Eleições
Hamilton Garcia: Os perigos que se avizinham e o antídoto
Fala-se muito na campanha em fascismo e bolivarianismo, mas se o segundo expressa um objetivo explícito da política petista (vide “#EleNão! ou #ElesNão!”) – não obstante sua eludição tática por Haddad neste segundo turno –, o primeiro diz algo de potencial sobre o candidato mais bem cotado ou como ele pode vir a se tornar realidade a depender da marcha dos acontecimentos, se vitorioso for.
Olhando-se para a frente de direita que se formou em torno de Bolsonaro no rastro da crise do impeachment, vê-se um amálgama de convicções conservadoras cristãs e liberistas associadas ao antipetismo, ao par de um desenvolvimentismo lastreado no positivismo, ideologia basilar do Exército Brasileiro. Em condições normais de temperatura e pressão, não obstante o currículo e a vontade do Capitão, o novo governo teria, para ter sucesso, que se desenrolar dentro da normalidade democrática, e, para tal, contaria com grande respaldo social, popular e empresarial, e perspectiva de governabilidade no Congresso, não obstante a sombra neopatrimonialista da bancada do Centrão.
Ocorre, porém, que a falência do sistema político e a crise estrutural do modelo liberal-rentista de democratização, a par da elevada temperatura política bafejada pelo PT como tática de sobrevivência ao Petrolão, conspiram contra essa normalidade, junto com a falta de concatenação programática da frente bolsonarista e a perspectiva bolivariana da “resistência ao fascismo” – ambas podendo suscitar movimentos violentos na sociedade.^
Para tornar mais sombrio o quadro, enquanto na fase lulopetista foi possível “distribuir" os ganhos econômicos com a exuberância comercial do protagonismo chinês e da bolha ocidental – desperdiçando as chances de um “salto à frente”, em termos produtivos, com uma inclusão social pelo trabalho/aprendizado –, na fase bolsonarista o Brasil estará obrigado a enfrentar seus velhos e novos problemas e dificuldades, o que exigirá sacrifícios até aqui não admitidos pelos grupos dominantes – inclusive os aninhados nas altas esferas do Estado e nas corporações financeiras.
É certo, por outro lado, que algo se pode fazer na frente econômica com resultados positivos no curto-prazo para o governo – dois anos talvez –, seja simplificando os procedimentos normativos arrecadatórios, abrindo novas possibilidades de comércio com os países ricos, sustentando um câmbio de maiores possibilidades comerciais para a indústria e mesmo surfar na esperada onda da retomada econômica adiada pelo naufrágio precoce do Governo Temer. Ocorre que tal agenda, sem tocar nos problemas estruturais de longo-prazo da economia, pode propiciar apenas um fôlego, um novo vôo de galinha dentre tantos já vistos desde a recessão dos anos 1980.
No médio e longo-prazos, os gargalos estruturais tenderão a amplificar as fraturas existentes no seio da coalizão de direita, que, uma vez no governo, se transformará numa coalizão mais ampla, incluindo o liberalismo pragmático e mesmo o neopatrimonialismo, derrotado em sua dúplice aliança com o PSDB e o PT. Neste caso em especial, as perdas vitais dos segmentos neopatrimoniais, impostas pelos fatos, tenderá a afastá-los do governo na perspectiva de voltarem ao poder numa aliança com o lulopetismo que, para ser viável, teria que ser precedida de uma nova maquiagem moderadora dos “companheiros".
Bolsonaro se mantém à proa da disputa flertando com uma ruptura com o sistema – como ficou claro em seu último pronunciamento às manifestações verde-amarelo –, mas parece fadado, por suas alianças liberais e a correlação de forças no interior do aparato militar, a, por enquanto, inaugurar apenas uma ruptura com o mecanismo (neopatrimonial) – o que não é pouco, nem fácil! –, o que significaria, de fato, uma troca na direção do bloco histórico em crise, responsável pela transição democrática desde 1985, e cuja hegemonia é detida pelo capital financeiro, que conheceu, até aqui, dois formatos: o liberal-patrimonialista de Sarney&Collor e o social-patrimonialista de LILS, com um híbrido em Itamar&FHC.
A nova direção liberal-conservadora sobre o velho pacto democrático teria como objetivo pôr ordem no modelo, revertendo a bagunça deixada por Mantega&cia e, de quebra, despejando as oligarquias neopatrimoniais do poder, abrindo assim espaços para maior racionalização do Estado e ajudando a reverter as expectativas negativas sobre o país, recompondo o ambiente propício ao crescimento e à retomada do emprego.
Operar tal mudança, necessária mas não suficiente para nos recolocar na rota do desenvolvimento, além do custo político elevado, pode não surtir os efeitos esperados pela população, o que a levaria ao desencanto e consequente fortalecimento da oposição, o que poderia animar os bolsonaristas, apoiados no setor desenvolvimentista de sua coalizão, a uma tournant no sentido de um novo bloco histórico, o que exigiria um programa econômico voltado para a produção e não simplesmente para o consumo, deslocando o sistema financeiro global de seu papel atual de fiador principal de nossa estabilidade macroeconômica e política.
A hipotética viragem, a depender do contexto político em que ocorra e do álibi que o lulopetismo poderá lhe fornecer, no curto-prazo, provocaria forte inquietação nos mercados e, por consequência, abalaria a frente governativa de centro-direita, podendo levar, inclusive, à suspensão das garantias constitucionais (estado de sítio) ou até mesmo a medidas mais graves no caso da ausência de consenso no Estado de como lidar com a crise.
Paradoxalmente, a previsível resistência petista ao “fascismo" pode render bons frutos à nova política, quer em termos do isolamento das oposições na sociedade, quer do alinhamento defensivo do Estado contra a ameaça de caos que ela pode encerrar, abrindo espaços para uma uma reforma política conservadora, inclusive com mudanças constitucionais para restringir o pluralismo político e aumentar a estabilidade governamental (voto distrital puro).
No caso de não se conseguir produzir tal consenso no âmbito do Estado, o prolongamento do cenário caótico, em meio a conflitos de rua entre esquerda e direita, pode assistir ao aparecimento de milícias paramilitares em ambos os extremos, abrindo espaços para a emergência de um inédito movimento fascista no país – cujos braços armados, diga-se de passagem, já se encontram virtualmente constituídos, embora ainda não plenamente politizados.
Neste cenário sombrio (hipotético), tal como na eleição em curso, nos fará falta uma terceira via capaz de suplantar o petismo e impedir, de novo, a vitória da extrema-direita. O problema aqui é que a desorientação da centro-esquerda é ainda mais forte que as perdas parlamentares sofridas pelo PSDB, PPS e Rede, ao fim do primeiro turno das eleições, o que compromete seu protagonismo na oposição – qualquer que seja o resultado do segundo turno.
O antídoto ao perigo que se insinua está numa frente política capaz de enfrentar o virtual desafio do novo bloco histórico autoritário, de extrema-direita, colocando, à semelhança deste, o foco da inclusão na retomada da produção industrial como resposta ao esgotamento da fórmula financista, baseada em consumo e endividamento das famílias, ao mesmo tempo que procura restaurar a governabilidade e preservar a democracia por meio de uma reforma política que racionalize o sistema partidário (representação) por meio de um modelo eleitoral misto, com listas pré-ordenadas, e medidas punitivas efetivas aos partidos cujos representantes se envolvam em crimes tipificados contra o bem público.
Seja como for, é chegada a hora de se enfrentar a crise política e econômica que o oportunismo político e a incompetência intelectual,varreram, desde 1988, para debaixo do tapete.
Não está escrito nas estrelas que o bolsonarismo derivará em fascismo – isto não faz parte da nossa tradição republicana e para tal existem freios conhecidos, embora não infalíveis –, mas é certo que entre as variáveis propícias para tal está a natureza da oposição que se fará ao (provável) novo governo, e, nela, Ciro Gomes se constitui numa esperança de solução democrática. Torçamos para que ele se coloque à altura da tarefa, nesta fase delicada de nossa vida republicana.
José Hermida: Um país com licença para odiar
Uma parte importante da população votará no próximo dia 28 sob a crença de que estará evitando que o Brasil se transforme em uma Venezuela
Há um fértil campo de estudo no Brasil para psicólogos cognitivos. Uma parte importante da população votará no próximo dia 28 sob a crença de que estará evitando que seu país se transforme em uma Venezuela. Para impedir isso, esses eleitores planejam entregar o poder a um ex-militar que, em quase 30 anos de carreira política, proferiu centenas de frases de desprezo pelas normas, costumes e valores da democracia. Esse é o homem, Jair Bolsonaro, chamado para salvar o Brasil das garras bolivarianas do Partido dos Trabalhadores (PT), que governou entre 2003 e 2016, sem que ninguém percebesse que o país estava se tornando uma Venezuela.
Como tantas vezes na história, o autoritarismo avança impulsionado por uma corrente popular na qual três grupos convergem: os convencidos, os oportunistas e os indiferentes. O núcleo original de convencidos é engrossado pelos nostálgicos da ditadura militar e fiéis ao culto da violência incrustado na medula do país. Com o descontentamento social no último mandato do PT, surgiram movimentos que alimentaram, especialmente nas redes sociais, um direitismo cada vez mais radical. Depois, aliaram-se os fanáticos religiosos, em guerra contra Sodoma e Gomorra. Em apenas alguns meses, o alcance se multiplicou a milhões de pessoas enfurecidas pela corrupção generalizada, pelo desaquecimento econômico e pelo crime cotidiano, e que compraram a promessa de uma mão firme.
Os oportunistas continuam fluindo em ondas sucessivas. Depois do mundo endinheirado, agora são os políticos de centro-direita -- e alguns de centro-esquerda -- que, desde o triunfo do candidato ultradireitista no primeiro turno, estão correndo para socorrer o vencedor. O grupo dos indiferentes teve uma base de apoio mais sutil, porém decisiva. Poucas coisas favoreceram tanto o ex-capitão de paraquedistas do que o relato -- predominante, por exemplo, nos meios de comunicação -- de que dois extremos estão disputando as eleições: direita e esquerda. Oportunistas e indiferentes compartilham sua surdez diante dos discursos e atitudes de Bolsonaro. Como na campanha o candidato reprimiu suas explosões, se tranquilizam pensando que estamos diante de um fanfarrão que se acalmará quando chegar ao poder.
O candidato também pediu aos seus seguidores que parassem com os atos violentos. E parece que o ouviram. Nos dias seguintes à sua vitória no primeiro turno, várias notícias relatavam dezenas de ataques de valentões simpatizantes do ultradireitista: um eleitor do PT assassinado, insultos e espancamentos de gays e lésbicas ou uma suástica tatuada no corpo de uma garota. Aconteça o que acontecer no próximo dia 28, o sucesso de Bolsonaro já concedeu uma licença para odiar entre os brasileiros. Não será mais necessário subir no trem do horror que seus seguidores passeiam nas redes sociais e ler o que dizem sobre os negros, feministas e homossexuais.
Se Bolsonaro conquistar a presidência, há motivos para temer que alguns levem essa licença longe demais. No país em que 57 ativistas ambientais foram assassinados no ano passado, o líder de extrema direita anunciou, depois do primeiro turno, que um dos seus principais objetivos é "acabar com qualquer tipo de ativismo". Em um país onde 5.000 civis são mortos a cada ano por tiros disparados pelas forças de segurança, Bolsonaro proclama que "o policial que não mata não é policial". Esse país de quase 210 milhões de habitantes, onde em 2017 houve 445 mortes em ataques contra homossexuais, pode ter em poucos dias um presidente com licença para a homofobia. E atrás dele, uma multidão de legionários do ódio.
El País: Repúdio do STF à ameaça de filho de Bolsonaro tenta marcar limite na eleição
Ministros da maior Corte do país e representantes de magistrados se queixam de filho de presidenciável, mas presidente do STJ não vê gravidade no discurso
Ataque à democracia. Discurso golpista. Sinais de crime. Assim reagiram alguns dos ministros do Supremo Tribunal Federal à fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro(PSL-SP) em que sugeriu que a mais alta corte do país poderia ser fechada por “um soldado e um cabo”. Eduardo é filho do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e foi reeleito como o deputado mais votado do país, com 1,8 milhão de votos. O forte repúdio às declarações por parte de integrantes do Supremo e de outras personalidades, como ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, obrigaram tanto o parlamentar quanto o candidato à Presidência a se retratarem. Foi mais um episódio de idas e vindas na cúpula bolsonarista em relação a declarações autoritárias –depois de prometer "varrer do mapa bandidos vermelhos", Bolsonaro disse nesta segunda respeitar a oposição– e traz à tona o debate sobre os limites que as instituições podem impor à retórica usada por integrantes da campanha de extrema direita.
José Antônio Dias Toffoli, presidente do STF, foi um dos que cobrou respeito pela corte e pelo regime democrático após as declarações de Eduardo Bolsonaro. “Não há democracia sem um Poder Judiciário independente e autônomo. O país conta com instituições sólidas e todas as autoridades devem respeitar a Constituição. Atacar o Poder Judiciário é atacar a democracia”. Mas a reação mais forte já havia surgido antes na nota que o decano do STF, Celso de Mello, enviou ao jornal Folha de S. Paulo. Disse ele: “Essa declaração, além de inconsequente e golpista, mostra bem o tipo (irresponsável) de parlamentar cuja atuação no Congresso Nacional, mantida essa inaceitável visão autoritária, só comprometerá a integridade da ordem democrática e o respeito indeclinável que se deve ter pela supremacia da Constituição da República!!!! Votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição!”.
Já imaginou milhares de pessoas nas ruas pedindo a volta do STF ou clamando pelo retorno de um ministro do STF que sofreu um impeachment?
“Estas afirmações merecem, por parte da Procuradoria-Geral da República, imediata abertura de investigação porque, em pese se deva analisar o contexto da declaração, isso é crime da Lei de Segurança Nacional, artigo 23 inciso III, incitar a animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis. Isso é crime previsto na Lei de Segurança Nacional”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes durante um evento em São Paulo. O ministro Marco Aurélio Mello, também do STF, disse ao jornal O Estado de S. Paulo que nos deparamos com “tempos estranhos” e o conteúdo da declaração denota que “não se tem respeito pelas instituições pátrias”.
Série de desculpas
Com a repercussão negativa de sua fala, o próprio Eduardo tentou minimizá-la e pediu desculpas. “Se fui infeliz e atingi alguém, tranquilamente peço desculpas e digo que não era a minha intenção", declarou em seu perfil das redes sociais. Mais cedo, seu pai, que lidera as pesquisas eleitorais com ampla vantagem sobre Fernando Haddad (PT), disse que “se alguém falou em fechar o STF, precisa consultar um psiquiatra”. E, nesta segunda-feira, em entrevista ao SBT, Jair Bolsonaro disse que já chamou a atenção de seu herdeiro. “Eu já adverti o garoto, o meu filho, a responsabilidade é dele. Ele já se desculpou”. Também repetiu algo semelhante à TV Record e ao Jornal Nacional, da TV Globo - o candidato, que se recupera do atentado a faca, não tem sofrido com o recolhimento na campanha, já que os principais canais fazem minientrevistas exclusivas diárias com ele. Para completar, Bolsonaro ainda mandou uma nota ao decano Celso de Mello.
Essa série de pedidos de desculpas, contudo, também foi alvo de queixas entre os ministros do STF. “Não é possível que simplesmente se afirme isso e diga-se que estava brincando. Não se brinca com democracia, com o Estado de direito, com a estabilidade republicana”, reclamou Alexandre de Moraes.
Entre os representantes de classe, também houve duras reações. A Associação dos Juízes Federais afirmou que espera “dos candidatos e integrantes das campanhas, no mínimo, mais equilíbrio, serenidade e uma postura de respeito institucional. Não há caminho possível fora da democracia e da ordem constitucional”. Enquanto que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) disse que a fala reflete inconformismos momentâneos que não devem afetar o Judiciário. “O Brasil vive uma democracia plena, as instituições estão consolidadas, essas falas não têm o condão de abalar as estruturas, que são muito fortes”, afirmou a presidente em exercício da entidade, a juíza Renata Gil.
O discurso da AMB é semelhante ao da ministra do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, segundo ela, nenhum juiz se abalará pela fala de Eduardo Bolsonaro. A ministra Rosa Weber, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), disse que a magistratura se mantém firme. “No Brasil, as instituições estão funcionando normalmente. E juiz algum no país, juízes todos no Brasil [que] honram a toga, se deixa abalar por qualquer manifestação que eventualmente possa ser compreendida como conteúdo inadequado”.
A Procuradoria-Geral da República não se manifestou até a conclusão desta reportagem. Os opositores da família Bolsonaro aproveitaram as reações negativas para criticar o presidenciável. O dia também registrou raras notícias positivas para Haddad, com a declaração de apoio de Marina Silva (REDE) e com aproximações com Fernando Henrique Cardoso e Tasso Jereissati, do PSDB. Na prática, porém, apenas o partido esquerdista PSOL agiu contra Eduardo Bolsonaro. Os advogados da sigla apresentaram um pedido formal de investigação contra o deputado Eduardo pelos crimes de ameaça e atentado contra a divisão de poderes.
“A declarações são gravíssimas por si só. Fossem elas meras bravatas de um deputado federal já seriam sérias e preocupantes. Mas, colocadas no contexto da eleição presidencial e da reiteração de declarações deste jaez pelo candidato à presidência, por membros da chapa e por coordenadores de campanha, as referências do declarante ganham o contorno preocupante e supostamente criminoso de atentado ou ameaça ao estado de direito e à democracia”, disse Juliano Medeiros, presidente do PSOL, no documento que pede a investigação.
Uma das poucas autoridades que não viu gravidade na fala do parlamentar foi o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha. “Nitidamente não vi nenhuma intenção de ameaça. Estão exagerando na dimensão do que ele falou. Ele respondeu a uma pergunta: 'e se o Supremo não deixar alguém legitimamente eleito assumir?' O Supremo não faria isso”, disse à Agência Brasil após um evento no Rio de Janeiro. Antes de presidir o STJ, Noronha foi o corregedor-geral do Conselho Nacional de Justiça e decidiu, no ano passado, dar andamento aos processos disciplinares apenas contra os magistrados que se manifestaram contrários ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), mas não aos que foram favoráveis à queda dela.
Demétrio Magnoli: Missa de sétimo dia
Aqui, em agosto de 2016, escrevi o seguinte: “A Nova República apaga-se na bruma do passado —mas nenhum sistema político alternativo surgiu para substituí-la. Temer (...) é um gerente de ruínas.” Nessa, acertei: o velório da Nova República deu-se no primeiro turno das eleições. Mas errei, e feio, sobre a forma de que se revestiria o ato fúnebre: seis semanas atrás, escrevi que, “no turno final, a rejeição a Bolsonaro elege qualquer adversário”. De fato, pelo contrário, a descida do caixão até seu túmulo será acompanhada pelos acordes da vitória de Bolsonaro. Diante de nós, sobra a missa de sétimo dia: um esforço para desvendar como chegamos ao ponto de eleger o candidato que cultua o sistema anterior à Nova República —isto é, a ditadura militar.
Sem qualquer ordem hierárquica, sugiro algumas causas para o desfecho:
1) A implosão do PSDB. O sistema político da Nova República estabilizou-se ao redor da disputa entre PSDB e PT. Desde o fim do ciclo do Plano Real, os tucanos perderam a capacidade de formular uma plataforma popular — e foram batidos em quatro eleições consecutivas. O colapso terminal deu-se com a desmoralização de Aécio Neves, na “operação Joesley Batista”. Bolsonaro tornou-se o desaguadouro do voto antilulista que, antes, se inclinava para os tucanos. O PSDB, tal como o conhecemos, está morto.
2) A deslegitimação geral da elite política. Sob Lula, o “presidencialismo de coalizão” degenerou no “presidencialismo de cooptação” (apud FHC). A devassa da Lava-Jato esclareceu os mecanismos de corrupção sistêmica que envenenam o sistema político. Na sequência, uma “fase 2” da Lava-Jato, conduzida como projeto de poder corporativo por Janot e pela ala jacobina do Ministério Público, destruiu o que restava de credibilidade na prática da política. Bolsonaro encarnou, no plano imaginário, a antipolítica.
3) A pedagogia petista do “nós” contra “eles”. O lulismo converteu as disputas eleitorais em guerras de extermínio. O adversário deixou de ser um parceiro na divergência democrática para se transformar no “inimigo do povo”, no “fascista”, no quintacoluna a serviço do imperialismo. No ápice desse teorema, em 2014, Marina Silva foi pintada como agente dos banqueiros numa conspiração destinada a esvaziar o prato de comida dos pobres. Pelas mãos de Bolsonaro, o ácido corrosivo voltou-se contra o PT. A tempestade de insultos bolsonaristas, acompanhada de torrentes de fake news, encontra um eleitorado habituado à linguagem exterminista. Depois da missa, o Brasil precisará reaprender a conversar.
4) A configuração da eleição como plebiscito sobre Lula. A narrativa petista do “golpe parlamentar” e da “perseguição judicial” confluiu para a estratégia da candidatura de Lula. A máscara do ex-presidente sobre o rosto de Haddad completou o percurso, impondo aos eleitores um veredicto sobre o lulismo. Mas o lulismo nunca foi majoritário, como atestam as quatro eleições consecutivas, entre 2002 e 2014, que exigiram segundo turno. Bolsonaro aceitou, agradecido, o desafio de comprovar a existência de uma maioria disposta a rejeitar um quinto mandato lulista. O PT foi expulso do Centro-Sul do país. A tardia, confusa, tentativa do PT de girar para o centro após o primeiro turno não funcionou. Junto com os funerais da Nova República, encerra-se o ciclo lulista.
5) Bolsonaro é inculto, como Lula — mas, como Lula, não lhe falta inteligência política. Nos EUA e na Europa, a direita nacionalista identificou nas senhas da imigração e do terrorismo os pulsos eficazes para ativar um eleitorado atemorizado diante do futuro. Bolsonaro traduziu os códigos para as circunstâncias da crise brasileira, apertando as teclas da violência urbana e da corrupção. Seu discurso eleitoral explode a gramática política da Nova República. Ninguém, no centro ou na esquerda, encontrou antídotos para as toxinas bolsonaristas.
Donald Trump ou Rodrigo Duterte, o populista que preside as Filipinas à frente de esquadrões da morte? Provavelmente, nem um nem outro. Mas isso só saberemos ao certo depois da missa.
Fernando Gabeira: As prisões mentais
Bolsonaro terá de moderar retórica. E oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra
Lula está preso, meu caro. Repito a frase de Cid Gomes que ecoou na rede, suprimindo a palavra babaca. Não por correção política. A palavra iguala a estupidez à vagina. Apenas para lembrar, com humildade, como certos sentimentos estão arraigados em nossa cultura e emergem de nosso subconsciente.
A líder da direita francesa, Marine Le Pen, afirmou que algumas frases de Bolsonaro são inaceitáveis na França. Mas não o foram no Brasil.
Humildade aqui significa reconhecer que mudanças culturais levam tempo para se consumar. Não são como uma ponte destruída pela chuva que se reergue rapidamente. Nem mesmo uma nova capital que pôde ser construída no Planalto. Às vezes, atravessam gerações.
Lula está preso. É natural que o PT não aceite isso. Mas a forma de recusar foi chocar-se diretamente com a Justiça, tentar dobrá-la com manifestações, apoio externo e uma inesgotável guerra de recursos legais.
Compreendo que isso era visto como uma forma de acumulação de forças. Mas, na verdade, também acumulou rejeição.
Quando Haddad foi lançado, cresceu rapidamente exibindo a máscara de Lula. No segundo turno, a máscara envelheceu como o célebre retrato de Dorian Gray.
Mas o período que se abre agora será de tanto trabalho, que talvez não tenhamos mais tempo para nos patrulharmos. São tempos complexos, que demandam mais humildade ainda.
Num debate em São Paulo, depois do primeiro turno, confessei como o processo me surpreendeu. As pesquisas indicavam uma grande vontade de renovação. Quando os partidos se destinaram quase R$ 2 bilhões para a campanha, concluí que a renovação seria mínima.
Apesar de ter feito algumas campanhas no território digital, minha reflexão ainda se dava no quadro analógico. A renovação, cuja qualidade ainda é discutível, aconteceu. Com R$ 53 milhões, Meirelles teve menos votos do que o Cabo Daciolo, um exemplo de como os velhos parâmetros foram para o espaço.
As próprias pesquisas que tanto critiquei no passado porque achava que favoreciam Sérgio Cabral, hoje as vejo com nostalgia. Existe informação na pergunta clássica em quem você vai votar.
Mas, para detectar tendências, é preciso um oceano de dados e capacidade de análise. As pesquisas envelheceram, sem que muitos se dessem conta. Mas não apenas elas envelhecem, num mundo em que a inteligência artificial avança implacavelmente.
E é nesse mundo que teremos de navegar. A situação econômica internacional não é favorável como no passado. Nos artigos em que trato de alguns de seus aspectos, começo sempre com o paradoxo: os Estados Unidos, que lideraram uma ordem multilateral, decidiram abandoná-la. Será preciso mais do que nunca acertar os passos aqui dentro. Isso significa gastar menos, fazer reformas.
Quando estava na Rússia, os primeiros protestos contra a reforma da Previdência foram abafados pelo oba-oba da Copa do Mundo. Soube que agora a popularidade de Putin caiu 20 pontos precisamente por causa dela. Em outras palavras, a vida não é nada fácil para quem precisa reformar o Estado e fazer um ajuste fiscal.
Nesse futuro tão nebuloso que nos espera, a tese do quanto pior melhor é atraente, no entanto, pode ser também um novo erro de avaliação.
Quando ficamos muito concentrados nos problemas internos, perdemos um pouco de vista nossa inserção internacional. A imagem do Brasil lá fora mudou. O próprio Bolsonaro começará seu mandato como um dos presidentes mais rejeitados pela imprensa planetária. Ele terá de moderar sua retórica. E quem faz oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra.
A sobrevivência da democracia não está ameaçada. Mas algumas escoriações podem empurrá-la para o viés autoritário que hoje cresce no mundo.
As fake news, por exemplo, sempre existiram, mas hoje têm um peso maior, pelo alcance e velocidade. Utilizá-las sem escrúpulos e denunciá-las no adversário apenas confirma o pesadelo moderno da decadência da verdade.
É muito difícil chamar à razão a quem se considera o dono dela. Os intelectuais condenam as escolhas populares, mas, às vezes, não percebem a sede de sinceridade que há por baixo delas. Pena.
Leandro Colon: Sabe-se quem foi Bolsonaro até hoje e sobram dúvidas sobre governo
Nada indica, por ora, uma reação de Fernando Haddad (PT) capaz de impedir a vitória de Jair Bolsonaro (PSL), hoje líder folgado nas pesquisas, no domingo (28).
Confirmada a previsão, Bolsonaro pode chegar ao Planalto em 1º de janeiro de 2019 apoiado por uma significativa maioria do eleitorado. Um respaldo que qualquer líder político gostaria de ter para assumir o poder.
Daqui a uns anos, provavelmente passado o calor de uma eleição peculiar e estranha, o fenômeno “bolsonarista” de 2018 será melhor depurado. Fato é que algumas razões que devem levar o capitão reformado à chefia da República já são nítidas.
O antipetismo (ou antilulismo) tem sido essencial para esse massacre anunciado nas urnas. Sob a batuta de Lula, o PT fortaleceu o ambiente de confronto político e de busca pelo descrédito da imprensa e do processo eleitoral (sob o lema “eleição sem Lula é fraude”). Atropelou possibilidades de movimentos que poderiam levar a esquerda, não necessariamente o PT, ao poder.
As descobertas da Lava Jato nos últimos quatro anos, mesmo com seus abusos investigativos e delações irresponsáveis (muitas delas infladas por nós, jornalistas), desnortearam a centro-direita. O recado mais visível desse efeito é a humilhação imposta a Geraldo Alckmin nas urnas.
Uma esquerda rachada e sem rumo e uma centro-direita desprezada pelo eleitorado contribuíram para que um deputado com carreira política pífia e irrelevante na Câmara surgisse como alternativa de poder.
O que Bolsonaro disse até aqui não o ameaçou nas pesquisas (ao que parece, só o ajudou). Defesa do método da tortura, elogios ao regime militar, compromisso frágil com a democracia, e declarações que simpatizam com homofobia, racismo e perseguição ao ativismo social. São certezas que não atrapalharam o candidato do PSL, o maior beneficiado pela nefasta onda de fake news.
Sabe-se quem foi Bolsonaro até hoje —um parlamentar limitado e inexpressivo. Sobram dúvidas sobre seu (cada vez mais provável) governo.
*Leandro Colon, Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso
Celso Rocha de Barros: Bolsonaro representa facção das Forças Armadas que ganhou poder com a tortura
Jair Bolsonaro não representa o regime de 64. Representa sua dissidência extremista, que revoltou-se contra a abertura de Geisel. O ídolo de Bolsonaro não é o moderado Castelo Branco, que provavelmente gostaria mesmo de ter restaurado a democracia. Não é o Geisel, que matou gente, mas deu início à restauração. Não é nem, vejam só, o Médici.
O ídolo de Bolsonaro, o autor de seu livro de cabeceira (segundo ele mesmo disse no Roda Viva), a entidade a quem Bolsonaro consagrou o impeachment, é o torturador Brilhante Ustra. Com um santo protetor desses, não impressiona que Temer tenha dado o azar de receber o Joesley.
O culto a Ustra é lepra moral, mas não é só isso: é uma reivindicação de linhagem. Na convenção do PSL, Eduardo Bolsonaro comparou Ustra a Janaina Paschoal, possível candidata a vice na chapa de seu pai.
Janaina se disse chocada com a comparação, e ultra-bolsonaristas como Olavo de Carvalho pediram sua cabeça. O vice foi Mourão, que tem Ustra entre seus heróis. O discurso de Eduardo Bolsonaro foi um teste de lealdade.
Bolsonaro representa, enfim, a facção das Forças Armadas que ganhou poder quando a tortura se tornou parte importante do regime. Bolsonaro é o porão.
Leiam o Gaspari: os militares e policiais que controlavam do porão logo se tornaram bandidos comuns, que os generais temiam que instaurassem a baderna na hierarquia.
Aproveitaram-se do direito de atuar à margem da lei para ganhar dinheiro. Um célebre torturador se tornou um dos chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Outros se envolveram com esquadrões da morte, aquela turma que cobra dez para matar bandido e vinte para matar seu cunhado e mentir que ele era bandido.
Essa turma não queria voltar a ser guarda da esquina, não queria voltar a ser só capitão de Exército. Compraram briga contra a abertura de Geisel. Perderam.
Ainda houve, entretanto, tempo de Geisel reconhecer o velho inimigo de cara nova: em entrevista
ao CPDOC [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da FGV], disse que Bolsonaro era um “mau militar”.
Bolsonaro não é o anti-Lula. Bolsonaro é o anti-Geisel.
Como combater o porão? Aprendendo com quem de fato já o venceu.
No segundo turno de 1989, Ulysses Guimarães deixou claro que apoiaria Lula se recebesse um telefonema dos petistas. O telefonema não veio. Lula até hoje se arrepende disso, e afirma que foi um dos maiores erros de sua vida. Foi mesmo. Só por essa, Lula já mereceu perder.
Lembrem-se: Ulysses era muito mais conservador do que a turma que hoje posa de “centro” no Brasil. Lula em 1989 era muito, mas muito mais radical do que Haddad jamais será. Collor era uma ameaça incomparavelmente menor do que Bolsonaro à democracia.
Mas Ulysses tinha os instintos morais certos, e sabia do que devia sentir ódio e nojo.
Ulysses não era um idealista ingênuo. Se Lula vencesse, Ulysses jogaria para moderá-lo, e jogaria pesado.
Era uma raposa como poucas, não um desses Cunhazinhos one-hit wonders que só fazem sucesso por um ano.
Jogaria contra o radicalismo petista com Congresso, mídia, Judiciário, o que mais estivesse à mão.
Mas na hora em que foi preciso, Ulysses apoiou Lula. Não fugia de guerra. Desse, o porão tinha medo.
Esse, sim, é mito.
Daqui a uma semana, só haverá duas opções: votar como Ulysses, ou votar contra Ulysses.
*Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Fernando Limongi: O príncipe e a fera tosca
A vitória dos conservadores, em boa medida, é por W.O
Os conservadores derrotarão os progressistas, pois somente um erro grosseiro tiraria a vitória de Bolsonaro. Esta é a forma como Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em artigo publicado na Folha de São Paulo, caracteriza as eleições do próximo domingo. O deputado federal eleito pelo PSL se identifica como 'tetraneto de D. Pedro II, administrador, empresário e cientista político pela Universidade de Stanford (EUA), com pós-graduação pelo Insead (França)'. Como se sabe, o tetraneto foi cogitado para compor chapa com Bolsonaro, mas foi preterido para neutralizar possíveis tentativas de impeachment.
No passado, explica o tetraneto, os progressistas obtiveram sucessivas vitórias. "Desde 1995, com o governo FHC, que ideias progressistas vêm galgando espaço no poder público." O recuo dos conservadores teria se intensificado, mas não iniciado, durantes os governos Lula e Dilma. Ou seja, para o príncipe conservador, FHC, Lula e Dilma seriam farinhas do mesmo saco.
"Vivemos o esgotamento da hegemonia progressista", afirma o tetraneto. A ascensão de Bolsonaro à presidência será o fim de uma era, uma era marcada por uma "busca aflita pela justiça social". Mas se a busca pela justiça será abandonada, o que teremos no lugar? Qual o programa dos conservadores?
Do ponto de vista eleitoral, os progressistas foram postos para correr. Nos estados do sul, sudeste e centro-oeste não há progressista com chances de vitória. Não faltam aprendizes e oportunistas prontos a se colar a Bolsonaro para chegar ao poder. Associar-se aos progressistas, ao PT ou ao PSDB, é pedir para perder.
Mas é preciso ter clareza. Os progressistas estão sendo derrotados por um time desconjuntado, mal ajambrado, reunido às pressas, sem consistência, formado por herdeiros presuntivos, artistas pornôs, jornalistas com credenciais contestadas, juízes com histórias mal contadas etc. Para os mais velhos, a referência ao Exército Brancaleone é inevitável.
O fato é: não se perde para adversário tão improvisado e fraco sem cometer erros e mais erros. Witzels, Zemas e Dórias não teriam se destacado sem o acúmulo de erros das lideranças políticas. Para ser claro: o que estamos observando é antes a derrota dos progressistas do que a vitória dos conservadores. Em boa medida, é uma vitória por W.O.
Basta lembrar que, não mais do que dois anos atrás, Bolsonaro disputou a presidência da Câmara dos Deputados e recebeu exatos quatro votos. Nem seu filho se deu ao trabalho de comparecer para sufragá-lo. Até muito pouco atrás, o capitão era um figura politica tão folclórica quanto a do Cabo Benevenuto Daciolo. Sua ascensão meteórica se deve ao vazio criado pela luta aberta entre os progressistas, ao suicídio coletivo que se esmeraram para produzir. Não fosse assim e Bolsonaro não teria crescido justamente quando parou de fazer campanha.
A chance oferecida pelo segundo turno não foi aproveitada. A briga nas hostes progressistas não parou. Como crianças, cada lado pede que o outro reconheça sua culpa, que foi que ele que começou e que, sem as necessárias desculpas, não fará as pazes. A infantilidade reinante chega a ser patética. E a briga se estendeu para o interior de cada bloco, como atestam as acusações públicas de Alckmin a Dória e as de Cid Gomes ao PT.
Já faz um bom tempo que os progressistas não se veem como integrantes de um mesmo grupo, mas seus adversários sabem bem quem estão derrotando. Como afirmou o tetraneto, sairão de cenas os que acreditam que as "leis devem ser criadas para fazer justiça social e buscar atingir a igualdade sempre que possível em todos os aspectos da sociedade."
O príncipe está coberto de razão: foram estas as ideias mestras a ditar as políticas públicas e a ação do Estado desde a redemocratização. É contra este movimento, é contra esta direção dada às politicas que Bolsonaro se insurge.
O tetraneto, contudo, não foi capaz apresentar o programa positivo dos conservadores. O máximo que conseguiu foi afirmar sua crença na existência de uma ordem social natural: "O aprendizado para todos é que os avanços da sociedade se devem mais em função das ações da própria sociedade, e não dos mandos e desmandos da legislação."
Sabe-se lá o que o príncipe quis dizer com isto, mas sabe-se com certeza que a ordem social nada tem de natural, que conflitos sociais não se resolvem 'sem os mandos e desmandos da lei.'
O fato é que o discurso de Bolsonaro vai muito além deste conservadorismo edulcorado. O tetraneto lança mão de perguntas retóricas para enfrentar a questão: "Mas será que o medo dos progressistas é justificável? Veremos um retrocesso nas nossas relações sociais com os conservadores no poder?"
O príncipe acredita que os temores de retrocesso como a intolerância e o recurso à violência contra adversários seriam infundados: "O conservadorismo não é intolerante muito menos retrógrado; é simplesmente natural e evolui conforme as gerações de maneira livre."
De novo, difícil saber o que seja evoluir de maneira livre, mas sabe-se que um dos cotados a ocupar o Ministério da Educação acredita que a evolução natural das espécies deve ser banida das escolas. Poderia haver evidência mais clara de retrocesso? Não sei se Dom Pedro leu Darwin, mas sabe-se que era um entusiasta da ciência.
O fato é que quem forma juízos a partir das informações disponíveis tem razões de sobra para temer. O líder dos conservadores está longe de ser o moderado razoável que o tetraneto procura vender. Basta lembrar que, no Roda Viva, já em campanha, Bolsonaro fez questão de registar sua idolatria ao Coronel Brilhante Ustra. Precisa mais? Há algo mais bárbaro e repugnante que a tortura?
No mundo do faz de conta, beijos de princesas castas transformam sapos horrendos em príncipes garbosos. No mundo real, não há varinha de condão que transforme feras toscas em seres civilizados. O retrocesso será inevitável.
*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.
El País: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos”, diz Bolsonaro a milhares em euforia
"Nós somos o Brasil de verdade", diz candidato de extrema direita a uma semana do segundo turno. Seus eleitores deram demonstração de força nas ruas em dezenas de cidades
Por Heloísa Medonça e Naiara Halarraga Gortázar, do El País
Vestidos de verde e amarelo, os apoiadores do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) exibiram neste domingo na Avenida Paulista sua força e euforia a uma semana do segundo turno das eleições em que o candidato aparece com uma enorme vantagem sobre o seu concorrente, Fernando Haddad(PT), segundo as pesquisas eleitorais. O capitão retirado do Exército não compareceu à manifestação paulista que encheu vários quarteirões da avenida, mas discursou por meio de um telão. A um passo do Palácio do Planalto e contra alguns prognósticos de que a corrida do segundo modularia sua retórica, repetiu o discurso mais virulento contra os adversários do PT: "Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil", disse. “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”, afirmou. Bolsonaro, que descreveu a si e aos seus seguidores como "o Brasil de verdade", agradeceu outras dezenas de manifestações pelo país.
Há entre seus apoiadores, no entanto, os que manifestam uma fé cega no líder do Partido Social Liberal. "Se Bolsonaro começar a falar em fechar o STF, eu vou confiar nele. Estou dando meu voto de confiança a ele. Se lá na frente o presidente nos decepcionar, voltaremos novamente aqui para a Paulista para protestar", explicava Hilston Oliveira, um artista plástico, que junto com a mulher e três filhos participava do ato a favor do capitão reformado. "Somos evangélicos e Bolsonaro defende exatamente os valores que acreditamos". Participante assídua das manifestação convocadas contra a corrupção, a advogada Ana Maria Straub diz apoiar Bolsonaro por ele ser uma pessoa íntegra "um patriota e sem os istas [racista, fascista, machista…] que é acusado". "Ele é um candidato que defende os valores da família e é contra o aborto", diz a advogada que garante que, em sua família, conhece apenas um primo que não irá votar no capitão reformado do Exército.
Outro grande protagonista ausente da mobilização foi o PT. A ameaça feita por Bolsonaro no telão retroalimentava o ódio visceral que seus votantes exibiam no chão. "Fora PT" e "Eu vim de graça", foram alguns dos gritos mais entoados por um mar de gente com camisetas de Bolsonaro.
Ex-eleitora fiel do PT, a aposentada Angélica, de 54 anos, abandonou o voto ao partido após os escândalos de corrupção envolvendo o PT. "É corrupção demais, me decepcionou. O que vemos hoje é um país cheio de bandidos e tráfico de drogas. Não é que eu apenas leio sobre esses problemas, eu os vejo nas ruas. Não podemos deixar que o país vire uma Venezuela", diz a aposentada que vestia uma camiseta escrita Bolsonaro Presidente com uma foto do candidato do PSL. "Claro que o Bolsonaro não é santo, mas todas as propostas deles são boas, temos chance de mudar o país", ressalta.
O goiano Leonardo Costa, de 26 anos, aproveitou uma viagem de negócios à capital paulista para participar pela primeira vez de uma manifestação. "Vim porque realmente essa vale a pena. Não podemos deixar que um partido corrupto como o PT continue no poder. A mudança é agora ou nunca", disse ao lado do amigo Guilherme que, vestido com a camisa do Brasil, também apoiava a candidatura de Bolsonaro. "Sabemos que ele não é o candidato ideal, é impossível concordar com todas as ideias defendidas por ele, mas é o único que pode vencer o PT".
A exibição de força chega dias depois da Folha de S. Paulo publicar que um grupo de empresários pagava ilegalmente envios de mensagens por WhatsApp contra o PT. Desde então, os controladores da aplicação suspenderam as contas das empresas mencionadas. O caso está sendo investigado pelas autoridades eleitorais e é improvável que tenha alguma conclusão antes do segundo turno, no próximo domingo 28.
Em São Paulo, tudo nos cenários, nas cores e nos personagens remetiam à campanha de rua pelo impeachment de Dilma Rousseff: bonecos infláveis do ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva, condenado e preso pela Operação Lava Jato, conviviam com cinco carros de som - dos movimentos de direita Avança Brasil, Vem pra Rua, MBL e Nas Ruas - também estavam estacionados em diferentes pontos da avenida. João Doria, candidato tucano ao governo de São Paulo que luta por se colar a Bolsonaro, também apareceu. As deputadas do PSL Janaína Paschoal e Joice Hasselmann foram ovacionadas.
No sábado, a Av. Paulista acolheu outra marcha, muito menos multitudinária, a favor de Haddad. Boa parte dos simpatizantes de Bolsonaro coincidem que a prioridade agora é que o PT não regresse ao poder. Pouco importava aos presentes que o homem com mais probabilidades de ser o próximo presidente do Brasil não estivesse presente. Pelo Twitter, o candidato havia lamentado mais cedo não poder participar das manifestações, e lembrou do atentado a faca que sofreu no início de setembro. O candidato praticamente não pisou na rua desde o episódio em Minas Gerais. Prefere permanecer em seu controlado ambiente das redes sociais a participar dos debates de televisão.
Samuel Pessôa: Debater com a heterodoxia cansa
Eles falam, andam em círculos, mas conta que é bom não fazem; é mais fácil chamar os que calculam de inimigos dos pobres
Ninguém discorda de que o Brasil é muito desigual e que o peso dos tributos sobre os mais pobres é maior do que deveria ser.
É comum afirmar que tudo se resolveria facilmente com a criação de um imposto sobre grandes fortunas.
As pessoas que têm se debruçado sobre esse problema espinhoso, a maneira de a política tributária reduzir as desigualdades sociais, têm um pouco mais de dúvidas sobre como fazer isso do que Pochmann e Feldman demonstraram em colunas recentes nesta Folha.
Em um primeiro momento, eles dizem literalmente que o déficit primário previsto para 2019 "poderia ser superado pela cobrança de 1% sobre grandes fortunas".
Quando demonstrado que seus números não se sustentam, escrevem que, com "a reformulação do Imposto sobre Heranças e Doações (ITCMD) e a taxação de dividendos e grandes fortunas, o potencial arrecadatório aproxima-se de 1,5% do PIB".
Passam assim de uma base tributária possível para outra como se elas fossem intercambiáveis e como se, no final, fosse tudo a mesma coisa.
Instados a apresentar os cálculos, eles silenciam. Feldman argumenta que dados da Receita Federal mostram que as 70 mil famílias mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%.
Esses são dados conhecidos sobre as distorções da tributação da renda. Qual é mesmo a arrecadação possível? Nossos economistas heterodoxos escrevem, falam, andam em círculos, mas conta que é bom mesmo não fazem. É mais fácil chamar os que calculam de inimigos dos pobres.
As distorções do sistema tributário brasileiro são conhecidas. A complexidade da tributação indireta é a principal. Mas também a tributação da renda precisa ser revista. Minha coluna da semana passada apontou haver consenso da necessidade de elevação da carga tributária sobre os mais ricos.
O que se espera daqueles que pretendem efetivamente contribuir para o debate é que enfrentem cuidadosamente o desafio de pensar como isso pode ser feito.
Um primeiro passo pode ser o de apresentar estimativas que tenham algum respaldo na realidade. Também contribuiria para o debate se os conceitos fossem empregados como um mínimo de rigor. Imposto sobre grandes fortunas incide sobre as grandes fortunas. Aumento de alíquota do ITCMD eleva a tributação sobre heranças e doações.
Ainda que o imposto sobre as grandes fortunas tenha sido abolido em quase todos os países da Europa, nada impede, em tese, que esse seja um caminho possível por aqui.
Mas, nesse caso, seria interessante que fossem analisados os problemas envolvidos na sua criação e implantação. Um problema conhecido é o da fuga de capitais.
Não é à toa que propostas recentes de criação de um imposto sobre grandes fortunas na Europa pensam o tributo no contexto da União Europeia como um todo, e não de cada país isoladamente.
Quando se trata da tributação da riqueza, a base "heranças e doações" é preferível em relação à base "grandes fortunas".
Estimativas fantasiosas em nada contribuem para a avaliação das potencialidades e riscos dos diversos caminhos possíveis.
Na coluna passada, mencionei o famoso discurso em que Churchill disse ao povo inglês que somente tinha "sangue, suor e lágrimas" para lhes oferecer. O correto é "sangue, labuta, lágrimas e suor". Escapou-me a labuta. Não deve ter sido simples esquecimento! Agradeço a meu amigo Manuel Thedim pela correção.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai mexer com salários de servidores e militares?
Não deveria ser problema para quem quer caçar marajás, mas é difícil para quem se diz adepto de direito adquirido
Jair Bolsonaro prometeu acabar com a "farra de marajás", funcionários públicos que juntam penduricalhos a seus salários altos. Prometeu também reforma da Previdência aguada: "Não podemos penalizar quem já tem direitos adquiridos. O servidor público já sofreu duas reformas".
O candidato parece perdido entre dois mundos. Ainda vive na Terra do Nunca programático, que fica entre o país liberal de seu economista-chefe, Paulo Guedes, e a ilha das corporações estatais, entre elas a militar, da qual fez parte.
No entanto, a arrumação das contas públicas depende de um plano que tem de bulir com servidores públicos e aposentados em geral.
Gastos previdenciários levam 47,7% da despesa total do governo federal; outros 22% vão para gastos com servidores (salários, aposentadorias e benefícios). Somados, dão quase 70%.
O gasto com militares leva um quarto da despesa federal com o funcionalismo. De cada R$ 3 gastos com a folha de pessoal dos militares, R$ 2 vão para aposentadorias e pensões, que custam cerca de R$ 47,5 bilhões por ano.
Aposentados e pensionistas militares custam o equivalente a um ano e meio de Bolsa Família, por exemplo. Outra comparação: os investimentos federais (em obras, como estradas, ou outros) levam apenas 0,8% da despesa total, uma miséria. O gasto com a folha dos militares leva 5,5%.
Por falar em investimento, o orçamento do Ministério da Defesa nessa área perde apenas para o do Ministério dos Transportes. Nos últimos 12 meses, os investimentos da Defesa chegaram a R$ 10,4 bilhões, um quinto do total de investimentos federais. No Ministério da Saúde, investem-se R$ 5,2 bilhões.
Em si mesma, a lista dos investimentos da Defesa parece razoável. Pela ordem, gasta-se em aviões de combate (a compra e o desenvolvimento do caça sueco da FAB e do cargueiro novo da Embraer), em blindados, construção de submarinos, estaleiro naval, barcos, helicópteros, foguetes de artilharia.
Há também gastos quase "civis", como no sistema de controle do espaço aéreo ou no de vigilância de fronteiras, em um projeto de reator nuclear ou na reconstrução da estação de pesquisa na Antártica, aquela que pegou fogo em 2012.
É muito? No caso dos salários, nem tanto.
O rendimento médio dos servidores civis da ativa é cerca de 70% superior ao dos militares. Mas o salário médio do setor público federal é cerca de 30% superior ao dos empregados do setor privado formal com as mesmas características pessoais (idade, instrução, sexo etc.).
Essa conta está em relatório de pesquisa de Izabela Karpowicz e Mauricio Soto, técnicos do FMI, publicado neste mês: "Rightsizing Brazil's Public-Sector Wage Bill" ("O Ajuste da Folha Salarial do Setor Público do Brasil").
De volta à folha dos servidores federais: seu custo equivale a 4,3% do PIB (dos quais 1,9% do PIB vão para aposentadorias e pensões). O pessoal do FMI acha que, para o ajuste das contas públicas dar certo até 2023, seria preciso reduzir tal despesa para 3,3% do PIB.
Um exemplo aritmético de como atingir esse objetivo: seria necessário conter reajustes salariais (mesmo pela inflação) e contratações por quatro anos, com o PIB crescendo a 3% ao ano. Não é uma receita, mas mostra o tamanho da encrenca.
Não deveria ser grande problema para quem quer caçar marajás, como Bolsonaro, mas é difícil para quem se diz adepto de direitos adquiridos —também como Bolsonaro.
Bruno Boghossian: Voto concentrado no Nordeste será desafio para o PT
Dos 31 milhões de votos obtidos por Fernando Haddad no primeiro turno, quase metade saiu das urnas do Nordeste. A popularidade do PT na região não é nenhuma novidade, mas o partido nunca dependeu tanto de seus principais redutos quanto agora.
Seja qual for o resultado da corrida presidencial, a composição do eleitorado petista passa por uma mudança este ano. O desgaste profundo da imagem da sigla e o avanço de Jair Bolsonaro (PSL) na classe média impulsionam esse rearranjo.
O eleitorado nordestino foi responsável por 46% dos votos dados a Haddad no dia 7. O peso da região é o mais alto do ciclo iniciado com a primeira eleição de Lula, há 16 anos. Ao longo desse período, o partido acumulou força e transformou esses estados em suas fortalezas.
No primeiro turno de 2002, os votos do Nordeste representaram apenas 24% do desempenho de Lula. O mapa eleitoral era relativamente equilibrado. O petista ficou na frente em 23 estados e no Distrito Federal.
Perdeu para Ciro Gomes no Ceará, para Anthony Garotinho no Rio e para José Serra em Alagoas.
As políticas sociais voltadas para a população de baixa renda mudaram o quadro eleitoral nos anos seguintes. Desde a eleição presidencial de 2006, o PT obtinha sempre um terço de seus votos no Nordeste.
É cedo para dizer se o crescimento dessa proporção em 2018 é pontual ou duradouro. Não há indícios suficientes de que o PT se tornará apenas um partido regional, mas a sigla sairá da eleição com um desafio.
Caso a vitória de Bolsonaro se confirme, os petistas terão uma bancada razoável no Congresso para fazer oposição nacional ao presidente. Por outro lado, sua máquina administrativa estará concentrada no Nordeste, nas mãos dos três ou quatro governadores eleitos pelo partido.
Com Lula fora de cena, o PT pode se ver obrigado a recuar para reforçar suas trincheiras. O futuro do partido dependerá do desempenho do próximo governo e, principalmente, da economia.