Eleições

Luiz Werneck Vianna: Retomar o fio da meada

É cedo para se pensar no mapa eleitoral que sairá da próxima sucessão municipal, matéria para os especialistas, mas já se sentem lufadas de ar fresco que anunciam o começo de um novo dia ao fim de uma noite de pesadelo. É viva em nossa memória a velha lição de que, aqui, as eleições se manifestam como a forma superior de lutas das aspirações democráticas e das demandas sociais por políticas públicas igualitárias. E por toda a parte já assomam à superfície as indicações de que, mais uma vez, elas atuarão nesse sentido apesar das restrições impostas pela pandemia que nos aflige, presentes em candidaturas com histórico democrático confiável em várias capitais e em cidades influentes na formação da opinião pública na federação.

Decerto que eleições municipais têm um caráter singular em que são dominantes os temas locais, embora as que estão em curso guardem um significado plebiscitário implícito quanto a avaliação do governo Bolsonaro, que não por acaso evita se comprometer com candidaturas, mesmo com aquelas que lhe acenam com simpatia, salvo quando elas lhe permite confrontar com eventuais adversários em 2022, enquanto forças políticas de adesão democrática buscam demarcar com nitidez sua rejeição às suas políticas de governo, tal como nos casos da cidade de São Paulo, com a candidatura Boulos, de Porto Alegre, com a de Manuela Dávila, com as de Joao Campos e Marilia Arraes, em Recife, a de Edmilson, de Belém, e do Rio de Janeiro com a de Marta Rocha, cuja ênfase nas questões locais mal disfarça o sentido nacional da sua candidatura, inclusive pela contundente crítica ao candidato Crivela que procura identificação com o governo Bolsonaro, e em tantas outras.

É fato, contudo, que éticas de convicção rareiam neste cenário eleitoral em que predominam os cálculos de oportunidade. Mas uma circunstância externa a esse quadro pode vir a subverter as suas atuais marcações, qual seja as eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para o dia 3 de novembro, que, no caso da vitória de Biden deverá importar fortes repercussões na cena política brasileira com impactos sensíveis no pleito municipal de 15 de novembro. Até lá, convicções mal dormidas, podem encontrar tempo para despertar.

Os resultados eleitorais não terão efeitos banais. Eles servirão de vetor para o alinhamento das forças políticas e sociais, mas não se devem cultivar ilusões de superação imediata da atual cena de atraso e rusticidade da atividade política. Poderão, sim, estimular os impulsos, ainda em embrião, em favor da mobilização da oposição democrática ao que aí está, instituindo um novo patamar para novos avanços mais adiante. Por ora, fora do radar um retorno ao estado de coisas anterior ao governo Bolsonaro. Não eram apenas os 40 milhões de brasileiros que viviam em situação de invisibilidade de que apenas agora se teve ciência, era toda uma sociedade, inclusive seus segmentos ilustrados, que não foi capaz de identificar a miséria política e o primitivismo moral e intelectual que tomara conta da alma do país.

Os fios que nos mantinham vinculados às nossas melhores tradições e valores se encontram esgarçados, quando não rompidos. Conceder vida nova a eles, implica mais do que uma simples restauração, pois traz consigo o imperativo da inovação, para o que a agenda do espírito do tempo deste século com seus temas emergentes da questão ambiental e das relações solidárias entre os viventes nesse planeta é mais do que propícia. Resgatá-los, inovando-os, significa agora levantar um dique à ideologia neoliberal que nos ameaça com a desertificação moral e cívica na esteira de mecanismos autônomos do mercado como enteléquia fora de controle humano.

Sob a pandemia se visualizou com nitidez duas dimensões de onde podem fluir tal reanimação. A primeira delas é a da ciência, com protagonismo das suas instituições dedicadas às atividades da biomedicina, e a que provem da esfera pública dos subalternos no desempenho de ações orientadas para a auto-organização da vida popular, plataforma a partir da qual foram estabelecidos nexos com a universidade e segmentos do estrato dos intelectuais. Não à toa, a lista de candidatos que concorrem às câmaras de vereadores revela um bom número de originários com esse perfil.

Sob o influxo dessa movimentação de novo tipo, mesmo que em estágio precoce, germinam possibilidades de mutação na agenda tradicional das forças democráticas, especialmente na esquerda, visível na perda de ênfase da temática do nacional-popular, predominante entre nós por décadas, que ora começa a ceder lugar à pauta das demandas igualitárias. Exemplar disso está na crescente influência sobre nossos cientistas sociais da obra de Thomas Piketty, como no caso notável de “Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, do jovem sociólogo Pedro Ferreira de Souza, que sonda as raízes da invisibilidade da nossa miséria material e político-moral.

Estivemos imersos por longas décadas a partir do Estado Novo nos temas e nas políticas de modernização, ora em versões autocráticas, dominantes no período, ora em versões brandas, mas nenhuma delas renegou o papel da esfera pública na perseguição dos seus fins. No governo que aí está, pela primeira vez em nossa história política republicana, ela é concebida em pura chave de mercado. Para o argumento neoliberal dos atuais governantes, por modernização entende-se a destituição do público e das suas instituições a fim de deixar terreno livre para o aprofundamento irrestrito da expansão do capitalismo, seja no mundo agrário, no urbano, onde quer que se identifique uma fronteira propícia à acumulação de capitais, como nos resorts do litoral ou mesmo nos cassinos, objeto de desejo do nosso patético ministro da Fazenda. Na esteira de Thatcher, Reagan e Trump, para Bolsonaro não existe essa coisa de sociedade.

Essa construção ideal é exótica às nossas tradições, mesmo nas de raiz conservadora, ela está aí por um acidente de caminho, cujas sequelas começamos a reparar, passo a passo, como nas atuais eleições.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, Puc-Rio


Pablo Ortellado: Pesquisadores veem risco de violência política na eleição americana

Um em cada cinco americanos que se identifica como democrata ou republicano considera justificado o uso de violência se o seu partido perder

Cientistas sociais de diferentes instituições de pesquisa dos Estados Unidos perceberam que investigavam em paralelo a aceitabilidade da violência política por cidadãos com forte identidade política.

Quando reuniram seus bancos de dados, descobriram que o país vive uma onda crescente de aceitação da violência política, o que pode culminar em uma explosão caso o resultado das eleições presidenciais seja contestado por uma das partes.

Em artigo no site Politico, os pesquisadores apresentaram números preocupantes: em setembro de 2020, cerca de um terço dos americanos que se identificam como democratas ou como republicanos considerava justificado o uso da violência para atingir objetivos políticos (33% dos democratas e 36% dos republicanos). O índice era de apenas 8% em 2017, passou para 12% em 2018, depois para 15% em 2019 e dobrou para 30% em junho de 2020, no contexto dos embates entre conservadores e progressistas nos protestos do Black Lives Matter.

Os pesquisadores estão particularmente preocupados com dados que sugerem que cada episódio de violência política torna mais aceitável violência adicional, num ciclo vicioso perigoso: logo após um episódio de violência política, a aceitação geral da violência parece subir.

Nos últimos meses, ações armadas dos dois campos resultaram em morte. Em agosto, dois ativistas do Black Lives Matter foram mortos a tiros por um apoiador da ação da polícia na cidade de Kenosha. Quatro dias depois, um militante de extrema direita foi morto a tiros por um ativista antifascista em Portland.

Além dessas mortes, casos de agressão se espalharam por todo o país no contexto dos protestos.

Episódios de violência armada também aconteceram em protestos contra as políticas de isolamento social, como as diversas invasões da Assembleia Legislativa de Michigan por ativistas de extrema direta pesadamente armados.

O dado mais preocupante descoberto pelos pesquisadores mostra que um em cada cinco americanos que se identificam como democrata ou como republicano considera bastante justificada a violência se seu partido perder as eleições presidenciais, em novembro (20% dos republicanos, 19% dos democratas).

Quanto mais forte a identificação partidária, maior essa abertura à violência.

Como Donald Trump insiste que o voto pelo correio pode levar a uma fraude eleitoral, e Hillary Clinton recomendou ao candidato democrata Joe Biden não reconhecer a derrota se o resultado for apertado, os pesquisadores acreditam que sua preocupação com uma explosão de violência em novembro é bastante pertinente.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Celso Rocha de Barros: Se Trump vencer no tapetão, pode encorajar bolsonaristas a retomar retórica golpista

Para quem está tentando moderar Bolsonaro, se não for possível que Trump vença fácil, talvez seja melhor que perca feio

Donald Trump foi internado com Covid-19. Ao que parece, ao menos nesse round, sua briga com os fatos terminou com vitória dos fatos. Trump está internado com uma doença cuja gravidade negou, e não está sendo tratado com o protocolo que seus puxa-sacos recomendaram para o grande público ao redor do mundo.

Tudo isso pode virar. Se tiver a forma leve da doença, Trump pode dizer, como Bolsonaro, que tinha razão em negar sua gravidade. Se ficar incapacitado ou morrer, seus adeptos podem radicalizar na teoria da conspiração e questionar a legitimidade da vitória de Biden, que já parecia bastante provável antes da internação.

Alguns analistas notaram a similaridade entre a internação de Trump e a facada em Bolsonaro em 2018. As primeiras pesquisas não indicam uma onda de simpatia por Trump, mas também foi assim em 2018 no Brasil. E Bolsonaro foi, sim, beneficiado por não precisar se expor na campanha, deixando que um país desesperado com a política projetasse nele o que queria ver.

Mas não é claro que as mesmas condições vão valer para Trump. O republicano está concorrendo à reeleição, de modo que não se trata mais de ninguém projetando nada sobre ele. Todo mundo já sabe o que Trump é. Além disso, em 2018 Bolsonaro já liderava as pesquisas quando sofreu o atentado. Trump está razoavelmente atrás de Biden.

É mais um elemento de incerteza em uma eleição americana que já se anunciava explosiva. Se a sucessão de Trump se converter em crise política, pode haver consequências especialmente graves para o Brasil.

Vários e bons analistas já escreveram sobre os efeitos que uma vitória de Biden teria sobre o bolsonarismo. Mesmo se Biden não jogar contra Bolsonaro, certamente não jogará a favor, e nosso isolamento diplomático deve atingir níveis inéditos.

Mas há um outro cenário possível que recebeu menos atenção: uma vitória de Trump com corrosão institucional. Se Trump for eleito dentro das regras, as coisas devem continuar como estão.

Mas se vencer no tapetão, porque não aceitou a derrota, porque pediu recontagem, porque sua indicada para a Suprema Corte ajudou a anular votos por correspondência, ou porque a milícia Proud Boys espalhou terror pelas ruas, o radicalismo bolsonarista vai se sentir encorajado pela radicalização americana.

Afinal, os Proud Boys são a versão gringa da “turma do artigo 142” que Bolsonaro tentou beneficiar com a liberalização da importação de armas.

Isso poderia, inclusive, frustrar o esforço de acomodação de Bolsonaro dentro do sistema político brasileiro. Esse acordão vem forte faz alguns meses, e teve uma grande vitória com a indicação de Kassio Nunes para o STF.

Se Amy Barrett, a juíza conservadora recentemente indicada por Trump para a Suprema Corte, já estiver no tribunal durante uma manobra para anular votos democratas, os radicais brasileiros perguntarão: Kassio Nunes teria coragem de anular os votos do PT?

De qualquer forma, para quem está tentando moderar Bolsonaro, se não for possível que Trump vença fácil, talvez seja melhor que perca feio, sem chance de virar no tapetão.

Se Trump tentar melar o jogo e isso contaminar a política brasileira, não será a primeira vez que a direita americana incentivará golpes na América Latina, mas será a primeira vez que o fará pelo exemplo.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


O Estado de S. Paulo: Doença de Trump interrompe campanha em momento chave para o republicano

Atrás de Joe Biden nas pesquisas, campanha do atual presidente esperava reforçar aparições públicas na reta final

Por Philip Rucker, Josh Dawsey e Annie Linskey, The Washington Post, O Estado de S.Paulo

Para a campanha de reeleição do presidente dos Estados UnidosDonald Trump, outubro deveria ser o mês da reviravolta. Depois de ficar atrás do candidato democrata Joe Biden durante todo o ano, Trump pensou que a semana passada seria o momento chave para garantir seu segundo mandato, desqualificando seu oponente durante o primeiro debate para  expandir sua coalizão de eleitores, levantando mais dinheiro e organizando comícios maiores.

Não funcionou da maneira que ele imaginou.

Os últimos sete dias foram uma sequência de contratempos. A revelação no The New York Times de que Trump pagou pouco ou nenhum imposto de renda federal nos últimos anos; um desempenho beligerante no debate - que pode ter afastado muitos eleitores -; a prisão de seu gerente de campanha recentemente rebaixado na Flórida; e, finalmente, a hospitalização do presidente por covid-19 por causa de um surto do novo coronavírus na Casa Branca, depois dele ter minimizado a pandemia e zombado das diretrizes de saúde pública.

Ao mesmo tempo, a vantagem financeira de Biden permitiu que o democrata dominasse as ondas de rádio da televisão, e algumas pesquisas recentes mostram que sua vantagem sobre Trump se mantém estável ou até cresce.

Apesar dos prognósticos otimistas do médico de Trump no fim de semana, a doença do presidente paralisou sua campanha a apenas quatro semanas da eleição, e com os eleitores já votando antecipadamente em muitos Estados.

"Isso efetivamente congela a campanha em um ponto em que o presidente está em desvantagem", disse o pesquisador Neil Newhouse, que não trabalha para a campanha de Trump, mas aconselha muitos outros candidatos republicanos. "Este é o período de tempo que esperávamos preencher a lacuna e isso o torna ainda mais desafiador."

Os assessores de Trump reconhecem que a doença do presidente não ajudou porque chamou a atenção nacional para a forma como seu governo lidou com a pandemia. Eles também dizem que o fato de o presidente estar hospitalizado prejudica o que ele vê como seu principal atributo sobre Biden: sua aparência mais forte e resistente em comparação a Biden.

"Sempre que a conversa é sobre coronavírus, não é útil para nós", disse um alto funcionário do governo, que, como alguns outros entrevistados para esta matéria, falou sob a condição de anonimato.

Biden procurou chamar a atenção para a pandemia e apresentar um contraste na liderança. Por exemplo, ele se comprometeu a divulgar os resultados de todos os seus testes de coronavírus, um contraste com a falta de transparência em torno dos resultados dos testes de Trump e do histórico médico, tanto recentes quanto passados.


Alon Feuerwerker: E se Bolsonaro estiver sendo subestimado?

Quase dois anos depois da inauguração de Jair Bolsonaro na presidência, já é possível esboçar algumas linhas de seu processo decisório. Uma delas, talvez a principal: ele navega sempre de olho nos objetivos programáticos mas nunca descuida de se garantir na variável-chave da sustentação política.

No limite, abre mão sempre que isso é indispensável para não perder base que o sustenta, e não apenas no Congresso.

Eis uma complexidade na vida dos que fazem oposição ou têm a missão de criticá-lo. Como no esquema do teatro grego, o bolsonarismo tem uma máscara, a da antipolítica. Acontece que no fritar dos ovos a política acaba sempre dando as cartas.

Vem daí certa frustração notada entre os apoiadores mais da ponta do espectro.

Uma avaliação honesta do processo decisório bolsonarista terá de admitir, verificada a realidade, que o capitão-deputado feito presidente não é tão tosco quanto alardeiam os detratores. E que há, ao contrário, algum grau de sofisticação na atual operação política.

Acontecia também com Luiz Inácio Lula da Silva, naturalmente que com sinal trocado. Os opositores e críticos viam-no como pior do que realmente era de jogo. O grave erro de, nos negócios e na política, subestimar o concorrente.

Vamos olhar aqui dois eventos. O primeiro é a política para o Nordeste. Claro que teve o acaso, que foram a Covid-19 e o consequente auxílio emergencial, que aliás nasceu magrinho e engordou pelos esforços da oposição. O segundo é a recente indicação do nome para o STF.

Sorte e azar fazem parte do jogo, e quando as decisões são tomadas é preciso levar isso em conta. Análises a posteriori sempre têm um pouco de engenharia de obra feira, mas talvez os governadores do Nordeste tenham tido azar na escolha que fizeram de aceitar uma certa polarização contra o Planalto.

Talvez trabalhassem com a premissa de que o governo ficaria inflexivelmente aferrado à austeridade econômica e isso lhes daria um terreno fértil para fazer oposição a Brasília nos seus estados, reconhecidamente os mais dependentes do dinheiro federal.

Simplesmente não aconteceu, e hoje o cenário é de um bolsonarismo que ganha terreno ali com base em política social, verba para obras e alianças com políticos de direita (mesmo quando ditos de centro) que aliás também já foram aliados do PT.

Talvez o jogo não se inverta completamente no Nordeste, mas Bolsonaro não precisa disso tudo. Basta a ele crescer na região e sustentar de algum modo a posição no Sudeste e no Sul.

As pesquisas mostram que esse objetivo está mais à mão no segundo do que no primeiro.

E tem a indicação para o STF, que claramente teve como vetores 1) não afrontar o próprio STF, 2) garantir o apoio no Senado Federal, com poder de veto neste caso e 3) sinalizar aos políticos com um nome não identificado com a caça a eles.

O fato é que nenhuma das especulações anteriores à indicação descrevia esses critérios como essenciais. Bolsonaro foi aqui claramente subestimado.

E talvez o erro tenha estado em ouvir demais o que se diz na política em vez de dar atenção ao que se faz. De vez em quando, já se disse aqui, o mais prudente é colocar a política no mudo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


José Roberto Campos: Não está bom, mas pode piorar

61,5% dos municípios gastaram mais que o piso obrigatório para educação, e 97,4% mais que o piso para saúde

Apesar de pisos constitucionais definidos e obrigatoriedade de gastos, o desempenho da saúde e da educação estão ainda muito longe do aceitável. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu a unificação dos dois limites, ficando a cargo de Estados e municípios decidirem em qual área aplicar mais ou menos. O senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo e do orçamento de 2021, sugeriu ir além: acabar com a vinculação de ambas, o que também não desagradaria Guedes, que coleciona discursos sobres os três Ds (desvincular, desindexar, descentralizar).

Dois setores vitais para a população e o futuro, saúde e educação não deveriam ficar à mercê de ideias improvisadas em um ambiente nefasto de corte de gastos e penúria de recursos. Os pisos constitucionais foram uma forma encontrada para tentar resolver duas carências históricas do país. É preciso colocar algo melhor no lugar, e com calma.

A fusão dos pisos de gastos colocaria mais em risco a educação, do que a saúde, conclui estudo recém-publicado do Ipea1. O trabalho, porém, surpreende ao mostrar que municípios e Estados gastam bem mais nas duas áreas do que o mínimo obrigatório constitucional (15% com saúde, 25% com educação).
E não se trata de uma meia dúzia de exceções, mas da grande maioria. “Dos 5.480 municípios do país, 3.368 (61,5%) tiveram aplicação em educação no período 2015-2018 superior a 26,25% (5% a mais do que o piso), sendo 5.334 os que aplicaram acima de 15,75% (também 5% acima do piso) em saúde (97,4%)”, registra o estudo. De maneira geral, as despesas acima do mínimo obrigatório foram maiores em saúde do que em educação nos municípios, e maiores para a educação no caso de Estados e União.

Os economistas do Ipea foram examinar de perto a argumentação para unificar os dois pisos, que se resume ao fato dela permitir maior eficiência no gasto. Os 25% de despesas obrigatórias com educação seriam uma camisa de força e um desperdício nos locais com menos crianças e jovens. “Se tal hipótese fosse verdadeira, uma análise das aplicações dos municípios em MDE deveria revelar aplicação muito próxima à aplicação mínima (25%). Mas não é isso o que se verifica”, concluem.

Os números mostraram que a fatia dedicada à educação no orçamento dos municípios se situou até 3 pontos percentuais acima do mínimo e os de saúde, de 5 a 7 pontos percentuais acima. Mesmo no Norte e Nordeste houve diferenças de 3 pontos percentuais acima do piso obrigatório para ambas as áreas.

O trabalho constatou que houve fatia “não desprezível” de municípios que aplicaram 30% em saúde e 30% em educação, caso dos que têm até 500 mil habitantes e dos localizados do Nordeste, Sudeste e Sul. “Em síntese, a grande maioria dos municípios analisados (4.480 em 5.480, 81,8%) tem percentual de aplicação superior a 26,25% em educação (piso + 5%). Assim, não parece razoável que tenham aplicado mais do que o mínimo obrigatório em educação se não precisassem realizar despesas adicionais ao piso constitucional”.

Aonde estaria então o maior risco de perdas para os orçamentos de educação e para os da saúde, na fusão dos pisos? Os gastos com saúde são mais inelásticos que os da educação, logo mais resistentes à diminuição de seu papel em políticas públicas e mais visíveis do ponto de vista político-eleitoral. Mesmo assim, embora em menor escala, reduções nesta área podem acontecer.

Para avaliar o grau de risco, os autores separaram os municípios em que haveria maior possibilidade de queda nos gastos com educação - aqueles em que a diferença entre o gasto feito e o mínimo obrigatório é de até 0,7 ponto percentual e as despesas com saúde ultrapassam folgadamente o piso. Usaram critério idêntico para a saúde, com outros percentuais (0,4 e 4,3 pontos percentuais, respectivamente).

Possíveis perdas para a educação com a fusão de pisos ameaçariam 951 de 5.480 municípios, com população de 51,9 milhões de pessoas - 25% da população do país em 2018. Sul e Sudeste somam quase metade dos municípios em questão (455), seguidos pelo Nordeste (342). 41% das cidades nesse caso tem mais de 500 mil habitantes e 32% entre 100 mil e 500 mil habitantes.

Os riscos de diminuição dos gastos com saúde afetariam 97 municípios, mais concentrados no Norte e Nordeste e uma população de 2,24 milhões. Seriam mais atingidas áreas municipais com 20 mil a 50 mil habitantes, que já têm pouca infraestrutura para o atendimento.

As maiores despesas com saúde e educação não significam que seu montante seja suficiente para atender as necessidades. Argentina e Chile gastam quase o dobro per capita do que o Brasil, cujas despesas com educação estão abaixo dos da maioria dos membros da OCDE. Mas é inegável que uma melhoria da gestão nesse quadro de recursos produziria muito mais resultados, como advogam os especialistas.

  1. Gastos em saúde e educação no Brasil: impacto da unificação dos pisos constitucionais. Fabiola Sulpino Vieira, Luciana Mendes Santos Servo, Rodrigo Pucci de Sá e Benevides, Sérgio Francisco Piola e Rodrigo Octávio Orair. Texto para discussão 2596.

*José Roberto Campos é editor executivo do Valor.


Ricardo Noblat: Dada a largada para a primeira eleição do voto quase facultativo

Nunca se viu nada de parecido

O voto no Brasil é obrigatório há 74 anos. O Código Eleitoral prevê multa de 3% a 10% sobre o salário mínimo da região para os que deixarem de votar e não se justificarem.

Sem a justificativa e o pagamento da multa, o eleitor não poderá obter passaporte ou carteira de identidade e renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo.

Mas como a punição pela abstenção é irrisória, o voto obrigatório é uma ficção. O prazo para justificar a abstenção é de 60 dias. E basta pagar uma multa de R$ 3,50 para que o eleitor fique quite.

Este ano, graças à crise sanitária, não votar e não ser multado ficou ainda mais fácil. Em cartório, o eleitor poderá depois justificar sua ausência dizendo que passou mal no dia da votação.

“Em algum lugar no futuro, idealmente, o voto deverá ser facultativo”, disse a este blog o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

“Mas a nossa jovem democracia ainda terá que ter esse ajuda extra, lembrando que o voto facultativo dá protagonismo aos extremos, o que não é bom no momento que o país atravessa”.

Segundo a mais recente pesquisa Datafolha, por medo de ser contaminado pelo coronavírus, 1 em cada 5 moradores da cidade de São Paulo diz que pode deixar de ir votar em novembro.

34% dos eleitores afirmam que não se sentem nada seguros em sair para votar, 24% dizem se sentir muito seguros e os outros 42% sugerem ter pouca segurança.

Os eleitores mais ricos são os que revelam menor grau de insegurança (12%). A maior taxa (24%) está entre os que recebem até dois salários mínimos. A s mulheres são mais inseguras.

Nunca antes na história uma eleição mereceu ser chamada de atípica como esta. Ela se dará sob a convergência inédita de fatos extraordinários – o mais impactante deles, a pandemia.

O vírus que já matou quase 142 mil pessoas e infectou mais de 4 milhões e 730 mil transferiu para novembro a eleição que deveria acontecer em outubro e que poderá se estender até dezembro.

A crise econômica que o país enfrenta decorre da pandemia que aumentou também a polarização política. A briga pelo voto deixará as ruas e será travada em grande parte nas redes sociais.

Por ser municipal, a eleição de vereadores e prefeitos costuma girar em torno de problemas locais. A pandemia, a crise econômica e a polarização política nacionalizarão o discurso dos candidatos.

A abstenção será maior do que jamais foi. Tudo isso somado, os resultados tornam-se ainda mais imprevisíveis. Quem se disser capaz de prevê-los é porque está mal informado.


Carlos Melo: Antipolarização e novo centro para a disputa

No Brasil, os polos políticos capazes de atrair e agregar várias forças partidárias foram redefinidos em 2018. A “clássica” polarização PT/PSDB — que no país e na cidade de São Paulo, em particular, deu o tom da disputa por tanto tempo – tende a desaparecer nas eleições deste ano. Ao que tudo indica, um ciclo se encerrou dando origem a outro — que, talvez, também já esteja passando por novo processo de transmutação. A vida e a política seguem, como numa noite veloz.

Na eleição presidencial, a crise econômica e a Lava Jato fizeram com que o antipetismo – que nasceu junto com o partido — se expandisse. Com maior afinco e desespero, buscou força capaz de derrotar a até então forte legenda de Lula. O PSDB deixava, porém, de ser a aposta: exposto aos próprios escândalos e diluído no Centrão, os tucanos sucumbiram como alternativa. O vazio, contudo, abriu espaço para a aventura.

Favorecido por esse quadro, o bolsonarismo tomou corpo. (Era também beneficiado pela onda mundial de ressentimento e rancor contra a política e a democracia, originada nos indivíduos abandonados pela revolução tecnológica – os esquecidos, somente agora percebidos por Paulo Guedes. Como em vários cantos do planeta, aqui também o populismo se aproveitou das circunstâncias e se estabeleceu.

Nesses dois anos, o bolsonarismo vem se consolidando para parte da população, mas também se desgastando com outra. Com efeito, a demagogia populista radicaliza e fideliza seu público, mas não consegue dar resposta efetiva a problemas concretos. Por sua vez, o PT vem perdendo o viço, embora Lula mantenha forte lembrança no eleitorado.

São duas forças ainda importantes, mas a excitação constante que exigem tende à fadiga, revelando limites claros, impossíveis de se expandirem para além de suas tropas. Assim, improdutiva e cansativa, essa polarização pode, nesse período, ter-se desdobrado em duas outras forças: o antipetismo e o antibolsonarismo.

O petismo e bolsonarismo se combatem, se anulam e não somam. Já “os antis” criam intersecções, delineando espaço para “candidatos nem-nem” — que nem Bolsonaro, nem Lula. Havendo visão de futuro, programa e energia, um campo distinto do Centrão e não entendido como um centro anódino pode se apresentar como alternativa a polarização bolso-petista.

Estaria inaugurada uma antipolaridade agregadora de não petistas e não bolsonaristas? Pode ser. Sendo capaz romper a fortaleza de um dos polos, chegaria ao segundo turno contra o outro, tendendo a atrair o “voto útil” de quem ficou de fora. Mais uma vez: demandará propostas e posicionamento; ser “Centro”, por si só, não define ninguém. Mas, a lógica e as vantagens do “centro político”, assim como a racionalidade do antigo eleitor mediano, estariam assim reconstituídas. A história dirá.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Reinaldo Azevedo: Como preservar a democracia da vontade do povo e das elites

Sistema, que vai além da escolha de governantes, está em perigo porque a paixão das facções chega às decisões de Estado

Pesquisa CNI-Ibope aponta recorde de popularidade do governo Bolsonaro. Acham seu governo ótimo ou bom 40% dos entrevistados. Apenas 29% dizem ser ruim ou péssimo. Estou com a minoria dos 29%. "Que é, Reinaldo, vai discordar da maioria do povo?" Já fiz isso muitas vezes.

Em 2006, no auge de embates com esquerdistas, escrevi um texto que me rendeu uma tempestade de insultos. Lá se lia: "Fico aqui queimando as pestanas, tentando achar um jeito de eliminar o povo da democracia. Ainda não consegui. Quando encontrar, darei sumiço no dito-cujo em silêncio. Ninguém nem vai perceber…".

Um amigo me censura pelo emprego, que considera excessivo, da ironia. Talvez tenha razão. Não costumo explicá-la. Com nota de rodapé, ela vira capim. Esquerdistas me mandaram para o "paredón" moral por aquele artigo. Direitistas aplaudiram. Corria o ano da graça de 2006, e Lula seria reeleito três meses depois, um ano após o mensalão.

Eu fazia uma citação coberta do Artigo 10, de "O Federalista", de Madison, que trata da necessidade de preservar a "Assembleia" das paixões do que ele chama "facções" —sejam majoritárias ou minoritárias. E daí se pode supor que o que ele entende por "República", que nós chamamos "democracia", é mais do que a vontade da maioria.

O governo era então de esquerda. Hoje, somos governados pela extrema direita, com um estoque de agressões à ordem constitucional e legal que supera, em um ano e nove meses, os 13 e poucos de gestões petistas. E eis-me aqui de novo a negar capim a ruminantes.

Nesta sexta, o país vai superar a marca dos 141 mil mortos por Covid-19. Estamos à frente dos EUA em óbitos por 100 mil e lideramos o ranking tétrico do G-20. As praias e os bares indicam que parte considerável dos brasileiros faz a sua própria leitura de "Os Lusíadas", de Camões. Entregam-se esses à urgência embriagada "e se vão da lei da morte libertando", ainda que possam efetivamente matar e morrer em suas obras nada valorosas.

Há um desprezo épico pelo saber testado e firmado, do tamanho das línguas de fogo que devastam o Pantanal e parte da Amazônia. Os investimentos estrangeiros despencam e fogem, levados pelos fumos da irresponsabilidade oficial e da morte. Jamais me acusem de ter dito um dia que a voz do povo é a voz de Deus. Já escrevi que, mais de uma vez, foi o capeta que soprou as escolhas aos ouvidos das massas.

"Tá tristinho, Reinaldo, com a vontade do povo?" Reproduzo pergunta que um petista fez em 2006 na área de comentários do blog quando escrevi o tal artigo. Nessas coisas, não sou alegre nem triste. Aponto o que vejo. Reservo os sentimentos para meus amores e meus amigos.

O auxílio emergencial, obra do Congresso, não de Bolsonaro, e a caça a governadores que combateram o vírus, com ou sem roubalheira, explicam parte do resultado da pesquisa. Há, pois, fatos que elucidam os números. Mas não era e não sou paternalista: a avaliação traduz agora, como traduziu no passado, escolhas que são também morais e éticas.

Todo o cuidado é pouco. A culpa não é só do povo, claro! Há a das elites, ainda mais importante, conforme também se depreende do citado Artigo 10. Escrevemos nosso próprio roteiro de "Como as Democracias Morrem". No livro, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt observam que uma das "normas cruciais" para a sobrevivência da democracia é a "reserva institucional".

Entende-se por isso "o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito", pois tal ação "pode pôr em perigo o sistema existente". Ministério Público e Judiciário, nos últimos seis anos, têm mandado a autocontenção às favas e destruído o ambiente da "reserva institucional", pretextando o cumprimento da lei —o que, de resto, é falso.

A democracia, que é mais do que um sistema de escolha de governantes, está, sim, em perigo. Seja porque a paixão das facções chega às decisões de Estado, seja porque a elite do aparato investigativo-judicial perdeu a noção da importância que tem a "reserva institucional" na defesa de um regime de liberdades.

Pronto. O achincalhe pode começar, como em 2006, agora por novos autores.


Foto: Agência Brasil

Hélio Schwartsman: Experimentos eleitorais

Métodos de votação ranqueada são playground para matemáticos

A única vantagem do caótico sistema eleitoral norte-americano, que permite que estados, condados e municípios criem suas próprias regras para contar sufrágios, é que ele se presta a experimentos. Um deles, conhecido como voto preferencial, que já era utilizado havia décadas em poucas cidades, vem ganhando espaço.

O Maine vai estrear o sistema nas eleições presidenciais deste ano. No mais populoso Massachusetts, haverá um plebiscito para decidir se o estado também o adotará. A cidade de Nova York terá sua primeira eleição nesse modelo no ano que vem.

Há vários métodos de votação ranqueada —essa área é um verdadeiro playground para matemáticos. Um dos mais fáceis de explicar é aquele em que o eleitor ordena os candidatos segundo sua preferência. Caso nenhum dos postulantes seja a primeira escolha de mais de 50% dos votantes, procede-se a um returno virtual em que o candidato que ficou em último lugar é eliminado das cédulas e elas são recontadas. O processo segue até que alguém obtenha a maioria absoluta.

A vantagem indiscutível do sistema, ao menos nas localidades que se valem do segundo turno, é a economia de tempo e recursos, já que ele permite obter um resultado parecido com o do sufrágio em duas rodadas com uma só visita à urna. Especula-se, também, que ele favoreceria a moderação, já que interessaria aos candidatos tanto conquistar a preferência dos eleitores como também evitar a rejeição. Ainda não há consenso dos cientistas políticos sobre esse efeito.

Do lado negativo, contabilizam-se o custo de aprendizado —pode ser difícil explicar para o eleitor por que o candidato com mais primeiras preferências não levou o pleito— e a ausência de um embate direto entre os dois mais bem votados num segundo turno. A literatura, porém, sugere que debates e a própria campanha são bem menos decisivos do que parecem na narrativa dos candidatos e da imprensa.


Alon Feuerwerker: A luta do centrismo

O objetivo é construir a base de alternativas competitivas para 2022

Uma característica destas eleições municipais, além da pulverização das candidaturas a prefeito trazida pelo fim das coligações para vereador, é a movimentação do centrismo para construir a base de alternativas competitivas na eleição presidencial. Acontece na esquerda e na direita. Nesta, nota-se a atração mútua entre PSDB, MDB e Democratas. Naquela, entre PSB e PDT.

O objetivo de cada um é quebrar a hegemonia em seu campo. Na direita, reina soberano por enquanto Jair Bolsonaro. Na esquerda, apesar dos pesares, nenhum desafiante chega perto de Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo consideradas as atribulações jurídicas do ex-presidente. Ciro Gomes ainda consegue alguma musculatura. Mas João Doria come poeira. E Sergio Moro até agora é uma incógnita.

Em condições normais de temperatura e pressão, a primeira fila no grid para 2022 estará, portanto, ocupada. Mas o que pode mudar? No centrismo de esquerda, uma esperança é que, desta vez, o eleitorado de Lula, se ele não puder concorrer, não marche para o candidato de Lula. No centrismo de direita, o sonho é que Bolsonaro seja removido antes da largada por algum fato ainda fora do radar.

Daí que, num apenas aparente paradoxo, o foco da pancadaria de cada um seja o “aliado” potencial, e não o adversário eleitoral. O objetivo principal de tucanos, democratas e emedebistas nesta eleição para prefeito e vereador é derrotar o bolsonarismo. E o esforço maior de pessebistas e pedetistas é maximizar as dificuldades político-eleitorais do PT para impor ao partido de Lula o maior desgaste possível.

Observadores cartesianos da cena podem até achar estranho, mas assim é a política. Qualquer análise desta que não tenha como centro a luta crua pelo poder é desperdício de tempo e energia intelectual. E ninguém alcança um segundo turno sem passar pelo primeiro. E o principal obstáculo no primeiro turno costuma ser exatamente aquele “amigo”, o eleitor a quem você vai ter de pedir apoio e voto quando chegar a hora da decisão.

Daí por que se compreende o presidente da República resistir a colocar o cacife dele na mesa dos primeiros turnos nos municípios. A não ser quando for importante para, desde agora, enfraquecer diretamente seus possíveis adversários em 2022. Já no caso de Lula, a prioridade parece ser evitar que o PT se dilua em alianças que podem fortalecer quem deseja aposentar o ex-presidente.

Não que ambos, Bolsonaro e Lula, dependam tanto assim do resultado deste novembro. Ele é vital para seus concorrentes, mas os dois podem sobreviver bastante bem a reveses de sua tropa. Pois eleição presidencial tem características de eleição solteira. O eleitor não vota no presidente porque o deputado ou o governador mandaram, mas pode muito bem decidir votar no governador ou no deputado porque são apoiados pelo candidato a presidente.

E tem outra: quanto mais cada partido, o bolsonarista e o lulista, vier a sofrer agora, mais precisará do líder para comandar a colheita na urna daqui a dois anos. Fica a dica.


Vera Magalhães: Mudaram as estações

Bolsonaro pode viver, em plena campanha eleitoral, a ‘ressaca’ do auxílio

O presidente Jair Bolsonaro viveu nos dois últimos meses uma espécie de “primavera” antecipada num ano para lá de tumultuado – em grande parte, graças a ele próprio, como gosto sempre de frisar.

O pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 (com exceções que faziam com que pudesse chegar ao dobro) ao longo de cinco meses foi um antídoto à queda de popularidade recorde que ele experimentara graças à pandemia e aos descalabros que cometeu em seu curso. Como a economia é, sempre, o vetor principal para que a população avalie o governante, antes e agora, aqui e alhures, Bolsonaro colheu os frutos de um dinheiro direto na mão de quem mais precisava, que evitou um colapso econômico e social ainda maior do que poderia ter sido ocasionado pela pandemia.

Medida correta, inevitável e, é sempre bom lembrar, fruto em grande parte da decisão do Congresso de contrariar o valor de R$ 200 inicialmente proposto pelo governo. Houve um “leilão” com ganho para os mais desassistidos no qual os parlamentares propuseram R$ 500 e Paulo Guedes arrematou com R$ 600.

Mas sempre se soube que o benefício era temporário e que, principalmente, o valor, polpudo em comparação com os outros benefícios sociais perenes, como o Bolsa Família, que atinge 13,9 milhões de pessoas com valores que variam pela composição familiar, mas não passam de R$ 205, era impraticável no médio prazo.

O dia chegou. O novo valor do auxílio, de R$ 300, começa a ser pago nesta semana. Pesquisa do instituto Ideia Big Data para a revista Exame mostrou que 53% da população ficou descontente com o novo valor. A despeito de grande parte dos entrevistados saber que o benefício era temporário, como seu nome já diz, haverá efeitos muito concretos na vida das pessoas.

Dados da Pnad covid, do IBGE, mostram que até julho 30 milhões de lares, ou 44% do total do Brasil, receberam alguma parcela do auxílio. É uma enormidade, representa em muitas cidades um motor importante da economia e, para muitas famílias, a fonte única de renda.

A redução da renda direta em circulação coincide com um momento de pico da inflação de alimentos. Não é outra a razão da insistência de Bolsonaro nos preços dos supermercados: ele sabe que a combinação de pessoas com menos dinheiro e comida mais cara pode rapidamente corroer a popularidade.

Além disso, o fim do amortecedor dos efeitos da pandemia vai deixar mais claro o estrago que foi feito na economia pelo coronavírus. Daí por que o presidente e seus aliados tenham voltado a martelar todo dia que a culpa pela queda do PIB e do desemprego é dos governadores, ou dos que pregaram o isolamento social e o fechamento dos estabelecimentos como medida de proteção a vidas e para evitar o colapso do sistema de saúde.

Trata-se, como sempre, de narrativa além de falsa criminosa, ilustrativa da completa incapacidade de Bolsonaro de governar numa crise (ou em qualquer situação). Mas, como sempre, essa irresponsabilidade encontra eco nos ouvidos de setores de uma sociedade traumatizada por meses de restrições em todos os campos da vida.

As pesquisas mostram um esgotamento do combustível do auxílio na popularidade do presidente. As curvas de quem o considera ótimo e bom e ruim e péssimo convergiram e hoje estão praticamente empatadas, em patamares que vão de 35% a 40%, a depender do instituto.

Com o auxílio reduzido à metade, haverá forçosamente um novo movimento dessas curvas. Como Bolsonaro é pautado exclusivamente por popularidade, vem aí uma estação de decisões atabalhoadas, atropelando a Economia, a Saúde e qualquer área da administração que ele veja como empecilho. No calendário bolsonarista, depois da primavera pode vir o outono.