Eleições
Monica De Bolle: O que os perdedores revelam
Os eleitores estão dispostos a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata
Como parte de um ambicioso projeto de pesquisa com colegas do Peterson Institute for International Economics, tenho lido os programas de governo dos principais partidos políticos dos países que compõem o G-20 antes e depois da crise de 2008. Nosso interesse é identificar nas propostas partidárias indícios de políticas e diretrizes com maior conteúdo nacionalista no âmbito da economia, sobretudo no período pós-crise. A análise dessas plataformas acabou revelando mais do que pretendíamos em alguns casos.
As duas maiores economias latino-americanas, Brasil e México, já tiveram ou estão tendo eleições gerais este ano, assim como no período que antecedeu a crise de 2008: esses mesmos países elegeram novos presidentes, congressistas e governadores em 2006. Curioso é que, em 2006, dois candidatos que concorreram à presidência no Brasil e no México também concorreram em 2018. São eles Geraldo Alckmin do PSDB e Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) no México. Como sabemos, AMLO obteve expressiva vitória nas urnas, derrotando o candidato do PRI, partido de centro-direita ao qual pertence o atual presidente. Em 2006, AMLO foi derrotado por Felipe Calderón do também centro-direitista PAN por margem estreitíssima, de manos de 1% dos votos totais.
As plataformas de AMLO em 2006 pelo PRD – partido de centro-esquerda do qual saiu em 2012 para lançar seu atual partido, o MORENA – e de AMLO em 2018 não foram muito distintas: o componente nacionalista está presente nas propostas de uma política industrial com forte presença do Estado, nas políticas comerciais que priorizam a promoção das exportações e a proteção de setores considerados importantes para a criação de empregos, e uma forte crítica às políticas neoliberais que “buscaram a estabilidade dos preços” em detrimento do crescimento e do desenvolvimento.
Nos dois períodos, 2006 e 2018, PAN e PRI pregaram a cartilha do liberalismo econômico sensato, aquele que defende uma política industrial horizontal, beneficiando todos os setores de igual maneira, a abertura comercial respeitando as regras internacionais, a prudência na condução da política macroeconômica sem deixar de lado políticas para a inclusão social. Em 2006, o liberalismo econômico com pitadas social-democratas chegou perto de ser derrotado. Em 2018, foi definitivamente derrotado com o auxílio de uma grande movimentação dos eleitores mexicanos contra a corrupção e em prol da renovação política. A partir de dezembro, o México terá novo governo marcado por claras diretrizes nacional-desenvolvimentistas e com maioria no Congresso.
Interessante é constatar que o PSDB sofreu destino semelhante ao do PRI e do PAN. Contrastando os programas do PSDB e do PT em 2006, tinha o do PT algum conteúdo nacionalista nas propostas de política industrial, embora não fossem muito distintos do programa do PSDB: ambos falavam em “priorizar setores que criam empregos melhores e mais bem remunerados, como a indústria de transformação”. Na área macroeconômica, ambos citavam como prioridade manter a estabilidade dos preços e a sustentabilidade fiscal. Na área comercial, o programa do PT era levemente mais protecionista do que o programa do PSDB. Portanto, é razoável afirmar que no quesito nacionalismo econômico, PT e PSDB tinham pitadas aqui e acolá.
Já em 2018, a diferença é brutal. O programa do PSDB apresentava medidas exatamente no ponto de neutralidade, isto é, a plataforma era uma proposta bem elaborada do consenso liberal ma non troppo que caracterizou as políticas econômicas nos países avançados até a eleição de Trump em 2016. Já o programa do PT foi para os extremos do nacionalismo econômico na política industrial, nas propostas para o comércio, nas diretrizes macroeconômicas. Como escrevi na semana passada, o programa do PSL de Bolsonaro é difícil de avaliar nessas dimensões, visto que não há diretrizes ou propostas, apenas frases vazias.
A conclusão a que chego é que nesse fim de década, os eleitores – quando se preocupam com propostas – estão mais inclinados a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata do pós-guerra, seja lá o que isso for. O México foi para o campo nacionalista. O Brasil está prestes a entregar cheque em branco, ainda que o nacionalismo econômico não tenha sido, de forma alguma, banido do imaginário nacional. Aos vencedores, as batatas quentes.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Zander Navarro: Sinais, fortes sinais!
O eleitorado parece ter acordado de um torpor de cinco séculos, os políticos se acautelem
Peço licença ao candidato Eymael para utilizar o seu bordão no título acima. Ele, Cabo Daciolo e Vera Lúcia, do PSTU, formaram o time simpático do pleito. Certamente porque foram minúsculos os seus tempos de exposição. Foi impossível não sorrir ao vê-los na propaganda, pois representaram a face sonhadora da disputa. Pareciam sinceros, talvez porque sem terem a chance de maiores explicações. Quem não se divertiu ao ouvir Vera Lúcia afirmar que iria estatizar as cem maiores empresas do País? Somos gratos ao trio, eles suavizaram com suas utopias a hipocrisia de quase todo o processo eleitoral, banhado em promessas absurdas, bravatas e inúmeras falsidades, à direita e à esquerda.
Uma eleição extraordinária, quase espetacular, um definitivo divisor de águas em nossa História. E sua marca principal é alvissareira, pois introduz, finalmente, os sinais de algum amadurecimento político dos eleitores. Esse otimismo tem explicação concreta e não se relaciona diretamente às escolhas realizadas, mas aos movimentos ocorridos.
Nos anos deste século, um silencioso processo vem mudando a amplitude das informações disponíveis e, assim, a capacidade dos eleitores de escaparem das armadilhas e da manipulação dos partidos. É o espantoso fenômeno das “redes sociais”, a grande mudança nos vetores da interação e da ação social, incluindo as preferências dos cidadãos. Some-se o fato à crescente escolarização e estaria dada a receita que explica, ao menos em parte, a essência da disputa eleitoral.
A eleição parece ter sepultado o papel da propaganda obrigatória na televisão. Esta teria tido reduzida influência nos resultados e não condicionou a decisão na boca da urna. Tudo se passou nas redes sociais, na grande conversa mantida entre os eleitores, em seus diferentes e amplíssimos espaços de convivência virtual. E em tempo real, permitindo decisões rapidíssimas. São espaços ainda animados por invencionices, é verdade, contudo a educação política, gradualmente, vai aperfeiçoar esses ambientes de diálogos sociais e, com o tempo, a capacidade de difundir mentiras acabará por diminuir drasticamente.
A eleição, uma vez decantada pelos analistas, vai apresentar outros fortes sinais, respondendo às inúmeras perguntas que estão surgindo. Por exemplo: a fragmentação dos partidos é o resultado de quais fatores? Seria porque os partidos são apenas um negócio ou porque, também, há um processo generalizado de desideologização em curso e, portanto, as diferenças entre programas partidários vêm desaparecendo, gerando os partidos dedicados a focos minimalistas? Se a hipótese for verdadeira, uma boa parte da crise da esquerda se explicaria, pois as grandes narrativas transformadoras deixaram de seduzir a maioria do eleitorado. Contrariamente, é o imediatismo, cada vez mais, o condutor do imaginário coletivo.
Ancorados nessa vasta teia de conversações, os eleitores resolveram usar a racionalidade da punição. Não obstante a monumental crise econômica que nos aflige, decidiram castigar aqueles que viram como sendo os responsáveis: a política em geral, os partidos e os caciques conhecidos, notadamente os citados na Lava Jato. Poucos escaparam da metódica vingança dos cidadãos. Se o clã dos Calheiros sobreviveu, em Alagoas, no Maranhão a família Sarney foi dizimada, assim como os donos do MDB em muitos Estados, sendo igualmente revelador que os três candidatos a senador da elite petista fracassaram no Sudeste.
Quase tudo foi virado do avesso, ampliando a fragmentação partidária e o inesperado aparecimento de novos personagens, modestos no início, para depois subirem aos céus vertiginosamente. Em síntese, os eleitores deixaram o recado claro: “Basta!”. E para assim decidirem, precisavam estar informados sobre a vida política e seus atores. Portanto, talvez pela primeira vez, os cidadãos agiram com irrepreensível lucidez política, lembrando a famosa eleição de senadores em 1974, quando o antigo MDB se vitoriou em 16 dos 22 Estados, abalando a ditadura militar.
Ante tais escolhas, os méritos de Bolsonaro são limitadíssimos, sendo mais o personagem que, para sua sorte, estava no lugar certo e no momento apropriado. A relação direta entre os resultados e o candidato tem baixa correlação e a inteligência política, de fato, está nas mãos dos milhões que decidiram, nas urnas, gritar a plenos pulmões que não é mais possível aceitar a continuidade do descalabro que rege o nosso cotidiano. Seja a violência desmedida ou o desempenho pífio da economia, sejam as tantas iniciativas fortemente controvertidas que vêm caracterizando o Brasil, especialmente após a chegada do campo petista ao poder. Sobretudo, a sensação de sufocamento causada pela corrupção. O Brasil transformou-se numa bizarra sociedade, de um presidente que recebe escroques a altas horas à maluquice da narrativa do “golpe” que nunca existiu, não deixando de citar a alta Corte de Justiça, que age movida pelo narcisismo de seus membros.
Algum dia haveria uma reação. As eleições trouxeram esse reposicionamento, culminando a fermentação que fora iniciada em 2013. Não é uma onda conservadora e, menos ainda, autoritária, mas apenas a afirmação do conjunto de valores sociais que são dominantes entre nós, os quais encontraram um momento específico e definido de manifestação.
Por esse ângulo, os partidos mais tradicionais e que julgavam defender um ideário mais consistente, como o PT e o PSDB, foram os grandes derrotados. Os demais foram menos afetados, pois nenhum tem algum programa conhecido. E o período adiante nos reservará um reordenamento partidário monumental. Surgirão novos partidos e definharão alguns outros. E mudarão fortemente as caras visíveis da política.
São sinais promissores, pois o eleitorado parece ter acordado de um torpor de cinco séculos. Acautelem-se os políticos!
* Zander Navarro é sociólogo e pesquisador em ciências sociais.
El País: Grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp orquestram notícias falsas e ataques pessoais na internet, diz pesquisa
Pesquisadores da Uerj acompanharam grupos de vários candidatos no aplicativo desde maio; bolsonaristas têm maior alcance e organização
Desde maio deste ano, o grupo de pesquisa em Tecnologias da Comunicação e Política (TCP) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) tem monitorado grupos de WhatsApp em apoio a candidatos presidenciais. Inseridos em 90 grupos, os 14 pesquisadores estudaram o comportamento dos usuários para descobrir como as pessoas se organizam para viralizar conteúdos eleitorais no WhatsApp.
Para a coordenadora Alessandra Aldé, existe uma ordem para o caos cibernético. “As notícias falsas têm caminhos específicos. Esses fluxos não são aleatórios e existe uma técnica específica para fazer com que a informação falsa viralize. E isso é muito importante.” O estudo descobriu que a cada 30 mensagens, pelo menos uma foi enviada do exterior.
“A notícia entra em um grupo e nesse grupo tem contato com 250 e poucas pessoas. Dessas 250 e poucas, algumas voluntariamente pegam e replicam isso em outros grupos. Não só como vítimas que compartilharam uma vez e não compartilham mais. Compartilham isso de uma forma sistemática”, explica João Guilherme, que coordena o núcleo de análise de dados do grupo.
Nesses cinco meses de monitoramento, os pesquisadores perceberam que grupos pró-Bolsonaro têm um alcance mais vasto e uma organização maior na disseminação de noticias falsas em comparação com os demais.
Um dos maiores exemplos disso se deu no primeiro turno, com um boato de que havia uma fraude eleitoral em curso. O grupo de pesquisa da Uerj seguiu uma mensagem específica: “TSE informa: 7,2 milhões de votos anulados pelas urnas! A diferença de votos que levaria à vitória de Bolsonaro no primeiro turno foi de menos de 2 milhões”. Segundo os pesquisadores, o boato apareceu 202 vezes em 41 dos 90 grupos. Destes 41 grupos, 37 estão no conjunto de apoio a Bolsonaro, grupos de direita e pró-militar e 4 de política em geral.
“O que a gente percebe é que o campo do Bolsonaro está muito mais organizado para fazer isso do que os outros candidatos. Então eles anteciparam essas estratégias e já começaram a construir esses grupos”, diz Alessandra. “Chamou atenção da gente também essa falta de compromisso de quem difunde essas notícias como verdade. Porque não se trata de fatos, não tem uma objetividade, é desqualificação, geralmente moral, e associações que são muito impróprias, inadequadas. É uma campanha muito mentirosa. Realmente o nível de notícias falsas é muito maior na campanha de Bolsonaro do que em qualquer outra campanha. Isso é visível. E a gente está em dezena de grupos.”
Alessandra avalia que quem alimenta essa rede são produtores profissionais de conteúdo. “Existe uma produção profissional de memes, de várias coisas bem-feitas esteticamente. São lançadas para números de celulares em vários locais diferentes. O celular mostra, por exemplo, a região da pessoa, porque tem o prefixo. Você pode achar associações entre bancos de dados, celulares e CEP e usar isso para direcionar a sua propaganda atingindo os grupos e circulando dentro de grupos específicos. Então existe uma técnica.”
Na semana passada, a Folha de S.Paulo revelou que empresas contrataram disparos massivos de mensagens de WhatsApp contra o PT e a favor de Bolsonaro, em contratos que chegavam a R$ 12 milhões.
Apoio a Bolsonaro inclui incitação a ataques pessoais e participação em enquetes
Fora a produção do conteúdo em si, a tática para a disseminação das mensagens por militantes é simples e eficaz. Em cada grupo existem pessoas que dão ordens e orientam o restante dos usuários a cumprir tarefas específicas. “Eles sistematicamente pedem e orientam as pessoas a circularem as informações nos outros grupos de WhatsApp. No da família, no do trabalho”, explica Alessandra.
“Tem sempre alguém ali falando ‘façam isso, faça aquilo’. Por exemplo, se está tendo uma pesquisa no Facebook, eles pedem para todos irem lá para responder. Ou então tal famoso postou tal conteúdo contra o Bolsonaro, então vamos ali dar dislike. Então existe, sim, uma orquestração.”
“Existe chamamento para você ir lá e dar dislike na página da atriz que se manifestou a favor do Haddad. Isso é muito comum. Ou ir lá e escrever na página de quem é contra a intervenção. Então esses WhatsApps servem também para mobilizar a ação desses eleitores nas outras redes. ‘Vamos lá no YouTube todos dar dislike.’ Aí você vê uma migração.”
Segundo o pesquisador João Guilherme Bastos dos Santos, os membros orquestram inclusive ataques coletivos. “Por exemplo, antes do primeiro turno saiu a notícia de um instituto de pesquisa específico que desagradou eles. Aí, algumas pessoas desses grupos identificam o estatístico responsável, pegam o Facebook da pessoa e jogam no grupo do WhatsApp. As pessoas usam isso para chegar até essa pessoa e ameaçar”, diz.
João Guilherme conta que viu também grupos de apoio a Marina Silva e Ciro Gomes serem atacados por apoiadores do Bolsonaro que se infiltraram, entravam fingindo ser simpatizantes e lá dentro começavam a atacar. Em um caso, esses infiltrados chegaram a virar administradores de um grupo pró-Marina para depois deletar o grupo.
Controlando a narrativa e banindo quem questiona
Segundo os pesquisadores, os administradores dos grupos fazem uma curadoria para controlar a narrativa. Isso ficou claro quando saíram os resultados do primeiro turno. Começaram a surgir comentários preconceituosos contra o Nordeste, região onde o voto ao PT levou vantagem, desde coisas como “o Nordeste é um parasita” até “tem que mandar matar nordestino”.
“Logo alguns agentes começaram a dizer assim ‘não gente, a gente precisa do voto no Nordeste’, aqui tem muito nordestino eles não têm culpa dos outros eleitores”, explica Alessandra. “E até começaram a banir, a excluir pessoas que estavam aderindo a essa crítica.”
Os pesquisadores detectaram ainda que pessoas que questionam insistentemente a veracidade de uma informação são banidas. “Essa pessoa é enquadrada como um sabotador, ou petista ou comunista e é removido do grupo. Então, sempre que alguém vai destoar dessa narrativa unificada, essa pessoa é retirada acusada de traição”, diz João Guilherme. “Se alguém começa a reclamar de fake news e dizer ‘você tem certeza que isso é verdade, onde que está a fonte disso, será que isso não vai pegar mal pra gente.’ Aí a pessoa é rapidamente deletada”, completa Alessandra.
Porém, enquanto os administradores baniam da discussão comentários que poderiam atrapalhar a campanha, deixavam rolar solto discursos de ódio contra certos segmentos da sociedade. Alessandra viu diversas ameaças circulando nos grupos contra mulheres e LGBTs. Ela cita como exemplo as frases “Viado não vai ter mais vez, não vai poder fazer isso” e “Vamos acabar com essas feminazis quando o Bolsonaro ganhar”, que rodaram sem sofrer reprimendas dos administradores.
O pesquisador afirma que há uma pluralidade: cada grupo tem um discurso que foi adaptado e construído especificamente para agradar àquele tipo de eleitor. “Tem notícias falsas voltadas para valores religiosos, falando que Haddad vai acabar com a família, que ele é contra Deus, que Manuela d’Ávila falou que Jesus é travesti. Mas em outros grupos esse discurso não tem tanta entrada e você tem mais um discurso sobre segurança pública, por exemplo. Esses grupos falam que a situação está insustentável, que alguém tem que fazer alguma coisa, que tem que se armar”, explica.
Embora sejam plurais, todos os discursos convergem em uma só mensagem: para evitar tudo isso, é preciso votar no Bolsonaro. Isso se enquadra em uma narrativa maior que os apoiadores vêm construindo há pelo menos dois anos no WhatsApp. “Essa ideia de ameaça comunista. A ideia de que a gente tem que se unir contra uma ameaça externa e todo mundo entre nós que atrapalhar essa união está favorecendo essa ameaça externa. É um mecanismo básico de movimentos populistas ou fascistas, onde você reprime sistematicamente quem discorda”, diz João Guilherme.
O estudo
Ainda em fase de análise e conclusão, o estudo do grupo de Tecnologias da Comunicação e Política da Uerj pretende determinar padrões de comportamentos de seguidores de diferentes candidatos no WhatsApp, a plataforma que tem sido apontada como principal influenciadora desta eleição.
Os pesquisadores concluem que o WhatsApp precisa ser entendido como uma rede de grupos organizados que estão interconectados por participantes em comum que sistematicamente levam as notícias falsas de um grupo para outro.
A pesquisa revela que, dos 90 grupos estudados, 99,11% dos perfis estão conectados direta ou indiretamente através de uma rede de pessoas.
No infográfico abaixo é possível ver a estrutura de conexões entre os grupos analisados. As linhas verdes representam grupos de conservadores, pró-militares e de apoio ao candidato do PSL. As linhas vermelhas são de apoiadores de Fernando Haddad. Em rosa, grupos para discussões de política geral ou suprapartidária, e em azul, grupos de outros candidatos.
Para conseguir mapear o caminho da disseminação das notícias, o TCP da Uerj usa os softwares IRaMuTeQ e Gephi. Ele rastreia, mas mantém em condição de anonimato, o número de celular que deu origem à mensagem para apontar em qual grupo ela surge, e depois mapeia o seu trajeto. O resultado são “nuvens” de dados que ilustram a disseminação da informação pela rede do WhatsApp.
O exemplo abaixo rastreia a cronologia de uma notícia falsa, representada pela cor amarela. Quando o candidato Jair Bolsonaro foi atacado em Juiz de Fora, em 6 de setembro, surgiu, às 17h03 uma notícia falsa que dizia que o responsável pelo ataque era membro do Partido dos Trabalhadores e responsável pela campanha de Dilma Rousseff. Apesar de a notícia ter sido desmentida na televisão nesse meio-tempo, ela continuou sendo espalhada pelos grupos – e só para de ser divulgada às 18h19.
O software IRaMuTeQ extrai das conversas em andamento nos grupos as palavras- chave que mais aparecem e as organiza em infográficos. As palavras mais repetidas aparecem em tamanho maior. Abaixo, é possível ver as associações de palavras que se formaram em conversas onde se discutiam as urnas e o TSE. Os pesquisadores explicam que no gráfico amarelo onde as palavras mais usadas são “Comunista, militar e intervenção” foi possível relacionar este vocabulário aos grupos pró-Bolsonaro. Já no gráfico azul e laranja não existe uma correlação clara entre o agrupamento de palavras e os grupos de WhatsApp representados.
FAP lança revista Política Democrática digital
Totalmente on-line e com design responsivo, publicação tem acesso gratuito e traz análises, entrevista e reportagens especiais
Em celebração aos 30 anos da democracia e a quatro dias do segundo turno das eleições no Brasil, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lança, nesta quarta-feira (24), a revista Política Democrática em formato totalmente on-line e com design responsivo. A publicação contempla análises de renomados articulistas, entrevista exclusiva e reportagens especiais, as quais poderão ser acessadas, de graça, pelos internautas.
Nesta edição de lançamento do formato digital, Política Democrática destaca o drama de imigrantes oriundos da Venezuela que peregrinam no maior êxodo da história da América Latina e conta, em vídeos, fotografias e textos, histórias de quem atravessou a fronteira com o Brasil, em busca de sobrevivência. Repórteres da FAP viajaram a Caracas para mostrar, ainda, os reflexos do colapso político e socioeconômico que assola o país presidido por Nicolás Maduro.
Além disso, a revista também reservou, assim como para outras análises, um espaço para entrevista com a economista Monica de Bolle, única mulher latino-americana a integrar a equipe do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University, em Washington, D.C. Na avaliação dela, a agenda fiscal deverá ser prioridade do novo presidente.
Objetividade
Com o propósito de entregar conteúdo de altíssima qualidade para o público em seu novo formato, a revista reuniu um time de profissionais capazes de fazer análises do contexto brasileiro, de forma mais objetiva possível, especialmente das eleições de 2018. “O critério de seleção foi a alta capacidade profissional e interpretativa dos jornalistas e acadêmicos que assinaram as matérias, convicção que, estamos certos, justificará plenamente o título de Política Democrática”, diz o diretor da revista, André Amado.
Em relação às análises, André avalia que a publicação mostra opiniões baseadas em reflexões acadêmicas ou em experiências pessoais, que, por isso, segundo ele, “ganham legitimidade além do marco habitual e distorcido dos maniqueísmos ideológicos”. “Seu lançamento, entre os dois turnos das eleições, incorpora apreciação dos resultados da primeira volta e afina as perspectivas para a reta de chegada das candidaturas, apesar do clima visceral com que se vêm desenrolando as campanhas de um e de outro”, afirma o diretor, referindo-se aos candidatos do PT, Fernando Haddad, e do PSL, Jair Bolsonaro, à Presidência da República.
» Para acessar a revista, clique na imagem acima ou no link abaixo:
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2018/10/24/revista-politica-democratica-online/
Relevância e agilidade
O período eleitoral, de acordo com o editor da revista, Paulo Jacinto Almeida, faz com que a revista sirva como palco de debates sobre os projetos propostos para o país. “É de extrema relevância neste momento em que estamos escolhendo o próximo presidente da República”, destaca ele. “É a continuidade de um projeto existente desde o início do século, que vem debatendo política, democracia, esquerda e cultura na conjuntura brasileira e se torna fundamental ao auxiliar o internauta com informações e análises sobre este momento decisivo em nossa história”, acrescenta.
O editor ressalta que a publicação digital poderá ser acessada em qualquer plataforma, como celular, tablet ou desktop, e a qualquer momento. Segundo ele, a nova revista poderá otimizar um fator cada vez mais importante na sociedade do conhecimento: o tempo. “Ele (internauta) ganha agilidade e praticidade para se manter informado e acessar análises de temas cruciais para o nosso país”, diz Paulo.
A seguir, confira a relação de conteúdos da revista e seus respectivos autores:
*Lições do primeiro turno (Caetano Araújo)
*O que esperar de Jair Bolsonaro (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*O que esperar de Fernando Haddad (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*A verdade do oráculo digital (Sergio Denicoli)
*Quadrinhos (JCaesar)
*Reportagem de capa: Um país à beira do abismo (Cleomar Almeida e Germano Martiniano)
*Um olhar crítico sobre a democracia (João Batista de Andrade)
*Por quem os sinos dobram (Alberto Aggio)
*Ameaças à democracia (Elimar Pinheiro do Nascimento)
*Entrevista com Monica de Bolle: Agenda fiscal terá de ser prioridade do próximo presidente (André Amado, Caetano Araújo, Creomar de Souza e Priscila Mendes)
*Fernando Gasparian e a morte do nacional-desenvolvimentismo (Jorge Caldeira)
*Yuval Noah Harari investiga as inquietações do presente em “21 lições para o século 21” (Dara Kaufman)
*Atropelado pelas Emergências (Sérgio C. Buarque)
O Globo: 'Democracia é uma máquina de moderar posições', diz cientista político
Fernando Schüler avalia que eleição de 2018 é diferente por envolver 'guerra cultural'
Por Bernardo Mello, de O Globo
RIO — Doutor em filosofia, o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler vê revolução digital e guerra cultural nas eleições brasileiras . Ele acredita que o candidato do PSL à Presidência, Jair Bolsonaro, se eleito, será limitado pelas instituições.
A democracia corre risco?
O Brasil é de fato um país com instituições maduras, independentes. Não é uma república de bananas. Vejo intelectuais do exterior dizendo que estamos à mercê de um líder fascista, populista, autoritário. É uma incompreensão da capacidade de moderação que as nossas instituições têm.
A campanha de Bolsonaro tem recuado em várias declarações consideradas antidemocráticas. É só maquiagem de campanha?
Minha impressão é que esse último episódio do (deputado federal) Eduardo Bolsonaro é um exemplo significativo do poder regulador da democracia. Há uma declaração como essa, que contém um elemento antidemocrático, e imediatamente você tem uma reação da sociedade civil, da imprensa. Depois, uma negação do próprio candidato e um recuo por parte do Eduardo Bolsonaro. Não me refiro apenas à força das instituições formais. A força de uma democracia também se dá na cultura política, nas redes sociais, na opinião pública difusa dos cidadãos, em um conjunto de crenças arraigadas que servem como contrapeso a autoritarismos.
A resposta dos ministros do STF foi adequada?
Acho que a ministra Rosa Weber deu uma resposta suficiente, no tom adequado. A soberania das instituições muitas vezes se mostra no silêncio. Temos que parar de botar lenha na fogueira. Tem muita gente gostando de brincar disso no Brasil.
O senhor fala que temos uma democracia “mais barulhenta”. Em que sentido?
A democracia não voltará a ser o que era antes da revolução tecnológica. Será mais instável, tenderá ao baixo consenso. E as pessoas terão que se acostumar, é o novo normal. Você tinha milhares de pessoas participando sob o filtro das instituições, e hoje em grande medida esses filtros perderam relevância. A internet é um ecossistema de baixa empatia. Cada indivíduo tem muito pouco a perder sendo um radical na internet. O contato real entre as pessoas é muito baixo, você se comunica com avatares. O custo de agredir é muito baixo, e o benefício é relativamente alto. Você quer audiência, então tende a ter posições mais estridentes.
Nesse contexto, as fake news tendem a se prolongar como parte da democracia?
Acho que as fake news têm dois sentidos. O mais evidente é o da notícia falsa, que em grande medida é o alvo dessas agências de checagem de fatos. É um problema com o qual você pode lidar de alguma maneira. Agora, existe outro sentido, que é a distorção da informação. É a informação descontextualizada, a conclusão equivocada a partir de fatos objetivamente corretos, a teoria da conspiração, é a manchete que não combina com o texto... Isso é da natureza das redes sociais, não tem controle. Eu não esquento a cabeça com isso, sugiro que ninguém esquente.
A tecnologia, na medida em que aumenta a participação das pessoas no processo político, não muda isso?
O que a tecnologia fez foi dar poder ao alienado do jogo político. E o alienado se transformou em hooligan , num torcedor apaixonado. As pessoas tendem a se relacionar com política como se relacionam com futebol. Por que se permitem isso? Porque a capacidade de decisão é baixa, e a capacidade de socializar o custo é brutal. Quem não entender isso vai ficar falando no vazio sobre a democracia. A democracia digital explodiu aquilo que a democracia tinha como base, sem mudá-la. Deu poder ao cidadão, que continua agindo como um irresponsável. Produzir consenso numa sociedade polarizada, com grupos de pressão mais organizados, será um desafio do próximo governo.
Com militantes aparentemente mais ativos nas redes, Bolsonaro tirou vantagem nesse ponto?
A democracia é uma extraordinária máquina de moderar posições políticas. É uma máquina inclusiva. Você precisa abrir espaço na política para o que Bolsonaro representa. Você pode contestar, fazer oposição, mas não pode negar a legitimidade. Quando você chama de fascista, nazista, de “coiso”, inominável, você trata seu adversário como inimigo, está dizendo que não há espaço para ele. E isso é ruim. Por que a democracia não pode moderar as posições do Bolsonaro, como moderou as do Lula? Bolsonaro vem de uma raiz autoritária, desperta confiança sua adesão à democracia. Mas o fato dele moderar seu discurso nesse 2º turno é um pequeno sinal. Bolsonaro se mostrou eficiente como ator eleitoral. Foi um exímio operador deste mundo estranho ao sistema político tradicional. O desafio é se terá a mesma eficiência no âmbito das instituições políticas.
Como essa eleição é diferente das anteriores?
É uma eleição marcada pela guerra cultural. Vai além da discussão política. Envolve ética, moral e chega até os limites da religiosidade. Isso explica, em parte, a polarização, e também o resultado desta polarização. E isso tende a aumentar o nível de não comunicatividade. Reduz o espaço do diálogo, do dissenso, de um eleitor que assiste ao debate e pode mudar de opinião.
Qual é a relação desta guerra cultural com a atenção da esquerda a bandeiras progressistas, como aborto, drogas e feminismo?
Na verdade, as eleições globalizaram a política brasileira. Essa temática cultural e moral é da política contemporânea, não só do Brasil. Em boa parte dos países você tem o tema dos refugiados, que é uma forma de traduzir o conflito cultural, e discussões sobre nacionalismo. No Brasil, não temos esse populismo xenofóbico. A marca do nosso neopopulismo é o apelo genérico à ordem e à retórica antissistema. E há também a pauta do conservadorismo de costumes, que não é nova. Ela existe na sociedade, o que se reflete em certa medida no tamanho da nossa população evangélica. E Bolsonaro tem vantagem nesse público.
De onde surge esta polarização?
Esta cisão vem desde os anos 2000. Na eleição do Lula, em 2002, ele instaura no Brasil uma narrativa excludente, do "nunca antes nesse país", e cria as condições para que a sociedade vá se polarizando. Bolsonaro é, em grande medida, o resultado de uma polarização que já vem de longe. Houve um momento em que Lula não tinha oposição no Brasil, mas foi se criando uma oposição que inicialmente não era visível, uma reação grande à esquerda.
Bolsonaro, sob esse ponto de vista, tornou-se voz de uma parte da sociedade que não estava representada?
A democracia brasileira é hoje muito mais complexa e mais rica do que foi no passado recente. PT e PSDB representavam uma cisão da social-democracia com pouca cisão cultural. Só que tem uma parcela da sociedade muito mais profunda que o Bolsonaro expressa, e que estava à espera de um porta-voz majoritário. Ele tem, obviamente, capacidade de comunicação. Você junta isso com a falência do sistema político tradicional e dos serviços públicos, e com movimentos de massa surgindo a partir de 2013. E há um processo novo, que é a democracia digital. O cidadão comum tinha pouco peso quando não estava nos sistemas de mediação, como o partido, o sindicato, a própria mídia. Mas a internet o transformou em ator.
Bolsonaro repete Lula de alguma forma?
São dois personagens que apostam na retórica do nós contra eles. Genericamente, a gente pode chamar de retórica do amigo/inimigo. Na democracia, você tem adversários, não inimigos. Ambos trabalham de maneira distinta com retóricas divisivas, de confronto, excludentes. Lula enfatiza o elemento econômico, com ecos distantes da luta de classes. Bolsonaro introduz um elemento moralizante: é o cidadão de bem contra o marginal e contra a elite política corrompida.
Bruno Boghossian: 'Faxina' de Bolsonaro é mais uma página de cartilha autoritária
Ataque direcionado indica interesse em usar o poder para punir opositores
Perto do poder, Jair Bolsonaro recita com desenvoltura a cartilha de líderes autoritários. Além dos frequentes sinais de desapreço pelas instituições do país, o candidato agora indica que pretende perseguir opositores e penalizar quem contraria seus interesses políticos.
No domingo (21), em discurso exibido nas manifestações a seu favor, o candidato fez um novo ataque ao PT e prometeu uma “faxina”, “uma limpeza nunca vista na história”.
“Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora, ou para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse.
A aplicação firme das leis está na ordem do dia, mas não se ouviu o mesmo sobre marginais azuis, laranjas, brancos ou verdes. Para Bolsonaro, a autoridade pode ser usada para expulsar ou prender opositores.
Na mesma fala, o presidenciável disse que Fernando Haddad e outros petistas “vão apodrecer na cadeia”. E ameaçou: “Vocês, petralhada, verão uma Polícia Civil e Militar com retaguarda jurídica para fazer valer a lei no lombo de vocês”.
Bolsonaro tem uma plataforma de combate à corrupção, linha dura na segurança e defesa de valores morais. Eleito, terá legitimidade para fortalecer as instituições em busca desses objetivos, mas parece mais interessado em reprimir alvos políticos.
Quando artistas se manifestaram contra sua candidatura, ele disse que cortaria o financiamento cultural. Afirmou também que governadores que fizerem “oposição radical” terão “tratamento secundário”.
Em recado a grupos críticos, também declarou que vai “botar um ponto final em todos os ativismos”. Deve ter esquecido que era um ativista quando saía em protesto contra os baixos salários dos militares.
Já que aceitaram entrar no jogo da democracia, Bolsonaro e seu time precisam se habituar ao contraditório. Nessa arena, não entram presidentes dispostos a eliminar seus opositores, nem cabos e soldados despachados para fechar tribunais que tomam decisões contestáveis.
Míriam Leitão: Risco Venezuela não tem ideologia
O risco Venezuela não é de esquerda nem de direita, é do autoritarismo que desrespeita as instituições. PT já desmereceu o STF. Filho de Bolsonaro fala em fechá-lo
A reação à declaração do deputado Eduardo Bolsonaro foi forte, pela grande probabilidade de eleição do seu pai, mas também porque o candidato sempre foi associado ao pouco apreço pelas instituições democráticas. O temor é de que a ida do seu grupo ao poder signifique o início de um processo de cerco à democracia, que na Venezuela do coronel Hugo Chávez começou pelo enfraquecimento do Judiciário. O risco Venezuela sempre esteve associado ao PT, e o partido fez por merecer, mas na verdade o perigo não é de direita nem de esquerda. É do autoritarismo.
A ameaça sobre a democracia atualmente não é a de um assalto. É a de ver seus pilares minados por atos de um governante populista e autoritário como foi Chávez. O ataque se dá por aproximações sucessivas e não mais como vimos nos anos 1960 no Brasil. Hugo Chávez tentou um golpe no estilo clássico, em fevereiro de 1992. Alegava ser contra a corrupção. Conseguiu o apoio de uma parte das Forças Armadas, mas fracassou. E esse Chávez é que recebeu elogios de Jair Bolsonaro. O coronel foi preso, indultado, mas, em 1998, chegou ao Miraflores pelo voto, dizendo que faria uma revolução socialista. E foi esse Chávez que recebeu o apoio do PT.
Ao contrário do que acha o PT, não existe ditadura do bem. É o que o chavismo mostrou. Fui à Venezuela em 2003. Havia uma greve geral no país, comandada por empresários, contra o governo. Eu o entrevistei no Miraflores. Era uma presidência militar. Ele vivia cercado de militares de alta patente em seu gabinete e ministério. O ambiente no Palácio me lembrou o clima do Planalto na ditadura brasileira. Chávez brandia a Constituição que acabara de aprovar. E depois mudou várias vezes. Ele já havia alterado a composição do Conselho Nacional Eleitoral. Depois fez o mesmo com a Suprema Corte.
Perseguiu e fechou órgãos de imprensa. Sua escalada sobre a ordem constitucional se deu por mecanismos que pareciam democráticos: quando a economia melhorava, as benesses com o dinheiro do petróleo aumentavam, ele convocava um plebiscito. Os que perdia, não respeitava. Os que ganhava, aumentavam seus poderes e enfraqueciam um pouco mais a democracia venezuelana, até que nada restou dela. Mas o ex-presidente Lula chegou a dizer que havia “excesso” de democracia na Venezuela. O PT apoiou o regime venezuelano de diversas formas, fingindo não ver seu caráter cada vez mais autoritário. Jair Bolsonaro, que se identificara com aquele coronel impulsivo, passou a criticá-lo quando ele se definiu como socialista, mas nunca reprovou seus métodos antidemocráticos.
A inaceitável fala do deputado Eduardo Bolsonaro não surge do nada. Ela reflete o ambiente político no qual seu pai sempre esteve imerso, de defesa do regime militar. Era ele atrás do pai, repetindo em mímica, o nome do torturador homenageado durante o voto do impeachment. Essa é a sua formação. Quando ele diz “a gente até brinca lá...” Lá onde? Antes de dizer que “sem desmerecer” o cabo e o soldado, bastava mandar os dois para fechar o Supremo. No meio do caminho do cabo e do soldado tem a Constituição que completa 30 anos, que nos custou uma luta de décadas, mas o deputado Eduardo Bolsonaro sequer entende que é essa a força moral que impede dois militares sem patente de fechar o órgão máximo da magistratura. Por isso, o ministro Celso de Mello chamou-o de golpista — aqui sim a palavra faz sentido — e o ministro Dias Toffoli afirmou que atacar o Judiciário é atacar a democracia. Alias, petistas também falaram em reduzir poderes do STF.
Quando estive na Venezuela, falei com os dois lados em conflito, visitando inclusive famílias divididas. Os que se opunham ao chavismo alertavam que havia o risco de o Brasil virar uma Venezuela. As instituições brasileiras foram fortes o suficiente e impediram o primeiro movimento, quando o ex-ministro José Dirceu quis instaurar um órgão de controle da mídia. O PT permanece com esse item na agenda. Por outro lado, os métodos de Bolsonaro de defender a relação direta com o eleitor são os mesmos do chavismo. O populismo, de esquerda e de direita, sempre desmerece as instituições. Por isso é que o pai Jair Bolsonaro acha que basta “advertir o garoto”. Na fala do deputado Eduardo Bolsonaro há uma ameaça gravíssima. Foi um alento a reação forte do STF.
Bernardo Mello Franco: O cheiro do fascismo
Há um esforço na praça para atenuar os riscos de um governo Bolsonaro. Suas ameaças à democracia, à imprensa e aos adversários seriam só arroubos retóricos
A ameaça foi explícita. “Se quiser fechar o STF, você sabe o que faz? Você não manda nem um jipe. Você manda um soldado e um cabo”, disse o deputado Eduardo Bolsonaro. “Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor dos ministros?”, acrescentou.
O ministro Celso de Mello, integrante mais antigo do tribunal, classificou a fala como “inconsequente e golpista”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que as declarações de Bolsonaro, o filho, “cruzaram a linha” e “merecem repúdio dos democratas”. “Cheiram a fascismo”, concluiu.
Quando foi que o bolsonarismo cruzou a linha? Em três décadas na política, o patriarca do clã nunca exibiu qualquer apreço pela democracia. Bem ao contrário. Sua carreira pode ser resumida como um persistente esforço para descreditá-la.
O capitão dedicou sete mandatos de deputado à exaltação da ditadura e do arbítrio. Já pregou o fuzilamento de adversários políticos e o fechamento do Congresso. Desmereceu o voto popular e defendeu a esterilização dos brasileiros pobres.
Ofendeu mulheres, negros, imigrantes, homossexuais. Foi denunciado por racismo e incitação ao estupro. Salvou-se dos processos graças ao mesmo STF que seu filho ameaçou fechar. Deve o favor à tolerância dos ministros, que preferiram não levá-lo a sério, e ao escudo da imunidade parlamentar.
Numa eleição marcada por ineditismos, Bolsonaro passou de azarão a favorito. Fez juras ao liberalismo econômico, que sempre combateu, e conquistou o apoio do establishment e do mercado financeiro, cujo candidato preferencial não decolou.
Ele também se aproveitou de uma sequência de erros do PT, que insistiu na candidatura de um ex-presidente preso, torpedeou outras alternativas em seu campo político e esperou para lançar um substituto a três semanas do primeiro turno.
Há um esforço na praça para atenuar os riscos de um governo Bolsonaro. Suas repetidas ameaças à democracia, à imprensa e aos adversários seriam apenas arroubos retóricos. Podem ser —mas, como ensinou seu filho deputado, será preciso “pagar para ver”.
No domingo, o capitão elevou o tom em discurso para apoiadores. Prometeu uma ampla “faxina” e anunciou tempos difíceis para quem ousar fazer oposição. “Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse. “Será uma limpeza nunca vista”, acrescentou.
O cheiro está no ar, mas há quem prefira tapar o nariz.
José Casado: Divisão no Judiciário
A eleição presidencial cristalizou uma divisão política e ideológica na cúpula do Judiciário.
Parte dos juízes entende ser necessário agir de imediato contra qualquer iniciativa do Executivo ou do Legislativo que contenha laivos de uma visão autoritária, com potencial ameaça à ordem democrática.
É nesse contexto que ocorreram as duras reações dos ministros do Supremo Celso de Mello e Alexandre de Moraes, ontem, sobre a “fórmula” para fechar o STF, apresentada pelo ex-policial e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Moraes abandonou a habitual discrição e pediu em público um inquérito contra o deputado, filho do candidato presidencial líder nas pesquisas. Levantou a suspeita de crime de incitação a golpe de Estado, previsto na Lei de Segurança Nacional.
Outros integrantes do comando do Judiciário seguem por trilha distinta. Ofereceram ao candidato Bolsonaro uma ponte para o futuro. Ela lhe permitiria irradiar as ideias sobre a regressão nos direitos civis nos tribunais federais e superiores.
Se as negociações avançarem, é provável que a proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020 contenha uma reserva para criação de novos tribunais federais.
Assim, o novo governo teria espaço para nomear quase uma centena de juízes na segunda instância e nos tribunais superiores. As escolhas, obviamente, obedeceriam à afinidade com um plano conservador nos costumes e liberal na economia.
Nessa conversa, até agora, rebarbaram-se os custos políticos e o bolso de quem paga a conta. Abstraiu-se o fato de que o Brasil mantém a Justiça mais cara do planeta.
O Judiciário consome 1,3% do Produto Interno Bruto. Significa despesa anual de R$ 364 (US$ 91) no bolso de cada um dos 208 milhões de habitantes. Esse nível de gasto com a Justiça só existe na Suíça, cuja população é 25 vezes menor e tem renda cinco vezes maior.
A perspectiva de poder aumenta o custo do antiliberalismo de Jair Bolsonaro.
José Antonio Segatto: Devagar com o andor
É quase consenso a necessidade de atualizar a Carta, o problema é conjuntura adversa
“Faça como um velho marinheiro/
que durante o nevoeiro/
leva o barco devagar”
Paulinho da Viola, em Argumento
No momento em que a Constituição completa três décadas de sua promulgação, ela tem sido motivo de crítica ou mesmo depreciação por vertentes políticas as mais variadas. De um lado, uma reação conservadora, por considerá-la demasiado democrática e comportar direitos desmedidos, chegou a propor a elaboração de outra Constituição, concebida por uma comissão de notáveis nomeada pelo presidente da República, desde que afinada com suas convicções e referendada por plebiscito; de outro, a esquerda preponderante e seus satélites - que, diga-se, votou não por acaso contra sua aprovação e, posteriormente, desafiou muitas de suas normas - prometeram refazer a Constituição por vias não muito transparentes, como, por exemplo, consultas populares, claro, sob sua condução. Verificou-se ainda uma terceira posição, congregando intelectuais e juristas, liberais de boa cepa, seduzidos pelo canto de sereia do revisionismo constitucional: uns indicando a necessidade de uma “lipoaspiração” para eliminar excessos e outros, completa reformulação para suprimir ambivalências.
As duas primeiras, entende-se, são coerentes com suas práticas e cultura políticas, visto que nunca tiveram apreço ou compromisso efetivo com os valores e os procedimentos democráticos e as instituições republicanas. Já a terceira passa a impressão de aspirar a uma Carta liberal sem impurezas, impoluta. Mas, a despeito das diferenças de concepções ideológicas, ao que parece, todas elas conjecturam que o regime político-institucional inaugurado em 1988 se esgotou.
Muitas são as restrições que se fazem à Constituição e podem ser sintetizadas em alguns itens: 1) exageradamente extensa e prolixa, contendo temas comezinhos e até excentricidades, abarcando questões que deveriam ser objeto de legislação ordinária; 2) excesso de direitos outorgados - o Estado deve tudo prover, “direito do cidadão dever do Estado”, abundância de direitos e escassez de deveres - seria responsável pelo déficit fiscal e outros problemas; 3) rigidez orçamentária e ordenamento tributário engessariam os investimentos e opções de políticas públicas; 4) amplificação de prerrogativas corporativas, além de manter privilégios adquiridos, em especial, pelo funcionalismo público; 5) alargamento da autoridade do Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal, que teria criado uma situação paradoxal no equilíbrio dos Poderes da República, com a sobreposição dos atos de legislar e do arbítrio - o que teria implicado, por exemplo, a judicialização da política e a politização do Judiciário. Obviamente há muitos outros senões à Carta constitucional, mas o que parece mais incômodo a alguns setores sociopolíticos e econômicos expressivos é o seu caráter considerado demasiado democrático, infelizmente.
Sem dúvida alguma, a Constituição tem numerosos problemas. Não só de origem, mas também decorrentes das emendas - cerca de uma centena - nela efetuadas no decorrer dos sucessivos governos e legislaturas. Desfecho de um longo e complexo movimento de resistência à ditadura, e conduzida por uma ampla e heterogênea frente democrática, a Assembleia Nacional Constituinte - composta pelo Congresso Nacional eleito em 1986 - foi cercada de grandes expectativas; deveria contemplar desde demandas sociopolíticas, há muito comprimidas, até novos interesses e requisições. É a partir dessas circunstâncias históricas - culminância da transição democrática - que se pode compreender tamanha abrangência da Constituição de 1988: 245 artigos e 70 disposições transitórias.
Entretanto, ainda que com todas as deficiências que podem ser-lhe imputadas, a Constituição, de fato e de direito, consistiu em elemento basilar - isso é inegável - que permitiu a concertação democrática dos últimos 30 anos. É possível que constitua o mais longo período de estabilidade democrática da História republicana, não obstante as crises e/ou os percalços de que são amostras os processos de impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Incorporou e tornou lei reclamos e/ou aspirações, desde as históricas até as hodiernas. Nos capítulos referentes aos direitos fundamentais, à organização dos Poderes e suas relações com a sociedade civil, foi afirmada a defesa das instituições democráticas e da soberania popular, bem como fixou normas e princípios inovadores para a garantia da “dignidade da pessoa humana”, da igualdade de condições e das liberdades indispensáveis. Ademais, ao concretizar direitos individuais e coletivos delineou as bases de um Estado de bem-estar social.
As postulações de reforma constitucional são perfeitamente plausíveis. É quase consenso a necessidade de sua atualização, para retificar suas vicissitudes e promover determinados ajustes para deixá-la em consonância com as extraordinárias transformações por que passa o mundo em geral e o País em particular. O grande problema, porém, é efetuar uma revisão da Constituição nesta conjuntura extremamente adversa, em que se assiste ao açulamento do dissenso político, ao esgarçamento da sociabilidade, à depreciação dos valores cívicos, ao protagonismo e domínio de partidos políticos e poderes destituídos de fé pública, etc. O risco de um retrocesso é real e poderia ter resultados de proporções imprevisíveis e politicamente perversos.
Tal circunstância aconselha cautela e muito discernimento político. Convida a lembrar um antigo dito popular que diz: “devagar com o andor que o santo é de barro” - maneira de expressar a necessidade de prudência em determinadas situações e momentos. Da mesma forma, sugerem os versos do compositor, citados na epígrafe, que, em meio à bruma turva é preciso movimentar-se com precaução para atingir o destino em segurança.
*José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
Luiz Carlos Azedo: O direito ao dissenso
Bolsonaro adotou um tom ameaçador, num discurso duro, que não condiz com as responsabilidades de um candidato a presidente da República de um país democrático
Assim como a alternância de poder, o direito ao dissenso é um dos pilares da democracia. Devido a isso, os ex-presidentes Collor de Mello e Dilma Rousseff foram afastados do poder — um renunciou antes de ser julgado, outra teve o impeachment aprovado pelo Congresso. E é graças ao direito ao dissenso que o deputado Jair Bolsonaro, a seis dias da eleição, é o franco favorito no segundo turno da disputa pela Presidência da República. Sua eleição, porém, caso ocorra, não será um cheque em branco. Nem o seria se houvesse vencido logo no primeiro turno.
Num ambiente empesteado pelas fake news e pelo ódio ideológico, o discurso de Jair Bolsonaro (via celular) aos manifestantes que o apoiavam na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, e em outras cidades do país, corroborou as preocupações quanto à possível vocação autoritária de seu governo e os riscos que isso poderia oferecer à democracia no Brasil. Embora conhecida, a retórica radical do candidato vinha sendo suavizada, mas no domingo recrudesceu.
Bolsonaro adotou um tom ameaçador, num discurso duro, com o objetivo de agradar aos manifestantes, que não condiz com as responsabilidades de um candidato a presidente da República de um país democrático. Ameaçou os seus adversários com a prisão e o exílio, uma atribuição que lhe foge completamente, um dia depois de virem a público declarações infelizes de seu filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), dizendo que é possível fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) com a mobilização apenas de um cabo e um soldado.
Por muito pouco, o capitão reformado não exumou o velho bordão do regime militar após o Ato Institucional nº 5: “Brasil, ame ou deixe-o!”. Disse: “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. Há duas interpretações para essa frase. A primeira: os adversários que respondem a processos ou cumprem pena na Lava Jato, como ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como qualquer cidadão brasileiro, têm direito ao devido processo legal, mesmo com os direitos políticos cassados. A segunda é mais preocupante: a esquerda brasileira é tratada como inimiga do Estado, o que representa uma ameaça às liberdades democráticas.
Alternativa de poder
Bolsonaro é uma alternativa de poder. Como tal, gera expectativas de toda ordem. Por isso mesmo, tem responsabilidades que ultrapassam a de um candidato preocupado em agradar exclusivamente aos seus partidários ideológicos. Tanto isso é verdade que não venceu as eleições no primeiro turno, depende do apoio de uma parcela da sociedade que não o tinha como preferência e optou por outros candidatos. A deriva desse eleitorado para sua candidatura não é uma lei irrevogável de gravidade; se algo pode mudar os rumos da campanha é o medo de que seu governo leve de roldão o Estado de direito democrático.
Outra preocupação tem a ver com o equilíbrio entre os poderes. Engana-se quem pensa que um presidente da República pode tudo. Nosso presidencialismo é muito contingenciado pelo equilíbrio entre os poderes. Ainda que o novo Congresso venha a ter forte representação do PSL, a maior bancada eleita é dos “vermelhos”, cuja legitimidade está fora de discussão. O Congresso sempre será mais representativo do que qualquer presidente da República, pois foi eleito pelo conjunto da sociedade.
Finalmente, há que se considerar o poder instalado, o Judiciário, que tem um papel moderador, segundo a Constituição. Pois é o Judiciário que está sendo afrontado e intimidado nesta reta final da eleição, ainda que para isso tenha contribuído bastante as chicanas que o PT vem promovendo, sistematicamente, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado e preso. O Supremo Tribunal Federal (STF), tem razão o deputado Eduardo Bolsonaro, tem só uma caneta. Mas representa a espada da Justiça.
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