Eleições
Míriam Leitão: O inesperado caminho de Biden
Joe Biden parecia a pessoa errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e, como ele mesmo tornou público, foi gago. Além disso, foi acusado durante as primárias — época de explicitar divergências partidárias internas — de ser próximo demais de republicanos. Ele venceu as eleições contra o presidente que mais usou a presidência para os seus propósitos eleitorais. Onde foi que ele acertou?
Ele acertou em chamar Kamala Harris para a sua chapa. Ela representa um outro patamar no nível de representatividade que toda democracia deve almejar. Primeira em muitos quesitos. Mulher, negra, filha de um latino e uma asiática, casada com um judeu. Quando ela se sentar na sala de vice-presidente dos Estados Unidos muitas barreiras estarão sendo superadas. Com Kamala se retoma também a caminhada dos negros para uma sociedade de iguais. À eleição de Barack Obama se seguiu um movimento radical no sentido oposto. O presidente Donald Trump é supremacista, como tornou evidente.
Joe Biden acertou em ser ele mesmo. A empatia que todos dizem ser da sua natureza foi mostrada na campanha. E esse era um elemento que faltava na política do país mais atingido pela pandemia de Covid-19. Seus dramas pessoais foram muitos e são conhecidos. Ele os expôs na medida certa. A morte da mulher e da filha bebê, seu esforço para ser pai e mãe dos filhos pequenos na viuvez e manter seu mandato de senador, o golpe da morte do filho Beau de câncer no cérebro. Até o fato de ser gago foi mostrado na história de um menino a quem ele tem estimulado na superação da dificuldade. Enfim, ele não era o super-homem que enfrentaria o mal. Era mesmo o Joe.
Ser normal diante de tanta anomalia trumpista foi um ativo. Mas houve outros improváveis caminhos do sucesso. Na primeira vez que tentou disputar as primárias, era jovem, pouco mais de 40 anos. Na segunda vez, perdeu para Barack Obama e virou seu vice e amigo. Agora não seria tarde demais? Os avanços da ciência nos trouxeram a longevidade, mas a pandemia, subitamente, mostrou aos mais velhos o quanto eles são vulneráveis. O candidato expôs esse sentimento misto. É um veterano ainda em busca do seu sonho maior, mas ao mesmo tempo fez uma campanha cuidadosa, sem aglomerações, com uso insistente de máscara. Foi até alvo de deboche de Donald Trump por usar supostamente máscaras enormes. Joe Biden mostrou saber que a vida é frágil. Um sentimento que compartilha com tantos num país em que o vírus contaminou 10 milhões, atinge mais de 100 mil todos os dias e matou 240 mil pessoas. Só na semana passada, os EUA tiveram 650 mil novos casos, mais do que a Alemanha durante toda a pandemia.
Biden acertou em costurar uma coalizão agregando forças dentro do partido e na sociedade. Sua campanha atraiu independentes e até republicanos, o que mostrou uma capacidade de diálogo que será muito exigida nos próximos e difíceis anos que os Estados Unidos têm pela frente no trabalho de reconstrução. Destruir é fácil, e foi a essa tarefa que se dedicou Donald Trump. Ele demoliu muitas pontes com países aliados. Hostilizou o Canadá, tratou de forma arrogante países europeus, a tal ponto que a chanceler Angela Merkel disse que até agora não entendeu como os americanos escolheram Trump. Biden terá que buscar os organismos multilaterais maltratados e acordos abandonados por Trump. E, nesse caminho, nós sempre teremos Paris. O Acordo de Paris.
No primeiro debate, Trump parecia ter engolido Joe Biden. Era o comunicador agressivo que impunha sua hora de falar, contra o homem que parecia travar em certos momentos. Quem estava certo? Qual é a melhor estratégia na eleição e na vida? A vitória eleitoral de Joe Biden inverte a avaliação sobre o que é sucesso. A vitória não é impor-se. É convencer. Sem a capa da invencibilidade que o seu adversário exibe, Joe Biden derrotou o maior perigo que já rondou a América.
Sérgio Abranches: EUA de volta ao futuro
A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois. Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a diversidade americana no caminho da plena cidadania.
A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça, cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.
Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem é trivial.
Este resultado é importante, também porque demonstra, inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a insensatez.
Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como representante Kamala Harris.
No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais, por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.
Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário, no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris, presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de volta à trilha do futuro.
*Sérgio Abranches, cientista político
Merval Pereira: Bananas americanas
O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.
Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.
À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.
Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família.
A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.
A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.
Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.
Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.
O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.
Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos.
É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários.
Celso Ming: Tamanho da vitória nos EUA importa
Impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória
A percepção que hoje prevalece, não só entre os administradores de empresas, mas também junto às classes médias dos EUA (e, portanto, no eleitor que agora vai escolher seu presidente) é a de que o ambiente de negócios está se estreitando e os empregos minguam. Os juros praticamente no campo negativo vêm destruindo também o futuro, na medida em que provocam o encolhimento do patrimônio dos fundos de pensão e das reservas familiares aplicadas no mercado financeiro.
O cidadão médio dos EUA parece ter dificuldade de entender que toda a economia mundial – não só a americana ou a de sua família – passa por enorme transformação. O mercado de trabalho não enfrenta apenas a concorrência do produto asiático, obtido com mão de obra mais barata. Reflete, também, a incorporação do trabalho feminino, que, em apenas três gerações, duplicou a concorrência com os homens por um mesmo posto de ocupação.
Há a revolução provocada pela tecnologia da informação, que, em praticamente todos os segmentos da economia, dispensa mão de obra ou tira importância de anos de estudo e de treinamento na obtenção de uma profissão que agora passa por sérias mutações. Além disso, há a revolução energética: o movimento irreversível em direção ao abandono dos combustíveis fósseis e de aumento da participação da energia limpa na matriz energética global, que muda os transportes, o uso do carro e a maneira de trabalhar.
Nessas horas de aflição e de baixa lucidez, procura-se mais um culpado do que uma solução. E o culpado da hora para o qual nestes últimos quatro anos o presidente Donald Trump apontou seu nervoso indicador foi a China. Com essa paisagem de fundo, o impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória. Isso não é válido apenas do ponto de vista político interno e externo, mas também do ponto de vista da condução da economia global.
Se o novo presidente arrebatar também maioria nas duas casas do Congresso, aumentará a capacidade de levar adiante seus projetos destinados a enfrentar a desarrumação provocada pelas transformações acima apontadas. Uma vitória por larga margem de Trump seguida com maior apoio dos representantes, encorajaria um reforço das decisões unilaterais, o acirramento dos conflitos comerciais e tecnológicos com a China, o aumento do protecionismo comercial, maior repulsa ao Acordo de Paris e maior rejeição de medidas de proteção ambiental.
Uma vitória expressiva do democrata Joe Biden, por sua vez, favoreceria a outra ponta da corda nesse cabo de guerra. Não se espera pelo desaparecimento dos conflitos com a China. Mas um governo Biden tenderia a assumir uma posição mais inteligente e mais estratégica em relação a Pequim. Provavelmente deixaria de hostilizar aliados históricos, como a União Europeia e o Japão; abandonaria políticas comerciais unilateralistas; e voltaria a fortalecer organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial.
*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA
Pedro Fernando Nery: O que é boa política?
Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas
Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.
Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.
Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).
Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).
Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.
Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.
Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.
Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.
Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.
O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.
O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.
Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.
- Doutor em Economia
Merval Pereira: Cenários possíveis
Partindo do principio de que bolsonarismo e o petismo são as duas grandes forças a moldar a política brasileira na atualidade, o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da FGV Rio acredita que o que os anos de 2021-2022 nos reservam dependerá do estado de cada um deles (fortalecido x enfraquecido), que resulta em quatro cenários hipotéticos, que abaixo resumo com base no texto publicado no Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da FGV-Rio
Cenário 1:– Bolsonarismo fortalecido vs petismo fortalecido. Esse cenário supõe o aprofundamento da “normalização” política do governo, iniciada a partir da prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flavio Bolsonaro. As enérgicas ações do ministro Alexandre de Moraes na condução dos processos que investigam tanto atos antidemocráticos patrocinados por seguidores de Bolsonaro quanto ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais foram decisivas para forçar o ex-capitão do Exército a mudar sua postura política.
O fato de as Forças Armadas não terem apoiado as referidas tentativas também contribuiu para o fracasso destas. A mudança levou Bolsonaro a procurar o respaldo legislativo do Centrão, o qual tem dado ao Executivo uma base de sustentação parlamentar distante ainda de uma maioria, mas suficiente para evitar a destituição do chefe do Executivo.
Se o novo presidente da Câmara dos Deputados for um parlamentar alinhado com o Palácio do Planalto, facilitará a aprovação dos projetos do Executivo, mas também dificultará a abertura de um processo de suspensão do mandato presidencial. A reeleição de Donald Trump nos EUA será outro fator relevante para o fortalecimento do bolsonarismo.
Para que os pleitos municipais signifiquem o fortalecimento do bolsonarismo, é preciso que este colha um bom resultado na cidade do Rio de Janeiro, berço político de Bolsonaro. Para que o bolsonarismo se fortaleça, o presidente deverá ter êxito em sua manobra de transferir os custos econômicos da Covid-19 para os governadores, e lograr a aprovação de um substituto do auxílio emergencial que sinalize ao mercado que a dívida pública e os gastos públicos não seguirão uma trajetória explosiva.
Para que o petismo saia fortalecido nos próximos meses, bastará que o PT tenha um desempenho superior ao que teve nas eleições municipais de 2016, que Lula continue aparecendo como um nome competitivo nas pesquisas de opinião relativas à disputa presidencial de 2022, e que não surja nenhuma nova de liderança de esquerda que efetivamente desafie a hegemonia petista nesse campo.
Cenário 2: Bolsonarismo fortalecido vs petismo enfraquecido. Se o bolsonarismo se fortalecer, se descortinará uma real oportunidade para a formação de uma frente democrática de oposição ao governo, alternativa que tem sido rechaçada por Lula. Caso o PT perceba que corre sérios riscos de não ir para o segundo turno em 2022, e que Bolsonaro tem grandes chances de ser reeleito, Lula poderá vir a apoiar um candidato de outra sigla, formando assim uma ampla coligação eleitoral que vá do centro à esquerda.
Cenário 3 – Collor 2.0 – Bolsonarismo enfraquecido vs petismo fortalecido. O fator-chave para o enfraquecimento do bolsonarismo será o mau encaminhamento da questão fiscal. Se o mercado consolidar a expectativa de que a economia está em um “rumo insustentável”, poderá testemunhar um ciclo vicioso sob o qual mau desempenho econômico e debilitamento político do governo se retroalimentam aceleradamente, como se deu com Collor em 1991.
Com o petismo fortalecido e o fim da pandemia, protestos de rua poderão ocorrer com frequência, o que, por sua vez, poderá reativar o radicalismo que caracterizou o atual governo até junho deste ano. Esse cenário ressuscitará a ideia de destituição de Bolsonaro.
Cenário 4 - Bolsonarismo enfraquecido vs petismo enfraquecido: O enfraquecimento das duas forças oferecerá uma grande oportunidade para o renascimento do centro político. Eventuais vitórias de Bruno Covas (PSDB), Eduardo Paes (DEM) e Bruno Reis (DEM) nas disputas para as prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, respectivamente, favorecerão o renascimento do centro. Esse cenário facilitará consideravelmente a formação de um novo partido centrista que junte nacos do MDB, PSDB e DEM, processo também estimulado pelo fim das coligações nas eleições proporcionais a partir das eleições municipais.
Alexandre Caetano: As eleições de 1970 e as prisões da Operação Gaiola no ES
No início do próximo mês de novembro, exatamente quando o Brasil se prepara para a realização de mais uma eleição, um episódio obscuro e quase esquecido da história política dos país estará completando 50 anos. Trata-se da Operação Gaiola, desencadeada pela ditadura que governava o país para garantir a vitória dos candidatos do partido de sustentação do regime, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) nas eleições de 1970. O presidente na época, indicado pelos militares e eleito de forma indireta pelo Congresso Nacional, era o general Emilio Garrastazu Médici.
A ditadura havia sido escancarada desde a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando o Congresso foi fechado, com posterior cassação de mandatos de parlamentares, aposentadoria compulsoria de ministros do STF, a permissão de prisões sem mandados judiciais e o fim dos habeas corpus para presos políticos. Não existem números oficiais, mas pesquisadores como o brasilianista norte-americano Thomas Skidimore e Maria D’alva Kinzo, estimam que entre 5 mil a 10 mil pessoas consideradas adversárias do regime, foram presas entre o final de outubro e a véspera das eleições de 1970. Não houve inquérito, processo, ordem judicial ou intimação. Era o exercício bruto do arbítrio e da truculência de um regime ditatorial.
O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição consentida, criado pela própria ditadura em 1965, junto com a sigla governista, estava combalido pelas cassações feitas pelo AI-5 e tinha dificuldades até para montar chapas de candidatos em vários municicípios e Estados. Mas ainda era pouco para o governo militar, que queria uma esmagadora maioria para consolidar a imagem do regime aos olhos do mundo, varrendo para debaixo do tapete o sangue que espirrava das vítimas de torturas, execuções e “desaparecimentos” dentro e fora de instalações oficiais.
O jornalista Rubem Gomes Câmara Gomes, um dos formadores de opinião que foi presos no Espírito Santo naquela, estima em 120 o número de pessoas presas no Estado, entre jornalistas, profissionais liberais, intelectuais, estudantes e formadores de opinião. O médico José Cipriano da Fonseca e o economista Antônio Caldas Brito, acreditam que as prisões podem ter chegado a 200. Os presos chegavam de todo Estado, inclusive do interior, em geral trazidos por políciais federais, e eram levados para Superintendência da Polícia Federal, que na época ficava na Avenida Vitória, sendo depois levadas para o quartel do então 3º Batalhão de Caçadores (hoje 38º Batalhão de Infantaria), na Prainha, em Vila Velha.
Zezinho Cipriano, como é mais conhecido, ex-líder estudantil, foi preso em Barra de São Francisco, no quando atendia pacientes no Centro de Saúde local. “Nenhuma explicação foi dada, nem antes e nem depois. A gente apenas sabia que tinha gente sendo presa em tudo quanto lugar. Um dia, perguntei ao major Anésio o motivo da prisão, e ele me disse apenas que prenderam porque receberam ordem de prender”, relata.
Caldas Brito foi preso por militares do Exército no escritório de sua empresa, no Edifício A Gazeta. Câmara Gomes conta que, depois de três dias, ele e um grupo de presos foi levado para uma ala da Penitenciária Pedra D'Água, o IRS (Instituto de Readaptação Social), na Glória, que havia sido esvaziada com a transferência dos presos comuns até para delegacias do interior. Já Zezinho Cipriano e Caldas Brito permaneceram na enfermaria do quartel, junto com os outros presos de nivel superior.
Entre os presos, eles citam os médicos Aldemar de Oliveira Neves e Caetano Magalhães; o escritor e folclorista Hemorgenes da Fonseca, o advogado Sizenando Pechincha, que mais tarde seria presidente do Vitória Futebol Clube, os jornalistas Vitor Costa e Ewerton Montenegro Guimarães – que estava se formando em Direito -, o ex-prefeito de Colatina, Moacir Brotas, e Cantídio Sampaio, que anos depois seria prefeito de Iúna. Nem candidatos às eleições daquele ano foram poupados, como o médico Gilson Carone, que concorria à Prefeitura de Cachoerio, e Benedito Elias, que disputava em Linhares.
Os presos só começariam a ser libertados nos dois dias que antecederam as eleições. O objetivo da ditadura, em parte, foi atingido, pois a Arena ficou com 87% das cadeiras do Senado, 71% na Câmara dos Deputados e 70,6% nas Assembleias Legislativas. O problema é que também houve aumento dos votos nulos e brancos, que nas eleições proporcionais passaram de 21,1% em 1966 para 30,3% em 1970.
Quatro anos, nas eleições de 1974, o MDB ganhou 16 das 22 vagas em disputa no Senado e dobrou a bancada na Câmara. Mas ainda seriam necessários mais de 10 anos para que a ditadura saísse de cena, em 1985, deixando o legado da modernização conservadora da economia que teve como saldo a hiperinflação, um gigantesco endividamento externo, um crescimento urbano desordenado, aumento da pobreza e da concentração de renda e 434 brasileiros e brasileiras que morreram ou “desapareceram” nas mãos de agentes do Estado.
*Alexandre Caetano é jornalista e historiador.
Bruno Boghossian: Aliados de Lula e Ciro ainda duvidam de aliança para 2022
Apesar de armistício, petistas e pedetistas dizem que diferenças políticas permanecem
Um ano após a eleição presidencial, Ciro Gomes (PDT) deu uma entrevista em que chamou o comando do PT de “um bando de ladrão e mentiroso”. Meses depois, ele disse que Lula era o líder das “falcatruas” do partido. “Perdi o respeito por ele, completamente”, declarou.
Os dois se estranharam em público por um bom tempo, até que aceitaram se encontrar para uma longa conversa reservada, no início do mês passado. Ciro e Lula selaram um armistício, discutiram os movimentos da oposição ao governo Jair Bolsonaro e iniciaram uma reaproximação, como contou o jornal O Globo.
Os ataques cessaram desde então, mas os dois lados ainda estão céticos em relação à possibilidade de uma composição entre o ex-governador cearense e o ex-presidente. Segundo aliados de ambos, o encontro pode ter amenizado alguns desentendimentos, mas as diferenças políticas permanecem.
Um cacique do PT diz duvidar que as desavenças sejam zeradas a tempo de permitir uma aliança para a eleição de 2022. O próprio petista afirma que, ainda que o partido sinalize uma união, Ciro “não acredita” que a sigla vá apoiá-lo. Como o ex-governador também não tem motivos para abrir mão da disputa, é mais provável que os dois fiquem separados.
Do lado pedetista, o ceticismo é ainda maior. De acordo com um aliado, Ciro considera ter sido traído pelo PT na corrida de 2018 e acha que a legenda ainda trabalha para manter sua hegemonia na esquerda.
Depois da revelação do encontro, nenhum dos lados fez qualquer aceno. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que a aproximação depende de “um pedido público de desculpas” ao partido. Já Ciro fez propaganda do PDT nas eleições municipais e destacou suas chapas com outras siglas, ignorando o PT.
No ano passado, Ciro descartava uma aliança com os petistas e comparava a legenda ao escorpião que pica o sapo após pegar uma carona para atravessar o rio. “Não creio que seja provável. O PT tem a natureza do escorpião, como da fábula”, disse.
César Felício: O tempo no Amazonas começa a fechar
Política e pandemia estão entrelaçadas de modo absoluto
No Amazonas, a estação das chuvas está próxima. É bom se preparar para a tormenta. No café de um hotel em São Paulo, o governador amazonense Wilson Lima (PSC) puxa do celular e abre em sua tela diversos vídeos de WhatsApp que recebeu. Mostram cenas da campanha eleitoral deste ano tanto em Manaus quanto em cidades do interior.
Muita gente, muita música. Abraços, beijos, festa popular. Em pelo menos um dos vídeos não é possível distinguir uma pessoa sequer de máscara. No Amazonas, explica Lima, a política funciona assim: com contato físico e, obviamente, intensa troca de partículas microscópicas por aerossol.
Na capital, o decano das eleições amazonenses, Amazonino Maia (Podemos), com 80 anos, tenta voltar à prefeitura. Faz campanha sem circular, com reuniões remotas, presença digital. Seu jingle remete a isso: “O pai tá on”. Ele perde terreno nas pesquisas. Seus rivais mais próximos, Davi Almeida (Avante) e Ricardo Nicolau (PSD) fazem campanha de rua e se aproximam. Seguem a lógica do Estado.
A campanha eleitoral, adiada, engata com a virada da estação, em que síndromes de quadro respiratório proliferam. No Amazonas, comícios foram proibidos em apenas dois dos 62 municípios. No Amapá, a covid parou a campanha na capital.
A média de óbitos por dia em Manaus está em nove. Era cinco há algumas semanas, mas chegou a ser de 100 nos piores dias da pandemia. O indice de ocupação de leitos da UTI já alcança 86%. Precisamente só há hoje 51 vagas disponíveis para esta enfermidade. No Estado. O governador sabe que os casos vão aumentar e na segunda-feira começa o processo para colocar mais 42 leitos no sistema.
Lima diz que não considera provável, mas também não descarta de todo, a possibilidade de Manaus reviver em breve o cenário de maio, com hospitais alojando pacientes em contêineres e os cemitérios organizando filas para enterros coletivos.
O “lockdown”, segundo o governador, não é uma opção. Embora bastante alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, não usa argumentos ideológicos para combater a política de isolamento social. Para Lima, ela não é uma afronta a liberdade, como dizem os bolsonaristas xiitas. Ela é inútil, porque um decreto de fechamento do Estado não seria obedecido.
“Ninguém respeita. Ninguém respeita. Isso na França, na Espanha, na Alemanha, é muito bacana. Em Manaus, não funciona. Isso não é opinião, é constatação”, diz. Ressalve-se que o pensamento de Lima não é unanimidade no Amazonas. O entendimento do prefeito de Manaus, o tucano Arthur Virgílio, é outro, a favor do isolamento.
A proatividade do governador do Amazonas pode estar sendo afetada por dois fatores: um é sua sustentação política frágil. Ele foi alvo este ano de uma tentativa mal sucedida de impeachment, que deixou como saldo seu afastamento definitivo do presidente da Assembleia Legislativa.
Outro foi a rumorosa compra de respiradores com indícios de superfaturamento na intermediação do negócio por uma loja de vinhos. Lima tornou-se personagem da “Operação Sangria”, que já está na sua segunda fase, com direito a busca e apreensão de documentos e a um pedido de prisão, este negado pelo STJ. Sua situação não está resolvida. As investigações continuam na Procuradoria-Geral da República.
“A investigação está sob sigilo e eu estou tranquilo. Se houve superfaturamento, foi em uma relação entre privados. O Estado só estava preocupado em garantir o atendimento em um momento de escalada de preços e de falta do produto”, diz. Ainda assim, ele assegura ter trocado todo o pessoal da Secretaria da Saúde e instituído uma controladoria para auditar todas as compras relativas à pandemia.
Medida necessária, considerando que a secretária da Saúde foi presa em junho. O antecessor dela também foi parar na cadeia.
Sem ter muito o que fazer para deter a progressão da doença, ou pelo menos é nisso que ele acredita, que seu raio de ação é reduzido, o governador amazonense aguarda com ansiedade que a poeira baixe e a discussão sobre vacinação caminhe para uma direção técnica.
Lima receia um quadro em que a Anvisa avalize uma vacina de origem chinesa produzida em São Paulo, mas o governo federal não a coloque no plano nacional de imunização, como ameaça Bolsonaro. “Não faz sentido um Estado poder vacinar sua população e o outro não. Um Estado pobre não terá como comprar vacinas”, diz.
Para Lima, a discussão sobre vacinas está de cabeça para baixo. “Não temos que pensar se vacina é uma obrigação ou não. Temos que assegurar a vacinação como um direito. Isso não está assegurado”, alerta. Ele arrisca um palpite: “Eu não acredito que alguém da periferia de Manaus rejeite uma vacina porque ela vem da China. Isso não existe.”
São Paulo
A última pesquisa XP-Ipespe, divulgada pelo Valor, mostra que o primeiro turno da eleição paulistana pode ser decidido por dois candidatos de baixa competitividade: Jilmar Tatto (PT) e Arthur do Val, o “Mamãe Falei”, do Patriota. Os dois saíram do traço para o patamar dos 5%.
Ambos crescem de maneira assimétrica nas diversas faixas do eleitorado. A ascensão de Tatto complica a passagem de Guilherme Boulos para o segundo turno, porque se dá nos segmentos de menor renda. Na alta renda e na população com ensino superior, Boulos já lidera. São veios que parecem estar próximos do esgotamento. Para ultrapassar 20%, o candidato do Psol precisa da periferia.
O crescimento de “Mamãe Falei” acontece entre homens jovens. É um eleitorado que lastreou o começo do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas, na fase de pré-campanha presidencial. Em tese, seria um eleitor mais próximo do bolsonarismo. Se este candidato avançar, pode aprofundar o declínio de Russomanno.
Ainda que não vá para o segundo turno, uma votação acima de dois dígitos deixa Boulos muito maior do que entrou na disputa.
Maria Hermínia Tavares: O clima nas eleições - Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios
Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios
Misto de atraso, interesses mesquinhos e má-fé, os esforços do governo Bolsonaro para desmontar a política ambiental não tiveram só as previsíveis consequências desastrosas: aumento das queimadas, do desmatamento e das atividades ilegais em áreas protegidas. Produziram o efeito bumerangue de gerar inédita reação da sociedade.
Os três maiores bancos brasileiros se uniram em torno de um plano sustentável para a Amazônia. Com o mesmo fim, cem personalidades criaram a Concertação para a Amazônia, enquanto 230 organizações formaram a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, um foro de diálogo entre grandes empresas e organizações ambientalistas.
Rapidamente, a discussão vem se ampliando para incluir outros temas relacionados à recuperação dos estragos econômicos e sociais trazidos pela Covid-19. Agora, 24 organizações da sociedade civil, algumas empenhadas na formação de novas lideranças políticas, acabam de lançar a Agenda Urbana do Clima, destinada a inspirar candidatos a prefeitos e vereadores. Ela oferece uma visão abrangente da questão: governança das metrópoles; saneamento e gestão da água; saúde e redução da poluição; segurança alimentar; trato de resíduos sólidos; geração de empregos em sistemas de economia solidária; transporte público e mobilidade; áreas verdes, energias renováveis e eficiência energética.
Impossível medir a sensibilidade ao tema dos milhares de candidatos que disputam prefeituras ou câmaras municipais no país. Não é, nem de longe, questão central nas campanhas da maioria dos aspirantes ao comando das maiores cidades. Mas o tema começa a aparecer nas propostas que todos têm de apresentar ao registrarem suas candidaturas.
Em São Paulo, os cinco prefeitáveis mais fortes inscreveram a sustentabilidade em seus programas de governo. Apenas como menção protocolar no caso de Celso Russomanno, como um ponto entre outros para Marcio França e sem muito destaque na agenda centrada em inclusão social da chapa Guilherme Boulos-Luiza Erundina. Uma concepção avançada e madura da sustentabilidade como dimensão das principais políticas municipais está presente apenas nas propostas de Jilmar Tatto e de Bruno Covas, aliás em termos muito semelhantes e bem próximos da Agenda Urbana do Clima.
Propostas de campanha costumam se situar em alguma nuvem entre pura propaganda, vaga declaração de intenções e compromisso a se efetivar em um futuro incerto. Ainda assim, dizem algo sobre o que está no horizonte de cada candidato e o que a sociedade organizada dele pode --e deve-- cobrar caso se eleja.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Marcus André Melo: Manipulação eleitoral nos EUA e no Brasil
Há justificada perplexidade em relação à governança eleitoral na maior democracia do mundo.
A criação de barreiras à participação de determinados segmentos do eleitorado é inédita nas democracias. As formas que essa exclusão potencial assumem são variadas: exigências peculiares quanto ao voto pelo correio, problemas de acessibilidade às cabines de votação ou quanto à sua localização, além de exigências quanto à identificação do eleitor.
A situação é tão crítica que os estados com um histórico de práticas excludentes têm que submeter as alterações de procedimentos ao Departamento de Justiça. No passado, tais práticas consistiam de exigências como quitação de taxas individuais ou testes severos de alfabetização, o que acabava excluindo a população negra e/ou pobre.
Entre nós a exclusão dos setores pobres é muito mais complexa. A Lei Saraiva (1881) proibiu o voto dos analfabetos; a legislação posterior referendou-a, mas a implementação era pífia. As coisas só mudam na prática com a adoção, em 1955, da cédula oficial em substituição as fornecidas pelos próprios partidos, e que permitia a violação sutil do sigilo do voto.
A nova cédula exigia que o eleitor escrevesse o nome/número dos candidatos para os vários cargos, o que acarretou uma enorme expansão dos votos inválidos. A cédula distribuída pelos partidos já continha esta informação, o que permitia que os analfabetos votassem. Prevalecia assim um equilíbrio perverso que permitia a sobrevivência política de elites rurais com controle histórico sobre um eleitorado cativo.
Os bastidores da reforma de 1955 estão disponíveis na forma de registro diário e detalhado das negociações ocorridas entre 11 e 26 de agosto daquele ano, transcritas pelo paladino da reforma, Afonso Arinos, em suas memórias. Tratava-se de uma das medidas da UDN contra o abuso de poder do getulismo, e contou com apoio ativo da Igreja Católica e do TSE, e pressão dos militares. O ator chave, o PSD (majoritário no Congresso), só retirou seu veto após a garantia de que a cédula oficial também pudesse ser distribuída pelos partidos na eleição de 1955.
Esse estado de coisas foi simbolicamente alterado com a extensão do voto aos analfabetos pela emenda constitucional 25, de 1985; a mudança radical ocorreu em 2000, com a adoção da urna eletrônica. A percentagem de votos em branco e nulos que era uma das maiores do mundo —a média para o período 1980-2000 chegou a inimagináveis 37%, enquanto na Costa Rica, Uruguai, Chile, Argentina girava em torno de 5%— caiu brutalmente.
Desde 2000 o Brasil é modelo de governança com altas taxas de comparecimento às urnas e baixas taxas de votos nulos.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Roberto Freire: O Cidadania e a Primavera Negra
O Cidadania entende a decisão sobre os critérios raciais para divisão de tempo de propaganda no rádio e na televisão e do fundo eleitoral no pleito municipal deste ano como uma medida justa e estruturante. Uma decisão que muda para melhor o país. Esse passo, que ocorre em meio a uma campanha nacional e internacional denominada “Primavera Negra”, merece e terá todo o respeito e aval da nossa legenda.
Contamos com o suporte do coletivo Igualdade 23 nos esforços para que essa decisão seja cumprida e valorizada em todas as instâncias do partido. Compreendo que essa não será uma missão árdua em razão do histórico que, iniciado na fase do PCB, o partido sempre teve sobre a importância de promover a igualdade racial e combater o racismo.
Um dos núcleos pioneiros do PCB se chamava Grupo Comunista Zumbi, liderado por Astrojildo Pereira, dirigente reconhecido como um pilar, uma “alma” da legenda. Ele foi um dos primeiros intelectuais a “apontar para a grandeza épica” dos Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”, como resgata o historiador Ivan Alves Filho.
O PCB contou com expoentes como Edson Carneiro e Décio de Freitas, autor de uma das mais importantes obras sobre o Quilombo de Palmares. O primeiro deputado negro do Brasil, Claudino José da Silva, eleito constituinte em 1946, era do PCB.
Outro marco que deve ser valorizado ocorreu também em 1946, quando o então deputado federal Jorge Amado, eleito pelo PCB-SP, propôs a emenda 3.218 à Constituição, aprovada e promulgada, que tratou do livre exercício da crença religiosa com foco na proteção das religiões de matriz africana. A se ressaltar que, como eu, ele era declaradamente ateu.
Nesse período em que se verificam tentativas de desconstrução da pauta e das conquistas dos movimentos negros, penso que é relevante valorizarmos esses marcos de luta e de vanguarda social e racial. Até porque nós sempre estivemos comprometidos com esses valores da cidadania afrodescendente.
Não seria diferente agora em que esse trágico assassinato ocorrido nos Estados Unidos – me refiro a George Floyd, que pereceu sob o joelho racista de um policial branco – despertou não só naquele país, mas ao redor do mundo, incluindo o Brasil, um sentimento de integração entre as populações negras, revolta contra as injustiças e de protestos por direitos há muito negados a esses cidadãos.
Todos esses levantes da assim chamada Primavera Negra integrados, em grande medida, também por cidadãos brancos e de outras etnias. O antirracismo, afinal, não pode ter cor, uma vez que o apelo que se faz é à nossa humanidade, que é plural, embora uma só.
No caso brasileiro, há um movimento que ganha força dia após dia, em todo o país, que clama por maior representatividade, sem a qual a democracia corre risco e o desenvolvimento econômico e social será permanentemente limitado. Esse resgate da cidadania ao qual nos lançamos passa, necessariamente, por uma mudança de composição nos legislativos e executivos do país afora, em sintonia com esse clamor.
A maior presença de afrodescendentes na política nacional representa, para nós do antigo PCB, um resgate e tem até mesmo uma dimensão revolucionária, embora sem armas. Uma revolução social feita com espírito republicano, por meio das regras democráticas, em linha com o que defende hoje o Cidadania. Os tempos mudam e nós mudamos com eles.
É nesse contexto que o papel do nosso coletivo Igualdade 23 torna-se ainda mais relevante. Que possa, como parte dessa Primavera Negra, levar para o centro das decisões, nas Câmaras Municipais e nas sedes de governo, as múltiplas cores do Brasil real, cooperando com a construção do Cidadania e da sociedade.
E que a diversidade, a criatividade, a inteligência e a vivência de negros e negras, que já fazem a diferença em diversas áreas, façam também na política, com um outro olhar para a construção de uma nação verdadeiramente melhor para todos.
*Roberto Freire, presidente do Cidadania