Eleições
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro em seu habitat
Depois de abandonar o PSL e a 'nova política', Bolsonaro testa os generais
Com o fiasco da “nova política” nos governos estaduais e o escanteio do PSL em favor do Centrão no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro volta ao seu habitat político e apoia o “velho” também nas eleições municipais. Mas, assim como o “novo” não funcionou nos governos e no Congresso, o “velho” não está dando para o gasto na disputa pelas prefeituras. Entre o “velho” e o “novo”, tem prevalecido a experiência e a confiança.
Os “novos” e meteóricos Wilson Witzel, juiz de carreira eleito no Rio pelo PSC, e Carlos Moisés, bombeiro militar eleito em Santa Catarina pelo PSL, estão deixando a política pela porta dos fundos, afastados dos governos dos seus estados pelas vias política e jurídica. Não têm experiência e cancha para a complexidade da política e, aparentemente, não entraram nela apenas “por ideologia” e “pelo bem comum”…
Talvez por isso, talvez não, Bolsonaro desistiu de um exército (atenção, em minúscula…) que só tem dado dor de cabeça e mergulhou de volta na sua velha turma de 28 anos de Congresso. Apoia o prefeito Marcelo Crivella no Rio e o sempre candidato Celso Russomanno em São Paulo, ambos do Republicanos. Mas suas candidaturas derretem ao ritmo de Amazônia e Pantanal.
Inelegível, Crivella recorre à Justiça Eleitoral e tem um recorde: 58% de rejeição, o que sugere chance zero de vitória. Quem lidera é o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), efetivamente o que tem mais experiência. E quem emerge para disputar com ele o segundo turno é Martha Rocha (PDT), mulher, delegada e de um partido brizolista – referência política que ainda resiste no Rio. Empatada com Crivella, ela é seguida de perto por Benedita da Silva (PT).
Em São Paulo, repete-se o script das duas eleições anteriores: Russomanno dispara na frente e vai se desmilinguindo, desta vez pendurado em Bolsonaro. Revela-se um mau negócio. Depois de fotos com o presidente, ele disparou na rejeição, despencou nas intenções de votos e foi superado pelo prefeito Bruno Covas, do PSDB.
Pelo retrato de hoje, que sempre pode mudar, o segundo turno vai ser mais uma vez, como há décadas, entre PSDB e a esquerda. Mas tem novidade: Jilmar Tatto (PT) cresce a passos de tartaruga e a nova cara da esquerda é Guilherme Boulos (PSOL). Um segundo turno entre PSDB e PSOL tende a favorecer o tucano.
Sem surpresa, o PSL, que há apenas dois anos elegeu Bolsonaro, conquistou governos estaduais e formou uma das duas maiores bancadas da Câmara, vai de mal a pior na campanha. Com R$ 199 milhões do Fundo Partidário, mas sem Bolsonaro, sem protagonismo e sem lideranças no Congresso, disputa em 13 das 26 capitais com candidaturas próprias, mas só tem alguma chance em uma, Palmas, com uma mulher, Vânia Monteiro.
Eleições municipais não projetam o resultado de eleições presidenciais, mas são um bom momento de consolidar ou destruir personagens, mobilizar estruturas partidárias e militantes e jogar no ar questões fundamentais para o País. Ainda mais em tempos de pandemia, recessão, desemprego e um presidente capaz de desdenhar da pandemia, atacar o isolamento social, propagandear a cloroquina e agora desacreditar e guerrear contra a… vacina.
O PSL se esvai e o “novo” envelhece, mas o bolsonarismo fica. Além de saúde, educação, habitação, a eleição deve servir também para discutir realidade, princípios e, afinal, o que é, o que significa e o que projeta esse bolsonarismo. A semana, aliás, é excelente para isso. Depois de ficar com o tal guru da Virginia contra o general Santos Cruz e de humilhar o general Pazuello, Bolsonaro tem de optar entre Ricardo Salles e o general (Maria Fofoca) Ramos. Eleição municipal não tem nada a ver com isso? Qualquer eleição tem sim, e muito!
- Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Ascânio Seleme: Bolsonaro é o grande perdedor das eleições municipais
Dedo de ouro das eleições de 2018 aparentemente virou um dedo podre, pelo menos até aqui
Você pode dizer que ainda é cedo para se fazer projeções, e eu devo concordar. Mas não dá para espiar o desenvolvimento das campanhas municipais sem se constatar o óbvio. Até aqui, o grande derrotado é Jair Bolsonaro. Seu dedo de ouro das eleições de 2018 aparentemente virou um dedo podre. Para onde ele aponta, é dali mesmo que não sai nada. As pesquisas não deixam margem para dúvida. Segundo o Datafolha de quinta passada, Bolsonaro perde em São Paulo, com Russomanno, no Rio, com Crivella, e em Belo Horizonte, com Engler. Os três mereceram o apoio explícito do capitão.
Em BH, o candidato bolsonarista tem apenas 3% das intenções de voto. Está certo que lá o prefeito deve ser reeleito no primeiro turno, mas mesmo assim, onde anda a pujança do presidente? O nome apoiado por ele rasteja por migalhas eleitorais. No Rio, o malfadado bispo Crivella corre sério risco de não ir para o segundo turno. Se os cariocas respiram aliviados com a boa nova, os três zeros do presidente tentam entender por que a coisa vai tão mal na cidade que deveria lhes pertencer. E em São Paulo, Russomanno derrete sob a luz do sol. Se continuar nesse ritmo, também perde a vaga no segundo turno.
Curioso é que os candidatos apoiados por Bolsonaro podem ser passados para trás por adversários de partidos de esquerda, ou de centro-esquerda. No Rio, a delegada Martha Rocha, do PDT, já empatou com Crivella, com uma curva de intenções de votos em ascendência contra a descendente do bispo. Em São Paulo, o quadro não é menos dramático. Em um mês, Guilherme Boulos, do PSOL, subiu de 9% para 14%, enquanto o candidato do capitão despencou de 29% para 20%. E faltam ainda três semanas para o primeiro turno. Bruno Covas (PSDB) lidera com 23%.
Em apenas três capitais candidatos claramente bolsonaristas estão à frente nas pesquisas. Em Fortaleza, o capitão Wagner, do PROS, tinha entre os dias 12 e 14 de outubro, segundo o Ibope, 28% das intenções de voto contra 23% de Luizianne Lins, do PT. Em Goiânia, levantamento do Ibope entre 30 de setembro e 2 de outubro indicava Vanderlan Cardoso (PSD) com 21% contra 20% de Maguito Vilela (MDB). E em Cuiabá, o candidato Abílio Jr. (Podemos) tinha 26%, entre 14 e 16 de outubro, contra 20% dados a Emanuel Pinheiro (MDB).
No restante do país, os candidatos de Bolsonaro comem poeira. Partidos de esquerda e centro-esquerda estão na frente em nove capitais. PSDB em quatro, PSB em duas, PSOL, PDT e PCdoB em uma cada. Em Recife, João Campos (PSB) tem 31% das intenções contra 18% da sua prima Marília Arraes (PT) e 16% da delegada Patrícia (Podemos). Lá, o candidato com a cara de Bolsonaro é o coronel Feitosa (PSC), que tem apenas 2% de acordo com a pesquisa Datafolha de quinta-feira. Em Porto Alegre, Manuela D’Ávila (PCdoB) lidera pesquisa Ibope feita há duas semanas com 24% dos votos, dez pontos percentuais de vantagem sobre o segundo colocado.
O que se vê é um aparente refluxo da onda bolsonarista. E não adianta argumentar de que estas são outras eleições e que pleitos municipais tratam de questões paroquiais e não refletem a grande política nacional. Isso pode ser verdade em Conceição do Mato Dentro (MG), Iguaba Grande (RJ) e Júlio de Castilhos (RS), mas não em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre ou Recife. Pode ser verdade também na mixuruca Jaboticabal, no interior de São Paulo. Mas lá, um dos candidatos tem sobrenome Bolsonaro, se apresenta como primo do presidente, propõe armar a guarda municipal e jura que não vai ceder à pressão de vereadores por cargos na prefeitura. Então, quer pauta mais local do que esta?
Sinais de recaída
Estão ficando cada dia mais claros os sinais de que sua excelência está voltando aos velhos tempos. A estúpida briga em torno da vacina chinesa é apenas um deles. Não há nada mais atrasado do que tentar fazer valer para todo o país suas teorias negacionistas por motivação política. Há os que apostam, ou torcem, para que seja apenas retórica. Pode ser, mas a absoluta falta de hora para a nova bobageira prova a tese de que as coisas não andam bem naquela cabeça. Beligerância burra foi o que se viu nos primeiros 18 meses de governo. Ninguém aguenta mais.
Vermífugo do astronauta
Era só o que faltava. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações veio à público afirmar que descobriu que o vermífugo nitazoxanida é capaz de reduzir a carga viral de pacientes de Covid usando como elemento de convencimento um gráfico genérico comprado de um banco de dados na internet. Ou pirateado, com este governo nunca se sabe. Pior, tratou a questão de maneira oficial, em cerimônia no Palácio do Planalto, sem reunir sequer um elemento que comprove a descoberta. A situação é tão medonha, que o ministério do astronauta disse que não oferecia mais dados porque um artigo com a tese foi oferecido a uma revista científica internacional. Talvez não quisessem tirar o furo da revista cujo nome, aliás, não foi citado.
Boiando
Estudo mostra que o cérebro da maioria das pessoas passa 47% do tempo divagando. Há casos bem piores.
General para a PGR
Se for correta a tese da Procuradoria-Geral da República de que militar da ativa pode exercer posto de ministro, então deve ser possível também que milico com diploma de doutor exerça função no Ministério Público. Augusto Aras que abra o olho, daqui a pouco o capitão pode querer indicar um general com curso noturno de advogado para o seu lugar.
Senado para quê?
O episódio do dinheiro nas nádegas do senador Chico Rodrigues levantou o debate sobre os suplentes, já que o indigitado tem seu filho como segundo e que deve assumir a vaga com seu afastamento. Uma vergonha. Mas, indo um pouco mais fundo, não seria hora de discutir para que serve o Senado Federal? Talvez assim se possa entender porque o Amapá (751 mil habitantes) tem o mesmo número de senadores de São Paulo (44 milhões de habitantes). Davi Alcolumbre, por exemplo, teve 131.695 votos, enquanto o Major Olímpio foi eleito com o sufrágio de 9.039.523 paulistas. Está certo?
Landslide
O debate de quinta deu um fôlego inesperado a Trump. Ele aproveitou a última chance que tinha. Ainda assim, ele deve ser varrido do mapa, mas já não dá para afirmar que será com uma avalanche de votos contra. Quarenta milhões de americanos já votaram antecipadamente, e 90% dos eleitores dizem que não mudam o voto por causa de debate.
E daí?
E, nesse caso, Bolsonaro como vai ficar? Sua birra com a China e o bonezinho Trump 2020 ainda podem render muita dor de cabeça. Não para ele, que não está nem aí, mas sim para o Brasil e seus negócios. Só um detalhe: a China consome 50% de todo metal produzido no planeta.
Restaurante de covid
Estudo do Centro de Prevenção e Controle de Doenças nos Estados Unidos mostra que adultos que testaram positivo para Covid-19 foram duas vezes mais a restaurantes nas duas semanas antecedentes ao teste do que as que negativadas.
Paes recomenda
Eduardo Paes está tão preocupado com o crescimento de Martha Rocha nas pesquisas, que vai mexer na campanha para mirar mais na delegada e menos no bispo Crivella. E já avisou aos cabos eleitorais que, onde não for possível ganhar, recomendem voto em Crivella.
Bernardo Mello Franco: Vitória de Evo, derrota de Bolsonaro
A vitória de Luis Arce na Bolívia sela mais uma derrota da diplomacia de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo. A dupla envolveu o Brasil na quartelada que derrubou o então presidente Evo Morales. Menos de um ano depois, os golpeados deram o troco nos golpistas e voltaram ao poder pelo voto.
Bolsonaro e Araújo festejaram a derrubada de Evo, que teve a casa invadida e foi obrigado a fugir do país. O chanceler trapalhão tuitou que não houve “nenhum golpe” na Bolívia. Horas antes, uma junta militar havia ocupado a TV para exigir a renúncia do presidente.
Evo ignorou um referendo na tentativa de se perpetuar no poder. No entanto, a alegação de que ele teria fraudado a última eleição nunca foi provada. O relatório da OEA que apontava “graves irregularidades” na apuração caiu em descrédito. Foi desmontado por especialistas de três universidades americanas.
Além de apoiar a virada de mesa, o Itamaraty ajudou a entronar Jeanine Áñez como presidente interina. Ela descumpriu a promessa de convocar eleições em janeiro e usou o cargo para perseguir opositores, segundo relatório da Human Rights Watch.
Ao tomar partido dos golpistas, o Brasil perdeu condições de mediar a crise no país vizinho. Foi uma estratégia desastrada. Ontem o chanceler Araújo passou o dia em silêncio, enquanto a oposição boliviana parabenizava Arce pela vitória em primeiro turno.
Esta não foi a primeira operação tabajara da política externa de Bolsonaro. O Itamaraty se associou a Juan Guaidó na tentativa de derrubar Nicolás Maduro na Venezuela. O presidente autoproclamado sumiu do mapa e o chavista continuou no poder.
O Planalto também fracassou ao tentar interferir nas eleições da Argentina. O capitão se empenhou na campanha de Mauricio Macri, mas não conseguiu evitar o triunfo de Alberto Fernández.
O peronista se fortalece com a escolha dos bolivianos. Em 2019, ele condenou a quartelada e ofereceu asilo diplomático a Evo. Ontem celebrou a vitória de Arce como uma “boa notícia para quem defende a democracia na América Latina”.
Bruno Boghossian: Sem apoio de mais pobres, PT não chega a 10% na maioria das capitais
Sigla ainda patina no eleitorado que era uma de suas principais bases políticas
No início da última semana, Jilmar Tatto (PT) foi a uma igreja na zona sul de São Paulo, seu reduto eleitoral. Era um ato de campanha, mas não apareceram eleitores nem militantes na saída da missa. Horas depois, os dirigentes da sigla reclamaram da falta de apoio da base petista ao candidato, segundo relato da repórter Catia Seabra.
A vida não anda fácil para o PT a menos de um mês das eleições municipais. Em 15 das 21 capitais em que tem candidato, a legenda não chegou a 10% das intenções de voto nas últimas pesquisas. Só dois nomes disputam a liderança —Luizianne Lins (Fortaleza) e João Coser (Vitória).
Os dados do Ibope sugerem que o partido enfrenta uma barreira inicial naquela que havia se tornado uma das principais bases políticas da sigla: o eleitorado de baixa renda. Nesse grupo, a corrida começou marcada pelo desinteresse e pela ascensão de outras candidaturas.
Na disputa paulistana, Tatto subiu na última pesquisa, mas só marca 6% entre os eleitores mais pobres. Seu rival ali não está na esquerda, com Guilherme Boulos (PSOL). Quem lidera é Celso Russomanno (Republicanos), que anota 33% naquela faixa.
Nessas eleições, não são raros os petistas que largaram com desempenho melhor entre os mais ricos. No Recife, Marília Arraes marca 18% no topo da pirâmide e 12% na base. O mesmo acontece em Manaus, onde Zé Ricardo aparece com 17% no primeiro grupo e 8% no segundo. Em Salvador, Major Denice tem o triplo de intenções de voto na alta renda.
A situação é diferente em Fortaleza. Luizianne Lins aparece com 30% entre eleitores com renda de até um salário mínimo. Mas na faixa seguinte, de um a dois salários, a petista cai para 17% e é superada pelo bolsonarista Capitão Wagner (Pros).
O desgaste do PT e a memória distante dos governos do partido explicam parte dos números. A apatia é outro fator relevante. No Rio, Benedita da Silva tem 9% entre os mais pobres, empatada com Marcelo Crivella (Republicanos). Outros 28% declaram voto em branco ou nulo.
Vera Magalhães: Atrás do próprio rabo
Esquerda se perde entre pulverização de candidaturas e tribunal de 2016 e 2018
O panorama das disputas municipais mostra uma constante de Norte a Sul do País: depois de 2018, a esquerda segue dividida, com o PT insistindo em transformar a sua estratégia eleitoral de agora e de daqui a dois anos num tribunal sobre as culpas pelo impeachment de Dilma Rousseff e a posterior eleição de Jair Bolsonaro – partindo da premissa, é claro, que nem uma coisa nem outra são sua própria responsabilidade.
Por conta dessa divisão, cidades como Fortaleza e Recife assistem a uma autofagia do chamado campo progressista, abrindo espaço para o crescimento, ao menos temporário, como mostram as pesquisas, de nomes de centro-direita e direita.
Outras, como São Paulo e Rio de Janeiro, assistem à possibilidade de a esquerda simplesmente ficar de fora da disputa final por conta dessa dificuldade de unir propósitos e agendas.
O candidato petista em São Paulo, Jilmar Tatto, começa a sair do pelotão dos últimos colocados justamente quando se iniciava um movimento interno para que desistisse da candidatura para apoiar Guilherme Boulos, do PSOL.
Era evidente que um candidato petista em São Paulo não amargaria índices tão baixos quando se tornasse conhecido. Mas a questão é outra: qual o teto para o partido na cidade depois de ter perdido no primeiro turno quando governava a capital e, dois anos depois, Fernando Haddad também ter sido derrotado em terras paulistanas?
Isso deveria ter levado o PT a uma reflexão profunda de seu próprio legado nacional e local, e a propor uma candidatura que pudesse ser uma resposta a essas derrotas, e não uma reafirmação de tudo que levou a elas, como a de Tatto.
Usar o pleito de 2020, em plena pandemia, com Jair Bolsonaro tendo cruzado todos os limites dos arreganhos autoritários, para repisar as teses de que Dilma sofreu um golpe e Lula foi tirado do pleito de forma ilegítima, como fazem nomes como a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, todo santo dia, é mostrar que não se entendeu nada do cenário de 2013 para cá e se quer dar mais uma chance para Bolsonaro.
O presidente, marotamente, mandou Paulo Guedes submergir até depois da eleição. Não quer ouvir falar em nova CPMF até lá, porque pensa em “varrer o PT do mapa”, sobretudo no Nordeste.
A resposta da esquerda: brigar entre si em Estados e capitais que hoje governa e ignorar a pandemia e a responsabilidade de Bolsonaro sobre ela. O que importa é uma disputa particular para ver se será o lulismo ou o cirismo a largar na frente para 2022, ainda que à custa de redução do espaço nacional da esquerda como um todo.
Fica evidente que um campo político está desnorteado quando se vê, por exemplo, que o fim de semana é tomado por dois “atos”: de um lado, os movimentos negros “cancelando” Fernando Haddad por conta de uma piada sem graça com suposta conotação racista – a despeito do que o petista efetivamente tenha feito como ministro, prefeito ou acadêmico em relação ao combate ao racismo.
De outro, uma campanha virtual de militantes petistas para banir do Twitter o jornalista Samuel Pancher – que nos últimos meses tem feito um trabalho muito acurado de expor as mazelas bolsonaristas por meio de vídeos mostrando o presidente em todo o seu esplendor atentatório à democracia – só porque ele “ousou” opinar que há traços antidemocráticos também no PT.
Com tal grau de interdição do espaço de dissenso e tamanha incapacidade de discutir a sério o longo e tortuoso caminho que nos trouxe até aqui, o campo que vai do centro (que incorre nos mesmos erros e tem ainda menos relevância) à esquerda vai ficar correndo atrás do próprio rabo e esperando por anos até voltar a ter aderência no conjunto da sociedade, para além das bolhas.
Ascânio Seleme: A hora da garotada
Ao novo eleitor, a responsabilidade chega enquanto ele ainda amadurece
Há alguns momentos cruciais na vida dos jovens que são excitantes por natureza. A graduação num curso superior é um deles. O formando sabe que, daquele momento em diante, terá total responsabilidade por sua vida. Mesmo que, em alguns casos, ainda haja a quem recorrer, melhor não. Melhor seguir sozinho, dono de seu próprio nariz, orientado pelas suas próprias convicções, remunerado pelo seu próprio trabalho. Outro momento exuberante ocorre ainda mais cedo, quando eles deparam com a urna pela primeira vez.
Ao jovem formando, um mundo absolutamente novo se abre diante dos seus olhos, com inúmeros caminhos e atalhos. É nessa hora que decisões significativas para o resto da jornada terão de ser tomadas. No discurso para os graduandos de Harvard de 2008, J.K. Rowling, autora de “Harry Potter”, disse que a responsabilidade passa para as mãos de uma pessoa no momento em que ela se torna madura o suficiente para tomar a direção.
Ao novo eleitor, a responsabilidade chega enquanto ele ainda amadurece. Claro que, aos 16 anos, erros e equívocos são mais frequentes, até porque esta é uma fase de testes cujos resultados ajudam as pessoas a definir alternativas. No discurso de Harvard, Rowling disse que fracassos fazem parte da vida e devem ser absorvidos para que sucessos possam ser mais bem comemorados adiante. Por sorte, o medo de um jovem formando de errar só é menor do que sua vontade de acertar.
O mesmo medo acomete o jovem eleitor. A diferença é que o fracasso no voto acarreta prejuízo para todos. A responsabilidade, portanto, é ainda maior. Ao público de Harvard, a escritora disse o seguinte: “O jeito de vocês votarem, o jeito de protestarem, a pressão que colocarem sobre os seus governantes terão impacto muito além de suas fronteiras. Esse é seu privilégio e seu fardo”.
O voto não é banal. Não se trata de votar logo cedo, se livrar disso e ir à praia. Cada eleição tem uma dimensão própria, e seu resultado encaminha seu país, seu estado ou sua cidade em determinada direção. É importante que o jovem eleitor entenda desde cedo que seu voto importa. Que, no caso das eleições municipais deste ano, o destino da sua comunidade reside no acerto do seu voto.
O criador e dono do Facebook, que transformou o planeta numa gigantesca comunidade, também falou no púlpito em Harvard de onde J.K. Rowling discursou. No seu commencement speech, ou discurso de iniciação para os formandos, pronunciado nove anos depois da escritora, Mark Zuckerberg falou sobre mudanças. “Mudanças começam localmente. Mesmo as grandes mudanças globais começam pequenas.”
É importante numa eleição entender quando é hora de mudar. Não há um método único para escolher em quem votar. Mas não custa levar algumas dicas em conta. A mais importante delas é parar por algumas horas e analisar os candidatos. No caso de prefeito, a primeira providência é checar as entregas feitas pelo que concorre à reeleição. Se ele foi um bom prefeito, talvez mereça seu voto. Se não foi, é vital descartá-lo e eleger um de seus adversários.
Se cabe mais um alerta aos jovens, o mais importante é iniciar cortando de cara todos os bandidos e todos os corruptos. No Rio, tropeça-se em candidatos milicianos. Lembre que o voto é secreto, não tenha medo, não vote em miliciano.
Em 2018, 276 mil eleitores de 16 anos estavam aptos a estrear seu título de eleitor. Outros 899 mil tinham 17 anos. Os que estavam entre 18 e 24 anos eram 7,9 milhões. Mais 12,6 milhões de eleitores tinham entre 21 e 24 anos. Os meninos e as meninas de 16 a 24 anos somavam, portanto, 21,7 milhões de votos naquela eleição. Considerados os 31,1 milhões que oscilavam entre 25 e 34 anos, tínhamos 53 milhões de eleitores jovens em 2018, mais do que a terça parte de um total de 147 milhões.
Essa força tem que ser entendida. Não pelos caçadores de votos, que esses já a têm muito bem mapeada, mas pelos donos da força, a garotada que já tem maturidade para tomar a direção e a quem cabe mudar o mundo. Para melhor.
José Casado: Renda básica de R$ 7 mil
Vereadores aumentam salários discretamente em cidades pequenas
Aos 57 anos, Marcio Bittar é um político em ascensão no Congresso. Chegou ao Senado há apenas 20 meses, pelo MDB do Acre, e já é relator de alguns dos mais disputados projetos da temporada legislativa. Entre eles, está o programa de renda básica que Jair Bolsonaro sonha levar embaixo do braço para os palanques da reeleição.
Bittar foi comunista de carteirinha, no PCB, e estudante na extinta União Soviética. Girou a chave na vida de pecuarista no noroeste do Acre, região recordista em incêndios, desmatamentos e conflagrada pelo narcotráfico na fronteira com Peru e Bolívia. Tornou-se um expoente da bancada ruralista, onde há gente que quase enfarta quando ouve a palavra “Ibama”, e um conservador em cruzada contra a liberação do aborto.
Tenta negociar solução para uma antiga equação, insolúvel aos olhos de muitos comunistas e conservadores: reduzir os gastos públicos e, ao mesmo tempo, criar um mecanismo de transferência de renda aos pobres.
Ninguém é contra, todos são a favor do combate à corrupção, da luz elétrica e da água encanada. Mas sobra ceticismo no Congresso e no governo. Não é conspiração, somente apatia diante da paisagem do abismo social. Ela é hipnótica em regiões como Sena Madureira e Feijó, vizinhas acreanas, onde Bittar trocou a retórica comunista pelos votos ruralistas.
São 60 mil pessoas cercadas por bois, em comunidades equidistantes da mata incendiada para novos pastos. Metade sobrevive com meio salário mínimo por mês. Só 10% têm acesso a água potável e esgotos. Na semana passada, o Diário Oficial de Feijó, reduto eleitoral do senador Bittar, anunciou aumento de até 30% no salário dos vereadores. Passaram a ganhar R$ 7 mil mensais mais mordomias. Repetiram o que estão vendo ocorrer na maioria das câmaras dos municípios com até 50 mil habitantes, ou seja, 88% das cidades. Discretamente, vereadores estão resolvendo a equação da renda básica no pós-pandemia. Só para eles.
Hélio Schwartsman: O que justifica as cotas?
Elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas características fenotípicas
Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.
Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.
No polo oposto, o branco preterido no vestibular não é necessariamente um descendente de traficantes de escravos. Para a ideia de reparação fazer sentido, temos de apelar à noção de culpa coletiva, que é bem problemática.
O outro caminho me parece melhor. Por ele, as cotas não se justificam pelo passado, mas pelo futuro. Há um bom corpo de pesquisas mostrando que, quando diferentes pessoas, com diferentes backgrounds e perspectivas, se põem a trabalhar sobre os mesmos problemas, as soluções encontradas tendem a ser melhores. O bacana aqui é que a racionalidade das cotas também salta do indivíduo para a sociedade, e a culpa coletiva dá lugar à responsabilidade social.
Considero essa justificativa aceitável, mas devo confessar que não sou um grande fã de cotas raciais. Por mais que douremos a pílula, elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de uma pessoa com base em suas características fenotípicas, que é justamente o que torna o racismo um problema moral.
Marcus Pestana: O dilema das redes e o futuro de todos nós
Ninguém ousa negar a centralidade das plataformas digitais e das redes sociais na vida contemporânea. Mas, cada vez mais se ascende a polêmica sobre a crescente capacidade de manipulação das gigantes da comunicação digital. Os efeitos positivos das redes sociais são inegáveis. Mas a polêmica que ganha corpo é: a que custo? Quais são os efeitos colaterais? As disfunções estariam superando os benefícios?
Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.
O “Dilema das redes” não se atém à perspectiva política. Vai além, denuncia dos aspectos psicossociais da influência nas mudanças dos padrões de comportamento, principalmente nas novas gerações. A partir de depoimentos de ex-executivos do Facebook, Google, Twitter e da teatralização de uma família impactada pela exacerbação do uso da internet, há uma exposição nua e crua das vísceras das redes sociais. Fora os exageros, é assustador. Todos os pais deveriam assistir para interagir melhor com seus filhos sobre o tema.
O documentário revela como a lógica das redes é nos capturar, nos tornar compulsivamente dependentes, viciados mesmo, a partir de uma associação entre psicologia humana e tecnologia da informação. Rolagem automática e sem fim, notificações, curtidas, falsas recompensas, likes, são mecanismos desenvolvidos para nos tornar “prisioneiros das redes”, com graves repercussões na saúde mental e no bem estar de todos nós. “Apenas dois tipos de indústria chamam clientes de usuários: a de drogas ilegais e a de tecnologia da informação” é uma frase forte do filme. Penso nas mesas de bares e restaurantes com todos ligados em seus smartphones e ninguém conversando.
Outra afirmação contundente é: “Se você não paga por algo, saiba que você é o produto”. As grandes redes faturam bilhões de dólares em publicidade e fazem isso pelos dados que têm. O produto certo para a pessoa certa. Senti isso pessoalmente. Foi só fazer três compras por e-comerce numa mesma importadora de vinhos, para meu timeline do Facebook ficar coalhado de ofertas de outras importadoras. Tudo indica que “fui vendido”. Isto aconteceu com produtos relacionados ao Flamengo, a imóveis e até artistas.
Mas há consequências mais graves: o aumento da depressão e dos suicídios infantis e juvenis, a explosão de fakenews que se propagam seis vezes mais que a verdade “que é chata”, o tempo gasto que impede a relação humana direta com a família e amigos ou o deleite com a boa arte, o bullyng virtual opressivo, a alimentação do discurso do ódio e de teorias da conspiração, o estímulo à radicalização da polarização política, a deformação do processo de formação da autoestima e o nascimento de uma cultura rasa, superficial e agressiva.
Precisamos urgentemente conversar sobre isso. Ou teremos um mundo cada vez mais perigoso e desinteressante.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
El País: Eleições dos EUA empurram Bolsonaro para dilema entre pragmatismo e radicalização na política externa
Vitória de Joe Biden pode isolar o país ao mesmo tempo em que reforça base mais radical do bolsonarismo. Vitória de Trump representaria continuidade de relação tida como de submissão
Felipe Betim, do El País
Terça-feira, 29 de setembro. Noite de debate nos Estados Unidos entre o presidente Donald Trump, que busca a reeleição no próximo 3 de novembro, e o ex-vice-presidente centrista Joe Biden. Ao falar sobre meio ambiente, o democrata disse que mobilizaria "o hemisfério e o mundo para prover 20 bilhões de dólares para o Brasil não queimar mais a Amazônia”, sob o risco de que o país “enfrente consequências econômicas significativas”. A resposta do presidente Jair Bolsonaro veio ainda naquela madrugada via Twitter: “O que alguns ainda não entenderam é que o Brasil mudou. Hoje, seu presidente, diferentemente da esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças. NOSSA SOBERANIA É INEGOCIÁVEL”, afirmou em uma das postagens. “Custo entender, como chefe de Estado que reabriu plenamente a sua diplomacia com os Estados Unidos, depois de décadas de governos hostis, tão desastrosa e gratuita declaração. Lamentável, sr. Joe Biden, sob todos os aspectos, lamentável”.
O embate à distância entre Bolsonaro e Biden é um ensaio sobre os dilemas que o Governo brasileiro terá de enfrentar em caso de vitória do democrata. Bolsonaro inaugurou uma política externa baseada num alinhamento automático e submisso aos Estados Unidos de Trump, algo não visto sequer quando os militares tomaram o poder com respaldo norte-americano em 1964. O presidente brasileiro aposta publicamente suas fichas na reeleição do republicano e na continuidade dessa relação tida como submissa. O cenário que se desenha como mais provável neste momento, porém, é o de vitória de Biden, que abriu vantagem nas últimas pesquisas em Estados-chave como Flórida e Pensilvânia. De acordo com três especialistas consultados pelo EL PAÍS, Bolsonaro deverá optar por uma relação de pragmatismo com Biden ou elevar o tom contra a sua administração, levando o Brasil ao completo isolamento na comunidade internacional.
Os especialistas concordam que, por um lado, existe o interesse tanto de Biden como de Bolsonaro em preservar os interesses empresariais e comerciais entre os dois países —os EUA são o segundo maior importador de produtos brasileiros, atrás apenas da China. Ao mesmo tempo, do ponto de vista geopolítico, o Brasil é um importante ator para frear a influência chinesa na América Latina. “Independentemente do vencedor, é plausível que Bolsonaro tentará usar a licitação do 5G para ter uma alavancagem na Casa Branca, como deu a entender em seu discurso na ONU”, explica Matias Spektor, especialista em política externa brasileira e professor de Relações Internacionais da FGV São Paulo. Ele lembra, porém, que setores agronegócio e da indústria que formam parte da base bolsonarista sofreriam caso as relações com o gigante asiático acabem estremecidas. O ponto de equilíbrio não é simples de ser encontrado.
Os pesquisadores consultados também concordam que uma vitória de Biden levará para o centro da diplomacia e da política doméstica a pauta ambiental, com a provável volta dos Estados Unidos para o Acordo de Paris. Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV São Paulo e colunista do EL PAÍS, recorda que Bolsonaro “atua de maneira estridente” quando o assunto é meio ambiente e queimadas na Amazônia. E que a pressão do partido democrata sobre Biden será muito grande. “Conversei com assessores de política externa de Biden. Eles desejam uma relação pragmática, mas dizem não está em suas mãos por causa da forma de agir de Bolsonaro. Podemos entrar num cenário de embate parecido com o que ocorreu com [o presidente francês Emmanuel] Macron”.
O negacionismo e a retórica agressiva de Bolsonaro com relação às queimadas da Amazônia levaram o Brasil a um inédito isolamento na comunidade internacional, coroado pela recente revés do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul ―o Parlamento europeu aprovou uma resolução que rejeita o pacto a menos que haja mudanças naagenda ambiental de países do Mercosul. Porém, Carlos Gustavo Poggio, americanista e professor de Relações Internacionais da FAAP, opina que o presidente acabará cedendo e moderando o discurso. “A curto prazo acredito que uma vitória de Biden geraria atrito, sim, mas a longo prazo é provável que o Brasil tenha um surto de pragmatismo também na arena internacional”, explica Poggio. Ele afirma que em Brasília já se discute a substituição do chanceler Ernesto Araújo. “Internamente temos indícios de certa reorientação do Governo, com sua aproximação com o Centrão. Acho que uma vitória de Biden sacramenta essa reorientação”.
O presidente brasileiro também vem se alinhando a ditaduras, como a da Arábia Saudita, nos fóruns de Direitos Humanos, além de ser alvo de várias denúncias. Até já se desentendeu com países como França, Alemanha e Argentina. Spektor e Stuenkel não descartam uma guinada ainda mais radical, o que certamente elevará o isolamento do Brasil. “Se Biden, pelo motivo que for, sair batendo em Bolsonaro, sua reação vai ser se defender. E ele não vai se defender mudando a política ambiental, vai se defender atacando”, explica Spektor.
Além disso, existe a necessidade de manter uma base bolsonarista radical, e cada vez mais insatisfeita com o pragmatismo do presidente na política interna, coesa. “A política externa brasileira existe, hoje, para animar essa base. Mesmo o custo sendo alto para o Brasil, internamente não é ruim para Bolsonaro ficar isolado na arena internacional”, explica Stuenkel. Ele destaca que, na Turquia, impera a retórica do Governo Recep Erdogan de que existe uma conspiração internacional contra o país. Ao mesmo tempo, mesmo se Trump perder, o trumpismo deve se manter como movimento político forte nos EUA, havendo pressão dos radicais para que o Brasil se alinhe à oposição norte-americana. “A narrativa de que o mundo é perigoso, que os globalistas tomaram a Casa Branca, é muito atraente em termos eleitorais. Infelizmente a gente precisa se preparar pra esse cenário de isolamento bem mais amplo do Brasil”, acrescenta.
Seja como for, com Trump ou Biden ganhando, com Bolsonaro sendo mais pragmático ou mais radical, levará anos para que o Brasil reconstrua sua imagem na comunidade internacional. “Reputação dos países segue a lógica da reputação das pessoas. Leva décadas pra construir, e um instante para destruir. E o tema ambiental ganhou muita importância. Os efeitos das mudanças climáticas estão mais vivos, e o Brasil mudou uma agenda de mais de 30 anos no pior momento possível”, argumenta Spektor. “Nossa imagem já está queimada no mundo, isso já não tem volta. A ideia de um chefe de Estado mitômano já está consolidada no resto do planeta”.
Vitória de Trump e resultados contestados na Justiça
Caso Trump ganhe, os especialistas acreditam que o Brasil poderia continuar fazendo proselitismo na arena internacional enquanto se escuda nos Estados Unidos. “O mundo vai estar muito preocupado com os Estados Unidos e o Brasil não vai estar no holofote”, opina Stuenkel. O problema é que mesmo essa relação aparentemente fluída com o republicano tem suas armadilhas. “É uma relação assimétrica, o chanceler Ernesto Araújo já disse a diplomatas norte-americanos que o Brasil fará tudo o que eles quiserem. O Brasil se colocou numa situação muito frágil de conseguir negociar”, afirma.
Para Poggio, a aproximação com os Estados Unidos é legítima, "mas foi feita de forma equivocada e amadora, dando as costas para o Partido Democrata”. As promessas de Trump de assinar um acordo comercial com o Brasil precisam necessariamente passar pelo Congresso norte-americano, e tudo indica que os democratas sairão fortalecidos das próximas eleições. “O Brasil não construiu pontes suficientes com a sociedade americana nem com o Congresso, incluindo republicanos e democratas”, acrescenta o professor.
No horizonte das eleições está ainda a possibilidade de que Biden ganhe em número de votos, mas perca nos colégios eleitorais. Ou de que, diante de um resultado apertado, Trump não reconheça sua derrota, como já deu a entender, e entre na Justiça para anular os votos por correio. Analistas acreditam que as instituições norte-americanas podem sair arranhadas e questionadas pela população de todo esse processo. Poderia abrir o caminho para que Bolsonaro e outros movimentos de extrema direita radicalizem ainda mais no âmbito doméstico?
Apesar dos impactos negativos no cenário internacional, com a normalização da política trumpista, os impactos ainda não estão claros. Em primeiro lugar, os atuais autoritarismos de extrema direita seguem lógicas e dinâmicas locais, explica Spektor. E, apesar das semelhanças táticas entre esse líderes populistas, a ideia de uma coalizão transnacional aventada pelo ideólogo norte-americano Steve Bannon não saiu do papel. “Trump nunca apostou nisso, ele não hesita em jogar aliados no caldeirão", argumenta o professor, para quem também não está claro que o republicano faria um segundo mandato ainda mais radical, como preveem analistas. Seu foco, explica, deverá ser nomear aliados para cargos da Justiça norte-americana. Uma vez fora da presidência, precisa escapar de processos judiciais. “Trump e Bolsonaro começaram radicais já no primeiro mandato. Eles não precisam de moderação no início, moderação é o que os enfraquece”.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro adia o Brasil para dezembro, enquanto acerta casório com o centrão
Economia está em suspenso e depende de acordos políticos do presidente
A política adiou para dezembro a grande decisão relevante da economia pelos próximos meses ou anos. Isto é, se vai ou não haver mexida ou gambiarra no teto de gastos. Como Jair Bolsonaro deixou o assunto para depois das eleições municipais, seria razoável especular que ele pretende financiar o Renda Brasil com algum arrocho de outra despesa social e de servidores. Mas Bolsonaro também continua a negociar o dote de seu casamento com o centrão. O acordo inclui conversa de desmembramento do ministério da Economia de Paulo Guedes, retoques na política econômica e a disputa do comando da Câmara em 2021. É política, política, política –e tem mais.
Até lá, fica malparada a situação das taxas de juros em alta, uma das duas notícias econômicas mais importantes desde meados do ano. A outra é a despiora da economia, que continua mais rápida do que se esperava, embora não se saiba se dura até dezembro.
Os resultados do comércio em agosto foram, na média, muito bons. Mas apenas daqui um ou dois meses vamos saber se a retomada econômica vai perder ritmo com a diminuição dos auxílios emergenciais e se o nível de emprego vai crescer o bastante para compensar o corte desses benefícios. Parte dessa retomada depende ainda de epidemia e da vacina.
Na política, o resultado da eleição americana e das disputas municipais podem indicar como anda o valor de mercado eleitoral da psicopatia política. No caso de derrota do trumpismo e de suas variantes periféricas, pode haver um desincentivo ao reacionarismo lunático, no entanto com efeitos de médio prazo.
De imediato, mais importante é saber se o casamento de Bolsonaro com o centrão vai lascar ainda mais poder de Guedes e do “programa liberal”. Importa saber o tamanho e o lugar do desprestígio. Vai envolver aumento de despesa? Vai apenas entregar a partidos aliados a negociação de lobbies de empresas, como ocorreria no caso da recriação de ministérios tais como o do Trabalho e do Desenvolvimento?
Ainda se entende mal como essa conversa de ministérios se relaciona a eleição do comando da Câmara em 2021. De qualquer modo, preste-se atenção. A palermice do comando político de Dilma Rousseff na eleição da Câmara em 2015 foi o começo do fim da presidente.
Na economia, não acontece mais grande coisa. Não há um grande ciclo de investimentos a ponto de deslanchar. As mudanças no gás, no petróleo, no saneamento e concessões dependem ainda de um monte de regulações adicionais, da confiança de que não são regras para inglês ver e da expectativa de algum crescimento para que apareça o dinheiro para o investimento. Não vai acontecer nada até 2022, e olhe lá.
Não há outro projeto que mexa decisivamente com a economia. Mesmo boas reformas, ainda que apenas do ponto de vista mercadista, vão demorar e teriam efeito incremental.
Sim, um pacote completo de arrocho fiscal e “reformas” poderia animar os donos do dinheiro, evitar um revertério decisivo nos juros e garantir uma das condições da continuação da despiora. Mas vamos saber da perspectiva dessas decisões apenas em dezembro, com algum resultado legislativo visível já bem entrado 2021 e consequências práticas ainda mais tardias. Isto é, se esse “programa reformista” der certo e se a economia não embicar para baixo com o corte de mais de meio trilhão de gastos do governo de 2020 para 2021.
Assim, afora novas ocorrências policiais na familiocracia, o Brasil de daqui a pouco depende do grande diálogo político de Jair Bolsonaro com o centrão.
Fernando Abrucio: País precisa dizer o que quer ser no século XXI
Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, de volta ao mundo da ditadura e da Guerra Fria
Mal começaram as campanhas municipais de 2020 e os atores políticos já falam em 2022. Especialmente o bolsonarismo e seus aliados estão concentrados na aprovação de seu elixir político, que no momento tem o nome de Renda Cidadã, continuação do auxílio emergencial que catapultou a popularidade presidencial. Obviamente que há outros projetos no Congresso, mas seu sentido mais amplo está deslocado da estratégia política de curto prazo, que é reeleger Bolsonaro e salvar sua família das querelas judiciais. E qual é o projeto dos opositores do presidente? Novamente, há uma miríade de temas, muitos louváveis, mas não uma visão clara e articulada de como o Brasil deve lidar com os desafios do século XXI.
A ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.
O primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI. Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um “pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade? Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?
Em outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil. Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões do primeiro escalão da área social?
Haveria vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o passado - e uma luta equivocada - e não aponta um rumo para o futuro. Quais são as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das respostas é ensurdecedor.
Outro exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos, a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização. Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista de política ambiental?
Claro que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um sentido sistêmico às propostas.
O maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?
No fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos relevantes que ganharam destaque - e nos pontos efetivamente importantes, geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no meio do caminho, como o seu lavajatismo.
A falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na capacidade de execução.
Desde a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante, descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a dificuldade de pensar além das eleições de 2022.
É inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.
Até agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente, que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os próximos dez anos?
Do lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado, constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.
Muito se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda, contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022 - e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja apenas defensiva.
O país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.