Eleições

William Waack: STF reforça um vazio

A ‘surpresa’ temida pelos militares acabou acontecendo depois das eleições

A bagunça criada pelo STF é perigosa, não só pelo que possa significar para os destinos políticos deste ou daquele (no caso, Lula), mas, sim, pela destrutiva força que dali emana de insegurança jurídica. Faz tempo que o STF deixou de ser um colegiado para se transformar num ajuntamento de 11 indivíduos, cada um com suas ideias próprias do que seja a aplicação do texto constitucional. E, sem liderança, papel que seu decano não quer ou não foi capaz de assumir.

Transformado, às vezes, numa espécie de assembleia constituinte, dadas as interpretações capazes de inverter o sentido de preceitos constitucionais, o Supremo é o espelho exato do que se chamava antigamente de judicialização da política (já que o sistema político não resolve, as decisões acabam caindo no colo de juízes, que não são competentes para isso nem foram eleitos). O que existe hoje é a perigosa politização da Justiça, entendida como tomada de decisões que tem como cálculo atuar na política ou reagir ao que integrantes do Supremo possam considerar que seja “clamor popular”.

Com algum atraso – felizmente, depois das eleições – cumpriu-se um dos cenários mais temidos pelos integrantes das Forças Armadas, que pularam para o lado de Jair Bolsonaro. Com uma “canetada”, acaba sendo produzida uma surpresa de imprevisíveis consequências políticas. A de Marco Aurélio só não se tornou pior, pois o processo político já levou à diplomação de um novo presidente. Mesmo assim, a “surpresa” da decisão monocrática é que fará com que alguns desses altos oficiais, sintam agora cheios de razão: era necessário, na visão deles, frear de alguma maneira a bagunça política que, junto do esgarçamento do tecido social, ameaçava criar condições dificilmente controláveis.

Episódio ainda pouco contado em detalhes foi o temor do escorregão rumo à bagunça política que levou o ainda nem empossado atual presidente do Supremo, Dias Toffoli, a combinar com o alto-comando do Exército uma garantia contra “surpresas” (leia-se canetada monocrática). Foi a nomeação do então chefe do Estado-Maior (e agora nomeado ministro da Defesa), general Fernando Azevedo, como assessor especial do chefe do Poder Judiciário, o próprio Toffoli. Pode-se dar a isso a designação de “tutela”, mas seria um exagero. O que aconteceu, no fundo, foi a compreensão, por parte de uma série de agentes políticos, de que era necessário articular algum tipo de garantia contra “surpresas” jurídicas de consequências políticas incalculáveis.

Foi exatamente essa garantia que Toffoli deu aos militares – mas a garantia não se estendia a seus colegas de ajuntamento de integrantes do STF. As causas jurídicas mais distantes da insegurança que emana do STF não cabem neste curto espaço. Um breve resumo, as localiza exatamente na politização da Justiça – o STF, por exemplo, protelou uma decisão final sobre o artigo da Constituição que trata da prisão após condenação em segunda instância, pois alguns de seus integrantes achavam que se formaria uma maioria “beneficiando” Lula.

Como instituição, o STF sofre hoje do pior dos males, que é o descrédito – seja por decisões que inevitavelmente serão consideradas como “políticas” (e, de fato, muitas são) e, portanto, destinadas a favorecer uns e prejudicar outros. Seja por ser identificado não mais como “garantidor” dos preceitos constitucionais, mas, sobretudo, de vantagens auferidas por integrantes do Judiciário. Qualquer que seja o destino de Lula, o papel desempenhado pelo STF reforça um vazio institucional.


El País: “Se alguém da bancada do PSL cair na velha política, serei o primeiro a denunciar”, diz Orléans e Bragança

Eleito deputado na onda Bolsonaro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança propõe uma democracia parlamentarista e diz que disputa da base do PSL ainda não acabou

Por Afonso Benites, do El País

Eleito para seu primeiro mandato de deputado federal, o cientista político e empreendedor Luiz Philippe de Orléans e Bragança (Rio de Janeiro, 1969), carrega o DNA da família real brasileira. É chamado de príncipe, mas esse seria apenas um título simbólico, caso o Brasil ainda fosse um país monárquico. Na prática, ele não está na linha de sucessão. É daqueles membros da família real que recebem críticas por não lutar veementemente pelo retorno do império brasileiro, apesar de o desejar. Defende o parlamentarismo.

Pergunta. O seu nome chegou a ser cotado para ser vice de Jair Bolsonaro. Por que as conversas não prosperaram?
Resposta. Foi pouco tempo de interação com o Jair e houve muita urgência de se tomar essa decisão. É um cargo de extrema confiança. Fiquei muito grato e surpreso por ele ter me considerado. Eu não me considerava nem próximo do radar e me colocaram ali. Foi uma validação muito respeitosa do ponto de vista dele. Ele tinha uma necessidade de escolher quem de fato ele conhece porque o cargo é de alta confiança. O vice tem de ser alguém que nunca vá trair ele e esteja alinhado na perspectiva ideológica. O general [Hamilton] Mourão já tinha esse alinhamento anterior. O Mourão sempre foi o candidato que ele tinha como uma das principais opções. Quando ele avaliou o meu nome, talvez ele estivesse buscando uma segunda opção que neutralizasse esse aspecto que a imprensa poderia construir contra ele de unir apenas militares, de que os militares estariam de volta ao poder. Não acho que eu alteraria o resultado, o Bolsonaro iria ganhar de qualquer maneira e o Mourão é uma ótima escolha. É uma pessoa equilibrada, culta, superpreparada. Ele escolheu quem ele confiava mais.

P. Qual foi o peso de Jair Bolsonaro em sua campanha? Acredita que ele foi fundamental para sua eleição?
R. Fiz minha campanha totalmente independente da vinculação de meu nome com o dele. É óbvio que todos que vinham para as minhas palestras, como o processo eleitoral foi um mês depois da quase nomeação como vice, boa parte estava ali porque entendia que eu estava favorável ao Jair Bolsonaro. O jeito que eu conduzi a campanha eu não era contra, naturalmente eu me colocava a favor. Eu conduzi através das ideias. Fiz uma militância ideológica, com relação à mudança de sistema. Aqueles que votaram em mim estão mais vinculados à mudança no sistema do que vinculados a mim próprio ou Jair Bolsonaro. Não considero meu eleitor o eleitor típico do Jair Bolsonaro. Eu abranjo uma gama mais diversa, alguns eleitores que não votariam no Jair, votariam em mim, em função de conhecer minhas ideias. Mas não diria que são todos. A maioria é de apoiadores do Bolsonaro, sim. Mas, como prioridade eles estão confiando nas ideias que estou carregando comigo.

P. A volta de militares ocupando postos-chaves da política brasileira causa temor em parcela da população. Você acha que Bolsonaro tem compromisso com a democracia? Descarta a possibilidade de qualquer intervenção militar?
R. É uma narrativa totalmente falsa. Criada por todos esses partidos da esquerda, junto com o Supremo Tribunal Federal e alguns juízes que sempre foram contrários ao conservadorismo e que taxam de antidemocrático qualquer coisa que venha do Jair. Na minha experiência com o Jair, que foi pouca, mas intensa, mostra o contrário. A minha seleção para ser vice ele colocou a voto quem deveria ser o vice dele. Teve uma seleção prévia entre mim, Janaína Paschoal e Marcos Pontes. Qual outro presidente colocou a voto seu vice?

P. A voto, como? Pelas redes sociais? Quem eram os eleitores?
R. Era a própria base do Jair. Ele fez pelas redes sociais e também em um evento em que ele perguntou quem o público queria que fosse o vice. Foi por aclamação. Pelas redes sociais eu tinha perto de 70% dos seguidores dele e, na aclamação também. Apesar de ser difícil se medir aplausos. Enfim, esse aspecto de democracia que tentam colocar contra o Jair é totalmente falso. Nesse ponto, precisamos ter uma discussão mais profunda, porque essa questão de democracia que o PT e a esquerda pregam é, no melhor dos casos, uma democracia de massa.

P. O que seria essa democracia de massa?
R. São mobilizações de hordas que não são cognitivas. Não são pessoas que estão ali, dotadas de querer de fato eleger um representante. Muito pelo contrário. São mobilizações de desespero em que os problemas são distantes. São problemas nacionais monumentais e que somente um líder forte, igualmente magnânimo e grandioso poderia resolver. Essa democracia que o PT criou, que é uma democracia de massa, é totalmente o problema do Brasil. Temos de ter uma democracia local, próxima, distrital. Que os problemas sejam resolvidos localmente. E que a população se sinta forte o bastante para resolver por conta própria, não precisa de representante. A democracia do PT é pró-grandes líderes. Nesse aspecto, também sou contra essa democracia. Se por acaso ainda se chamarem de democratas, que de democratas não tem nada. O plano do Fernando Haddad era de censura da mídia, controle do Judiciário, interferência em toda a economia. Como se chama aquilo de democrático? Não tem nenhuma nuance de democracia ali.

P. Como está avaliando essa questão do Coaf envolvendo um ex-funcionário do senador eleito Flávio Bolsonaro? Acha que faltaram explicações?
R. Tudo tem de ser averiguado. Estamos vindo com força e legitimidade mudar as coisas. Então, a gente tem de dar o exemplo. Se tem coisa errada, tem de ser investigado e levado a cabo até o final. Seja de quem for.

P. E a disputa pelo protagonismo da bancada do PSL? Brigas no WhatsApp, discussões por espaço. Isso foi superado?
R. Ainda não está superado porque temos de eleger quem será líder do partido. O processo tem de ser respeitado, mas ele ainda precisa ocorrer. Esse foi o debate. O Eduardo Bolsonaro não quer esse protagonismo, e então ele abre um flanco que é uma pena que existe. E vamos definir uma liderança que seja representativa, que seja um bom interlocutor.

P. Vai entrar nessa disputa? Deve concorrer a líder do partido ou se coloca para líder do Governo?
R. Não coloco meu nome na disputa. Não me cabe disputar nada neste primeiro momento. Eu tenho de aprender o que é esse negócio de ser político. Na prática eu não conheço nada. Zero de prática. Teoria eu tenho alguma coisa.

P. Por que entrou na política?
R. Não foi por nada positivo. Não foi nenhuma motivação por conquista de glória nem nada do gênero. Foi revolta com o sistema atual. Indignação, mesmo. E frustração com o ativismo que surgia contrário ao sistema.

P. O que significa isso?
R. Significa que lá em 2014, as manifestações estavam muito rasas, estavam focadas em personalidades, em questão de corrupção, era contra a Dilma Rousseff. Tudo muito vago. E eu já estava vendo um problema sistêmico do negócio. Via que não era só a Dilma, o problema. Ela fez o que o sistema permitiu que ela fizesse. Assim como o Lula, o Temer, o FHC e o Collor. Você tem um sistema que é realmente o problema. A gente tem um presidencialismo com poucos freios e contrapesos. Há muita concentração de poder, e pouca transparência. Vamos colocar em perspectiva. O Brasil é o melhor sistema presidencialista dos países organizados como o próprio Brasil.

P. Quais seriam esses países?
R. Os países da América Latina, da África e de boa parte da Ásia. Temos instituições, separação de poderes, Judiciário independente, uma série de coisas. Agora, tudo é grau de intensidade. É tão sofisticado como o modelo europeu? Não. É tão descentralizado como modelo presidencialista norte-americano? Não. Nós não temos a prática de buscar outros canais ao poder, senão o de eleição de legislativos e de poderes executivos.

P. Aí está a concentração de poder?
R. Sim. Acabamos concentrando o poder no Executivo, com um presidencialismo extremamente poderoso. E há uma concentração de poder em Brasília. O que seriam os dois grandes problemas aqui.

P. Qual o modelo ideal, em sua opinião?
R. O parlamentarismo. Os modelos parlamentaristas europeus são mais estáveis, com muito mais freios e contrapesos. Em que a sociedade não fique à mercê de um poder Executivo em tamanho grau que o Brasil fica. É intensa uma eleição presidencial. Não é intensa uma eleição para primeiro ministro. Você faz uma troca de primeiro ministro tranquilamente. E o sistema é tão desfavorável a quem quer fazer dinheiro do próprio sistema.

Luiz Philippe diante de um quadro do imperador Dom Pedro I.ampliar foto
Luiz Philippe diante de um quadro do imperador Dom Pedro I. MARCELO JUSTO

P. Está dizendo que o parlamentarismo reduz a corrupção?
R. Sim. O sistema parlamentarista europeu é péssimo para quer ser corrupto. Um sistema presidencialista como o nosso, não. Você vê o tamanho do Orçamento que o Jair Bolsonaro vai concentrar. É mais de 2,3 trilhões de reais. Em nível estadual também é grande a concentração. São volumes monumentais. Em um sistema em que o Executivo é dono do Orçamento e pode cooptar o Legislativo – em todos os níveis, do municipal ao federal— temos corrupção. Há compra de favores do Legislativo. Aí, você tem um agravante, as políticas estatizadoras. Criou-se várias estatais com o argumento de que tudo é estratégico. Correio, banco, alimento, mineral. Tudo é nacionalizado, tudo vai para a mão do Estado. Cria-se milhares de cargos a serem preenchidos a cada Governo. Aí você tem deputados da velha política correndo para os novos ministérios querendo dar seu cartãozinho, querendo nomear pessoas na máquina estatal em seus Estados. Isso é um absurdo. Isso continua.

P. Você testemunhou essa corrida por cargos no Governo Bolsonaro?
R. Testemunhei, mas não vou citar nomes. Dos 52 deputados do PSL, 48 são deputados novos. Eu me incluo entre eles. Você tem alguns que já são tarimbados. Tenho levantado essas questões para os novos, principalmente. A maioria é ativista político e quer mudar o Brasil. Tem poucos que já são de segundo ou terceiro mandato, que tem carreira política, e que já sabem trabalhar o sistema. Se eu não tivesse levantado esse assunto, eles estariam aparelhando o Brasil inteiro sozinhos sem os outros deputados saberem. Aí, os novos dizem: “Pô, como é que eu também vou nomear”.

P. Você citou essa questão dos cargos para os seus colegas em alguma das reuniões que tiveram recentemente. É isso?
R. Sim. Citei para eles. E agora eu usaria um termo em inglês que é muito bom para este momento: the cat is out of the bag (o gato está fora do saco). Tá todo mundo vendo o que está fora do saco. E estamos todos atentos. Eu estou muito feliz com a bancada do PSL. Estou me surpreendendo, eu achava que ia me decepcionar, mas me enganei. Você tem uma dinâmica de ativistas que entraram para o partido e que estão fiéis em sua missão como ativistas. E, se os ativistas caírem para a velha política, eu serei o primeiro a denunciar. Eles estão sendo bem rigorosos e salvando várias reuniões. Também tem os militares que, de fato, estão comprometidos com essa mudança. Classistas que ainda têm dentro do grupo do PSL terão de se readequar.

P. Como seria essa readequação? Serão chamados para uma conversa?
R. Essa é uma dinâmica que perpassa por todos os partidos. Você tem partidos que são dominados pelo classismo. O PSL é um dos mais limpo em termos dessa dinâmica, mas ainda têm alguns com essa visão. E tem um que é zero de classismo, que é partido NOVO, mas tenho algumas reticências a esse partido. Em termos ideológicos e de coerência de postura política. Analisando nossa bancada, temos uma base interessante, muito boa, de novos deputados que vão realmente querer fazer mudança e vão ter vergonha na cara, de apontar alguma incoerência do partido de algum quesito.

P. Inclusive na nomeação de pessoal para cargos no Governo?
R. Te dou um exemplo com relação à nomeação. Alguns colegas já levantaram a pergunta sobre quem estava aparelhando um ou outro ministério. Na Infraestrutura já notaram que geralmente era o pessoal do PR. Aí uns disseram: “Vamos botar o nosso pessoal lá”. A priori, eu sou pró-limpeza. Somos contra a nomeação de pessoas sem o preparo técnico para ocupar tal posição. Agora, o problema é a gente estar nomeando para esses cargos. Porque neste momento somos nós, em um segundo momento pode ser qualquer outro partido. E o brasileiro fica à mercê desse jogo.

P. Pelo que estou entendendo, em sua opinião, o Bolsonaro deve fugir desse loteamento. Mesmo ele cedendo ministérios para alguns políticos filiados a partidos como MDB, NOVO e DEM. É isso?
R. Absolutamente. E ele está fazendo isso. Ele está nomeando para os ministérios rigorosamente seguindo critérios técnicos. É claro que tem abertura para um ou outro deputado. Mas são pessoas preparadas que acabam escolhendo um ou outro técnico preparado. Agora, a dinâmica de nomear só pelo partido, só pela indicação de algum parlamentar, não é boa para o Brasil. A cada mudança de Governo você ter esse tipo de coisa acontecendo é muito perigoso. É isso o que tínhamos com o PT. A grande luta com o PT foi essa. São 4.000 cargos.

P. Não, deputado. São mais de 23.000 cargos comissionados.
R. Pois é. Bem maior. Fora a máquina estadual. Enfim, tem de acabar com estatais. É isso o que cria o maior problema para o Brasil. O Brasil é aparelhável sistematicamente. Ninguém olha o óbvio. No fundo estamos nomeando para a burocracia. A sua burocracia é aparelhável a cada quatro anos. Ela muda em função da mudança de Governo. E ela está mais leal a questões ideológicas, partidárias do que a questões técnicas. Você não tem estabilidade jurídica. Na estrutura atual tudo depende dos partidos.

P. E essa dependência dos partidos é sustentável?
R. Veja, o Jair Bolsonaro entrou com 57 milhões de votos. O que representa quase 60% do eleitorado, e não temos nenhum partido que representa esses 60% do eleitorado no Congresso Nacional. O PSL chega a 15%. Aí, temos um Executivo que concentra um posicionamento político majoritário, mas não reflete na parte legislativa. Aqueles que elegeram Jair Bolsonaro também votaram em deputados do MDB, do PSDB, e em outros partidos que poderiam compor uma grande base de apoio, que daria mais segurança legislativa para o Governo. Essa base, na teoria, não existe. E é exatamente nesse ponto que o parlamentarismo é melhor, você não consegue formar um Executivo se você não tiver uma maioria legislativa. Eu não preciso falar que o Lula é bandido ou a Dilma é uma idiota, porque tem trilhões de pessoas dizendo isso, mas eu preciso apontar é como funciona o sistema que permite essas pessoas de fazerem o que elas fizeram. E elas não o fizeram só porque eram más intencionadas. Uma pessoa de mal intento, em um sistema transparente, com freios e contrapesos, ela tem sua capacidade de fazer o mal limitada.

P. Em seu mandato vai tentar trazer o parlamentarismo de volta?
R. Absolutamente. Estarei sempre discutindo essas questões.

P. Em alguns eventos notei que há militantes que te procuram para tirar fotos com a bandeira do período imperial. A volta da monarquia é algo que está em sua agenda?
R. Esse é um movimento social que cresceu muito e espontaneamente. A família [real] não está fazendo nada, não estabeleceu data, não tem mobilização. Acontece à medida em que as pessoas sabem a história e contextualizando e desmistificando mitos de mais de cem anos. São pessoas que notam que nenhum sistema é perfeito, mas começam a questionar o que tínhamos no período do império e perdemos agora. Isso tudo vem à tona espontaneamente. Mas eu não tenho nenhuma proposta na mesa para a volta da monarquia. Eu quero estabilizar os nossos sistemas político e econômico. Eu conseguindo fazer isso, minha missão está dada.

P. Como seria essa mudança que você almeja?
R. O que causa instabilidade de nosso sistema é você ter muita intervenção de Estado na economia, muito dirigismo e regulamentação e não ter a livre iniciativa no comando. Você tem o Estado no comando disso tudo. Portanto, é desestabilizador a longo prazo. A curto prazo pode até ver um benefício aqui e acolá. Nada mais é que uma distorção de uma realidade que não é insustentável. É o que causa quebras. O Estado intervém, cria-se uma bonança falsa e dez anos depois tem uma quebra geral do país. E isso causa também efeitos políticos. Nos anos 1970 foram de bonança no Brasil, liderado pelos militares, crescimento absurdo, dois dígitos por ano, o milagre econômico. E nos anos 80 foram os da falência do Brasil. Tivemos de pagar tudo aquilo que foi feito nos anos 70. O mesmo se gerou com Lula e Dilma. Altos investimentos e uma alta propensão a fazer grandes obras. E agora, vemos a quebra desse modelo que não é sustentável. Esse modelo não gera riqueza e você tem de girar riqueza para criar uma classe média mais forte e maior, tirar gente da pobreza. Temos de fato de nos tornarmos um país favorável à livre iniciativa e desfavorável às intervenções de Estado, planos nacionais e todas essas baboseiras que vivemos nos últimos 100 anos.

P. E no campo político?
R. Do ponto de vista político, você precisa fragmentar o poder. O problema é a concentração demasiada, o controle muito fácil de dinheiro com prefeitos, governadores e presidente controlando orçamentos monumentais e poucos mecanismos de freio dos diversos poderes. Como você tem pouca representatividade legislativa, você tem de esperar que ele cometa um crime grave para que sofra o impeachment. Ou esperar para exercer um voto contrário em um ciclo eleitoral futuro. Isso é muito pouco. Temos de criar mecanismos de democracia como um recall de mandato para começar frear essa dinâmica política que também é destrutiva. O governador ou presidente eleitos hoje têm o poder de criar mais poderes, cria bancos, estatais, autarquias. Se eles querem criar mais poder para eles mesmos, tem de ter um referendo. Tem de ter uma maneira de frear ou plebiscitar essas medidas. Isso neutraliza a ascensão de poderes nominativos que não são validados democraticamente pelo voto ou por interferência direta nossa. A descentralização política é fundamental nesse processo. Trazer o eleito mais próximo do eleitor, através do voto distrital, do recall de mandato e referendar as medidas de criação de mais Estado.

P. Não te interessa o retorno da monarquia?
R. Eu adoraria que tivéssemos um sistema monárquico. Eu não estou na linha sucessória, não seria eu o rei. Esse movimento tem caminhado naturalmente com a população, que tem acesso à informação independente. Eu até sou criticado pelos monarquistas: “pô, você não está fazendo nada pela monarquia”! Não estou, mesmo. Tem de ser algo natural. Tem vários cabos eleitorais. As pessoas capturam a realidade e tomam suas próprias opiniões. Cada monarquista que se apresenta é o nascimento de um novo brasileiro. O que para nós é uma realidade muito positiva. Essas pessoas concluírem que, em um momento, vivemos em um país sério.

P. Você costuma dizer que um dos primeiros golpes brasileiros foi o fim da monarquia, em 1889. É isso, mesmo?
R. Isso está bem aceito entre a academia, seja o historiador de esquerda ou de direita. É um fato consumado. Foi um golpe militar. Não tem nenhum observador independente que não conclua isso. Obviamente que, tem uns que foram favoráveis a esse golpe e pormenorizam o fato que houve um golpe. Dizem que o Pedro II era velho, o modelo era antigo, que monarquia era um retrocesso. Eles não falam que foi golpe.

P. Boa parte da bancada eleita pelo PSL contra o casamento de homossexuais e aborto. Nesses temas como você se posiciona?
R. Não sei por que se posicionar. Não vejo nenhuma lei sendo colocada contrária ao casamento homossexual. Não vejo nenhum político conservador sugerindo uma lei para alterar a atual regra do aborto. Você faria um grande favor aos seus colegas em definir melhor o que significa esse “se posicionar”. Não há nenhuma urgência de nada, nenhum candidato conservador está propondo nada diferente. Não somos nós que queremos alguma coisa. São os progressistas que querem algo muito além do razoável. Eles é que querem dar o direito universal ao aborto, eles que querem promover todo o tipo de casamento como algo legítimo e legal. Isso está errado. A lei atual já incorpora os homossexuais e já incorpora exceções à possibilidade de aborto. Então, para que mudar isso?

P. E por que não mudar?
R. Os progressistas querem destruir mais. Querem promover o casamento homossexual para criancinhas nas escolas. É isso o que a gente é contra. Essa questão tem de ser pontuada de maneira mais inteligente. Os conservadores estão dando risadas sobre esse debate e que fulano é contra o aborto. Somos a favor e manter a lei como está. O que ocorre sistematicamente na imprensa é que se faz um frame da pergunta de maneira errada. É claro que eu não sou a favor do aborto. Agora, eu sou contra o progressismo que quer transformar o aborto como algo fundamental e um direito universal de toda mulher. Eles estão se mobilizando do outro lado lá e querem mexer na lei. Ela está certa já.

 

O MONARQUISTA DO CONGRESSO

Luiz Philippe posa para foto com admiradores em Foz do Iguaçu.
Luiz Philippe posa para foto com admiradores em Foz do Iguaçu. A.B.

Nos últimos três anos Bragança, formado em administração pela FGV e com mestrado em Stanford, nos EUA, dedicou-se a militar politicamente por intermédio do movimento liberal Acorda Brasil. Esteve entre os defensores do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e percorreu boa parte do país participando de debates sobre as crises política, econômica e institucional. O assunto lhe rendeu um livro: “Por que o Brasil é um país atrasado?” (Ed. Novo Conceito). Os temas que desenvolveu nessa obra se transformaram em longa explanações feitas em uma espécie de palanque.

Na campanha eleitoral, ao invés de comícios ou passeatas, ele fazia palestras de até três horas –já eleito explicou, por exemplo, que em sua visão o DEM de Rodrigo Maia, ex-PFL e ex-Arena na ditadura, é de "esquerda". Segundo ele, foram essas apresentações que lhe renderam parte considerável de seus 118.457 votos pelo PSL de São Paulo. “Aqueles que votaram em mim estão mais vinculados à mudança no sistema do que vinculados a mim próprio ou a Jair Bolsonaro”, afirmou ele ao EL PAÍS, sem negar o peso que a onda Bolsonaro teve para o seu sucesso. O príncipe chegou a ser cotado para ser vice-presidente de Bolsonaro, mas foi preterido pelo general Hamilton Mourão (PRTB).

Por quase todo evento público em que transita, Bragança é parado por algum “monarquista”, que pede para tirar uma foto. Geralmente portam a bandeira imperial do Brasil (como a de uma das fotos que ilustram essa reportagem). Os pedidos são atendidos e as conversas, ou entrevistas, encerradas com um discreto sorriso.


Luiz Carlos Azedo: A língua do índio

“O Brasil tem cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional”

Um grito de guerra virou bordão no Centro Cultural da CCBB, onde funciona a equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro: “Selva!” É um cumprimento militar adotado em todas as unidades vinculadas ao Comando Militar da Amazônia (CMA), espalhadas em 62 localidades e envolvendo seis estados e partes do Maranhão e do Tocantins. A saudação simboliza a integração entre oficiais e a tropa formada por caboclos, mamelucos e índios.

Um vídeo produzido pelo próprio Exército brasileiro, nos confins da Amazônia, ilustra a mística: mostra meia dúzia de soldados-índios de diversas etnias se apresentando em sua língua nativa, mas fazendo a saudação em português que virou bom dia e boa noite também no Palácio do Planalto, entre funcionários do governo que fazem parte da mobília do poder e aguardam os novos chefes. A origem da saudação é a Oração do Guerreiro da Serva, de autoria do tenente-coronel Humberto Leal, que vive em Petrópolis, a Cidade Imperial. “Dai-nos hoje da floresta:/A sobriedade para persistir;/A paciência para emboscar;/A perseverança para sobreviver;/A astúcia para dissimular;/A fé para resistir e vencer. /E dai-nos também, Senhor, /A esperança e a certeza do retorno”, diz o principal trecho da oração, que resume o treinamento dos batalhões especiais de selva.

Em São Gabriel da Cachoeira (AM) ou no 5º Pelotão de Fronteira de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, na divisa com a Venezuela e a Colômbia, os soldados índios das etnias tucano, inhangatú, aruac e yanomami são maioria na tropa. Entretanto, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, quando Comandante Militar da Amazônia, notabilizou-se pela crítica à política indigenista tradicional e anteviu a possibilidade de conflitos na região, por causa da Venezuela e da Guiana, entre outros pontos da fronteira. Esse é o xis da polêmica sobre a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol, uma das maiores terras indígenas do país, com 1.743.089 hectares e 1.000 quilômetros de perímetro. O nióbio é só um pretexto. Mais da metade da área é constituída por vegetação de cerrado, lá chamado de “lavrado”, e uma região montanhosa cujo topo é monte Roraima, marco da tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. É impossível, porém, guarnecer a região sem o apoio dos índios.

Recentemente, o Departamento de Estado norte-americano pressionou o governo brasileiro para que mandasse tropas para Guiana, temendo uma invasão venezuelana do país vizinho, o que foi rechaçado pelo governo Temer. Nesse aspecto, o futuro ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional tem razão: a política do governo Bolsonaro vai aumentar a tensão na fronteira com os venezuelanos. A dúvida é se mandaremos nossos soldados-índios para Guiana.

Inganhatú

O Brasil tem atualmente cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional, ou 109,6 milhões de hectares. A maior parte — 108 milhões de hectares — está na chamada Amazônia Legal, que abrange os estados de Tocantins, Mato Grosso, Maranhão, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Acre e Amazonas. Quase 27% do território amazônico hoje é ocupado por terras indígenas, sendo que 46,37% de Roraima correspondem a essas áreas. Isso se tornou o grande pomo da discórdia por causa do choque com arrozeiros, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros que atuam ilegalmente nas reservas.

Esse choque agora tende a se acentuar, porque o responsável nomeado para responder pelo licenciamento ambiental e as políticas de reforma agrária é o atual presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Nabhan Garcia. Ele vai assumir funções que hoje cabem à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e à Fundação Palmares, que serão esvaziadas. Sai de baixo. É bom lembrar que as tribos indígenas de hoje são as que resistiram à escravidão e ao extermínio.

» Vídeo de soldados índios: https://www.youtube.com/watch?v=XiimXLxJL-w

E a língua do índio? A música Tu Tu Tu Tu Tu Tupi, de Hélio Ziskind, virou roteiro de um vídeo que faz muito sucesso nas redes sociais. Diz a letra: “Todo mundo tem/um pouco de índio/dentro de si/dentro de si/Todo mundo fala/língua de índio/Tupi Guarani/Tupi Guarani/E o velho cacique já dizia/tem coisas que a gente sabe/e não sabe que sabia/e ô e ô/O índio andou pelo Brasil/deu nome pra tudo que ele viu”. Deu mesmo: jabuticaba, caju, maracujá, pipoca, mandioca, abacaxi, tamanduá, urubu, jaburu, jararaca, jiboia, tatu, arara, tucano, araponga, piranha, perereca, sagui, jabuti, jacaré, Maranhão, Maceió, Macapá, Marajó, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Jundiaí, Morumbi, Curitiba, Parati, Tatuapé (caminho do tatu).

Não é o caso do presidente eleito, Jair Bolsonaro, descendente de italianos e alemães, mas a maioria dos brasileiros tem sangue indígena. Vem daí a simpatia por eles. Mas índio Um dos mitos fundadores do Exército Brasileiro é o índio potiguar Antônio Felipe Camarão (poty, na língua tupi). Em Glicério (SP), onde nasceu o presidente eleito, até meados do século 19 falava-se inhangatú, a língua geral paulista disseminada pelos bandeirantes pelo país afora. Cerca de 73,31% dos 29,9 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira, na Cabeça do Cachorro, onde as Forças Armadas mantêm várias unidades, falam o tucano, o baníua e, principalmente, o nheengatu ( a língua geral da Amazônia, também de origem tupi), que mantém o caráter de língua de comunicação entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes etnias , como os barés, os arapaços, os baniuas, os werekena.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-lingua-do-indio/

 


Folha de S. Paulo: Bolsonaro é resposta tosca, mas não ameaça a democracia, diz Mangabeira Unger

Guru de Ciro Gomes diz que PT preferiu ser derrotado a perder a atual hegemonia na esquerda

Por Carolina Linhares, da Folha de S. Paulo

Para o filósofo Roberto Mangabeira Unger, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) é uma resposta tosca a uma aspiração legítima do Brasil profundo de botar para quebrar.

O professor da Universidade Harvard (EUA) critica a hegemonia do PT, de Lula. "Como eles vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria."

Guru de Ciro Gomes (PDT), ele assume erros na campanha.

 Qual o significado da eleição de 2018? 
Foi um plebiscito sobre a volta do PT. A maioria decisiva dos brasileiros estava disposta a pagar quase qualquer preço para evitar o retorno do PT. O PT e o Lula deveriam ter tido a grandeza de reconhecer que a maioria dos brasileiros não aceitaria a volta do PT. Não havia qualquer chance de vitória do candidato do PT, mesmo que Lula pudesse ter sido candidato. O natural é que o PT desde o início tivesse apoiado Ciro.

E por que Ciro não venceu? 
Ciro e nós, seus aliados, cometemos um erro. Havia dois caminhos. Um era acertar-se com Lula e com o PT. Aceitar ser vice de Lula para depois virar cabeça de chapa. Havia objeções a isso, devido à diferença entre os projetos par o país e à falta de confiança nos acertos do PT, que tem uma longa história de dar rasteiras. Esse caminho tinha uma consistência tática.
O outro caminho era romper desde o início com o PT. Deixar clara a diferença de projeto e oferecer-se ao eleitorado como uma alternativa mais confiável do que Bolsonaro. O erro foi ficar no meio termo. Muitos até o final continuaram a achar que o Ciro era um homem de Lula. Isso é que foi fatal.

Ao não declarar apoio a Haddad no segundo turno, Ciro buscou esse afastamento? 
Tarde demais para superar os males gerados por essa ambiguidade. Ciro passou muito tempo explicando-se para as classes ilustradas e endinheiradas, que na maioria jamais votariam nele, em vez de buscar o povão.

Qual dos caminhos que o sr. mencionou para Ciro era melhor? 
Os dois tinham consistência. Se ele escolhesse o acerto com o PT, não havia nenhum risco de que, no poder, ele se conduziria como instrumento do lulismo. Eu advoguei essa alternativa.

O sr. não disse que tem que correr fora da raia do lulismo? 
Você está fazendo confusão. Uma coisa é o caminho tático. Nós não escolhemos as circunstâncias. Se fosse o primeiro caminho, haveria o problema da confusão da população, porque ficaria manifesto que o Ciro tem um outro projeto.

Mas ele seria eleito? 
Com grande chances, com o apoio de Lula, mas sendo não-Lula e sendo quem é, inconfundível com poste, teria grandes chances. O [caminho] preferível teria sido começar de lá de trás essa pedagogia da diferença.

O sr. disse que é preciso correr fora da raia do lulismo... 
Eu não disse isso, Fernando Haddad atribuiu essa frase a mim, porque ele confundiu duas coisas: a questão tática com a questão de fundo. Sinceramente eu acho que ele, meu amigo, até hoje não compreende a diferença substantiva dos projetos.

Como o sr. explica a ascensão de Bolsonaro?
PSDB e PT juntos, duas cabeças da mesma serpente, conduziram o Brasil por uma lógica da cooptação. Cada parte do país foi comprada, a corrupção foi apenas um dos vários corolários desse sistema. Intuitivamente o Brasil buscava passar da lógica da cooptação para a lógica do empoderamento. E por trás dessa rejeição ao PT havia o repúdio à lógica da cooptação.
O modelo que chamamos de nacional consumismo democratizou a economia do lado da demanda e do consumo, não do lado da produção. O agente social mais importante do Brasil, os emergentes, é órfão de projeto político. Não é apenas a pequena burguesia empreendedora mestiça, morena, que vem de baixo. É também uma multidão de trabalhadores pobres que vê nos emergentes a vanguarda. Essa é a cara do Brasil profundo.

A esquerda abandonou essa população? 
Chamar de esquerda o PT é muito esquisito. Porque esse nacional consumismo não tinha qualquer projeto de mudança estrutural. A parte social é o açúcar com que se pretendia dourar a pílula do modelo econômico. Esse Brasil profundo quer desesperadamente mais do que açúcar. Quer instrumento e oportunidade. Quer botar pra quebrar, criar, construir, inovar, ser gente. ​Bolsonaro é o beneficiário acidental desse desejo frustrado. Acidental não é para desmerecer o esforço que ele fez durante anos de construir um discurso e canais para esse Brasil desconhecido, que é o agente decisivo hoje.

Bolsonaro teve essa estratégia ou foi sem querer? 
Intuitivamente sim [teve estratégia]. Oferece soluções simplistas, mas que no imaginário apelavam para uma ideia de libertação e merecimento. Era a forma simplista e até distorcida e mentirosa de uma aspiração legítima.

Por que o PT não apoiou Ciro? 
Tudo indica que preferiam perder o poder à direita a perder a hegemonia na esquerda. Por soberba, sobrevalorizando a sua influência sobre a população e subvalorizando a descoberta pelo povo brasileiro da insuficiência do projeto petista. Um povo farto da lógica da cooptação nacional consumismo e buscando o empoderamento. Isso era o mais difícil de eles aceitarem porque seria uma crítica fundamental a eles mesmos.

O sr. concorda com essa estratégia de oposição sem o PT? 
Existe a tarefa pedagógica de esclarecer a divergência de fundo. PT não é esquerda. Precisamos de inovação estrutural. Andar demais com o PT é um perigo sob o ponto de vista dessa tarefa.
E eles continuam a ter aspirações hegemonistas, então é difícil andar com eles. Acham natural eles liderarem. Como vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria.
Não é razão para não conversar com eles. Por exemplo, eu hoje à noite [dia 5] vou jantar com Haddad. Não vou dizer que eles são diabólicos, mas os puritanos nos EUA têm um provérbio: “quando jantar com o diabo, use uma colher muito comprida”.

Do ponto de vista eleitoral, é possível que a esquerda chegue ao poder rejeitando Lula e o lulismo?
Precisará de eleitores que votaram em Lula, não precisará necessariamente do PT e do Lula. Gostaria que Lula tivesse grandeza de compreender tudo isso.

Bolsonaro fará um bom governo? 
Me parece promissor, e falo como opositor, a ideia de impor o capitalismo aos capitalistas. Nem de longe é condição suficiente para o modelo de desenvolvimento que precisamos, mas é condição preliminar. A radicalização da concorrência, quebra dos cartéis, a destruição dos favores dados aos graúdos pelos bancos públicos.
E de oferecer aos emergentes um projeto político que responde às aspirações deles. Considero que a resposta é tosca e que irá frustrar parte da população. Mas é melhor do que nada. O que era intolerável no nosso país é que o agente social mais importante estivesse alienado da política e não se sentisse representado.

Como e quando a população será frustrada? 
Quero acreditar que o momento Bolsonaro seja um primeiro momento em que rejeitamos a cooptação e tentamos constituir, numa forma tosca e insuficiente, a lógica do empoderamento.
O provável é que Bolsonaro consiga alguns feitos, mas que pare no meio do caminho. [Ele] Julga que o conserto das regras tributárias e da Previdência melhoraria o ambiente geral dos negócios. É uma preliminar indispensável, mas não resolve o problema.
A democratização do consumo se pode fazer só com dinheiro, mas democratizar a produção exige inovação institucional política e econômica. É uma nova vanguarda, da economia do conhecimento. Não há nenhum país grande no mundo que por sua natureza tenha mais pendor para esse experimentalismo radical do que o Brasil.Há
um empreendedorismo vibrante no Brasil, mas em grande parte, primitivo. Teríamos que começar a qualificá-lo. Temos que burilar nossa vitalidade, não difamá-la como barbárie e regressão.

Bolsonaro não é o experimentalismo radical? 
Não. Não é a ideia de que existe a forma simplista de acabar com a bagunça. A ordem na sala de aula, a força contra crime, é o presidente não comprar os partidos. Não é acabar com a bagunça, é transformá-la numa anarquia criadora. Não vamos impor ao país uma camisa de força.
A severidade moralizante, a fórmula pronta, o revólver, a ordem patriarcal. Tudo isso é uma fantasia arcaica, de que há um atalho, uma maneira simples de encontrar esse futuro que queremos. O Brasil vai descobrir que esse atalho não funciona, mesmo assim eu julgo que essa primeira onda será útil ao país e talvez, retrospectivamente, venhamos a pensar que ela foi necessária.

Bolsonaro é uma ameaça à democracia? 
Não vejo qualquer indício concreto de ameaça direta à democracia. Em Harvard, meus colegas me abraçam em solidariedade porque passa por lá que Mussolini assumiu o poder. Não é nada disso. O risco que nos ronda não é a ditadura fascista, é a perpetuação da mediocridade. O risco à democracia pode haver depois, por sucessivas frustrações dessas aspirações dos emergentes, de empoderamento.

Como vê Sergio Moro no Ministério da Justiça? 
Outro aspecto positivo de Bolsonaro é a desorganização dos acertos entre oligarquia do poder e oligarquia do dinheiro. Moro pode ser útil nisso. Muito bom para o país. Desde que não caiamos sob o governo dos juízes, que não têm eficácia ou legitimidade para governar. Eles são úteis ao país para abrir o espaço cívico e impedir que ele seja corrompido, mas não para ocupá-lo.

O que acha da política externa de Bolsonaro?
Há duas vozes dominantes na política exterior brasileira. A primeira é a da política exterior como sucursal da UNE. É retórica, nunca foi real. Por exemplo, nos assuntos da Defesa, o Brasil é um protetorado dos EUA e o PT nunca levantou um dedo para mudar isso. A outra voz é a política exterior como sucursal da Fiesp. É um bazar para vender os nossos produtos.
O que eu temo é que a política exterior do governo Bolsonaro venha a ser a continuação da mesma coisa, a justaposição dos dois erros. É o simbólico com sinal trocado, em vez de anti-imperialismo é antiglobalismo. Um tão ruim quanto o outro. Justaposto ao pequeno mercantilismo. É um bazar permanente.

E a relação com os EUA?
De um lado, dizemos “vamos ser como eles”. Eles buscam grandeza, nós vamos buscar grandeza. E qual a fórmula da grandeza? É nos subordinar a eles. Isso é algo que não passa, justificado por essa retórica confusa do antiglobalismo.
É a ambiguidade do discurso do Bolsonaro. Não está só trocando o sinal, passando de uma política ideológica para outra e não concebendo a política exterior como política de estado. Estão usando a política exterior como se fosse o reino do simbólico. Os astrólogos escolherem chanceleres. Isso só aconteceu na Babilônia há três mil anos.

 


Alberto Aggio: A irrupção da antipolítica

A ‘não realização’ da democracia aos olhos, ouvidos e coração dos cidadãos é sua origem

Desde 2013 a sociedade brasileira vem sendo impactada pela antipolítica. Por diversas formas, um sentimento negativo em relação à política foi se avolumando até atingir o coração da disputa eleitoral de 2018. O que era latente acabou sendo promovido a uma espécie de paradigma, moldando uma verdadeira revolta da sociedade contra a política.

Da erosão do sistema de representação avançou-se celeremente para o rechaço integral à atividade política, considerada nosso grande mal. Capturada pelo sistema de Justiça, a corrupção sistêmica que se realizou durante os governos petistas, promovida pelo partido majoritário e por seus aliados, é considerada sua causa maior. Mas é necessário incluir aí o até então principal partido de oposição ao PT, o PSDB, que não ficou distante desse descalabro, como vem sendo comprovado dia após dia.

No processo eleitoral recente, a antipolítica assumiu o papel de irmã gêmea do antipetismo, ampliando sua negatividade para a esquerda, a social-democracia e mesmo para a democracia. O rechaço acabou se espraiando, fazendo emergir até um anti-intelectualismo que levou de roldão intelectuais, artistas e jornalistas, especialmente aqueles que tiveram algum protagonismo na sociedade desde os anos da redemocratização. Todos passaram a ser vistos como atores contaminados pela corrupção ou por interesses mesquinhos ou mesmo partidários.

A antipolítica estabeleceu, independentemente da cor ideológica de quem a vocalizava, uma solução impostergável: a ideia de que sem mudar, já e radicalmente, não haveria alternativa para o País. E mudar significava deslocar a “velha classe política” e pôr em seu lugar “o novo”, o que quer que isso pudesse significar.

Essa narrativa de condenação dos últimos 30 anos sustentou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL) e de alguns governadores de Estado que, aparentemente, sugiram do nada, selando a reviravolta. Em cinco anos se passou da consigna “sem partido” à sedução generalizada de seleção das novas elites governamentais em setores externos à política organizada, chegando ao extremo de um governador eleito pretender encaminhar a escolha dos quadros de primeiro escalão por meio de empresas headhunter.

O casamento da antipolítica com o pensamento que sustentou regimes totalitários não é raro na História. Não há como negar que o pensamento marxista, desde suas origens e na vigência do chamado “comunismo histórico”, expressou uma fragilidade intrínseca em relação à política, em especial à política democrática. Por outro lado, é largamente conhecida a ojeriza do nazismo à política tout court. A assertiva de J. Goebbels, para quem os partidos seriam o grande mal, já que eles “vivem dos problemas da política e não buscam resolvê-los”, não deixa dúvidas. Ambos exemplificam a temeridade incrustada em opções estratégicas sustentadas na antipolítica.

Cenários de crise e de degradação favorecem a antipolítica na conquista de espaços de poder. Na Europa, por exemplo, a crise da democracia tem origem no colapso fiscal do Estado de Bem-Estar Social, concomitante ao avanço da globalização. Isso propagou uma onda negativa de questionamento dos Estados nacionais e depois da União Europeia. A crise da democracia transformou-se, então, numa crise da política. É aí que surgem os atores da antipolítica do nosso tempo, chamados de forma ligeira de “populistas”.

O problema é, contudo, mais profundo e complicado. Envolve aspectos essenciais a respeito da crença na democracia e em suas possibilidades de reinvenção. O pano de fundo de onde emerge a antipolítica é, na verdade, a “não realização” da democracia aos olhos, ouvidos e ao coração dos cidadãos. Isso porque, como demonstrou Tocqueville, a democracia quer garantir a todo ser humano tudo o que se deseja, teoricamente sem nenhum limite – essa a sua “promessa”. Contudo ela funciona unicamente se os desejos estiverem dentro de certos limites. Em outras palavras, a democracia constrói e reforma instituições para mediar desejos, apetites e sentimentos para garantir seu funcionamento. Mas, no essencial, empurra os indivíduos a desejarem para além dos seus limites e assim põe em perigo constante a própria sobrevivência daquele tipo de cidadão que ela não pode dispensar. Em síntese, o espectro da antipolítica espreita permanentemente o percurso de construção da democracia moderna.

Mesmo numa conjuntura problemática, a democracia tem possibilitado aberturas tanto ao que se poderia chamar de hiperdemocracia (a democracia como critério para tudo) quanto ao hiperpluralismo (uma ampliação ilimitada de sensibilidades que invadem o espaço público). Mas, conforme Giovanni Orsina (La Democrazia del Narcisismo, 2018), a emergência de uma cultura narcísica, ao subjetivar todas as atividades, vem alterando o sentido do individualismo moderno. Essa cultura é uma obsessão baseada na incapacidade de perceber a própria pessoa e a realidade como duas entidades separadas e autônomas, de distinguir o que está dentro do que está fora, em suma, o objetivo do subjetivo.

A repercussão disso na política é devastadora. O cidadão, o individuo democrático, fechado em si mesmo, passa a não escutar mais, refuta interpretações e avaliações da realidade que venham de fora dele. Sua relação com o mundo é inteiramente determinada pelo filtro de uma perspectiva subjetiva não educada nem amadurecida pelo confronto. Onipotente, é incapaz de imaginar o futuro a não ser como espelho do desejo, sem mediações, avesso à política.

A irrupção da antipolítica nas sociedades contemporâneas, e no Brasil em particular, não pode ser reduzida ao “fantasma do populismo” nem ao maniqueísmo do embate entre democracia e fascismo. Recuperar a política como um desígnio moderno, sem polarizações estéreis, é o desafio do tempo presente.


Alberto Aggio: Depois das eleições, oposição democrática

Jair Bolsonaro (PSL) venceu o segundo turno das eleições presidenciais com mais de 10 milhões de votos de diferença contra Fernando Haddad (PT). Não foi uma vitória esmagadora, mas foi incontestável e, sobretudo, legítima. Em janeiro de 2019, com a alternância democrática de poder, prevista na Constituição, Bolsonaro assumirá o posto maior da República.

Na democracia, a quem vence cabe a tarefa de governar; a quem perde, fazer oposição. A vitória eleitoral de Bolsonaro não significa a imposição de uma única força política ao país, numa visão simplista de alguns de seus apoiadores, segundo a qual o vencedor “leva tudo”. Os pilares da democracia brasileira, assentados na Constituição de 1988, continuam a dar os parâmetros para a nossa convivência política e social.

Não há dúvida que essa vitória representa uma mudança política significativa na história recente do país. Fala-se do esgotamento ou do final de um período da política brasileira e do advento de uma nova fase. Superando as forças políticas que lideraram a democratização, o presidente eleito traz novamente a direita ao poder depois de décadas em que ela havia sido alijada, com o fim da ditadura militar. O resultado eleitoral em seu conjunto representou a condenação das oligarquias políticas que controlaram o poder nos últimos anos e o rechaço ao conluio entre a “coisa pública” e os interesses dos grandes grupos econômicos.

A direita que se expressa por Bolsonaro não é a mesma dos idos de 1964 e nem poderia ser. Permanece nela, é verdade, um certo ranço e uma retórica anticomunista obtusa e anacrônica face ao fato de que o fim de “comunismo histórico” carrega quase 30 anos nas costas, não havendo nenhuma sinalização do seu reaparecimento ao redor do mundo. Nessa eleição, a direita emergiu travestida de um “populismo iliberal”, seguindo a vaga planetária, além de expressar inclinações reacionárias e autoritárias. O novo presidente é um personagem, a um só tempo, pragmático e midiático – sem ser carismático –, que se utiliza mais de uma retórica instrumental de caráter pentecostal do que propriamente fascista. Tudo isso não é pouco para nos alertar quanto aos riscos que corre a democracia. Contudo, a vitória de Bolsonaro não deve ser vista como um retorno ou uma condenação antecipada do país aos “anos de chumbo”.

Na montagem do governo, com uma reforma administrativa em curso que reduz o número de Ministérios, o presidente eleito parece visar mais a composição de um quadro de referência de mudanças – no qual estão indicativos neoliberais, mas também da democracia política –, do que a emulação de um líder que prepara a instalação de um regime fascista ou de uma ditadura, mesmo que seja de forma gradual. Será certamente um governo de direita porque essencialmente apela à ordem de maneira ameaçadora e quase brutal, pensa mudanças econômicas a partir da régua neoliberal, com poucas ou nenhuma concessão de caráter social, além de ser regressivo, restritivo e anacrônico no plano cultural e ambiental, sem falarmos no plano comunicacional, até agora o mais tenebroso no seu comportamento.

Uma das tarefas essenciais da oposição democrática – que precisa ainda ser construída e articulada – é a de agir para evitar que o estilo (de um violentismo performático) e as inclinações autoritárias do presidente eleito e do seu entorno se transformem em regime político. Os atores políticos que se perfilam no campo oposicionista terão uma árdua tarefa pela frente, em particular a esquerda que terá que se reconstruir uma vez que a linguagem da antipolítica que predominou nessas eleições a atingiu profundamente em suas lideranças, ideias e valores.

Derrotado nas eleições, o PT parece não ver razões para alterar seu posicionamento, fixando-se numa posição de antagonismo irredutível. A considerar o discurso de Fernando Haddad na noite em que se deram a conhecer os resultados, o PT se mantém no interior da célebre divisão “nós versus eles” instituída pelo partido desde os governos Lula. Para o partido, a oposição a Bolsonaro deverá assumir a representação política de uma “outra nação”, aquela que lhe rendeu 46 milhões de votos, na qual a palavra-chave é a da “resistência” a uma espécie de “governo de ocupação”, na infeliz expressão do Wanderley Guilherme dos Santos. Aqui abro um parêntesis: de fato, “resistência” é uma noção cuja origem é a ocupação nazista na França e Itália, que se conformou num referente histórico para a esquerda; na luta contra a ditadura no Brasil, aqueles que haviam aderido à luta armada, ao retornarem à luta política, formularam a “narrativa” da resistência com o intuito de legitimarem essa mudança sem contudo realizarem nenhuma autocrítica; hoje, como se vê, o PT prepara uma nova artimanha, evitando rever seu passado recente com rigor e a devida autocrítica.

A perspectiva de “resistência” que o PT apresenta à oposição vive da expectativa de que o governo Bolsonaro fracasse rotundamente e, quanto mais rápido melhor. Lembra vivamente um retorno às origens e, com isso, uma vocação para o isolamento. O PT não compreende que o tempo não passou em vão, que a sociedade amadureceu e que as forças políticas já não se deixam enredar por artimanhas. Considerando os resultados eleitorais, a situação da esquerda é claramente defensiva e de recomposição. O antagonismo irredutível do PT é condenação ao isolamento.

Claro está que o PT é um ator problemático para oferecer uma estratégia de oposição democrática ao governo Bolsonaro. Além da sua leitura obtusa da nova conjuntura política, o PT ainda se vê acorrentado à miragem da libertação de Lula e das fábulas (o golpe de 2016) que contaminam sua visão a respeito do que se passou no país desde 2013. O PT não reconhece que o partido, e em particular o lulismo, são vistos hoje pela sociedade como duas expressões consagradas da corrupção que o eleitorado condenou nessas eleições. É largamente reconhecido que o principal fator que deu a vitória ao representante do PSL foi o antipetismo, sem mencionarmos os milhões de desempregados que emergiram e cresceram assustadoramente desde o governo Dilma Rousseff.

Para ser crível e não se lançar à luta de olhos vendados, os democratas devem começar por saber o que fazer diante de suas circunstâncias, com realismo e uma perspectiva generosa de futuro. (Esse artigo, finalizado em 04/11/2018, foi publicado originalmente em Política Democrática Online 2, novembro de 2018, p.18-19)


Luiz Carlos Azedo: Lula não é Mandela

O petista aposta na confrontação aberta e radicalizada com Bolsonaro, de maneira a ofuscar ou subordinar qualquer outra força de oposição

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em carta dirigida à direção do PT, questionou a legitimidade das eleições presidenciais de 2018. “Esta não foi uma eleição normal. O povo brasileiro foi proibido de votar em quem desejava, de acordo com todas as pesquisas. Fui condenado e preso, numa farsa judicial que escandalizou juristas do mundo inteiro, para me afastar do processo eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral rasgou a lei e desobedeceu a uma determinação da ONU, reconhecida soberanamente em tratado internacional, para impedir minha candidatura às vésperas da eleição.” Lula foi impedido de disputar as eleições pela Lei da Ficha Limpa porque está condenado pela Operação Lava-Jato em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão, por ocultação de patrimônio e recebimento de propina, mas não aceita o resultado das urnas.

Lula se recusa a qualquer autocrítica dos escândalos de corrupção envolvendo o PT e os erros políticos que cometeu. Também não abre mão de liderar o partido de dentro da prisão: “O PT nasceu na oposição, para defender a democracia e os direitos do povo, em tempos ainda mais difíceis que os de hoje. É isso que temos de voltar a fazer agora, com o respaldo dos nossos 47 milhões de votos, com a responsabilidade de sermos o maior partido político do país.” O ex-presidente atribui a vitória de Jair Bolsonaro esse resultado ao fato de não ter sido candidato e à “indústria de mentiras no submundo da internet, orientada por agentes dos Estados Unidos e financiada por um caixa dois de dimensões desconhecidas, mas certamente gigantescas”. Ou seja, tudo foi obra do imperialismo ianque.

Embora esteja preso por decisão em segunda instância, do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, com sede em Porto Alegre, Lula ataca a Justiça Eleitoral e atribui sua condenação à perseguição política do ex-juiz federal Sérgio Moro, que o condenou em primeira instância: “Se alguém tinha dúvidas sobre o engajamento político de Sergio Moro contra mim e contra nosso partido, ele as dissipou ao aceitar ser ministro da Justiça de um governo que ajudou a eleger com sua atuação parcial. Moro não se transformou no político que dizia não ser. Simplesmente saiu do armário em que escondia sua verdadeira natureza.”

A narrativa do golpe que embalou o PT e seus aliados desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff continua na ponta língua, ou melhor, da pena. Segundo a carta do líder petista, o futuro governo tem como objetivo “aprofundar os retrocessos implantados por Michel Temer a partir do golpe que derrubou a companheira Dilma Rousseff em 2016”. E arremata: “Eu não tenho dúvida de que a máquina do Ministério da Justiça vai aprofundar a perseguição ao PT e aos movimentos sociais, valendo-se dos métodos arbitrários e ilegais da Lava Jato. Até porque Jair Bolsonaro tem um único propósito em mente, que é continuar atacando o PT. Ele não desceu do palanque e não pretende descer.”

A carta de Lula foi lida na reunião do diretório nacional do PT pelo ex-ministro Luís Dulci, um dos principais conselheiros do ex-presidente da República antes, durante e depois de ter deixado o poder. Dirigente histórico da legenda, Dulci faz parte do grupo mais ligado ao ex-presidente, ao lado de Gilberto Carvalho e Paulo Okamoto. A carta sinaliza a intenção de barrar qualquer tentativa de autocrítica da legenda, considerando o resultado eleitoral do segundo turno, no qual o ex-prefeito Fernando Haddad aumentou sua votação de 31 milhões para 47 milhões de votos, um endosso popular às práticas políticas do PT: “Como diz a companheira Gleisi, não temos de pedir desculpas por sermos grandes, se foi o eleitor que assim decidiu.”

O isolamento
A vitimização e o baluartismo de Lula, porém, na prática, aumentaram o isolamento da legenda no Congresso. O desempenho nas eleições para a Câmara não teve correspondência nas disputas majoritárias para o Senado, onde a bancada petista foi reduzida de 11 para seis senadores. O PT elegeu 56 deputados, a maior bancada da Câmara; quatro governadores e quatro senadores. O que alavancou a legenda nas eleições proporcionais foi o bom desempenho de Haddad no Nordeste, região na qual o PT governará quatro estados: Bahia, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte. Nas demais regiões, a legenda é considerada tóxica por antigos aliados, que buscam alternativas desvinculadas do PT.

Lula não é um Nelson Mandela, o líder negro sul-africano que derrotou o apartheid e depois se tornou um presidente da República conciliador e incorruptível. O petista, porém, aspira essa condição, inclusive no plano internacional. É uma estratégia para se livrar da cadeia, pois em nada sua situação se compara à de Mandela, nem mesmo as condições em que está preso. O petista aposta na confrontação aberta e radicalizada com o presidente eleito Jair Bolsonaro, de maneira a ofuscar ou subordinar qualquer outra força de oposição ao governo.

Essa estratégia se retroalimenta, porque também reforça o antipetismo. Os escândalos de corrupção envolvendo o PT desmoralizaram toda a esquerda. Agora, tendem a desmoralizar todos adversários derrotados nas urnas por Bolsonaro, principalmente o PSDB. Ou seja, o discurso de Lula é tudo o que Bolsonaro precisa para neutralizar a oposição junto à opinião pública e articular uma base no Congresso que pode chegar a 350 deputados e mais de 50 senadores.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-nao-e-mandela/


Folha de S. Paulo: É exagero dizer que Bolsonaro é golpista, diz Almino Affonso, cassado em 64

Ex-ministro do Trabalho de Goulart afirma que quadro é diferente do que levou ao regime militar

Ricardo Kotscho e Catia Seabra, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO- Prestes a completar 90 anos, o ex-deputado Almino Affonso afirma que a omissão dos grandes partidos, sobretudo PSDB e MDB, abriu um vazio político no Brasil. Dele, surgiu Jair Bolsonaro.

Ministro do Trabalho de João Goulart (1961-64), Almino não vê hoje cenário propício a um novo golpe de Estado.

Mas, ao lamentar a falta de líderes capazes de ocupar esse vazio e lembrar a Alemanha assolada após a 1ª Guerra, afirmou: “O Hitler ocupou”.

Ex-tucano e ex-emedebista, Almino faz um apelo para que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assuma uma atitude de estadista.

Almino afirma ainda que a concentração de poder nas mãos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva matou o debate interno no PT.

Em 1961, o sr advertiu que a renúncia do então presidente, Jânio Quadros, fazia parte de um golpe de Estado. Para o sr., há hoje risco de um golpe, como afirmam integrantes da esquerda?
Não chutei [à época]. É provado. Tem um livro, chama “História do Povo Brasileiro” [aponta a estante], escrito, muito tempo depois, por ele [Jânio] e por Afonso Arinos, em que ele confessa a renúncia como algo articulado para o golpe. Na tribuna, fiz por pura intuição.

A mensagem que ele manda ao país para justificar a atitude era uma contradição: o Exército está com ele, o povo está com ele, o empresariado está com ele… Tudo estava com ele. E o país era ingovernável?

Hoje, existe um cenário propício?
Vejo um quadro rigorosamente diferente. Tivemos naquele período a Guerra Fria. Tudo que não levava apoio ao EUA era presuntivamente prova de que apoiávamos a URSS. Essa visão influiu na opção militar. Mas houve causas de natureza social, inflação galopante, crise social aguda, desemprego, dívida externa.

De nossa parte, uma reforma agrária contestada por interesses contrariados. No Congresso, a maioria era favorável a manter a Constituição como estava, de modo que impedia uma reforma. São causas laterais que criaram um conflito da inviabilidade do governo Jango.

E hoje?
Hoje você tem um governo de uma liderança que, para setores da sociedade, é inaceitável e questionável. Mas daí dizer que dele resulta uma articulação golpista, acho que é uma visão exagerada.

Bolsonaro chega ao governo sem que tenha um programa minimamente apresentável. Ele foi eleito por essa maioria fascinante do ponto de vista numérico como um grande protesto nacional contra tudo. Não especificamente a favor dele.

É contra o desamparo, o desemprego, a corrupção, contra os partidos políticos que se deterioraram e foram se transformando em grupelhos. Ele tem o privilégio de ter uma maioria fascinante. Quem, antes dele, teve algo semelhante? Getúlio Vargas, no mandato de 1950. Fora isso, quem? Nem o Lula.

Em 2002, Lula teve mais votos.
Mas não com essa dimensão.

O sr. acha que o povo deu um cheque em branco?
Essa é a inquietação. Você tem um país ainda sem programa, a revolta é real e numa expectativa de que ele responda. E Bolsonaro tem pela frente muitas perguntas.

O seu foi o 14º nome da lista de cassados no dia 9 de abril de 1964, pelo golpe deflagrado sob pretexto de salvar o Brasil do comunismo. Aos 89 anos, o sr. ainda se considera um perigoso comunista?
Não vejo correlação entre o passado e hoje. Não vejo a presença comunista no país sendo objeto de um debate. Menos ainda de um risco qualquer.

O sr. mesmo já disse que em 1964 não havia esse risco.
Não havia o risco comunista de verdade. Mas houve uma programação acusatória, com a grande imprensa inclusive, e influiu muito na decisão dos militares. Se pegar todos os manifestos dos principais líderes militares no dia do golpe, os quatro generais, todos dizem que estão salvando o país do comunismo.

Mas esse discurso voltou. Quem faz oposição ao Bolsonaro é chamado de comunista, vermelho. Essa ameaça estava no discurso de campanha do presidente eleito.
Quem são os comunistas hoje nessa acusação implícita ou explícita? Seria o PT? O PT não tem nada de comunista. Lula nunca foi comunista. Haddad é nada comunista. Não vejo nenhuma organização comunista que justifique esse tipo de argumentação.

O sr. atribui o golpe ao contexto da Guerra Fria. Hoje quais são os interesses geopolíticos em jogo nessa guinada de poder no Brasil? O mundo está caminhando para a direita?
O mundo está tendo uma projeção à direita crescente. O quanto isso se articulará em organizações à maneira do nazismo e do fascismo me parece, neste instante, muito distante.

Mas há algo que pode associar-se. Termina a Primeira Guerra Mundial. Você tinha a Alemanha arrasada, humilhada. Nesse imenso vazio, surge uma liderança que gradualmente incorpora esse protesto. Foi criando o Hitler. Esse potencial me inquieta. Não estou dizendo que ele está configurado. Mas há algo de semelhante.

Assistindo à montagem do governo, o sr. diria que ele aponta para um equilíbrio social?
Não votei nele. Dei nota dizendo que votaria no Haddad. Mas ele está tendo, até com razões de eu aplaudir, atitudes que ganham apoios impensáveis. Exemplo: a convocação do Sergio Moro para o ministério. Joga crédito para o ponto de partida do governo. Não há governos que não tenham em seus ministérios balanças e contrabalanças.

Na volta do exílio, o sr. participou de governos do MDB e do PSDB. Nas eleições, esses dois partidos foram derrotados pela onda conservadora de Bolsonaro. O que aconteceu que o chamado centro se desmanchou?
Ambos os partidos descumpriram os papéis mínimos para os quais nasceram. O PSDB ficou tão marginalizado diante dos problemas a serem enfrentados que teve a derrota que teve. Culpa pessoal do Alckmin? Quem quiser analisar dirá o sim, dirá o não. Geraldo sim, Geraldo não. Mas teve o arrebentamento interno partidário.

O PSDB estava fraturado de ponta a ponta do país em plena eleição. E, se eu tomo a presença do PSDB como partido da oposição ao longo dos governos Dilma e Lula, quando a corrupção se transformou em um tema —não estou dizendo que houve ou não houve, mas se transformou em um tema de presença política diária—, o papel do PSDB foi de uma omissão total. Ele não cumpriu o papel de anticorrupção.

E o MDB? 
Tudo o que estou dizendo vale enormemente para o próprio governo. Se você levar em conta o número de figuras ligadas ao governo sucessivamente acusadas perante o STF... Alguns estão presos. Outros com processo caminhando. Onde o MDB cumpriu essa papel anticorrupção? Pelo contrário. Afundou-se nisso.

O sr. acha que se o PSDB tivesse expulsado o Aécio e demais acusados poderia se credenciar para o papel de anticorrupção?
Pelo menos, tinha o dever de cumprir esse papel. Com uma história pessoal de um jovenzinho que chegou à presidência da Câmara, ligado a essa figura marcante que foi Tancredo Neves, senador da República que quase chegou à Presidência, Aécio tinha o dever de cumprir esse papel de vanguarda. Não cumpriu. Tudo que falo do PSDB canaliza-se em figuras omissas. Lamento dizer que Aécio Neves não cumpriu o papel que o cargo dele o obrigava.

Mas se ele mesmo foi denunciado. 
Só agrava o que está dizendo.

O sr. acha que o PSDB deveria ter expulsado Aécio? Que Alckmin deveria ter coordenado o trabalho de investigação interna?
Mas o Alckmin entrou na presidência do PSDB anteontem. Ele ficou literalmente só. Não estou defendendo o Alckmin. Constatando. Alckmin foi candidato à Presidência sem partido. FHC, líder nacional, disse uma palavra sobre isso? Nenhuma. O Aécio nem tinha condições de dizer no grau de estar sob quase que em uma condenação grave. Meu amigo José Serra, por problemas de saúde ou não, silenciado.

Serra também foi acusado. 
Lamentavelmente também ele. Você pega o Tasso Jereissati… As lideranças do PSDB deixaram Alckmin literalmente só.

E, nessa reta final, o único que se manifestou contra o Bolsonaro, diante de risco de retrocesso, foi o próprio Tasso. O sr. acha que o PSDB se omitiu?
Estou dizendo que as omissões não são de agora. Vêm vindo gravemente. E não dá para excluir isso do grau de desatenção popular que houve.

Alckmin perdeu para Bolsonaro no interior de São Paulo, depois de ter sido três vezes e meia governador do estado. É pobre como explicação analisar essa derrota pelo mero “errou, não foi enfático, não é bom orador”. Para mim a explicação é esse vazio da corresponsabilidade, sobretudo do PSDB e MDB. Porque o PT ficou no banco dos réus. E também não cumpriu o papel do anti que deveria ter cumprido de maneira enfática.

O sr. já disse que em 1964 os dois lados tinham um projeto de país e que hoje não existe nenhum. Qual seria o projeto nacional para o país?
Que surja um partido que cumpra um papel efetivamente democrático. Os partidos se esvaziaram. Não há debate interno. Nem no PT.

No meu último mandato de deputado federal, o PT tinha uma bancada brilhante. Para qualquer tema, antes de decisão, tinha uma reunião. Isso murchou. “Quem é candidato? Lula quer.
Quem é? Não quer”. Isso se tornou tão autocrático que matou muito a vitalidade do partido. Essa é minha visão de fora.

No PSDB foi assim. No MDB não precisa nem falar. Há algo antidemocrático profundo. Um amordaçamento na sociedade.

O Brasil não tem um projeto?
Se tem, não tive a honra de saber. Em abril, completo 90 anos. Quero comemorar meus 90 anos sabendo qual é o projeto. Juro a você que vou para a rua.

Que projeto faria o sr. ir às ruas?
A preliminar é recriar a mensagem da articulação democrática no país. Ou há partido que democraticamente funcione ou não tem saída.

O sr. acha que a concentração de poder nas mãos de Lula foi nociva?
Foi. Fiz a comparação do que foi a bancada do PT no último mandato que exerci, onde havia uma presença real de debate. O Lula cumpriu um papel de liderança exponencial, mas afogou a possibilidade de participação generalizada. As figuras foram sumindo.

Nos atos contra a prisão dele houve uma mobilização maior, inclusive de jovens. O sr. acha que isso poderia revigorar o partido ou o PT está condenado ao esfacelamento?
Esse drama não é de um, mas de todos os partidos. Ou esses partidos ressurgem ou não sei. Volto agora à sua primeira pergunta, se no quadro atual há riscos [à democracia] ou não. Quando você não tem uma comunidade organizada, tem. Tem lá uma figura importante da velha Grécia que dizia que não há lugar vazio. O vazio se ocupa. É tão verdadeiro isso.

O Bolsonaro ocupou. 
Não quero fazer essa comparação para não ficar fazendo fantasias adoidadas: o Hitler ocupou. Havia o vazio na Alemanha. E o vazio se ocupa. Há uma liderança [no Brasil]? Eu diria que, potencialmente, há. Há intelectuais de valor, figuras com conhecimento de história, que percebem tudo que estamos dizendo aqui. Ou não percebem?

O sr. acha que o Bolsonaro pode ser esse líder? O sr. diz que existe um vazio programático e organizativo no país. O sr. acha que alguém pode ocupar esse vazio?
Não sei o que é o Bolsonaro. Quero que o Brasil saia do atoleiro. Mas ele até agora não revelou isso. Para mim, o primeiro gesto dele foi a escolha do Moro, de muita significação. Se ele puder aqui, ali e ali, cria em torno dele este núcleo para um governo que pense. Até agora, não mostrou isso.

Quem poderia ocupar essa liderança? 
Tem uma figura que teve uma história. Foi o Fernando, FHC. Foi duas vezes presidente da República, ministro das Relações Exteriores e ministro da Fazenda, em algo que foi significativo, que foi o Plano Real. Ele vai perdoar-me pela relação humana.

Seria um homem que tem condições pessoais para poder dizer “convido, proponho nós três para…”. As precondições ele tem. Por que não assume? Digo, de público, assuma, Fernando. Você tem uma história, tem condições, tem renome, tem um nome limpo. Assuma. Não diga as coisas em meio-termo. Não diga em reticências. O país está precisando de alguém que assuma um papel relevante e congregue em nome disso.

O sr. acha que Moro pode vir a ocupar um papel de liderança? Dizem que ele tem um projeto político.
Não sei se ele tem temperamento político. Porque não basta saber. É preciso ter um quê, um certo charme. Para uma liderança política, ele não revela ter.

Especula-se o nome de Moro para a sucessão, João Doria está se articulando para 2022 e Ciro Gomes já está articulando uma frente cirista. O sr. consegue vislumbrar um cenário para 2022?
Não vai faltar nunca candidato a candidato. Precisamos de um estadista neste país.

O sr. citou FHC.
Não estou dizendo que ele é. Fiz um apelo para que ele seja. Ele vai se zangar comigo. Mas não disse que ele é.

O sr. acha que, se ele tivesse atuado como um estadista durante essa eleição, o resultado seria outro?
Se o PSDB tivesse atuado como deveria, não estaríamos neste atoleiro. O PSDB tem uma corresponsabilidade muito grande por esse quadro negativo.

Por que declarou voto em Haddad? 
Porque sou defensor absoluto do dever de votar. Entre os dois, eu dizia “há, pelo menos, do lado de Haddad figuras que eu, de alguma forma, conheço, sei e quem sabe pode criar no entorno dele ”. Do outro lado, eu não sabia nada. Não sei nada do Bolsonaro.

E a própria forma que, ao longo da campanha, o Bolsonaro teve expressões de um radicalismo estúpido até, eu me perguntei por que daria crédito. Eu também não achava que estávamos indo para uma solução. Com devido respeito, Haddad não encarnava uma solução. Haddad é um ser humano respeitável. Mas não encarnava a solução.


Revista Veja: FHC - “O centro radical”

FHC diz que eleição explodiu o sistema, afirma que “fascismo” e “comunismo” são apenas fantasmas e que partido sem conexão com a sociedade estará liquidado

Por Ana Clara Costa, da Revista Veja

Prestes a terminar o quarto volume de suas memórias do período em que ocupou a Presidência da República (1995-2002), Fernando Henrique Cardoso, de 87 anos, acredita que o momento político do Brasil requer “paciência histórica”. Diz que o país vive um período de transição, com o fim de um ciclo iniciado na Constituição de 1988, em que os partidos criados falharam em representar os anseios da sociedade. FHC afirma ser exagero ligar o governo Bolsonaro a um movimento “fascista”, apesar da migração das forças políticas para a direita. O tucano prega a construção de um “centro radical” para se opor a medidas extremas e declara que, se o PSDB não ocupar esse papel, ele não vê razões para continuar no partido. “Se o PSDB virar uma sublegenda do governo, qualquer governo, estou fora.”

O senhor tentou, no período eleitoral, criar uma força democrática de centro, e não deu certo. O que aconteceu?
Não houve interesse do eleitor em escolher o centro porque ele achou melhor botar ordem na casa. Quem simbolizou segurança, ordem e combate à corrupção ganhou. Não houve discussão econômica.

Como ocorreu essa tentativa de costurar uma frente?
Estou mais fora da política do que as pessoas pensam. Mas eu acho o seguinte: quando há uma polarização como houve no Brasil, o medo prevalece acima de tudo. A razão perde sentido prático. As pessoas que querem ser razoáveis, como é meu caso, ficam sem espaço. Uns dizem “Eu sou o bem e quero extirpar o mal”. E, quando você diz “Cuidado, o bem e o mal são relativos, é preciso conviver”, você fala sozinho.

Mas o senhor chegou a fazer um movimento concreto nesse sentido?
Eu falei com algumas pessoas, fiz uma ou outra reunião. Mas não estou no cotidiano do partido e acho também que não tinha mais espaço. A polarização não depende de você querer. Ela acontece. Quando a população descobriu as bases podres do poder, ficou contra o poder e quem o simboliza. Acho um absurdo que alguns tenham sido derrotados, gente séria, competente. Mas é assim que funciona. Política não é uma escolha de quem é mais competente, quem é melhor. É de quem, naquele momento, bate com o sentimento do eleitor.

Como chegamos a esse estado de coisas?
Nossa visão do mundo político nasceu no século XIX e se consolidou no XX. Havia as classes, não necessariamente opostas umas às outras, e os partidos, que representavam uma ideologia pertinente aos interesses e valores dessas camadas. O mundo atual rompeu isso porque a mobilidade social aumentou, a coesão entre esses grupos diminuiu e há fluxos de dinheiro e comunicação muito grandes. O primeiro sociólogo que viu esse movimento chama-se Manuel Castells, meu colega em 1968 em Nanterre (na Universidade Paris X, na França, onde FHC lecionou) e meu amigo até hoje. A Sociedade em Rede, livro que Castells lançou em 1996, é, no fundo, isso. Estamos em um momento de transição, e a nova sociedade é dos que estão conectados. Essa conexão salta estruturas e até instituições nacionais.

“Os dois lados estão inventando fantasmas. Um vê fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta. Há uma guerra de narrativas. E narrativas em que não entra o povo”

O Brasil vive um momento de desmonte das estruturas, ou, como o senhor diz em seu último livro, “uma nova era”?
Sociologicamente, eu diria que, nestas eleições, “a história se manifestou estourando tudo de maneira cega”. Há momentos em que há explosões, e aqui houve uma explosão limitada, mas foi uma explosão do sistema anterior. Então, há um processo geral que permeia todas as sociedades que estão conectadas. É preciso agregar a tremenda corrupção que houve ao horror que ela produziu. O povo se assustou e disse “basta!”

Houve uma “direitização” do Brasil?
No espectro direita-esquerda, é claro que estas eleições foram mais para a direita. Antes, os partidos polares eram o PT e o PSDB, e quem fazia o meio de campo era o PMDB, que era o partido de Estado, das estruturas políticas. Na verdade, PT-¬PSDB foi uma polarização forçada. O PT dizia que a direita era o PSDB. Agora viu que não é. A sociedade mudou muito, e aqueles que se supunham progressistas não foram capazes de simbolizar algo que o povo aceitasse. Isso quer dizer que o país é conservador? Pode ser. A tendência dos países em geral é se conservar. Todo mundo fala em mudança, em evolução, mas as pessoas têm medo de mudar. Aqui, vão conservar o quê? Não está claro, porque o governo não existe ainda.

A campanha eleitoral foi amparada em valores mais conservadores, como Igreja, família.
Nesse aspecto, seria um conservadorismo que eu diria que a maioria dos brasileiros aceita. Mas a verdade é que o mundo contemporâneo tem muita diversidade. O que se entendia como família era marido, mulher e filhos. Os líderes hoje — não é o meu caso — têm ou tiveram várias mulheres. Como compatibilizar isso com um valor tradicional? Não sei. Porque a realidade mudou, a diversidade passou a ser parte da vida. Como impedir a diversidade? Pode falar que vai, mas, na hora de fazer, não é tão simples.

O Brasil nunca foi território de êxito para posições fanáticas. Considerando-se o acirramento dos ânimos nas eleições, o senhor acha que esse traço da sociedade brasileira pode se transformar em fascismo diluído?
Não. Olha, os dois lados estão inventando fantasmas. Um vê fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta. Isso era na época da Guerra Fria, quando o comunismo existia, havia a União Soviética. Onde está isso hoje? Na China? A China está vendendo, comprando, utilizando os instrumentos de mercado para tomar conta do mundo. Na Coreia? A Coreia do Norte é força que imanta alguém? Não. E o fascismo? O fascismo era uma organização que tinha um pensamento, uma concepção corporativa e que se opunha ao comunismo. Então, o que se vê frequentemente são duas imagens do passado. Há uma guerra de narrativas. E narrativas em que não entra o povo, que não está em uma nem em outra. O povo quer trabalho, proteção contra a violência, essas coisas mais normais.

Seria, então, um movimento cíclico de alternância de poder?
De certa forma, porque Jair Bolsonaro representou o encerramento de um ciclo. Talvez o que tenha terminado agora seja o ciclo que inauguramos na Constituição de 1988, quando tivemos uma visão de pluralidade partidária mas acabamos não criando partidos, e sim corporações de interesses de grupos, de pessoas. Mas isso quer dizer que o novo ciclo vai ser permanentemente como ele é hoje? Não. O importante é entender que o momento que vivemos não tem nada a ver com o que ocorreu em 1964. É outro momento. As Forças Armadas não estão pressionando pelo autoritarismo.

“O PSDB ganha quando ele não é ideológico, quando tem pragmatismo com valores. Será que o PSDB vai ser capaz de se reorganizar de forma mais equilibrada? Se não for, estou fora”

Há declarações de generais sugerindo temor de politização dos quartéis.
Mas eles tentam controlar também. E nem sei se vai haver, porque, na verdade, depende um pouco do que o governo faça e de como a sociedade reaja ao que ele fizer. Não há uma teorização de que chegou a hora de quebrar o Estado e fazer outro.

O senhor vê alguma tendência de autoritarismo, como ocorre na Hungria?
Creio que não. O que não quer dizer que eu não tenha preocupação. Acredito que democracia não é dada para sempre, é preciso que ela esteja ativa. Mas nós vivemos uma situação em que, primeiro, eu não votei em quem ganhou, e quem ganhou, ganhou eleitoralmente. Não tem golpe aí. Segundo, a imprensa continua existindo como ela é. Com sua natureza crítica. Em uma sociedade aberta, a imprensa só sobrevive criticando.

Diante das mudanças de estruturas, que papel deverá ter a oposição no novo governo?
Há espaço para o PT? Primeiro, temos de ver o que sobra nesses escombros. Não creio que o PT vá sumir, porque ele expressa setores da sociedade. É preciso que todos os partidos que quiserem sobreviver entendam que o resultado eleitoral é consequência de atos também deles. Essa repulsa é porque os partidos não funcionaram. Mas, mais que uma oposição, é necessário o fortalecimento do que eu chamo de “centro radical”.

O que seria um “centro radical”?
Um centro que não seja amorfo, mas que tenha posições, e que elas não sejam extremadas. E mais: não adianta juntar apenas deputados. Ou tem a sociedade no meio — líderes empresariais, sindicais, religiosos e universitários — ou não existe. Se for mantida a separação entre política e sociedade, a rede vai acabar ligando a sociedade e a política ficará de fora.

Como fazer essa ligação em meio a tanta frustração com a política?
Esses movimentos que apareceram nestas eleições, o Agora, o RenovaBR, o Acredito, são muito importantes, porque é uma nova geração que surge. E chegou o momento em que a geração que estava no mando precisa passar o bastão — não a geração à qual eu pertenço, que já está há muito tempo fora. Mas isso não é uma decisão pessoal, é preciso que a geração seguinte queira pegar o bastão, que tenha energia para isso. Mas tem de dar um pouco de tempo ao tempo. Não se muda de repente tudo. Tem de ter o que eu chamei, num artigo que escrevi, de paciência histórica. Sei que é fácil dizer isso para quem não está no jogo. Mas é necessário.

O PSDB não sabe se ficará no governo ou se será oposição. O senhor antevê um racha e a criação de uma nova legenda?
É possível, mas não é conveniente. Se o PSDB cometer o erro de ser uma sublegenda do governo, acabou. É mais um. Se ele fizer, pelo lado contrário, oposição sistemática estilo PT, também acabou. Ou ele atua realmente como centro radical, na forma como eu defini, ou ele não tem mais sentido. Acho que o PSDB ganha quando ele não é ideológico, quando ele tem pragmatismo com valores, não o pragmatismo do oportunismo clientelístico. Mas neste momento isso não é aceito, porque o pessoal não está equilibrado. Será que o PSDB vai ser capaz de se reorganizar de uma forma mais equilibrada? Se ele não for, eu estou fora.

O senhor sairá do partido se houver adesão ao governo?
Se o PSDB virar uma sublegenda do governo, qualquer governo, estou fora.

O senhor se desfiliará?
Por enquanto não, por enquanto estou fora da posição, mas vamos ver, não sei qual vai ser a dinâmica no PSDB. Perdemos a eleição por erros também nossos. Temos de ser capazes de fazer autocrítica. Sobreviver porque vai ter um carguinho, sobrevive-se, mas com migalhas. Não com voto da maioria, não com o coração nem com a mente da maioria. Ah, para que vou me meter nisso a esta altura da vida?


Mauricio Huertas: Um novo nome para um novo ser e um fazer diferente

Tchau, velha política. Ninguém aguenta mais esses partidos decadentes, obsoletos, fechados em si mesmos, com falsos líderes que não representam nada além dos seus próprios interesses.

Não chega a ser novidade que a sociedade clama por mudança. Das manifestações espontâneas de 2013 ao resultado das urnas em 2018, não foram poucos os recados da população descontente com o atual sistema e descrente nos representantes da mesmice. Agora basta!

O Brasil exige renovação de nomes, métodos, práticas e conceitos. Busca entre um extremo e outro a saída, errando e aprendendo. O que nós precisamos, deste lado do balcão, é oferecer uma alternativa democrática, sensata, honesta, viável e coerente. Estamos empenhados, portanto, para que tenha sucesso essa nova formatação política que pode ser originada do diálogo do PPS com a Rede Sustentabilidade e os movimentos cívicos surgidos da desilusão com os partidos tradicionais.

A democracia brasileira vive o fim de um ciclo iniciado com a chamada "Nova República", em 1985. Naquela onda das Diretas Já e da esperança com a vitória de Tancredo no colégio eleitoral, a ditadura militar tinha virado entulho histórico. Veio o primeiro baque com o governo Sarney, que forjou Collor, que acarretou Itamar, que projetou FHC, que gerou Lula, que inventou Dilma, que alçou Temer e que culminou em Bolsonaro, sepultando de vez esse período festivo da democracia.

O fracasso e os malfeitos do PT frustraram a esperança da maioria do povo que o elegeu quatro vezes consecutivas, traíram a história de uma geração e enxovalharam todo um campo político democrático que havia derrotado com honra e mérito a ditadura no Brasil. Tanto fizeram que provocaram não apenas ojeriza, ódio e antipatia à esquerda democrática, mas reanimaram os sentimentos mais abjetos daquela direita truculenta execrável que parecia morta, mas que somente hibernava nas últimas três décadas.

A tarefa que se coloca agora aos integrantes deste campo democrático é defender as conquistas do estado de direito, com seus princípios republicanos e as garantias fundamentais da cidadania. O Brasil pode e deve mudar seus representantes a cada eleição, isso é salutar. O que não podemos é andar para trás. Seguiremos firmes no combate ao populismo, à polarização burra e simplória, aos extremismos de direita ou de esquerda e à forma fisiológica, corrupta e patrimonialista de se fazer política.

Temos como pauta mínima a defesa das instituições democráticas, dos direitos e liberdades individuais e coletivas, tais como a liberdade de opinião, de expressão e pensamento, a proteção constitucional às minorias, o direito de ir e vir, a livre organização e associação, e a liberdade de imprensa, bem como a urgência das reformas do Estado brasileiro e a efetividade do desenvolvimento sustentável, com ações objetivas em favor da qualidade de vida, seja no âmbito econômico, ambiental ou da justiça social.

O nosso maior desafio é consolidar essa nova formatação política diante da crise do atual sistema eleitoral-partidário e do esgotamento (aqui e no mundo) deste modelo da democracia representativa em vigor, que já não atende a demanda da população diante dos avanços tecnológicos e dos anseios por uma participação mais direta e objetiva nas decisões que afetam o nosso dia-a-dia e projetam o futuro da sociedade.

Que esse novo movimento de cidadania possa erigir livre das armadilhas burocráticas e das amarras hierárquicas dos velhos partidos, permitindo que se faça uma política verdadeiramente nova e diferente das práticas usuais tão deploráveis, que seja mais acessível, palatável e inteligível para as novas gerações.

Que mantenha sua lisura e independência, que defenda e exercite a plena liberdade de expressão e a pluralidade ideológica, contribuindo para o aperfeiçoamento constante da democracia, com princípios e valores republicanos compartilhados para a construção de uma sociedade mais justa, civilizada, solidária, democrática e sustentável.

 

 


Política Democrática online de novembro repercute eleição de Bolsonaro

Publicação traz reportagem especial sobre economia movimentada por pessoas em situação de rua, além de dez artigos e uma entrevista exclusivos

A edição de novembro da revista Política Democrática online chega ao público, nesta quarta-feira (21), com dez artigos e uma entrevista exclusivos sobre os cenários políticos brasileiro e norte-americano após a eleição do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República para o mandato de 2019 a 2022. Em formato multimídia, a publicação traz ainda uma reportagem especial sobre a vida de pessoas em situação de rua, a forma como elas movimentam uma economia marginalizada e o desmonte das ações de atendimento a esse segmento da população em Brasília.

No destaque desta edição, a entrevista com o sociólogo Sérgio Abranches mostra que a direita inicia novo ciclo de poder com a vitória do ex-capitão do Exército para a presidência. “Agora, voltará a haver oposição orgânica, com o PT centrado no PSL e no Bolsonaro. Isso muda a dinâmica do jogo político, das relações entre o legislativo e o executivo”, diz ele, em um dos trechos. “Será um duro teste às instituições, à democracia. Mas acho que a Constituição de 1988 nos legou instituições que se revelaram suficientemente robustas ao longo de vários traumas”, acrescenta.

Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS), a revista critica, em seu editorial, a escolha do embaixador Ernesto Araújo para a chefia do Ministério das Relações Exteriores. “A julgar pelos escritos do futuro ministro, diretrizes da política externa passarão a ser o antiglobalismo e o alinhamento com o governo americano, o nacionalismo econômico, a desconfiança em relação às pautas da sustentabilidade e dos direitos humanos, além da renúncia à defesa da democracia como sistema político”, diz um trecho.

A revista também traz uma reportagem especial que conta o drama de pessoas em situação de rua na capital federal e denuncia o desmonte das políticas públicas na área de assistência social no Distrito Federal (DF). Dados obtidos pela revista Política Democrática online por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, em 2018, o governo voltou a reduzir as verbas do setor, alcançando o segundo pior investimento em dez anos, atrás apenas dos que foram efetivamente realizados em 2016. No DF, segundo dados oficiais, chega a 3,5 mil o número de pessoas em situação de rua nesta época do ano.

Entre os artigos publicados, os analistas políticos colaboradores da revista abordam diversos temas relacionados ao atual momento político brasileiro e internacional, a partir da ótica das eleições legislativas norte-americanas. Outros assuntos relevantes e de interesse públicos também estão contemplados nesta edição, como é o caso das fake news, a ampliação da desigualdade e o conservadorismo no Congresso Nacional, assim como as reservas internacionais e o ajuste fiscal.

A seguir, confira a relação de todos os conteúdos da edição de novembro da revista Política Democrática online e seus respectivos autores:

Editorial | Política em tempos sombrios

Artigo | As reservas internacionais e o ajuste fiscal (Paulo Guedes): José Luis Oreiro

Artigo | O Congresso mais conservador desde a redemocratização: Antônio Augusto de Queiroz

Charge | E agora as notícias de Brasília: Jcaesar

Artigo | Lições do DIC na era Collor: Luiz PauloVellozo Lucas

Entrevista Sérgio Abranches | Vitória do ex-capitão do Exército encerra disputa PT X PSDB (André Amado, Caetano Araújo, José Carlos Lima, Davi Emerich, Lucas Brandão e Priscila Mendes)

Artigo | Bolsonaro – Uma epifania digital em rede: Paulo Baía

Artigo | As doces, atraentes e estimulantes fake news (Sérgio Denicoli)

Artigo | Ampliação da desigualdade não é um problema econômico (Vinícius Müller)

Artigo | Depois das urnas, oposição democrática (Alberto Aggio)

Reportagem | Pessoas em situação de rua na economia marginal (Cleomar Almeida)

Artigo | Reação anti-trump marca eleições legislativas dos EUA (José Vicente de Sá Pimentel)

Artigo | Para uma crítica do tempo presente (Luiz Sérgio Henriques)

Artigo | Contemporâneos do futuro (Roberto Freire)


José Eduardo Faria: O Brasil pós-eleição

É preciso entender a dinâmica da política para julgá-la no âmbito do regime democrático

Pelo que disseram os candidatos em suas campanhas, o resultado da eleição presidencial não trouxe novidades. Mostrou a crise da democracia representativa, que não atende aos valores e às aspirações dos eleitores. Revelou que as paixões políticas cederam vez ao maniqueísmo, ao desconcerto e à perplexidade. Sinalizou que a radicalização dos extremos só foi possível por causa da decomposição das bases de centro-esquerda e centro-direita. E deixou claro que, num contexto de fragmentação partidária, que marca um ponto de inflexão na crise de legitimidade das instituições, o desafio é refletir sobre a política e suas possibilidades e seus limites.

Mas em que medida a insatisfação generalizada pode produzir transformações democráticas, a começar pela reconstrução do sentido de responsabilidade, pela recuperação da noção de estratégia e pela formulação de um projeto de nação? Teria sido possível evitar que o segundo turno se resumisse à alternativa entre ceticismo e melancolia, cinismo e pragmatismo?

A votação obtida pelo candidato da direita, cujo discurso se resumiu à promessa de ordem e à manifestação do desejo de que o País de hoje volte a ser o de 40 anos atrás, apontou a disseminação, num segmento expressivo do eleitorado, da ideia de que a política é corrupta e dispensável. Nesse sentido, basta ver o que têm afirmado os parlamentares eleitos por esse eleitorado. O problema, contudo, é outro. Até que ponto uma postura antipolítica é melhor do que uma má política? Desqualificar a política não é também um modo de renunciar à representação de interesses e às aspirações de igualdade, inclusão e justiça?

Na perspectiva realista dessas indagações, lembro o ano de 1999, quando, ao assumir seu segundo mandato, Fernando Henrique enfrentou uma crise cambial e foi objeto de pedido de impeachment apresentado pelo PT. Para rechaçá-lo o presidente loteou postos típicos da burocracia estatal entre partidos sem credibilidade moral. A estratégia deu certo, mas irritou parte da comunidade uspiana, a ponto de um professor emérito, próximo do PT, tê-lo acusado de “ser uma personalidade insensível às misérias da condição humana”. Em 2002, eleito pelo partido que formulara o pedido de impeachment, Lula foi denunciado no caso do mensalão e também loteou o Ministério para não cair. Nas duas ocasiões, as justificativas de membros da comunidade acadêmica próximos ao PT e ao PSDB foram iguais. Não se faz política se não se puser a mão na massa fecal em que se converteu o presidencialismo de coalizão, disseram os primeiros. Entre os segundos, outro docente emérito da USP afirmou que, apesar da politicagem escrachada matar a política, não se faz política sem dissimulação, troca de favores e indulgências. Por razões históricas, afirmou, no Brasil a política obedece a três premissas: o exercício do poder confunde-se com a gestão de recursos escassos, essa gestão invariavelmente cruza a zona cinzenta da amoralidade e como a política é competição é preciso que os políticos e governantes criem espaços de tolerância para certas faltas, sem os quais é impossível governar (Cf. J. A. Giannoti, Estadão, 19/6/2005).

Não é o caso de retomar os clássicos do pensamento social brasileiro para discutir a moralidade pública e as implicações éticas do presidencialismo de coalizão. É, sim, o caso de rever expectativas com relação à política, para saber se ela é ou não prescindível e examinar se não esperamos dela o que não pode proporcionar numa sociedade como a nossa. É preciso entendera dinâmica da política, para julgá-la no âmbito de um regime democrático. A democracia é um modelo político em que os fins em confronto são múltiplos e muitas vezes colidentes, dada a diversidade de atores econômicos e sociais.

As democracias consolidadas são um sistema cujas instituições e regras constituem uma urdidura capaz de absorver insegurança e garantir estabilidade. Mas por se mover no terreno pantanoso da instabilidade e do desequilíbrio, esse sistema é vulnerável ao questionamento de valores, à intolerância e à indeterminação das identidades políticas. Por isso a efetividade da democracia está condicionada à sua capacidade de aprender a lidar com contingências, desenvolver sistemas de prevenção e gerir conflitos decorrentes do aumento da complexidade socioeconômica. Para tanto, contudo, são necessárias lideranças políticas que a democracia, paradoxalmente, não tem formado.

A crise de moralidade pública é um dos sintomas da patologia da política brasileira, tendo sido decisiva no resultado do pleito. Mas para enfrentar essa crise é necessário afastar esse paradoxo, criando as condições para que a dinâmica democrática abra caminho para lideranças novas, comprometidas com as liberdades públicas, e não para um populista incapaz de entender que governar não é bater na mesa, fazer ameaças ou citar a Bíblia, mas articular apoios, formular políticas públicas e implementar programas. Assim, o que se tem hoje é um cenário de intolerância e mediocridade, de uma crise potencial de governabilidade e de risco de ameaças aos marcos constitucionais, resultante da simbiose entre a fragmentação do sistema partidário, o oportunismo de suas lideranças, a debilidade dos mecanismos de mediação, o negativismo dos eleitores e a opção dos candidatos que disputaram o segundo turno por se desqualificarem reciprocamente, vendo-se não como adversários, mas como inimigos, recusando-se a aceitar que o outro faz parte de sua sociabilidade.

Como essa simbiose tende a sobrecarregar a capacidade adaptativa dos sistemas governamentais e a agravar a desagregação da sociedade, no cenário pós-eleição ainda não dá para saber se o que nos espera é a “floração do esteio” ou, o que é mais provável, “uma noite polar, glacial, sombria e rude”, como disse Max Weber em célebre conferência.

*José Eduardo Faria, Professor da USP e da GVLAW