Eleições
Alon Feuerwerker: Uma dúvida para 2021
Resta pouca dúvida de que o auxílio emergencial teve um formidável efeito-tampão sobre duas variáveis na conjuntura: a atividade econômica, em particular no comércio, e a sustentação popular de Jair Bolsonaro. Produziu também, junto com o real fraco e a voracidade estrangeira por estoques, algo de carestia em alimentos básicos. O governo aposta que este efeito será passageiro e não vai se propagar.
Certa dúvida porém tende a colocar uma pulga atrás da orelha daqui até dezembro. Qual será o efeito do fim do auxílio, pois no momento o governo não quer que ele entre em 2021. Há o projeto do Renda Brasil, mas ainda está no forno e não tem nem de longe a dimensão do auxílio emergencial. Nas condições normais de temperatura e pressão, a cidadania vai ter de voltar a andar com as próprias pernas depois que a São Silvestre passar.
Partamos então da premissa de que vai ser assim mesmo. Uma dúvida: como o povão vai reagir? Vai voltar-se contra o governo por este ter esticado a coisa até a eleição e depois tirado? Ou vai sentir-se grato por o governo ter encontrado uma solução de emergência na pandemia e assim evitado o colapso econômico e social? Quem tiver certeza, que faça sua aposta. Não é um jogo de previsão simples.
Concessões e benefícios são fáceis de dar, e difíceis de tirar. Eis uma verdade, mesmo que não seja novidade. Mas é verdade também que uma conta mensal de R$ 50 bi não tem sustentação fiscal, ainda mais numa economia há uma década oscilando entre regressões brutais e crescimentos medíocres. Distribuir dinheiro funciona, mas precisa vir junto com aumento da produção ou da importação. Ou as duas coisas. Sem isso, é crise contratada.
A história recente traz dois casos em que governantes esticaram o conto de fadas até passar a eleição, depois tiveram de dar a real e viram a popularidade despencar: José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Há também o cavalo de pau de Dilma Rousseff entre o primeiro e o segundo mandatos. Os dois primeiros tinham base no Congresso e no establishment. Sobreviveram. Dilma pagou o preço por não fazer os amigos certos na época das vacas gordas.
Mas a história política brasileira é também pródiga em situações nas quais a gratidão popular acaba falando mais alto. Governantes que implementam programas de forte apelo junto ao povão acabam ganhando uma gordura de popularidade para queimar nas horas difíceis. E Jair Bolsonaro tem um trunfo: diferente de Sarney com o Cruzado e FHC com o dólar -- e o frango -- a um real, ninguém poderá dizer dele que prometeu o auxílio-emergencial para sempre.
O governo acaba de organizar uma base no Congresso Nacional, mais na Câmara dos Deputados que no Senado Federal. O ministro da Economia parece acreditar na solidez dela, mas as ironias de Rodrigo Maia deveriam acender uma luz amarela no Planalto. Na última linha da planilha, a administração e o próprio presidente da República dependem do que deles acha o povão. Daí a importância da dúvida para 2021.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Demétrio Magnoli: Bolsonaro e Trump representam a política dos idiotas
Profecia de H.L. Mencken escrita em 1920 realizou-se com a eleição dos dois presidentes
"À medida em que a democracia é aperfeiçoada, o cargo de presidente representa, cada vez mais adequadamente, a alma profunda do povo. Em algum grande e glorioso dia, a gente simples dessa terra realizará, finalmente, a plenitude de sua vontade e a Casa Branca será adornada por um completo idiota." A profecia, de H.L. Mencken, foi escrita em 1920, durante uma cinzenta campanha eleitoral, e realizou-se em 2016, com Trump (e, no Brasil, dois anos depois, com Bolsonaro). A culpa é mesmo da "gente simples" dessas terras?
O termo "idiota", de raízes gregas, foi usado, num passado já distante, como diagnóstico psicológico do indivíduo com moderada incapacidade intelectual. Os psicólogos o abandonaram e ele passou a descrever uma pessoa estúpida ou, ainda, alguém presunçoso. Os dois qualificativos aplicam-se aos ocupantes da Casa Branca e do Planalto.
Mencken, porém, não escrevia sobre algum presidente singular, mas sobre a democracia e a "alma profunda do povo". Será que tinha razão?
Na sua frustrada campanha presidencial, saiu da boca de Hillary Clinton o adjetivo "deploráveis" para fazer referência aos eleitores de Trump —que não eram a maioria numérica mas constituíram a maioria eleitoral. Nos fóruns petistas brasileiros, diante do triunfo de Bolsonaro, não faltaram acusações ao povo "ingrato" (além das rituais condenações à "mídia"). Hoje, frente a uma parcial recuperação da popularidade do presidente, não poucos analistas sugerem que o fenômeno derivaria da "compra de consciências" pelo auxílio emergencial. O povo tem, então, os idiotas que merece?
O populista venera o povo. Mencken, exato oposto, enxerga a sociedade pelas lentes de um plebeu aristocrático. O erro dele mereceria extenso exame filosófico mas, na prática, empresta um álibi às elites políticas bem pensantes: a culpa pela ascensão dos idiotas não seria delas, mas da "gente simples" incapaz de distinguir os bons dos maus.
Os bons precisam de um espelho. Nos EUA, os democratas batidos em 2016 ignoraram, anos a fio, a maioria do eleitorado branco do Meio-Oeste, que forma uma classe média açoitada pela transição tecnológica e pela crise estrutural da indústria tradicional. O partido contava com as graças da alta finança e falava para uma nação imaginária, definida como coleção de minorias. Trump venceu esgrimindo um discurso nativista, conspiratório e preconceituoso que apelava aos ressentimentos do "americano esquecido". Eleitores democratas desencantados refugiaram-se atrás do candidato da direita nacionalista, fazendo as diferenças mínimas que decidiram a eleição. Quem, na esfera política, agiu como idiota?
As fontes circunstanciais de Bolsonaro encontram-se no populismo fiscal dilmista, na exposição da macrocorrupção, na estratégia eleitoral de Lula e até na facada de um ninguém. Mas suas fontes profundas têm algo em comum com as de Trump.
No Brasil governado pelos bem pensantes, o Estado foi capturado por poderosos grupos empresariais e corporações do alto funcionalismo. Ao longo da bonança internacional que acompanhou os governos de esquerda, as castas de privilegiados receberam créditos, financiamentos, isenções, gordos salários e benefícios, às custas da saúde, da educação, do transporte de massa, dos equipamentos culturais. Como moeda de troca eleitoral, os pobres ganharam o Bolsa Família. A ascensão do idiota estava escrita nas estrelas.
A política da idiotia tem duas faces. O Bolsonaro que circula sem máscara entre ambulantes, enquanto emite cheques emergenciais, só ganha pontos porque, do lado oposto, os bem pensantes fingem residir na Nova Zelândia e clamam por quarentenas eternas. A "gente simples" dessas terras já elegeu Collor, FHC e Lula, Maluf, Erundina e Marta, Haddad, Serra e Doria. O idiota não é produto de sua "alma profunda", mas da idiotia dos bacanas.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Hélio Schwartsman: Voto febril
Quem não quiser votar neste ano nem morrer com os poucos reais da multa por ausência só precisa dizer que teve febre no dia do pleito
O próprio TSE já deu a senha. Está no Plano de Segurança Sanitária para as eleições municipais. Quem não quiser votar neste ano nem morrer com os poucos reais da multa por ausência só precisa dizer que teve febre no dia do pleito. Os juizados eleitorais aceitarão a declaração como justificativa.
Eu já me acostumei com quase todas as disfuncionalidades do sistema político brasileiro, que não são poucas, mas confesso que violações à lógica inscritas na legislação ainda me incomodam. E uma das que mais me causa revolta é o voto obrigatório.
Não ignoro os argumentos sociológicos em favor do instituto. Os números mostram que, quando o sufrágio é facultativo, são os mais pobres os que mais deixam de votar, adicionando mais uma camadinha de plutocracia a um processo que já é essencialmente favorável ao "statu quo".
Esse tipo de raciocínio, porém, não me convence. Nem sei se é bom para os pobres haver mais pobres votando. O papel dos grotões em eleições têm sido o de uma força conservadora, servindo de último bastião para todos os governos, desde a Arena até o PT. E agora já se voltam para Bolsonaro.
Por gosto, tendo a dar mais peso a questões filosóficas e lógicas, e, sob esses critérios, a obrigatoriedade do voto é uma excrescência. É absurda a ideia de que o eleitor esteja apto a escolher o dirigente máximo da nação e a selecionar as pessoas que escreverão as leis do país, mas seja considerado incapaz de tomar por conta própria a decisão sobre comparecer ou não à seção eleitoral. A liberdade de decidir em quem votar tem como pré-requisito a liberdade para decidir se vai votar, como, aliás, é a regra na esmagadora maioria das democracias do planeta.
É difícil explicar por que esse fóssil autoritário segue intacto entre as instituições do país. Minha aposta é uma combinação de paternalismo difuso com o oportunismo dos políticos que se saem bem no sistema.
Gledson Vinícius: Mandato Coletivo - A democracia agradece
Ecos da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street e das Manifestações de Junho de 2013 (Manifestações dos 20 centavos) reverberam continuamente no imaginário da sociedade e ajudam a consolidar a mudança de paradigma na estrutura do poder político. Por certo, não foi apenas a queda de 3 chefes de Estado no Oriente Médio e no norte da África o resultado da onda revolucionária de manifestações e protestos da Primavera Árabe. Assim como não foi pelos vinte centavos que milhões de brasileiros estavam nas ruas protestando em 2013. As consequências dessas explosões sociais continuam sendo percebidas no mundo político. O impeachment de Dilma pode ter sido o efeito mais sentido na nação, mas a ascensão de um partido como o PSL e a maior renovação que a Câmara teve desde a redemocratização nas eleições de 2018 é um efeito colateral óbvio dos eventos citados. Nessa mesma esteira novos modelos de representação política ganham força no Brasil. Em especial a possibilidade do mandato coletivo.
Concebido na Suécia, em 2002, como experimento para alargar as possibilidades da democracia, o conceito de mandato coletivo vem se aprimorando e ganhando espaço no contexto político brasileiro. Nas entrelinhas dos protestos podemos ler com clareza hoje, que a democracia representativa em seu formato tradicional já não dá conta das pulsões da sociedade. Nesse sentido, as novas formas de construção coletiva surgem para revigorar as instituições democráticas e aproximar o cidadão do processo decisório.
Muitos são os motivos para crer que o conceito de mandato coletivo florescerá na atividade parlamentar brasileira. Questões como o custo de campanha e a baixa adesão de votos de pautas não prioritárias podem ser mitigadas com a união de ativistas que congreguem visão de mundo parecida e que tenham objetivos comuns. Nessa proposta, as fragilidades e potências individuais são combinadas para formar um corpo coletivo capaz de representar com mais força e transparência às demandas sociais. No lugar de um parlamentar para ser cobrado, a população tem acesso a um grupo de agentes políticos que respondem pelo mandato, fazendo, dessa forma, com que muito mais pessoas interajam com o legislativo. Essa também é uma equação que favorece à ética: matematicamente é muito mais difícil a cooptação de um projeto coletivo do que um mandato personalista. Ou seja, na mesma medida em que a população tem mais acesso ao legislativo, diminui-se drasticamente a possibilidade da corrupção, da compra de votos.
Deslocar o poder estabelecido, fragmentando a tomada de decisão como propõe o conceito de mandato coletivo, é sempre um processo doloroso e incerto. Contudo, já percebemos que é impossível retroceder. A sociedade anseia por mais voz e vez na construção dessa nação. Em 2020 veremos muitas novas candidaturas coletivas espocando pelo país, ocupando assento nas mais variadas câmaras municipais desse território. O avanço dessas iniciativas ajudam a oxigenar o poder legislativo. O sucesso dessas propostas é fundamental para dar credibilidade ao poder mais mal avaliado pela sociedade (segundo pesquisa de 2019 da FGV).
Prevejo conflitos, crises, indisposições e infinitas dificuldades pelas quais passarão esses grupos na jornada de legitimação de seus mandatos. Mas é justamente nessa hora que lanço mão da poesia de Leminski para lembrar que: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além.”
Alon Feuerwerker: O passado e o futuro
Já foi dito aqui que a tendência da eleição municipal é a pulverização partidária, causada pela proliferação de candidaturas a prefeito, esta por sua vez provocada também pelo fim das coligações na eleição de vereador. Além disso, não se antevê nenhum partido, ao menos por enquanto, surfando com vantagem sobre os demais na onda da renovação, uma parteira tradicional de votos nas eleições aqui.
Mas se no âmbito das legendas a força resultante parece ser centrífuga, é razoável também supor que no funil dos segundos turnos, e em alguns primeiros, possa estabelecer-se a polarização entre campos políticos nacionais. Que hoje distribuem-se grosso modo assim: bolsonarismo/centrão, direita não Bolsonaro, esquerda não petista e petismo+psolismo.
Claro que é um esquema, e como qualquer esquema possui limitações.
Essa distribuição tem porém sua lógica interna, até por seguir de algum modo a disponibilidade das principais pré-candidaturas presidenciais: Bolsonaro, Moro/João Doria, Ciro, Lula/Haddad/Dino. Não se trata entretanto de um cenário pronto. Os blocos ainda vão rearranjar-se conforme a água vai passando por baixo da ponte.
Jogo jogado só em 2022. Tem muito tempo, e espaço, para deslocamentos.
A esquerda vem na defensiva desde o impeachment de Dilma Rousseff, e com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 foi lançada numa defensiva estratégica. Suas bases sociais têm sido meticulosamente enfraquecidas, desorganizadas e desidratadas pela nova hegemonia, uma aliança informal mas efetiva desde o autonomeado centro até o bolsonarismo mais raiz.
Essa defensiva, paradoxalmente, ou dialeticamente, desencadeou uma luta sem quartel pela hegemonia no dito campo progressista. Aqui renova-se a utilidade de às vezes colocar a política no "mudo". Enquanto se digladiam nas palavras sobre o caráter da frente de oposição a Bolsonaro (ampla ou de esquerda), nos atos os partidos da velha aliança progressista seguem cada qual seu caminho. As exceções apenas reforçam a regra.
Tal peculiaridade, dizem as pesquisas, leva a que a esquerda possa ficar fora na maioria das, ou pelo menos nas mais expressivas, disputas municipais. O que a levaria em certas situações críticas a ter de optar pelo apoio à direita não Bolsonaro em eventuais segundos turnos ou resignar-se à neutralidade. Opção também à mão do chamado centro se precisar decidir entre o bolsonarismo e o PT. Ou o PSOL.
Qual é a dúvida? Se as eleições de 2020 representarão apenas o epílogo da desagregação da antiga “frente democrática” que construiu a Nova República e com ela gangrenou, ou se já trarão pelo menos sinais embrionários das alianças para 2022. Se precisarão ainda servir de instrumento para o inevitável ajuste de contas com o passado, ou se darão à luz os primeiros sinais para o futuro.
Quem está no momento mais bem posicionado no xadrez é o centrismo, que poderá agir com o agudo e já tradicional senso de oportunidade ao se apresentar de um lado como estuário para o antibolsonarismo e de outro como desaguadouro para o antipetismo. Nunca se deve subestimar essa equação. Ela tem garantido, por exemplo, décadas de hegemonia em São Paulo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Ricardo Noblat: Fantasma de uma derrota acachapante nas eleições assombra o PT
2020 pode ser pior do que 2016
O fantasma das eleições municipais de 2016 volta a assombrar o PT e seu principal líder, Lula. Em 2012, o partido elegeu 11,4% do total de prefeitos do país. Foi um desempenho considerado de razoável para bom. Quatro anos depois, deu-se o desastre: o partido elegeu apenas 4,6% dos prefeitos. E nenhum nas capitais.
Nas eleições de novembro, o desempenho do PT ainda poderá ser pior. Centenas de pesquisas de intenção de voto já foram registradas até esta semana no Tribunal Superior Eleitoral. Sabe em quantas delas candidatos do PT a prefeito aparecem na condição de líder? Em uma. No Recife com Marília Arraes.
Neta de Miguel Arraes que governou Pernambuco três vezes, prima de Eduardo Campos que governou duas vezes, Marília lidera as pesquisas de intenção de voto aplicadas até aqui. No segundo lugar, alternam-se o deputado João Campos (PSB), o filho mais velho de Eduardo, e o ex-ministro Mendonça Filho (DEM).
A Bahia é vista como uma fortaleza do PT desde que o atual senador Jaques Wagner se elegeu e se reelegeu governador e foi sucedido por Rui Costa, que se elegeu e se reelegeu também. O PT lançou para disputar a prefeitura de Salvador uma policial militar, famosa pelo trabalho que fez na defesa da Lei Maria da Penha.
Quem tem mais chances de se eleger prefeito de Salvador até agora é o atual vice-prefeito da cidade, apoiado por ACM Neto, o prefeito e presidente nacional do DEM. Tem um pastor evangélico por lá, dono de uma creche, que aparece nas pesquisas com índice maior de intenção de voto do que a candidata do PT.
Mas não é só em Salvador que o PT vai mal das pernas. Em São Paulo, onde o partido nasceu, seu candidato a prefeito da capital está com pinta de que ficará de fora do segundo turno. Jilmar Tatto, ex-deputado federal, vem sendo pouco a pouco abandonado pelos petistas que preferem apoiar Guilherme Boulos (PSOL).
O Rio Grande do Sul é, digamos, o segundo berço do PT que mais de uma vez governou o Estado e Porto Alegre. Ali, o partido emplacou o vice de Manuela D’Ávila (PC do B), candidata a prefeita. No Rio, Benedita Silva (PT), ex-governadora e em ministra de Lula, está em quarto lugar nas pesquisas.
Bruno Carazza: Panteras negras
Reserva de recursos para candidatos negros não basta
Passaram-se longos 50 anos até que o Pantera Negra conseguisse chegar às telas do cinema. Quase duas décadas antes da criação do super-herói negro na HQ de Stan Lee e Jack Kirby, em 1947 Jackie Robinson rompeu a convenção que vedava o acesso de atletas de ascendência africana aos times da maior liga de beisebol norte-americana. Eleito o melhor jogador da temporada de 1949, em sua homenagem nenhuma equipe nos EUA utiliza mais o número 42 que o celebrizou - com uma única exceção anual, no “Jackie Robinson Day” (15 de abril) quando todos os jogadores, de todos os times, inclusive os técnicos, envergam 42 nos uniformes.
Nomeado em 1967, Thurgood Marshall foi o primeiro negro na Suprema Corte americana - sucedido por Clarence Thomas, eles são os únicos afrodescendentes num total de 102 pessoas que já ocuparam o cargo mais alto do Judiciário nos Estados Unidos desde 1789. No ano seguinte, em 5 de abril de 1968, um dia após o assassinato de Martin Luther King, James Brown realizou um concerto em Boston. Transmitido ao vivo pela TV pública local, o show serviu para acalmar os ânimos da população negra, que em vez de ir para as ruas protestar ficou em casa assistindo à apresentação do ídolo - o que gerou acusações do movimento black de que Brown estava servindo aos interesses dos governantes brancos contra a causa da igualdade racial. Em resposta, Brown gravou “Say it loud - I’m black and I’m proud”.
Todos esses personagens, vividos no cinema pelo ator Chadwich Boseman, falecido no sábado, revelam como é longa a luta por igualdade de direitos e oportunidades entre negros e brancos nas mais diversas áreas da sociedade. Em pleno 2020, o assunto permanece quente - haja vista os protestos nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd e o histórico boicote dos jogadores de basquete nos playoffs da NBA.
Por aqui, na semana passada o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que, a partir das eleições de 2022, tanto o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV quanto os recursos do bilionário fundo eleitoral deverão ser divididos de forma proporcional ao total de candidatos negros que se inscreverem para a disputa. “Há momentos na vida em que cada um precisa escolher em que lado da história deseja estar. Hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”, disse o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso.
A política brasileira é repleta de obstáculos à entrada de novos agentes que queiram contestar os donos do poder. Falta democracia interna aos partidos - convenções, prévias e consultas em geral são apenas para inglês ver - e as eleições são extremamente caras, disputadas em territórios muito grandes e com dezenas de milhares de concorrentes. Para se destacar na multidão, é preciso muito dinheiro para se tornar conhecido. Se o aspirante a um cargo público não é rico ou bem conectado com milionários, dependerá dos fundos partidário e eleitoral, mas eles são controlados com mãos de ferro pelos caciques partidários.
Desde a proibição das doações empresariais, em 2015, os políticos têm buscado compensar a queda na arrecadação aumentando o volume de dinheiro público para financiar as campanhas. Espertamente, não se preocuparam em criar regras para disciplinar a distribuição dos valores recebidos dentro de cada legenda. Na ausência de critérios, o TSE tem se encarregado de criá-los, instituindo cotas. Primeiro destinou 30% para as mulheres, e agora exigiu que se respeite a proporcionalidade racial.
Como pode ser visto no gráfico acima, mesmo com a reserva de recursos para as candidaturas femininas, as eleições de 2018 foram marcadas por clivagens de gênero e raça na repartição dos fundos eleitoral e partidário entre os postulantes a um assento na Câmara dos Deputados. Na média, homens receberam mais do que mulheres, e dentro de cada gênero brancos foram agraciados com mais dinheiro do que pardos e negros. Diante desse cenário, cotas tendem a nivelar o campo de disputa eleitoral. No entanto, é preciso ter cuidado.
Assim como acontece com a reserva de vagas em universidades públicas, será preciso atenção com a questão da autodeclaração para se evitar fraudes. Desde que o TSE exigiu que no ato de registro fosse declarada a cor, em 2014, 5.044 candidatos se inscreveram indicando duas ou três raças diferentes nas eleições seguintes. Agora que o apontamento da cor valerá dinheiro, é de se esperar que essas incongruências fiquem mais evidentes.
Também é preciso pensar em resolver o problema da assimetria na destinação de recursos dentro de cada cota. Em 2018, o grosso do montante distribuído para mulheres ficou concentrado em candidatas tradicionais e em esposas e filhas de velhos políticos, sem falar nos casos de laranjas - o que limitou o potencial de democratização de acesso de “cidadãs comuns” aos fundos de financiamento de campanhas.
Por fim, é sempre bom lembrar que mais dinheiro não é garantia nem de mais cadeiras e nem de melhores leis ou políticas públicas para as maiorias subrepresentadas na política brasileira. Ainda precisamos trilhar um longo caminho até atingirmos o objetivo fundamental de promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, inscrito no art. 3º, inciso IV, de nossa Constituição.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Luiz Carlos Azedo: Mudança de franquia
“Guedes deu uma de bom cabrito, mas não se tem precedentes de um ministro à frente da Economia do país aceitar um pito público desses sem pedir demissão”
Perdão pela ironia, mas faz sentido: o presidente Jair Bolsonaro não quer mais saber de Posto Ipiranga, seu coração bate pela BR Distribuidora. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de fazer uma escolha de Sofia: ou joga ao mar suas velhas teses e, com ela, o que resta da equipe de economistas liberais, ou pega o boné e volta para seus negócios. O que Bolsonaro fez, ontem, ao criticar publicamente a proposta do projeto Renda Brasil apresentada pela equipe econômica, é muito desmoralizante. Durante visita a Ipatinga, em Minas, o presidente da República desautorizou o ministro: “Ontem (terça, 25), discutimos a possível proposta do Renda Brasil, e falei: ‘Está suspenso’. A proposta, como apareceu para mim, não será enviada ao Parlamento. Não posso tirar de pobre para dar a paupérrimo”.
Guedes deu uma de bom cabrito, mas não se tem precedentes de um ministro à frente da Economia do país aceitar um pito público desses sem pedir demissão. É uma situação inimaginável, por exemplo, com o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que exigiu a saída de todos os ministros desenvolvimentistas que o desafiaram. Nem o senador José Serra, que foi ministro da Saúde, dava pitaco na economia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso só tratava de divergências com Malan em privado. O mesmo pode ser dito em relação ao ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, no governo Temer. Grande artífice do “teto de gastos”, que foi fundamental para reverter a recessão do governo Dilma Rousseff, ninguém apitava publicamente na economia além dele, nem no auge da crise provocada pelo caso JBS, na qual o presidente Michel Temer, por duas vezes, teve que evitar um impeachment.
Guedes, porém, tirou por menos: “É assim mesmo. Ele é o presidente e é quem decide”, disse. Apesar da forte reação do mercado — em baixa no mundo inteiro, o dólar está disparando no Brasil; o índice Bovespa desabou ontem —, o ministro da Economia disse que a equipe deve apresentar “o cardápio” de programas que podem ser unificados ao atual Bolsa Família, criando o Renda Brasil. “Está tudo equacionado. Não tem truque nem fura-teto. Tudo será feito com total transparência”, disse à jornalista Cristiana Lobo, da GloboNews. Há controvérsias. Bolsonaro terá nova rodada com ministros e assessores para decidir o valor do novo programa de transferência de rendas para os mais pobres. Sua proposta era acabar com os descontos de despesas com saúde e educação no Imposto de Renda, uma mecanismo para transferir renda da classe média para os mais pobres. Bolsonaro discorda por motivos óbvios: está deslocando o eixo da sua base eleitoral para os mais pobres, mas não quer perder apoio da classe média mais do que já perdeu. Este é o xis da questão: Bolsonaro antecipou em dois anos e meio a sua campanha de reeleição. Toda a política econômica está sendo subordinada ao seu projeto eleitoral.
Pulo do gato
O problema mais urgente a ser resolvido pela equipe econômica é a prorrogação do abono emergencial de R$ 600, cujo valor o presidente da República quer que seja o mesmo do Renda Brasil, o programa que vai substituir o Bolsa Família. O auxílio emergencial de R$ 600 é pago a 64 milhões de pessoas; o Bolsa Família, que não passa de R$ 205, quando beneficia cinco pessoas, atende a 14 milhões de famílias. Não existe a menor possibilidade de manter essa escala nem esse valor, sem quebrar a economia, mesmo incorporando os recursos de 27 programas sociais do governo, entre os quais, o abono salarial e o seguro-defeso. Guedes propôs um programa no valor de R$ 250, mas Bolsonaro quer mais. Também não aceita o fim do seguro-desemprego, que entraria no bolo.
O ministro da Economia ainda acredita num pulo do gato, nos dois sentidos: a criação de um imposto sobre todas as operações digitais, que teria uma base praticamente universal, porém, pode levar ao entesouramento de moeda e ampliação de operações em dinheiro vivo, além de promover um grande efeito cascata. Isso ampliaria muito a carga tributária, ou seja, tudo ao contrário do que pregam os economistas liberais. Há setores simpáticos à tese no mercado financeiro, mais preocupado com a administração da dívida pública e com o deficit fiscal, bem como no Congresso, onde a base parlamentar do governo pressiona para que haja aumento de gastos com obras.
Entretanto, o maior adversário da proposta do novo imposto no Congresso é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Entre os economistas, a crítica à proposta baseia-se nas teses do economista Arthur Laffer, para quem a diminuição dos impostos cobrados das empresas pode aumentar a arrecadação do Estado. Segundo a “Curva de Laffer”, a partir de um certo ponto, por mais que a alíquota do imposto seja aumentada, o tributo deverá gerar menos receita fiscal. Nossa carga tributária é cada vez maior, por causa da progressiva criação e aumento de alíquotas de impostos. Segundo a Receita federal, a carga tributária bruta em 2019 atingiu 33, 17% do PIB, ou seja, um terço da renda nacional vai para os governos da União, estados e municípios; sem a contrapartida de investimentos e serviços de qualidade, a máquina administrativa consome quase tudo. Ninguém aguenta mais.
Valor: Dogma e temor de reeleição mantêm teto de pé, diz Lara
Para economista, mecanismo inviabiliza a retomada
Por Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico
SÃO PAULO - O teto de gastos tem data marcada para ruir, mas sobrevive com base em dois pilares, o dogma do mercado e o receio do Congresso de que sua derrubada favoreça a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O economista André Lara Resende tem interlocução suficiente no mercado e no Congresso e independência de ambas as instâncias para fazer uma afirmação dessas sem rodeios.
É um sequestro mútuo, sem vítimas inocentes. O mercado se ampara no teto de gastos porque acredita que o Brasil tem que continuar a remar contra a maré mundial e usa o fantasma da confiança do investidor para pressionar o Congresso a manter barreiras artificiais contra o gasto público.
O Congresso é mais sensível ao gasto, visto que depende dele para arrumar voto, mas vale-se do fantasma da fuga de capitais para negociar sua autorização, seja pela disputa entre beneficiários das liberações de verbas, seja porque teme que o maior deles seja a reeleição do presidente em 2022.
Os argumentos de Lara Resende são conhecidos. Se o Brasil ultrapassar os 100% na relação dívida/PIB, será um entre tantos do clube. A convivência com déficits, ainda que durante alguns anos, não é mais tratada, em lugar algum, como uma ameaça, mas como uma alavanca necessária para tirar economias do buraco em que a pandemia as meteu. E como o país não tem dívida externa, mas doméstica, falar em fuga de capitais é enganação.
O setor público deve atuar na indução do investimento privado e na incorporação das massas excluídas. Não é pela obsessão pelo equilíbrio orçamentário que se vai chegar a um ou a outro. Desde a crise de 2008 ruiu a crença de que a emissão de moeda provoca inflação. O controle de gastos deve evitar que interesses patrimonialistas deles se apropriem, mas não por ser um valor em si mesmo.
Essa obsessão freia, por exemplo, a convergência em torno de uma proposta de reforma tributária. São tantos os empecilhos criados pelos setores que podem vir a ser atingidos pelas medidas de simplificação que Lara Resende não vê outra saída senão aceitar um gasto compensatório, ainda que temporário, para mitigar perdas e permitir a reforma.
O risco a ser evitado, diz, é o da reforma da Previdência, que, tratada como a grande panaceia, acabou se mostrando como necessária, mas insuficiente, porque mais danosa ao INSS do que ao setor público.
Ex-presidente do BNDES, Lara Resende não gosta do Pró-Brasil nem conhece as mudanças que o ministro Paulo Guedes pretende fazer no programa. Tem certeza, porém, que uma agência de investimentos públicos, capaz de uma alocação eficiente para o desenvolvimento, com a mediação do Congresso, teria hoje um papel mais importante para a economia do que um Banco Central independente.
O economista vê uma conversão dessa natureza como um cavalo de pau difícil para as convicções do ministro, de quem foi colega na PUC-Rio, de cátedra e das peladas entre professores. Alguma mudança, porém, parece estar se operando, como adiantou o Valor na sexta-feira, na disposição do ministro em reformular e incorporar o Pró-Brasil, hoje capitaneado pelas pastas do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e Infraestrutura (Tarcísio Freitas) em aliança com os ministros de extração militar do Palácio do Planalto.
Junte-se a isso a reunião entre Guedes e o grupo de parlamentares que negocia a perenização de um programa de renda básica após o fim da vigência do auxílio emergencial. Os parlamentares presentes saíram com a impressão de que o governo está disposto a viabilizá-lo, ainda que não esteja claro como.
A pretensão, explicitada aos parlamentares, é levar adiante não apenas a junção do Bolsa Família, do salário família e do abono salarial como a incorporação de créditos a serem devolvidos do imposto decorrente da unificação do PIS e Cofins. São planos que dependem de, pelo menos, duas mudanças de intrincada costura: o fim do abono e a aprovação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). À tarefa some-se ainda a aprovação do imposto sobre transações eletrônicas que viria a financiar a retomada do investimento público, além da desoneração da folha.
É tudo difícil, mas um primeiro obstáculo foi tirado da frente na semana passada. Enquanto o ministro se reunia com os parlamentares da frente pela renda básica, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), conduzia a sessão que manteve o veto ao reajuste do funcionalismo.
Surgiu uma brecha de convergência que aponta, paradoxalmente, para o desmonte, explícito ou disfarçado, do teto de gastos. Essas ideias amadurecem no governo e no mercado. No BTG Pactual, por exemplo, já há conselheiros convertidos às ideias de Lara Resende.
No mesmo dia de sua última fala pública, no Fórum de Desenvolvimento, do economista Raul Velloso, um grupo de economistas, em grande parte de instituições financeiras, fez um manifesto em defesa do teto. O texto não abre mão do teto, mas reconhece o mérito, para a eficiência econômica e para o bem-estar da população, da expansão dos gastos assistenciais e de infraestrutura. Desde que reduzidas despesas obrigatórias, como as de pessoal.
Foi nesse sentido que avançou a manutenção do veto ao aumento do funcionalismo na semana passada e é nessa direção também que aponta a proposta de emenda constitucional do gatilho de gastos em tramitação no Senado. É uma proposta que veda reajustes, suspende promoções e proíbe concursos. Ao fim e ao cabo, aperta a máquina pública para alocar recursos em obras e renda básica.
Para chegar à proposta de Lara Resende e evitar a deterioração dos serviços públicos, precisaria avançar na direção de um governo digital, cujos ensaios malogrados levaram à saída do secretário de desburocratização, Paulo Uebel.
A PEC está no Senado, onde o jogo ficou mais instável com a derrota do governo na votação dos vetos presidenciais. É por meio dela, porém, que se pode fazer uma reforma administrativa disfarçada, enquanto a proposta do governo não vem. Na hipótese de a celeuma de o teto de gastos se acomodar aos interesses de lado a lado, esta será a nova frente de batalha.
Os economistas liberais e lideranças como Rodrigo Maia cobram a redução da máquina pública, necessária mas de alto custo político. Trata-se de outra convergência, com vetores distintos da defesa do teto, mas cujo pedágio também é o desgaste do presidente.
Celso Rocha de Barros: A eleição de 2020 será normal?
A Lava Jato, a antipolítica e o rescaldo de 2013, fatores que complicaram a eleição de 2018, parecem ter morrido
A próxima eleição para prefeito é especialmente difícil de prever: não tem nenhum modelo de ciência política que incorpore os efeitos de uma pandemia que matou 110 mil pessoas e impedirá a campanha de rua, ou a ressaca de uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ou o desmonte aberto, sem resistência, do principal fator que explicou a eleição de dois anos atrás (a Lava Jato).
O presidente da República, que até outro dia tentava o autogolpe, não montou um partido para si, porque achava que não ia ter mais que se preocupar com essas coisas. O ciclo político de indignação que começou em 2013 parece ter terminado com o exercício do poder pelos que têm dinheiro e armas da maneira mais aberta, criminosa e impune possível.
E o impressionante é que a eleição de 2020 pode ser a mais “normal” desde 2013, justamente por isso. Os fatores que complicaram 2018 —a Lava Jato, a antipolítica, o rescaldo de 2013— parecem ter morrido no desabamento posterior.
Talvez por isso, pode haver um retorno à política mais pé no chão.
Muitos candidatos que lideram as pesquisas são administradores cujas gestões são, ou foram, razoavelmente aprovadas: Eduardo Paes, Alexandre Kalil, Bruno Covas. Mesmo onde a esquerda tem chances de vencer, trata-se de lugares onde ela é ou já foi poder várias vezes.
Se esses candidatos estabelecidos forem vencedores, 2020 pode ser o anti-2018, não, necessariamente, por ser anti-Bolsonaro, mas por ser anti-antissistema, do mesmo modo que o governo é anti-antifascista.
Nesse cenário, pode ser uma eleição “fria”, sem os grandes entusiasmos dos últimos anos, que, repito, parecem ter sido desperdiçados.
Mas é cedo para cravar isso. Em primeiro lugar, há a possibilidade de o auxílio emergencial reforçar Bolsonaro como cabo eleitoral. Se a eleição se nacionalizar, ela pode esquentar, e os bolsonaristas tentarão avançar sobre as posições da centro-direita com o populismo robusto de que falamos na última coluna. Se você confia que um Bolsonaro fortalecido dessa maneira não voltará a ser golpista, você é mais otimista do que eu.
A nacionalização da eleição poderia, em tese, ser boa notícia para a esquerda, que vai muito mal nas pesquisas até agora. A campanha pode ser a primeira grande chance para a esquerda denunciar Bolsonaro.
Mas a esquerda brasileira vive um momento difícil. A falta de campanha de rua é um problema para a militância. Mais do que isso, há uma disputa pela liderança do bloco da esquerda cujo resultado ainda é incerto, o que se reflete na fragmentação das candidaturas.
É perfeitamente possível que, em algumas cidades, a soma dos votos de esquerda seja significativa, mas os progressistas fiquem fora do segundo turno. Espero ter a chance de discutir as várias opções da esquerda nas próximas colunas.
No fundo, a eleição de 2020 será um bom momento para a centro-direita descobrir se valeu a aposta de não derrubar Bolsonaro. Se a eleição for normal, ela deve ser a grande vencedora da rodada. Aumentarão as chances de uma coalizão liderada por Doria, Moro ou Luciano Huck, mas, sobretudo, aumentarão as chances de estabilização institucional.
Por outro lado, se Bolsonaro sair vitorioso e ressurgir como fator de instabilidade, a turma do deixa-disso de 2020 pode se arrepender de suas escolhas.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)
Carlos Pereira: Só, com o povo ou com os partidos
Pesquisa identifica três estratégias para governos presidencialistas minoritários
Jair Bolsonaro tem sido acusado de trair seus eleitores em função de escolhas inconsistentes na forma de lidar com a condição de governo dividido, situação na qual o partido do presidente não controla a maioria de cadeiras em uma ou nas duas casas legislativas.
O livro The Politics of Divided Government, editado por Gary Cox e Samuel Kernell, é um dos poucos que estudam como governos presidencialistas minoritários se comportam e delineiam os vários caminhos que o presidente pode seguir para lidar com esse desconforto. Os autores identificam três estratégias para presidentes que se deparam com governos divididos.
A primeira é a do “go it alone”; ou seja, quando o Executivo decide não barganhar com os legisladores. Em vez disso, decide usar os recursos constitucionais e legais disponíveis de forma unilateral. A vantagem dessa estratégia é colocar o Legislativo numa posição reativa à iniciativa do presidente como se fosse um fait accompli, o que diminuiria as chances de reversão pelo Legislativo. O perigo associado à estratégia do “eu sozinho” são potenciais impasses e crises políticas com disputas abertas, podendo levar até a conflitos institucionais.
A segunda opção é a do “go public”, quando o presidente faz compromissos diretamente com os eleitores, sem a mediação das instituições e partidos. Nesse caso, o público age como intermediário entre o Executivo e o Legislativo. O objetivo é aumentar os custos de defecção dos legisladores e, assim, fortalecer a sua posição nas negociações com o Legislativo. Essa estratégia, entretanto, produz resultados positivos para o Executivo apenas no curto prazo, pois gera animosidades crescentes entre legisladores que se sentem pressionados e expostos à opinião pública. A qualquer sinal de vulnerabilidade do presidente, os legisladores podem querer dar o troco, não apenas com a imposição de derrotas no Congresso, mas colocando em risco o próprio mandato presidencial.
A terceira estratégia de governos minoritários é a do “bargain within the beltway”; ou seja, acordos em que os principais ganhadores seriam os próprios políticos em oposição aos interesses e prioridades da população em geral. Neste caso, tanto Executivo como Legislativo sabem que precisam negociar e chegar a um acordo. Contudo, nenhum dos dois quer dar o primeiro passo e parecer politicamente fraco.
Portanto, os acordos são adiados até o último minuto, táticas de blefe são adotadas, negociações sobre certas políticas são priorizadas em relação a outras, e assim por diante até uma posição de compromisso ser tenuamente encontrada na última hora e não necessariamente de forma republicana. O risco desta estratégia é que nenhuma aliança substancial e estável tende a ser alcançada. Mesmo quando maiorias são acertadas, tendem a ser cíclicas e episódicas não sendo garantia sólida para o governo governar e de se proteger contra potenciais ameaças de impeachment.
Nesses 20 meses de governo, é possível identificar que Bolsonaro adotou, de forma quase que sequencial, essas três estratégias. Inicialmente, preferiu governar sozinho, renegando os partidos e acusando-os de fazer parte da política tradicional. Quase como um desdobramento complementar da primeira estratégia, também se utilizou fartamente de conexões diretas com o público para pressionar e desgastar o Legislativo e suas lideranças. Ultimamente, no entanto, vem construindo alianças políticas com os partidos do chamado Centrão por meio de barganhas cujos objetivos e termos de troca, até o momento, não são claros nem seguros.
Diante das sucessivas derrotas e desgastes com o Legislativo durante esse período, fica claro que nenhuma dessas três estratégias de governar na condição de minoria está sendo bem-sucedida. Condições institucionais e políticas para a formação de uma coalizão majoritária e estável não faltam no presidencialismo multipartidário brasileiro. Além do mais, a preferência mediana do atual Congresso é muito próxima daquela do presidente. Por que então “trair” seus eleitores apenas pela metade?
Janio de Freitas: Fachin vê, como todos, e diz, como poucos, sobre futuro contaminado por despotismo
Ministro do STF faz diagnóstico forte e destemido ao tratar da escalada do autoritarismo no Brasil após eleições de 2018
A repercussão negada pelos jornalistas não nega ao exame da atualidade pelo ministro Edson Fachin, do Supremo, a condição de mais importante pronunciamento de um integrante das altas instituições brasileiras, ao menos desde iniciado o governo Bolsonaro, se não desde a queda de Dilma Rousseff.
A “recessão democrática” ainda não recebera nada no nível adotado por Fachin, exceto em parte pelo ministro Celso de Mello.
Objetivo como os magistrados evitam ser, claro e simples como os magistrados detestam ser, franco e lúcido como deveriam ser as considerações necessárias dos magistrados, Fachin advertiu que “as eleições de 2022 [as presidenciais] podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições democráticas”. Proteger de quê ou de quem?
O diagnóstico é forte e destemido: há “uma escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018”, gerada pela existência de “um cavalo de Troia dentro da legalidade constitucional” do país.
“Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”. O
que inflama o presente com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”.
Fachin vê, como todos, e diz, como poucos: “O futuro está sendo contaminado por despotismo”.
No Supremo, a ministra Cármen Lúcia pareceu dar eco às palavras de Fachin no Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Considerou triste a volta forçada do tribunal, diante do dossiê do Ministério da Justiça contra antifascistas, “a este assunto quando já se acreditava ser apenas”, ou ter sido, “uma fase mais negra da nossa História”. Nada a ver com o dito por Fachin, se até agora Cármen Lúcia tinha tal crença. Mesmo a tristeza soa irrealista.
Não faltaram ocasiões em que o Supremo e o TSE foram chamados a sustar a candidatura que atacou a democracia com a defesa da ditadura e da tortura, atacou as instituições constitucionais, prometeu acabar com os petistas e outros, anunciou uma população armada, transpirou ódios preconceituosos e vocação homicida. Isso tudo expelido por uma perturbação mental indisfarçável e com histórico comprovado.
Hoje não faltam crimes de responsabilidade acumulados. Como não faltam mortes pela Covid, não combatida de fato e inocentada para os incautos. E nem é só o figurante principal que continua inatingível pela defesa da ordem constitucional e do devido à população.
Flávio Bolsonaro não precisa controlar as revelações que se sucedem sobre sua delinquência, porque controla a passividade do Senado e o vagar dos seus inquéritos. Carlos Bolsonaro nem interesse demonstrou pelas revelações que o atingem. Fabrício Queiroz e seus contatos milicianos estão protegidos.
A instauração e a ameaçadora continuidade do descrito por Edson Fachin, como ninguém ousou fazer nas altas instituições, têm corresponsabilidades no Judiciário e no Congresso. Mas aí mesmo, na impossibilidade de negar o exposto pelo ministro, ficará mais difícil não ver o que está vendo, para não fazer o que deve.
OS BONS MOÇOS
Desde que passou de senador a deputado, para que seus processos saíssem de Brasília rumo à sua Minas, Aécio Neves não cessa de receber benesses.
Agora é o desaparecimento de delações premiadas integrantes dos seus processos, que por isso param… na Justiça (sic) de Minas.
O que importa é poder usufruir bem, com sua vocação de playboy, os milhões que extorquiu por aí com a irmã. Enquanto Geraldo Alckmin e José Serra seguem suas vidas discretas e bem providas. Aos bons moços do PSDB correspondem bons moços no Ministério Público e nos tribunais.