gestão de projetos de engenharia civil, que há dois anos tenta uma bolsa para sua pesquisa de doutorado.

Fátima Pacheco Jordão aponta para a manifestação dos não-votantes como um ato de descontentamento com o instrumento político partidário. “A população não consegue perceber nas lideranças políticas partidárias aquilo que elas procuram”. " Mas à medida que o dia da eleição se aproxima, parte importante do eleitorado resolve em quem vai votar. Às vezes, na última semana, quiçá, no último dia”, diz a também especialista em pesquisa de opinião. Com o cenário, ela enxerga uma forte tendência popular em reivindicar outras formas de democracia, mas pondera: “é provável que a população peça por uma maior participação num sentido plebiscitário, mas é provável que as elites irão preferir fazer uma reforma política."

*Nome fictício, usado para preservar a identidade dos entrevistados a pedido deles


Rogério Furquim Werneck: Choques de realidade

O candidato Jair Bolsonaro desfaz rumores de que passara a ser adepto do liberalismo econômico

A dez dias do segundo turno, o desfecho da eleição presidencial parece cada vez mais nítido. Grosso modo, as pesquisas eleitorais mostram que Fernando Haddad tem quase o dobro dos votos válidos de seu adversário no Nordeste, e cerca de metade dos votos de Jair Bolsonaro nas demais regiões. O que o deixa com cerca de 70% dos votos válidos de Bolsonaro no país como um todo. É improvável que, a menos de erros muito graves do candidato do PSL, diferença tão grande possa vir a ser eliminada até o dia 28.

Na campanha do primeiro turno, o PT fez o que pôde para poupar o capitão. Concentrou seus ataques nos candidatos de centro. E deixou mais do que claro que preferia ter Bolsonaro como adversário no segundo turno. Acalentava a ideia de que as forças políticas de centro não teriam alternativa a não ser lhe dar apoio no embate que seria travado contra a extrema direita.

Além de não perceber o avassalador sentimento antipetista que teria de enfrentar no segundo turno, o PT fez de tudo para exacerbá-lo ao longo do primeiro. Esticou a corda da candidatura Lula até mais não poder, obrigou Fernando Haddad a aceitar um papel grotesco, de abjeta submissão ao ex-presidente, e apostou todas as fichas numa desonesta campanha ilusionista, focada nos segmentos mais carentes e menos informados do eleitorado. Levou ao limite do possível o discurso infantilizado de que Haddad era Lula e de que sua eleição permitiria ao “povo ser feliz de novo”.

Para cumprir à risca o que lhe foi determinado, Haddad teve de insistir na cega negação dos grandes erros do PT. Para enorme irritação de eleitores com um mínimo de discernimento, agarrou-se a uma narrativa mentirosa para tentar omitir do eleitorado menos instruído a parte crucial da história: o povo só deixou de ser feliz porque Lula permitiu que Dilma Rousseff lançasse o país no colossal atoleiro em que está metido, ao cometer o desatino de alçá-la à Presidência da República. Mas, por mentirosa que tenha sido, a artimanha funcionou. Foi o que bastou para levar Haddad ao segundo turno, no bojo de uma sólida votação no Nordeste.

No entanto, o que lhe servia para o primeiro turno passou a ser estorvo no segundo. E Haddad constata, agora, que não adianta cobrir o vermelho com verde-amarelo, trocar a camiseta com Lula Livre por terno e gravata, deixar de bradar que a Justiça brasileira desobedeceu à ONU e extirpar, às pressas, as propostas mais alopradas do seu programa de governo. De tal forma se apequenou e tanto exacerbou o sentimento antipetista, que não tem mais como angariar o respeito que seria requerido para aglutinar uma coalizão mais ampla que ainda possa barrar a eleição de Bolsonaro.

Já em boa parte alheio às insanáveis dificuldades da candidatura petista, o país aperta os cintos para se preparar para o impacto da eleição de Bolsonaro. O capitão não quis correr riscos desnecessários. Achou mais prudente desfazer desde já, ainda no segundo turno, rumores de que passara a ser adepto do liberalismo econômico e da responsabilidade fiscal.

Suas manifestações recentes, sobre um leque variado de questões relacionadas à política econômica, parecem ter sido inspiradas na sua preocupação com a necessidade de tranquilizar seu eleitorado mais tradicional, deixando claro que, ao arrepio do que andam alardeando por aí, são totalmente falsas as notícias de que o candidato teria sido inoculado, de forma irreversível, com um ideário econômico liberal ou com convicções inabaláveis sobre a importância da responsabilidade fiscal.

Muito pelo contrário. As manifestações ofereceram evidência cabal de que Bolsonaro resistiu com grande sucesso ao processo sistemático de inoculação dessas ideias a que foi submetido nos últimos meses. E mostraram, de forma inequívoca, que o candidato continua aferrado às mesmas convicções sobre questões econômicas que pautaram suas quase três décadas de atuação no Congresso Nacional.

Só o incorrigível apego ao autoengano explica que, a esta altura, ainda haja quem insista em descrer dessa evidência.


Luiz Carlos Azedo: A deslegitimação do voto

“Pesquisa Datafolha sobre as eleições presidenciais mostrou que Bolsonaro tem 59% de intenções de votos válidos, um ponto percentual a mais do que na anterior, e Haddad, 41%, um ponto a menos”

A 10 dias das eleições, o PT pediu a cassação do registro da candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) e sua inelegibilidade por oito anos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo sob o suposto impulsionamento de mensagens pelo WhatSapp contra o petista Fernando Haddad, financiado por empresas privadas, às vésperas do primeiro turno, motivou o pedido. O objetivo é afastar Bolsonaro da eleição e substituí-lo pelo terceiro colocado, Ciro Gomes (PDT), para disputar o segundo turno contra o petista.

Segundo a denúncia, as empresas teriam comprado um serviço chamado “disparo em massa”, usando a base de usuários do candidato do PSL ou bases vendidas por agências de estratégia digital. Como a legislação eleitoral proíbe o financiamento de empresas privadas, o candidato poderia ter o registro eleitoral cassado por abuso de poder econômico e/ou uso de caixa dois. A campanha de Haddad também pediu a quebra dos sigilos bancário, telefônico e telemático de Bolsonaro, que teria recorrido a meios ilegais para disseminar fake news contra Haddad.

A presidente do PT, Gleisi Hoffman, comemorou: “Ontem, da Tribuna do Senado, antecipei denúncia sobre o submundo do WhatsApp. A campanha de #Haddad13 pediu investigação sobre o assunto junto à PF. Hoje, pediremos providências urgentes junto ao TSE; é operação clara de caixa dois, ilegal!”, publicou no Twitter. Militantes petistas consideram a denúncia um “fato novo” capaz de mudar os rumos da campanha de Haddad.

Surpreendido pela denúncia, Bolsonaro rebateu as acusações no Twitter, ao estilo “bateu, levou” que o caracteriza: “Apoio voluntário é algo que o PT desconhece e não aceita. Sempre fizeram política comprando consciências. Um dos ex-filiados de seu partido de apoio, o PSol, tentou nos assassinar. Somos a ameaça aos maiores corruptos da história do Brasil. Juntos resgataremos nosso país!”. O presidente do PSL, Gustavo Bebianno, também refutou as acusações: “Não faz parte de nossa política. Nunca fizemos qualquer tipo de impulsionamento. Nossa campanha é orgânica. Voluntários do Brasil inteiro”.

Pesquisa
Ontem, o resultado da pesquisa Datafolha sobre as eleições presidenciais mostrou que Bolsonaro tem 59% de intenções de votos válidos, um ponto percentual a mais do que na pesquisa anterior, e Haddad, 41%, um ponto a menos. Essa oscilação dentro da margem de erro mostra uma disputa congelada. O dado mais relevante da pesquisa, porém, é a rejeição: enquanto 41% dos pesquisados dizem que não votariam em Bolsonaro de jeito nenhum, esse percentual sobe para 54% em relação a Haddad.

No horário eleitoral de rádio e tevê, a estratégia de Haddad foi elevar o tom dos ataques a Bolsonaro, vinculando sua imagem à tortura de presos políticos e ao regime militar, com base em declarações antigas do candidato e depoimentos de ex-presos políticos. Em contrapartida, Bolsonaro vincula a imagem de Haddad ao fracasso do governo Dilma Rousseff e aos regimes de Maduro e Fidel Castro. A propaganda dos dois candidatos, além de radicalizar ainda mais a campanha, estimula a rejeição e deixa em segundo plano a discussão de propostas. A propósito, depois de examinados por seus médicos, Bolsonaro anunciou que não vai participar de debates na tevê por causa das suas condições de saúde.

O cenário eleitoral está se consolidando. A mesma pesquisa Datafolha mostra que 95% dos eleitores de Bolsonaro estão plenamente decididos a votar no candidato, somente 5% ainda admitem mudar o voto. No caso de Haddad, o percentual de votos consolidados é de 89%, com 10% de eleitores admitindo eventualmente mudar o voto. Considerando-se os votos totais, 10% dos eleitores pretendem votar nulo ou branco e 5% não sabem ou não responderam. Mesmo que esses eleitores decidam votar num dos candidatos, isso não alteraria a disputa. Para vencer, Haddad precisaria conquistar votos que hoje já são de Bolsonaro.

Nesse contexto, o pedido de impugnação da candidatura de Bolsonaro funciona como um ato de repercussão de Haddad, com objetivo de deslegitimar a eventual vitória do adversário. Bolsonaro também não admite sua eventual derrota, com o argumento de que isso somente seria possível mediante fraude nas urnas eletrônicas. Ou seja, ambos sinalizam que não pretendem aceitar o resultado das urnas, se lhes for desfavorável, o que é uma evidente tentativa de deslegitimar os votos dos eleitores e não reconhecer a autoridade do futuro presidente eleito, quem quer que seja.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-deslegitimacao-do-voto/

 


Bernardo Mello Franco: O duelo das más companhias

Paes e Witzel foram ao debate com o mesmo objetivo: mostrar que o outro andava em más companhias. O duelo poderia terminar empatado, porque os dois tinham razão

Eduardo Paes e Wilson Witzel chegaram ao debate de ontem com o mesmo objetivo. Um queria mostrar que o outro andava em más companhias. O duelo poderia terminar empatado, porque os dois tinham razão.

Witzel lembrou que Paes era unha e carne com Sérgio Cabral, condenado a penas que somam mais de 183 anos de prisão. Chegou a participar do jantar que terminou na animada farra dos guardanapos, em Paris. “Você é o candidato do Cabral. O Cabral tá pedindo voto pra você na penitenciária”, provocou o ex-juiz.

Paes lembrou que Witzel compete pelo PSC, o partido do Pastor Everaldo. Pau-mandado de Eduardo Cunha, ele também foi acusado de receber propina para tabelar com Aécio Neves nos debates de 2014. “Traz o Pastor Everaldo para um evento”, desafiou o ex-prefeito.

Em outro round, Witzel cobrou Paes pela condenação de Alexandre Pinto, seu ex-secretário de Obras. Na semana passada, ele foi sentenciado a 23 anos de prisão por embolsar dinheiro de empreiteiras.

O ex-prefeito questionou o rival pela proximidade com Mário Peixoto, um dos maiores fornecedores do estado na era Cabral. O empresário foi acusado de pagar um mensalão de R$ 200 mil a conselheiros do TCE.

Os candidatos também trocaram farpas ao falar de alianças. Witzel lembrou que Paes é apoiado por Luiz Fernando Pezão, o impopular governador do estado. Paes disse que Witzel é o preferido de Marcelo Crivella, o detestado prefeito da capital.

Na hora de se defender, os dois candidatos foram pouco convincentes. “Eu tive que conviver com um monte de gente esquisita, infelizmente. Na política, você convive com pessoas assim”, enrolou Paes. “Eu tô sabendo agora que o Crivella tá me apoiando. Não tava sabendo”, desconversou Witzel.

O ex-juiz também se fez de distraído quando Paes criticou sua presença no comício em que dois bolsonaristas quebraram a placa que homenageava a vereadora Marielle Franco. “Eu não tinha conhecimento de que a placa estaria lá”, embromou. Pode ser, mas as imagens deixam claro que ele não se constrangeu nem um pouco com a selvageria.


Maria Cristina Fernandes: Uma resistência que vagueia sem retrovisor

Toalha dos Ferreira Gomes respingou em JK e Lacerda

A desistência do PT em formar uma frente democrática é o reconhecimento, tardio, de que não há líderes a mover o eleitor. Sua necessidade, porém deriva menos da busca de votos do que na reafirmação de resistência à ordem que está por vir. As dificuldades em formá-la sinalizam os percalços políticos futuros de lideranças que vagueiam sem retrovisor.

Os irmãos Ferreira Gomes parecem decididos a disputar com o PT a hegemonia da esquerda. Mas a toalha arremessada respingou nos túmulos de Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek e se depositou sobre os escombros do PSDB.

O líder udenista apoiou o golpe de 1964 na expectativa de que a ordem democrática seria restabelecida no ano seguinte com a manutenção das eleições diretas para presidente da República. O líder do PSD, Juscelino Kubitschek, não apoiou a quartelada, mas tinha expectativas semelhantes e seguiu a orientação partidária na votação do colégio eleitoral que empossou o marechal Castelo Branco no cargo.

JK liderava a disputa presidencial. Foi cassado em junho de 1964, dois meses depois da eleição do marechal. Lacerda vinha em segundo na disputa e aplaudiu a cassação antes de assistir ao cancelamento das eleições de 1965. Articulou com um Juscelino no exílio uma frente de oposição, mas acabou preso com o AI-5.

Cid Gomes não para de se retratar e seu irmão ainda pode desembarcar num palanque eletrônico destinado a evitar a vitória de Jair Bolsonaro. Mas dificilmente reverterá o estrago provocado na campanha de Fernando Haddad pelo vídeo em que o irmão de Ciro Gomes dá como certa a derrota petista. São adeptos de primeira hora do #EleNão, mas custarão a desfazer a percepção de que já deram início à disputa por 2022.

A mesma lógica guiou o PSDB em 2016 ao encabeçar o impeachment de Dilma Rousseff. Os tucanos deram 2018 por garantido, enquanto os instintos de ódio represados foram atraídos por Bolsonaro e cevados na longa noite do governo Michel Temer. A maioria que apoiou a derrubada da ex-presidente recebeu, em retribuição, um governo que aprofundou o desencanto e fez do PSDB um sócio do PT na ascensão do bolsonarismo.

Parece exagero imaginar que 2022 pode perder seu lugar cativo no calendário eleitoral, uma vez que Jair Bolsonaro, se vier a se tornar presidente, não o será por golpe mas pelo voto da maioria. Desde a Alemanha de 1932, porém, sabe-se que governo eleito não é garantia contra tragédias.

À medida em que crescem as chances de vitória do candidato do PSL melhor se conhecem os planos de seu governo. O aumento no número de ministros do Supremo e o desprezo da lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República, por exemplo, para ficar apenas naquelas propostas que foram diretamente verbalizadas por Bolsonaro, rimam com o esfacelamento das instituições.

Enfrentará resistências mas também uma grande capacidade de adaptação, como mostrou ontem a decisão do Tribunal de Justiça que reverteu sentença contra o espólio do coronel Alberto Ustra, condenado a indenizar a família do jornalista Luiz Merlino torturado e morto no Doi-Codi.

O congestionamento no mercado da mediação não é garantia de que esta funcionará. Ficou mais difícil contar com o Supremo para distinguir os passos que um eventual governo Bolsonaro vier a dar para além da Constituição desde que o presidente da Corte apressou-se em renomear de "movimento" o último regime de exceção.

É na condição de candidato a mediador que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso resiste ao que chamou de assédio moral de amigos diletos e de pelo menos dois de seus ex-ministros da Justiça, signatários de manifestos pela democracia. Depois de Manuel Castells, ontem foi a vez de Roberto Schwarz. Por Claudio Leal, da Bravo, o crítico mandou o recado: "Pensando em amigos da vida inteira, eu diria que neste momento a neutralidade entre Haddad e Bolsonaro é um erro histórico de grandes proporções".

Uma vez ameaçado de fuzilamento pelo capitão candidato, o ex-presidente segue incólume ao patrulhamento na toada de pode vir a cumprir um papel igualmente histórico, mas inexistem garantias de que haverá o que mediar. Os descaminhos da frente democrática indicam que a oposição pode vir a lhe dar menos trabalho do que a difusa aliança que o apoia.

O candidato da maioria fez carreira no confronto e terá que contemplar um eleitor que quer menos corrupção e mais segurança com os interesses difusos que cada vez mais o cercam. Não há 46 milhões de eleitores autoritários no Brasil. Votar como anti-petista não transforma o eleitor em inimigo da democracia. Derrotar o PT não bastará, tampouco, para manter o apoio de seu eleitorado.

Um Jair Bolsonaro presidente terá que mostrar resultados na economia que dependem de um Congresso, em grande parte, ainda, nas mãos da Lava-Jato, grande esteio de sua candidatura. Terá que lidar com generais que se arvoram a reescrever a história e ameaçam o licenciamento ambiental, financistas que pretendem concentrar poderes na licitação de obras e economistas que planejam impor ajuste fiscal por decreto. Com seu elevado poder de síntese, seu vice um dia explicou que o caminho mais curto para sair de um enrosco desses é o autogolpe.

Steve Bannon
O pedido do PT para que a Polícia Federal investigue a atuação de Steve Bannon na fábrica de disseminação de notícias falsas no Brasil aconteceu dois meses e meio depois do primeiro encontro público entre o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ex-estrategista do presidente americano Donald Trump.

Blindados
Desembarcaram no Porto de Paranaguá, no Paraná, esta semana 96 blindados vindos dos Estados Unidos. São veículos usados no transporte de tropas. Muitas das unidades semelhantes que chegaram ao Brasil, ao longo dos últimos anos, por doação americana, foram destinadas à ocupação de favelas do Rio.


Bruno Boghossian: Centrão faz fila para o bote salva-vidas de Bolsonaro

Valdemar, Kassab e companhia preparam entrada na base aliada do presidenciável

No grande naufrágio partidário de 2018, os primeiros da fila para o bote salva-vidas são Roberto Jefferson, Pastor Everaldo, Valdemar Costa Neto e Gilberto Kassab. Os caciques do centrão, que sustentaram governos de todas as cores, decidiram se alinhar a Jair Bolsonaro (PSL) em busca de sobrevivência.

O PSD não é de esquerda, nem de direita, nem de centro (como definiu Kassab ao criar a legenda), mas já está afinado com o radicalismo de Bolsonaro. O fundador da sigla disse nesta quarta (17) que, se o candidato do PSL for eleito, “evidentemente” apoiará seu governo no Congresso.

A condição é que as pautas tenham convergência com as crenças do PSD, mas a adaptação não será muito difícil. Kassab foi ministro de Dilma Rousseff, pediu demissão para apoiar o impeachment e, em menos de um mês, pegou as chaves de outro ministério com Michel Temer.

O PR não quis apoiar Bolsonaro no primeiro turno, mas agora planeja um consórcio com o presidenciável. Caso sua eleição se confirme, o partido de Valdemar estará na base governista e lançará ao comando da Câmara o deputado Capitão Augusto, um policial que diz que o regime militar não foi uma ditadura.

“Houve alternância no poder, o Congresso manteve-se aberto, o Judiciário manteve-se aberto e até a imprensa tinha liberdade”, disse, em 2015. Quatro mentiras, se considerarmos que a ditadura aposentou ministros do STF e tutelou o tribunal.

O time pró-Bolsonaro tem ainda a companhia do PTB de Roberto Jefferson, do PSC do Pastor Everaldo e de outros partidos que acreditam farejar vitória no campo do PSL.

A corrida atrás de um candidato que se beneficiou do derretimento da política soa como ironia, mas não surpreende. Se for eleito, Bolsonaro precisará dessas siglas para aprovar uma pauta especialmente amarga de equilíbrio das contas públicas.

Embora o candidato prometa não distribuir cargos, tudo parece negociável. Há dois dias, Bolsonaro pediu à bancada ruralista uma indicação para o Ministério da Agricultura.


Zeina Latif: De quem será a fatura?

A renovação política no Congresso Nacional poderá atrasar o ajuste fiscal

Nos últimos anos, muitos governadores evitaram o necessário ajuste das contas públicas, devido ao calendário eleitoral. Para alguns o cálculo deu errado e a resposta veio das urnas. É o caso de Minas Gerais, que nem sequer consegue pagar pontualmente a folha do funcionalismo, e tem o atual governador fora da disputa do segundo turno. Do outro lado, não parece coincidência que governadores que tiveram gestão mais responsável foram premiados com a reeleição já no primeiro turno, como Camilo Santana (PT), do Ceará, e Renan Filho (PMDB), de Alagoas. O mesmo poderia ter ocorrido no Espírito Santo, não fosse a desistência de Paulo Hartung (PMDB) de disputar a reeleição.

A situação financeira dos Estados é grave. Muitos não estão cumprindo o limite legal de comprometer até 60% da receita corrente líquida com a folha na soma dos três Poderes, quando se inclui os gastos com terceirizados e o imposto de renda sobre a folha. Informações preliminares apontam que o número de Estados nessa situação aumentou sensivelmente em 2017.

Se os números falam alto, a realidade grita. É visível o colapso dos serviços públicos, com muitos Estados enfrentando dificuldades para prover serviços básicos e honrar compromissos.

Há Estados em situação crítica, como o Rio de Janeiro, que está em regime de recuperação fiscal, suspendendo o pagamento da dívida ao Tesouro em troca de medidas de ajuste fiscal. O governador Pezão conseguiu algumas vitórias, mas luta praticamente sozinho. Exemplo disso foi a decisão do Legislativo de aprovar um aumento para servidores do Judiciário.

O Rio Grande do Sul está na fila de um acordo com a União e Minas Gerais poderá entrar, sendo que ambos conseguiram liminares no STF para suspender o pagamento da dívida ao Tesouro. Contratos foram rasgados.

A principal medida de ajuste dos Estados terá de vir do governo federal, que é a reforma da Previdência. Afinal, em torno de 40% do gasto com a folha decorre de pensões e aposentadorias. O valor vai aumentar com o envelhecimento do funcionalismo, lembrando que professores e policiais contam com regras mais generosas de aposentadoria e pesam bastante nos orçamentos estaduais. O governo Temer defendeu sozinho a reforma. Os governadores se esquivaram com medo das urnas.

O outro lado da moeda é a pressão dos governadores para postergar o acerto de contas. Em 2016, muitos obtiveram liminares do STF para permitir que as dívidas com a União fossem calculadas com juros simples, e não compostos. Imaginem se o Tesouro resolvesse fazer o mesmo com os títulos da dívida pública. O nome para isso seria calote.

Não satisfeito, em abril de 2016, o STF estabeleceu um prazo de 60 dias para a União renegociar um acordo da dívida e impediu o Tesouro de impor aos Estados sanções por inadimplência. O STF desequilibrou a negociação entre as partes, com prejuízo para a União.

Para piorar, o acordo de renegociação postergando o pagamento da dívida sofreu grande revés na Câmara, que aprovou o projeto, mas retirou as chamadas contrapartidas, como o congelamento de salários, contratações e promoções, e o aumento da contribuição previdenciária.

Há ainda o imbróglio da Lei Kandir, de 1996, que isenta as exportações do ICMS, um imposto estadual. Os governos dos Estados defendem compensação de R$ 39 bilhões ante os R$ 3,9 bilhões atuais, enquanto a União contesta o cálculo. O STF determinou que o Congresso regulamente a lei até novembro deste ano. Esta é uma pauta-bomba que precisará ser contida pelo novo presidente.

A renovação política poderá atrasar o ajuste fiscal e dificultar o convencimento das bancadas estaduais no Congresso quanto à necessidade de reformas, pela inexperiência administrativa e política. Mais grave, Estados problemáticos, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, poderão ser governados por novatos.

O jogo de empurra precisa acabar, e rapidamente. O próximo presidente precisará ser o líder dessa agenda, incluindo o diálogo com o STF. Se falhar, ficará com a fatura.

* Zeina latif é economista-Chefe da XP Investimentos


Eliane Brum: Bolsonaro é uma ameaça ao planeta

O candidato de extrema direita já anunciou medidas que vão abrir a Amazônia ao desmatamento

Jair Bolsonaro, chamado nas redes sociais de “o coiso”, não é uma ameaça apenas ao Brasil, mas ao planeta. O candidato de extrema direita, que liderou o primeiro turno das eleições no Brasil, com o voto de quase 50 milhões de brasileiros, pode vencer no segundo turno, em 28 de outubro. Se ele se tornar presidente do Brasil, já avisou que pretende seguir Donald Trump e anunciar a retirada do Brasil do Acordo de Paris. Ele e seus apoiadores também já anunciaram várias medidas que abrirão a Amazônia ao desmatamento. A floresta, que já teve 20% de sua cobertura vegetal destruída, está perigosamente perto do ponto de virada. A partir dele, a maior floresta tropical do mundo se tornará uma região com vegetação esparsa e baixa biodiversidade. E o combate ao aquecimento global se tornará quase impossível.

O ultradireitista que flerta com o fascismo já anunciou que pretende fundir o ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura e que o ministro desta aberração será “definido pelo setor produtivo”. O que Bolsonaro chama de “setor produtivo” é tanto o agronegócio quanto os grileiros, criminosos que se apropriam de terras públicas na base da pistolagem. No Brasil, parte do agronegócio se confunde com a grilagem e é representado no Congresso pelo que se chama de “bancada do boi”.

Essa frente, que reúne parlamentares de diferentes partidos conservadores, tem atuado fortemente nos últimos anos para avançar sobre as áreas protegidas da Amazônia. Querem transformar terras indígenas e áreas de conservação, hoje as principais barreiras contra a devastação da floresta, em pasto para boi, latifúndio de soja e mineração. Nesta eleição, anunciaram seu apoio a Jair Bolsonaro. O Partido Social Liberal (PSL) de Bolsonaro, que deverá engordar a “bancada do boi”, passou de um para 52 deputados, tornando-se o segundo maior partido da Câmara a partir de 2019.

Bolsonaro já garantiu aos grandes fazendeiros e grileiros que vai “segurar as multas ambientais”. "Não vai ter um canalha de fiscal metendo a caneta em vocês!”, discursou em julho. “Direitos humanos é a pipoca, pô!” Também já disse que não haverá “nem um centímetro a mais para terras indígenas” e defendeu que as já demarcadas possam ser vendidas. Entusiasta da ditadura que controlou o Brasil entre 1964 e 1985, ele também já declarou que vai “colocar um ponto final no ativismo xiita ambiental”. O candidato, que exalta a tortura, afirma que “as minorias têm que se curvar à maioria” ou “simplesmente desaparecer”.

Apenas a possibilidade de ser eleito tem funcionado como uma espécie de autorização para desmatar a floresta e matar aqueles que a protegem. Vários casos de violência contra lideranças e assentamentos de camponeses ocorreram na Amazônia nesta eleição. O Brasil já é o país mais letal para defensores do meio ambiente. Com Bolsonaro, os conflitos devem explodir.

Em 8 de outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertaram que o aquecimento global não pode ultrapassar 1,5°C. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Alertaram também que só há 12 anos para reverter esse processo. Doze anos. A floresta amazônica é essencial para controlar o aquecimento global. E Bolsonaro já anunciou medidas que vão colocá-la abaixo.

Como o debate foi sequestrado no Brasil, o maior risco quase não é mencionado ou é simplesmente ignorado. Dentro do país. E também fora, onde o silêncio de governos e parlamentos da maioria dos países sobre a ameaça que assombra o Brasil é uma vergonha de dimensões globais.

Se não for por posicionamento humanitário, representado pelo risco de um defensor da ditadura, da tortura e do extermínio dos diferentes se tornar o presidente do maior país da América do Sul, que pelo menos seja por cálculo: o Brasil pode estar se tornando um país cada vez mais periférico em vários sentidos, mas a Amazônia é central no debate mais importante deste momento histórico e que atravessa todos os outros temas: o climático.

Quem acredita que a possibilidade de o Brasil ser governado por um homem declaradamente racista, misógino e homofóbico é apenas mais uma bizarrice da América Latina não compreendeu que, em tempos de aquecimento global, a ameaça alcança a sua porta.


Luiz Carlos Azedo: A agenda de Bolsonaro

“A narrativa do golpe adotada pelo PT funcionou para coesionar a legenda e atrair a esquerda tradicional, além de desgastar o governo Temer e seus aliados, mas não contra Bolsonaro”

Cabezas cortadas, um clássico do cinema novo, é uma produção hispânico-brasileira de 1970, dirigida por Glauber Rocha, cujo título faz alusão a uma estátua grega. Filmado na Espanha, foi lançado em Barcelona, quando o diretor ainda estava exilado na Europa. No filme, a ditadura de Franco e o regime militar brasileiro são tratados de forma alegórica. No rastro do sucesso de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro e O Leão de Sete Cabeças, Glauber fez um filme sobre um déspota em delírio, que morava sozinho num castelo e acreditava falar ao telefone com pessoas importantes para seu governo ou vida pessoal. No imaginário, resolve problemas civis, dá ordens, conversa sobre questões particulares.

Cenas de opressão aos índios, aos trabalhadores, aos negros e aos estudantes retratam o que teria sido a volta ao poder de Diaz II, em Eldorado. O país imaginário representa, no filme, o que seria a continuação da história contada em Terra em Transe, cujo contexto é a crise do governo Jango e golpe militar de 1964. A colonização, a escravidão e outros elementos recorrentes nos países da América Latina são trazidos de volta, como se a história estivesse voltando para trás. Ao contrário de Terra em Transe, porém, a história não tem uma sequência cronológica, é uma viagem fragmentada e incoerente ao passado, que somente ganha sentido na interpretação de cada expectador.

A estrela do filme é o espanhol Francisco Raba, que interpreta o déspota louco Diaz II, e se torna o grande destaque do filme. Todas as suas aparições na tela, da cena inicial, no castelo, aos longos momentos de delírio, são antológicas, do ponto de vista da interpretação e da direção, mas o filme acaba se descolando da realidade, mesmo se comparado às duas ditaduras da época. É uma obra de ficção. A analogia com o momento atual faz todo o sentido. Jair Bolsonaro (PSL) está sendo tratado pelos adversários como se fosse um ser delirante.

Haddad passou todo o primeiro turno ignorando Bolsonaro, seu inimigo principal era o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin. Além disso, fez tudo o que podia para confundir sua imagem com a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está preso em Curitiba. Acabou abduzido pelo carismático líder petista, herdando toda a sua rejeição e a do PT. Quem erra na escolha do adversário, geralmente, perde a eleição. Agora, corre atrás do prejuízo, para descontruir a imagem de mocinho adquirida por Bolsonaro ao longo da campanha, principalmente depois que levou a facada em Juiz de Fora. Dispensável falar que Haddad, depois de tantas visitas a Lula, se esforça para reposicionar a sua antiga imagem de “bom moço”.

Trilogia
Bolsonaro ancorou sua candidatura em pé de galo: combate à corrupção, ao tráfico de drogas e ao desperdício de recursos públicos. É uma agenda em sintonia com a opinião pública, mas na qual os governos do PT fracassaram. A retórica autoritária, conservadora, misógina e homofóbica de sua campanha, que somente agora está sendo duramente atacada por Haddad, foi precificada pelo mercado e relegada a segundo plano pela maioria da opinião pública. Toda a rejeição aos políticos e aos partidos, que provocou o tsunami eleitoral do primeiro turno, parece convergir contra Haddad e o PT no segundo turno.

Ao contrário, Bolsonaro surfa essa onda desde as mobilizações da campanha do impeachment da presidente Dilma Rousseff. A narrativa do golpe adotada pelo PT funcionou para coesionar a legenda e atrair a esquerda tradicional, além de desgastar o governo Temer e seus aliados, mas não contra Bolsonaro. Um bom exemplo é a votação de ambos no exterior. As manifestações de personalidades, líderes políticos e correspondentes estrangeiros contra Bolsonaro na mídia internacional não funcionaram junto aos brasileiros que vivem nos seus respectivos países. De igual maneira, aqui no Brasil, a dramatização da campanha eleitoral, tipo democracia ou barbárie, não está sensibilizando a maioria dos eleitores.

A agenda de Bolsonaro é de fácil compreensão para o cidadão comum: apoiar a Lava-Jato para combater a corrupção, endurecer a legislação penal para combater o tráfico de drogas e reduzir o número de ministérios para restabelecer o equilíbrio fiscal e o país voltar a crescer. O senso comum da população está de acordo com essas propostas, ainda que coloquem em risco as garantias individuais, os direitos humanos e as políticas públicas universalistas, principalmente na saúde e educação. Explicar esses riscos e mostrar alternativas melhores são a saída, mas o tempo está ficando cada vez mais curto e as pessoas, mais radicalizadas. Quem ganha com isso? Até agora, não foi o Haddad.

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