Eleições

Luiz Carlos Azedo: Efeitos colaterais

Lucena (duas vezes), ACM (duas), Sarney (quatro) e Renan (quatro) presidiram o Senado mais de uma vez, mas nunca foram reeleitos na mesma legislatura; existe, porém, precedentes na Câmara

O primeiro impacto das eleições municipais na política nacional se dará nas disputas pelas Mesas do Congresso, principalmente a da Câmara. Do ponto de vista da composição das duas Casas, não houve grande mudança na correlação de forças, apesar dos suplentes que deverão assumir, porém, o desempenho dos partidos na eleição de prefeitos e vereadores, que estão na base da reprodução e renovação dos mandatos dos deputados, influencia — e muito — os humores dos congressistas. As articulações para o comando do Senado e da Câmara ganharam nova dinâmica já a partir desta semana.

A premissa a se resolver é a questão da reeleição na mesma legislatura, que a Constituição de 1988 proíbe. Um parecer da consultoria jurídica do Senado diz que o assunto é regimental e que, portanto, dependeria apenas de decisão dos senadores. Essa questão, porém, será dirimida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As articulações para que os ministros do Supremo lavem as mãos, como Pilatos, seguem o percurso que todos conhecem: as relações entre senadores e ministros, tecidas ao longo do tempo. Entretanto, não dá para apostar que o Supremo aceitará a mudança das regras de jogo, pelo precedente que abre.

Na hipótese de que a reeleição seja permitida, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), está com quase tudo dominado. Já se acertou com as bancadas do MDB e do PT. O seu problema é o grupo Muda Senado, que originalmente foi um esteio de sua vitória contra o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Na Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que é contra a reeleição, caso isso seja permitido, não terá adversários capazes de derrotá-lo. Essa possibilidade lhe cairia no colo, pois quem trabalha abertamente para a reeleição é Alcolumbre.

No período republicano, foram poucos os presidentes da Câmara que se reelegeram na mesma legislatura: Sabino Barroso (1909-1914), Arnolfo Rodrigues de Azevedo (1921-1926) e Ranielli Mazzini (1958-1965), que, por duas vezes, assumiu a Presidência da República em situação de crise institucional. A primeira, na renúncia de Jânio, em 1961; a segunda, na deposição do presidente João Goulart, em 1964, mas acabou tendo de entregar o cargo para o marechal Castelo Branco. No Senado, nunca houve esse precedente. Embora Humberto Lucena (duas vezes), Antonio Carlos Magalhães (duas), José Sarney (quatro) e Renan Calheiros (quatro) tenham presidido a Casa mais de uma vez, nunca foram reeleitos na mesma legislatura.

Bolsonaro
Caso não seja mesmo permitida a reeleição na mesma legislatura, no Senado, o candidato mais forte à sucessão de Alcolumbre é o senador Eduardo Braga (MDB-AM), líder do governo na Casa. O circo pega fogo, porém, na Câmara, onde está instalada a disputa entre o líder do PP, deputado Arthur Lira (AL), e o líder do MDB, deputado Baleia Rossi (SP). O primeiro, é o candidato apoiado pelo Palácio do Planalto, com objetivo de domar a Câmara, controlando a sua pauta. O fortalecimento do PP nas eleições municipais, nas quais saltou de 495 para 682 prefeituras, foi resultado da estratégia de aproximação com Bolsonaro desenvolvida pelo senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, e Arthur Lira, que, por isso mesmo, aumentou o seu cacife na disputa da Câmara junto ao Palácio do Planalto.

Do outro lado do balcão, Baleia Rossi, que também é presidente do MDB, candidato apoiado por Rodrigo Maia, amarga a perda de 261 prefeituras (caiu de 1.035 para 774). Entretanto, o MDB continua sendo o partido mais forte do país em termos de prefeitos, vereadores e número de votos. Além disso, para Baleia, o apoio do DEM foi robustecido pelo desempenho eleitoral dessa legenda, que aumentou o número de prefeituras de 266 para 459 (193 a mais). Seu problema é a resistência da esquerda, o que faz de Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), mesmo com candidato avulso, um azarão. É óbvio que essa matemática não se reflete automaticamente na eleição da Câmara, mas mexe com os ânimos dos deputados, que se envolvem diretamente nas eleições municipais e captam os humores do eleitorado.

É aí que a derrota dos candidatos apoiados por Bolsonaro no primeiro turno pesa na balança. Fragiliza sua relação com os partidos do Centrão, entre os quais o PSD de Gilberto Kassab. Se tivesse mais senso estratégico, Bolsonaro não teria se envolvido, como se envolveu, no primeiro turno. Nada garante que não repita o erro no segundo turno, correndo risco de ter o apoio rejeitado pelos candidatos com quem tem afinidade. Mesmo no caso de Crivella, no Rio, seu apoio pode ser desastroso, pois as primeiras pesquisas mostram que o eleitorado de esquerda e centro-esquerda já desembarcou na candidatura de Eduardo Paes (DEM), e a eleição está praticamente perdida. Além disso, envolver-se diretamente na disputa pelo comando da Câmara é um jogo perigoso. Por exemplo, custou muito caro para a ex-presidente Dilma Rousseff, que foi derrotada por Eduardo Cunha (MDB-RJ), de quem era inimiga figadal. Ele abriu o processo de impeachment da ex-presidente da República, antes de ser afastado do cargo e preso por causa do Petrolão.

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Bernardo Mello Franco: Onda bolsonarista virou marolinha

A onda que varreu as urnas em 2018 virou marolinha nas eleições municipais. Há dois anos, Jair Bolsonaro impulsionou a vitória de azarões e aventureiros em todo o país. Agora colhe fiascos na maioria das disputas em que se meteu.

O presidente pediu votos em seis capitais. Em quatro delas, seus candidatos naufragaram ainda no primeiro turno. Em Manaus, Coronel Menezes amargou um quinto lugar. No Recife, Delegada Patrícia terminou em quarto. Em Belo Horizonte, Bruno Engler ficou em segundo, mas não conseguiu nem 10% dos votos válidos.

Em São Paulo, Bolsonaro teve uma tripla derrota. Seu aliado Celso Russomanno, que liderava as pesquisas, derreteu e acabou na quarta posição. Os dois finalistas não querem conversa com o capitão. Bruno Covas já dispensou qualquer hipótese de apoio, e Guilherme Boulos faz oposição radical ao Planalto.

Os candidatos bolsonaristas só passaram ao segundo turno no Rio e em Fortaleza. O prefeito Marcelo Crivella, com rejeição na casa dos 60%, dificilmente terá fôlego para virar a disputa com Eduardo Paes. Na capital cearense a disputa entre José Sarto e Capitão Wagner foi mais equilibrada. Mas os votos da terceira colocada, a petista Luizianne Lins, agora tendem a migrar para o pedetista.

O presidente teve mais um revés em seu berço político. Seu filho Carlos Bolsonaro perdeu o título de vereador mais votado do Rio. Foi ultrapassado por Tarcísio Motta, do PSOL. A outra representante do clã, Rogéria Bolsonaro, teve míseros dois mil votos.

A família ainda colheu uma derrota anedótica no estado. Apontada como assessora fantasma do capitão, Wal do Açaí tentou se eleger vereadora de Angra dos Reis com o nome de Wal Bolsonaro. Apesar do empenho e do sobrenome do patrão, só atraiu 266 eleitores.

Numa tentativa de encobrir o vexame, Bolsonaro apagou o post em que pedia votos para seus candidatos. Não adiantou. No fim da noite, sua tropa adotou outra tática diversionista. Passou a usar o atraso na divulgação de resultados para disseminar teorias conspiratórias sobre fraude nas urnas.


Carlos Pereira: Combate à corrupção tem ideologia?

Rotular iniciativas e movimentos de combate à corrupção como “de direita” tem sido uma alegação comum da esquerda, não apenas no Brasil.

Tem-se argumentado que, ao expor os meandros e bastidores do suposto “jogo sujo” da política, movimentos anticorrupção desempenhariam um papel central de fortalecimento da antipolítica. A devastação moral do governo de plantão fortaleceria o sentimento de que a política não seria mais um veículo de mudanças – todo o sistema seria corrupto e só um líder messiânico, fora do sistema – ou seja, fora da “política” – seria capaz de exercer mudanças significativas e, finalmente, higienizar a política.

Movimentos de combate à corrupção seriam, assim, paradoxais. A rejeição generalizada da política levaria necessariamente à fragilização do sistema vigente e ao surgimento de políticos de perfil populista e carismático que prometem acabar com a corrupção. Entretanto, uma vez eleitos, esses líderes “antipolítica” acabariam por colocar em risco as próprias instituições do País. Como exemplos, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Silvio Berlusconi na Itália ou Jair Bolsonaro no Brasil.

A resposta que a esquerda tem dado a esse paradoxo, especialmente quando políticas anticorrupção atuam contra governos supostamente progressistas, é a de tratar as alegações ou evidências de irregularidades, ou condenações na Justiça como campanha de difamação da direita e perseguição da mídia conservadora.

Alegam que tais políticas adotam uma concepção de direito punitivista, que não respeitaria o devido processo legal. Pior ainda, associam a retórica anticorrupção e suas lideranças à própria direita. Rechaçam a participação de quem outrora impôs perdas judiciais a líderes corruptos de governos desviantes de esquerda na construção de alternativas políticas não polarizadas. O inverso também é verdadeiro: quando governos conservadores de direita são pegos praticando atos de corrupção, estratégias semelhantes são igualmente adotadas.

Apesar de, num primeiro momento, os movimentos de combate à corrupção terem causado um choque no sistema político, permitindo a eleição de “outsiders” como Bolsonaro, não chegaram a enfraquecer o sistema político nem a destruir o sistema partidário. Os resultados de ontem, das eleições municipais, sinalizam que os candidatos “antipolítica” e que apostaram na polarização foram os grandes derrotados.

É um erro, portanto, associar o combate à corrupção a uma agenda de direita ou de esquerda. O combate contra a corrupção não tem ideologia. É fundamentalmente uma luta contra governantes que apresentam comportamento desviante, sejam de esquerda, centro ou direita.

Na verdade, a luta contra a corrupção é mais que a imposição de restrições a trocas ilícitas no sistema político. Compreende também iniciativas que diminuam a captura do Estado por interesses específicos e escusos. Ela é, em essência, a luta contra a privatização da vida pública.

Em países com extrema desigualdade, como o Brasil, essa luta é um movimento contra os que capturam o Estado para interesses privados. Neste sentido, é uma política de inclusão social. Assim, só uma análise enviesada poderia rotular ideologicamente uma política anticorrupção que, essencialmente, visa diminuir a desigualdade social por meio do aumento da inclusão.

A luta contra a corrupção não é de esquerda ou direita, mas contra o incumbente

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)


O Estado de S. Paulo: Mourão reconhece vitória de Biden, mas diz não responder pelo governo

Em entrevista à Rádio Gaúcha, vice-presidente afirmou que julga a vitória do democrata como 'cada vez mais irreversível'

Emilly Benhke, O Estado de S.Paulo

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta sexta-feira, 13, que, apesar de não responder pelo governo, julga a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos como "sendo cada vez mais irreversível".

"Como indivíduo eu reconheço, eu não respondo pelo governo, mas como indivíduo eu julgo que vitória de Biden está cada vez mais sendo irreversível", afirmou em entrevista à Rádio Gaúcha nesta manhã.

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Qual o tamanho da 'pólvora' do Brasil? Comparamos o poderio com o dos EUA

Mourão citou que é responsabilidade de Bolsonaro o possível pronunciamento sobre o pleito norte-americano. O governo brasileiro é um dos poucos que ainda não reconheceu o resultado das eleições norte-americanas. Outros países que não o fizeram são a Coreia do Norte, liderada por Kim Jong-Un, a Rússia, de Vladimir de Putin, e o México, de López-Obrador.

A China, que ainda não havia reconhecido a vitória do democrata, parabenizou Biden nesta sexta. "Respeitamos a escolha do povo americano. Enviamos nossas felicitações a Biden e a Harris", declarou o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Wenbin.  

Nesta sexta, a imprensa americana informou que o democrata venceu no Estado do Arizona e consolidou a liderança no Colégio Eleitoral que escolherá formalmente o novo chefe da Casa Branca. Com isso, chegou a 290 delegados, contra 213 de Trump. 

O vice-presidente negou que haja uma tensão entre Brasil e EUA e afirmou que os dois países mantêm uma relação de "Estado para Estado". Disse ainda que continuaram buscando pontos em comum nas suas relações diplomáticas. “Independente do momento que for reconhecido resultado da eleição americana, vamos manter diálogo constante”, disse.

Mourão também voltou a minimizar a fala do presidente Jair Bolsonaro de que "quando acaba a saliva tem que ter pólvora". "Vejo a coisa da seguinte forma, o presidente, a gente tem que prestar atenção mais nas ações do que nas palavras (de Bolsonaro)", justificou.

Na última terça-feira, 10, sem citar Biden diretamente, Bolsonaro comentou possíveis barreiras comerciais impostas ao Brasil pelos EUA caso as queimadas na região amazônica não fossem contidas. "Apenas a diplomacia não dá", disse o presidente na ocasião.


Sergio Fausto: Lições para o Brasil da eleição nos Estados Unidos

A mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo adversário

O título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.

A mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata. Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso construir uma alternativa já para o primeiro turno.

Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.

Mas na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país, como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.

Ao contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”. Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).

A batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e reproduzida pelo eleitor comum.

Cada país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a partir do próximo mandato presidencial?

Para ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com “representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Eliane Brum: Vote em Marielle

Mais viva do que nunca, a vereadora executada há quase mil dias é a principal antagonista de Bolsonaro e de seu projeto de poder

As eleições municipais de 15 de novembro são, para o Brasil, o que a eleição presidencial dos Estados Unidos foi para o mundo. Vão mostrar para onde está indo o país, desde que o governo foi ocupado e pervertido por um mentiroso com intenções genocidas. É claro que 2022 será o momento decisivo, pela possibilidade de tirar não apenas Jair Bolsonaro do centro do poder, mas também tudo o que ele representa. A resistência, porém, se expressa no miúdo dos dias e é exercida no chão das cidades ―em cada comunidade, em cada favela, em cada rio. A política, para muito além dos partidos, é tecida no cotidiano. As eleições do próximo domingo vão mostrar qual é a temperatura do movimento de brasileiros anônimos na soma destas pequenas ações e reações. Vão expor o quanto uma parcela da população é capaz de enfrentar o autoritarismo de Bolsonaro também no campo da política institucional e manter a luta mesmo no luto. Vão apontar, principalmente, o quanto o legado de Marielle Franco vive e resiste e avança.

Bolsonaro e o bolsonarismo, a criatura mais importante e possivelmente mais longeva do que o criador que lhe empresta o nome, são fenômenos complexos. Além de tudo o que representam e revelam do Brasil, são também a resposta violenta de uma parcela assustada da população por um lado, de uma elite com medo de perder seus privilégios de classe e de raça, por outro. Em comum, os eleitores de Bolsonaro parecem temer tudo o que a figura de Marielle Franco representa em seu gesto de ocupar o centro político: a pressão de mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+ por participação no poder e pelo reconhecimento de sua centralidade. É também esse embate que se fará presente nas eleições em que a participação de candidatos negros é a maior já registrada: 49,9% negros, superando os 48,1% que se autodeclaram brancos.

A eleição acontecerá num momento de forte simbolismo: a proximidade dos mil dias da execução da vereadora do PSol no Rio de Janeiro sem que o Brasil conheça o mandante ―ou os mandantes― e sua motivação. Enquanto quem ordenou a morte, seus motivos e suas conexões não forem apontados, cada dia a mais sem solução é uma denúncia do momento limite vivido pelo Brasil. E uma acusação do enorme déficit de justiça do país. A cada dia a mais sem solução faz também aumentar a densidade das sombras sobre Bolsonaro e sua família, às voltas com indícios de sua ligação com as milícias acusadas de envolvimento com a morte de Marielle.

O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, o motorista que morreu mas não era alvo, não é mais um crime em um país atravessado pela violência. A investigação que se estende além do mais flexível conceito de razoável já expõe a crescente infiltração das milícias no Estado brasileiro. Expõe também o cotidiano de um país em que tanto a democracia quanto o ordenamento jurídico são uma pele cada vez mais fina envolvendo estranhas cada vez mais podres, cujos vermes já não se contentam em se manter no lado de dentro. Quando os criminosos começam a gostar dos holofotes é porque acreditam não mais precisar se esconder. O que aqueles que vivem na Amazônia de grileiros e pistoleiros testemunham há muito tempo, e que também na região da floresta se torna cada vez mais explícito, se alastra por todo o Brasil desde que Bolsonaro assumiu e perverteu o poder.

A execução da vereadora do PSol precisa ser solucionada por todas as razões e também para que a população brasileira possa saber se Bolsonaro e seus filhos têm apenas amigos chefiando as milícias que aterrorizam o Rio de Janeiro, alguns deles matadores profissionais, ou se também têm envolvimento com a morte de Marielle. Até este momento, as provas de intimidade e de relações suspeitas do clã Bolsonaro com milicianos matadores são vastas, mas não apareceu nenhuma prova de envolvimento concreto da família presidencial com o crime. Pelo menos, nenhuma foi divulgada até hoje.

Ao denunciar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho mais velho do presidente, pelo esquema criminoso das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Ministério Público mostrou que o filho zeroum teria recebido pelo menos 400.000 reais do ex-PM Adriano da Nóbrega. Acusado de chefiar um grupo de extermínio, Adriano foi morto em fevereiro em controversa operação policial na Bahia. A mãe e a mulher de Adriano eram funcionárias do gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado e só foram desligadas pouco antes de estourarem as primeiras denúncias. Segundo a investigação do MP do Rio, Adriano repassava o dinheiro a Fabrício Queiroz, então braço direito de Flávio e operador do esquema criminoso.

Bolsonaro e sua família deveriam ser os brasileiros mais interessados em solucionar a execução de Marielle Franco. Não são. Até este momento, estão presos apenas os acusados de executar o crime, o policial militar reformado Ronnie Lessa, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, e o ex-PM Élcio Queiroz. Ainda não há notícias dos mandantes.

A necessidade de fazer perguntas difíceis envolvendo aquele que ocupa o cargo máximo do país é uma evidência do momento perigosíssimo que vive o Brasil. O “novo normal” de que tanto falam ―e que está muito mais para novo anormal― é assimilar como uma possibilidade de normalidade as relações íntimas do presidente com milicianos e matadores. Também neste sentido o dia da eleição provoca expectativa.

A corrosão da democracia brasileira é cada vez mais trágica, mas ainda há um pequeno espaço para a retomada do que foi velozmente destruído. A escolha dos vereadores e prefeitos que vão tocar a política dos municípios, em geral a que mais interessa aos cidadãos no seu cotidiano, vai mostrar se cresce a parcela da população brasileira que tem consciência do abismo que, como cantava Cartola, escava com seus pés. As eleições de 15 de novembro não contêm a possibilidade de redenção, mas podem sinalizar se o avanço das periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro persiste mesmo com todos os ataques e, principalmente, se têm conseguido aumentar sua ressonância junto ao conjunto da população nestes anos de autoritarismo de ódio produzido pelo bolsonarismo.

O primeiro ministério de Michel Temer (MDB) ―inteiramente branco e masculino, patriarcal e heterossexual em todos os seus signos― depois de quatro anos ainda é o melhor retrato de como a manobra das forças de direita refletia um profundo incômodo com o avanço daqueles tratados como subalternos, manobra que em 2018 resultou na eleição de um homem como Jair Bolsonaro. O fato de que Temer foi o vice que traiu Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher a se tornar presidente na história do Brasil, ao minar seu poder desde dentro e apoiar seu impeachment, não é um detalhe. Tampouco é um detalhe o fato de que, das duas únicas ministras mulheres de Bolsonaro, uma é declaradamente antifeminista, Damares Alves, e a outra, Tereza Cristina, se dedica a liberar agrotóxicos e “destravar” a agenda do agronegócio que destrói a Amazônia, o Cerrado e outros biomas, envenenando a comida e a terra e condenando as novas gerações.

A execução de Marielle Franco, em 14 de março de 2018 ―negra, bissexual, publicamente casada com outra mulher, nascida e criada nas favelas da Maré, que ocupa o centro ao se tornar vereadora no legislativo do Rio de Janeiro e levar para dentro da política institucional a luta contra a violência policial na favelas, contra a grilagem de terras nas periferias, parte delas controlada pelas milícias, e pelos direitos das pessoas LGBTQIA+― simboliza a radicalidade do gesto de barrar esse movimento à bala porque ele começa a ameaçar interesses e hegemonias. Para além da solução concreta do crime, seu simbolismo é assim e acertadamente interpretado pela parcela progressista da sociedade, que mantém presente e persistente tanto a memória de Marielle quanto a pressão pela solução de seu assassinato.

Marielle Franco é, iconicamente, mais viva do que nunca e a maior antagonista do atual presidente. E por essa razão, a memória de Marielle resiste e produz Marielles. Nesta eleição, em número inédito: em São Paulo, as candidatas negras são quase o dobro da disputa anterior. Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), há pelo menos 300 quilombolas disputando uma vaga no legislativo em todo o país. Entre eles, a ativista Socorro de Burajuba, líder da luta contra a destruição socioambiental produzida pela mineradora norueguesa Hydro Alunorte, poluidora dos rios da região de Barcarena, na Amazônia paraense. Nunca se discutiu tanto a participação política de negros como hoje, mas mais do que negros, o que se fortalece em 2020 é a potência crescente das mulheres pretas.

Historicamente mais subjugadas entre os subjugados, elas foram mantidas por décadas periféricas também no feminismo dominado por mulheres brancas e nos partidos de esquerda, majoritariamente liderados por homens e por brancos que sempre deram ênfase à luta de classes em seu diagnóstico e em suas propostas, em detrimento do racismo estrutural como recorte central de análise. Como afirma a socióloga negra Vilma Reis, “são as mulheres negras que empurram a esquerda para a esquerda”.

Mesmo dentro do PSol ―o partido com mais ressonância na esquerda, pelo menos para quem, como eu, considera o PT um partido de centro― Marielle também enfrentava a hegemonia da branquitude e um ranço machista cuidadosamente disfarçado. Depois que Marielle se tornou o maior ícone das mulheres negras (e também de uma parcela das brancas), alguns tentam reduzi-la a uma “cria” do deputado federal Marcelo Freixo (PSol). É justo reconhecer a influência do principal nome do PSol do Rio de Janeiro na trajetória política de Marielle Franco, mas Marielle é muito maior do que isso e foi fortemente marcada pelas mulheres negras que também encontrou no seu caminho.

A força crescente representada por ela, esta que o bolsonarismo não conseguiu parar apesar de toda a violência contra os corpos das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+, pode ser decisiva em 2022. É evidente que o Brasil tem enormes diferenças com relação aos Estados Unidos, assim como também é evidente que Jair Bolsonaro é ainda pior do que Donald Trump. Mas as afinidades também existem e são grandes ―e ambos fazem parte do mesmo fenômeno global. Tanto Trump quanto Bolsonaro souberam encarnar o medo de uma parcela significativa de brancos assustados, perdendo poder aquisitivo pelos efeitos da crise global do capitalismo de 2008 e sentindo-se perdidos pela ameaça ao lugar identitário em que ainda se sentiam superiores: o de raça, o de gênero e o de orientação sexual.

Talvez a melhor forma de explicar esse mecanismo, no caso dos brancos pobres e dos brancos de classe média que perderam renda nos últimos anos, seja com a formulação do intelectual afroamericano W.E.B. Du Bois (1868-1963), cujo pensamento só fui conhecer ao assistir a uma entrevista do intelectual afrobrasileiro Silvio Almeida. Du Bois criou o conceito que apresenta a branquitude como um “salário público e psicológico”. Sugiro ler diretamente na fonte, para alcançar a profundidade da proposição, mas, resumindo em uma linha, seria mais ou menos isso: o branco ferrado se consola com o salário psicológico de saber que há um outro, o negro ferrado, que é mais ferrado do que ele. Para manter esse privilégio psicológico, de um ferrado mais ferrado do que ele, o que o faz superior pelo menos a alguém, ele vota até em perversos como Bolsonaro que o ferram muito mais todo dia. No meu ponto de vista, esse salário psicológico ajuda a explicar também a resistência feroz ao protagonismo das mulheres, o único ponto de privilégio de uma parcela dos homens, sejam eles brancos ou pretos.

Como se sabe, Bolsonaro “liberou” esses machos brancos assustados ao expressar publicamente todo o seu racismo, homofobia e misoginia (ódio às mulheres), sem ser responsabilizado pelo sistema judiciário, e enalteceu em seu discurso de posse a “libertação” do politicamente correto. Representou também a angústia de uma classe média que se via perdendo privilégios que considerava direitos ao mesmo tempo em que, pela primeira vez na história, era obrigada a lidar com empregadas domésticas, majoritariamente pretas, que haviam conquistado a (quase) equiparação aos direitos dos demais trabalhadores.

A escandalosamente atrasada conquista de direitos trabalhistas básicos pelas empregadas domésticas, como já escrevi várias vezes, é essencial na análise da última década. No Brasil, a emancipação feminina se deu não por políticas públicas como ensino integral e creche para as crianças, nem tampouco pela divisão real de trabalho dentro de casa. Ao contrário. As mulheres brancas só conquistaram sua emancipação e conseguiram construir carreiras profissionais ao seguirem subjugando mulheres negras, em sua maioria, e também brancas pobres. Essas mulheres deixavam suas próprias casas e filhos para realizar o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos das brancas por salários irrisórios, jornadas extenuantes, condições de trabalho precárias e direitos escassos. A chamada “PEC das Domésticas” (quase) equiparou os direitos das domésticas aos demais trabalhadores, numa conquista histórica, balançando a herança mais persistente da escravidão e ampliando o medo de uma classe média perdendo renda e privilégios.

As mulheres pretas que hoje avançam sobre os espaços formais da política institucional são, muitas delas, filhas dessas mulheres que chefiam suas famílias e seguram o tranco dos dias há décadas. Muitas delas puderam chegar à universidade graças às medidas de ampliação do acesso ao ensino superior para os mais pobres e graças às cotas raciais, política de inclusão atrasada em mais de um século que provocou violenta reação dos brancos durante os governos petistas. Ainda que as candidatas pretas não se elejam, só o fato de disputarem a eleição aponta que, apesar de toda a violência, o bolsonarismo não conseguiu parar essa força. As quatro balas que arrebentaram a cabeça de Marielle Franco arrancaram-na da sua vida, de suas lutas, de seus afetos e de seus amores, mas tornaram-na imortal no cotidiano de milhões de mulheres pretas que encontram nela a inspiração para seguir adiante sem recuar.

Formalmente, o Instituto Marielle Franco criou nesta eleição a Agenda Marielle Franco, uma iniciativa suprapartidária que reuniu 745 candidatos, espalhados por 270 cidades brasileiras, comprometidos a levar adiante o legado da vereadora executada: justiça racial e defesa da vida; gênero e sexualidade; direito à favela; justiça econômica; saúde pública, gratuita e de qualidade; educação pública gratuita e transformadora; cultura, lazer e esporte. O esforço busca garantir significado a essas candidaturas, na medida em que a ampliação da presença negra no poder legislativo é um grande passo, mas só pode assegurar avanço na luta por igualdade racial se os eleitos defenderem projetos comprometidos com essa pauta e forem representativos de suas comunidades e não apenas de si mesmos.

O acordo é também o de honrar as práticas de Marielle: diversificar, não uniformizar; ampliar, não limitar; honrar, não apagar; coletivizar, não individualizar; puxar, não soltar; escancarar, não se encastelar; cuidar, não abandonar. Guilherme Boulos (PSol), candidato a prefeito de São Paulo com chances de alcançar o segundo turno, é um dos candidatos na lista dos comprometidos em honrar e multiplicar o legado de Marielle Franco.

Em 2005, ao executarem com seis tiros a missionária Dorothy Stang, os grileiros da região de Anapu aprenderam uma lição: algumas pessoas vivem mais intensamente depois de mortas. Nos dez anos seguintes, a atenção internacional provocada pelo crime e a presença de instituições que antes não davam as caras por ali atrapalharam muito os negócios dos destruidores da Amazônia. Dorothy Stang também se tornou uma mártir que tem inspirado movimentos de camponeses, em especial os ligados à Pastoral da Terra, da Igreja Católica. O assassinato de Marielle Franco, independentemente da intenção explícita do mandante ou mandantes do crime, produziu uma força de resistência infinitamente maior e mais significativa para o Brasil. Que os avanços se deem pela destruição dos corpos dos mais pobres e daqueles que resistem à opressão é resultado da democracia seletiva e deformada, jamais completada, do Brasil pós-ditadura civil-militar.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram vendendo passados que nunca existiram, passados tão falsos quanto tudo o que sai de suas bocas. Pregam a volta a uma época em que aqueles historicamente tratados como subalternos ―mulheres, negros, indígenas― aceitavam passiva e pacificamente o seu lugar. Como se sabe, esse passado nunca existiu. O que existiu e persiste é o silenciamento dos que se rebelam, seguidamente calados pelo extermínio. Como Trump e Bolsonaro não têm futuro a oferecer, disseminam mentiras e tentam reescrever a história com elas. Não são apenas negacionistas, mas sim mentirosos com método e intenção.

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Inspiradas pelo exemplo da eleição estadunidense, a centro-direita e a direita brasileiras que já não querem mais dividir o palanque com Bolsonaro ―o homem que, como seu próprio chanceler definiu, transformou o Brasil num “pária” internacional― já começaram a fazer suas articulações para 2022. A questão é que, mais importante do que a vitória de Joe Biden, um homem branco do sistema, é como e por que Biden venceu Trump. As mulheres e os negros foram determinantes para tirar o déspota de topete laranja do poder. Como símbolo deste movimento desponta uma ativista negra chamada Stacey Abrams, cuja atuação está diretamente ligada aos 800.000 novos votantes da Geórgia, metade deles afroamericanos entre 30 e 45 anos. Estado sulista de raízes escravocratas, um democrata não vencia na Geórgia desde Bill Clinton. É fundamental não esquecer: Biden venceu também porque tinha ao seu lado Kamala Harris. Primeira mulher a assumir a vice-presidência dos Estados Unidos, ela é negra de ascendência indiana. Biden é mainstream, mas quem venceu Trump não foi o mainstream.

O que é chamado de periferia, tanto em países como Estados Unidos quanto no Brasil, têm sido os centros de criação de pensamento, de cultura e de inovação. Diante de fenômenos de ultradireita como Trump e Bolsonaro, são também produtores de resistência que avançam para o centro da política institucional. No Brasil, movimentos majoritariamente brancos e de classe média publicaram em 2020 manifestos em defesa da democracia nos principais jornais do país. Não citavam o racismo estrutural em seus textos. De imediato, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de cem organizações e coletivos, publicou nos mesmos espaços o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sinalizava ali que, desta vez, nenhum rearranjo das forças políticas, da direita à esquerda, teria legitimidade se não enfrentasse o racismo estrutural do país. O manifesto antirracista pode ter sido o ato político mais importante dos últimos anos.

O necessário deslocamento do que é centro e do que é periferia é fundamental para determinar o destino do Brasil. Aqueles que são tratados como periféricos, como a floresta e a favela, têm no horizonte uma aliança a tecer, fundamental para a criação de futuros capazes de dar respostas de possibilidade ao momento limite da emergência climática. Neste sentido, nos Estados Unidos, a esquerda do Partido Democrata, onde essas novas forças estão estrategicamente alojadas, está mais à frente ao perceber e sublinhar publicamente que, hoje, enfrentar o racismo é enfrentar a emergência climática. Já não existe a possibilidade de uma luta sem a outra luta.

O apartheid tenebroso que já se anuncia e se aprofunda em ritmo acelerado é o que a própria ONU chama de “apartheid climático”. E, mais uma vez, atinge principalmente as mulheres, os negros e os indígenas. No Brasil, a aliança entre os ativistas das favelas e os ativistas da floresta precisa avançar com mais rapidez, dada a emergência do momento. Os ativistas da floresta são principalmente indígenas, mas também quilombolas e beiradeiros ou ribeirinhos. E são também as mulheres negras das periferias de cidades amazônicas. Em Altamira, epicentro da destruição da floresta, jovens ativistas como Daniela Silva têm levantado a voz para lembrar que as mulheres negras das periferias urbanas também fazem parte da Amazônia.

A luta está só começando. Homens como Trump e Bolsonaro, o brasileiro ainda com chances de se reeleger em 2022, são apenas um capítulo e não necessariamente o mais difícil. Como afirma a estrela da nova esquerda do Partido Democrata, a estadunidense de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez, ao comentar a derrota de Trump: “Não estamos mais em queda livre para o inferno. Mas, se vamos nos levantar ou não, é uma questão. Fizemos uma pausa nessa descida precipitada. A questão é se e como iremos nos reconstruir”.

Apesar do atoleiro vivido pelo Brasil sob o Governo de ódio de Bolsonaro, o país tem, talvez como nenhum outro, um grande trunfo para voltar a criar futuro no presente: a enorme força de vida dos negros e dos indígenas que têm resistido contra todas as formas de morte por quatro séculos, caso dos descendentes dos africanos escravizados, por cinco séculos, caso dos indígenas. Grande parte das forças progressistas do planeta já compreenderam que a batalha pela Amazônia é a grande batalha deste momento ―e não apenas no sentido dos limites geográficos da floresta que regula o clima, mas no sentido de amazonizar o pensamento para a criação de uma sociedade humana capaz de viver sem destruir nem a casa onde vive nem as espécies com quem divide a casa.

A crise climática e a sexta extinção em massa de espécies, ambas comprovadamente provocadas por ação da minoria dominante dos humanos, tornaram este momento o mais desafiador de nossa trajetória no planeta. Trump e Bolsonaro são apenas sintomas. Com todos os limites evidentes de uma eleição numa democracia que nunca chegou para todos, assim como os limites da própria democracia como sistema, o voto deste 15 de novembro é muito mais importante do que parece à primeira vista. Países vizinhos como a Bolívia e o Chile já deram o exemplo e mostraram que é possível enfrentar o autoritarismo da direita e da extrema direita e avançar. O Chile decidiu pela primeira Constituição construída de forma igualitária entre homens e mulheres e, na Bolívia, as mulheres conquistaram 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%) nas eleições de outubro, com forte presença dos povos originários. O Brasil, que costuma ver a si mesmo como vanguarda política e criativa, já está atrás no mapa da América Latina na luta contra o autoritarismo de direita.

A polarização política tem sido vendida como um problema e uma distorção nos últimos anos. Não é assim que eu vejo. Não é possível e nem desejável superar a polarização num país estruturado sobre o racismo e com uma desigualdade abissal. O problema é a distorção da polarização, situada propositalmente nos polos falsos. O discurso contra a polarização, aliás, será cada vez mais usado pela centro-direita e pela direita que hoje se anunciam como não bolsonarista para se apresentar como uma alternativa de “pacificação do país” em 2022. Michel Temer já usou esse discurso antes e agora ele se insinua nas negociações entre o governador de São Paulo, João Doria Jr (PSDB), o ex-ministro de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da Globo Luciano Huck para a próxima eleição presidencial. A paz da centro direita e da direita aponta para um rearranjo cosmético, com algumas concessões aqui e ali, de modo que a desigualdade racial e social do Brasil se mantenha inalterada na essência. Prefiro ficar com a frase antológica da atriz e escritora negra Roberta Estrela D’Alva: “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

A eleição de 15 de novembro não é uma prévia para 2022. É muito mais do que isso. É a recolocação dos polos que foram deslocados. É uma sinalização de que a polarização já não se dá entre Bolsonaro e Lula, mas entre Bolsonaro e Marielle Franco. Esta sempre foi a polarização real dos Brasis, em alguns momentos representada pelo PT do passado, há muitos anos não mais. Quase mil dias depois da sua execução, o grito se fortalece e avança: Marielle, Presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Folha de S. Paulo: Centrão diz que é cedo para tratar de chapa Huck-Moro

Líderes parlamentares avaliam como ruim o 'timing' para encontro entre apresentador e ex-ministro

Danielle Brant e Renato Machado, da Folha de S. Paulo

construção de uma chapa à Presidência que reúna o apresentador Luciano Huck e o ex-ministro Sergio Moro é vista como embrionária por líderes de partidos de centro (entre eles siglas que formam o chamado centrão), para quem a dupla ainda precisaria de apoio no Congresso para se tornar viável.

Uma aliança entre os dois forjada para se contrapor ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2022 começou a tomar forma após um almoço entre Huck e o ex-juiz da Lava Jato em Curitiba no final de outubro, como revelado pela Folha.

Logo que o encontro se tornou público, no entanto, a articulação foi bombardeada por importantes nomes de partidos do centro e centro-direita, entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que exerce forte influência na sigla.

À colunista Mônica Bergamo, da Folha, Maia afirmou na segunda-feira (9) que Moro era de extrema direita e descartou qualquer apoio a uma chapa composta pelo ex-juiz.

No mesmo dia, o deputado e o apresentador almoçaram no Rio de Janeiro. Segundo o colunista Lauro Jardim, Huck teria dito que sua "turma" era a do presidente da Câmara e lembrado que já se reuniu com outros nomes além de Moro, como os governadores do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB).

Por enquanto, Maia é voz praticamente isolada nas críticas públicas a uma chapa formada por Huck e por Moro.

Líderes e presidentes de partidos de centro no Congresso adotam cautela e avaliam que ainda é cedo para fazer qualquer análise sobre uma eventual aliança de ambos para se contrapor à tentativa de reeleição de Bolsonaro.

"Acho muito cedo para dizer se terão ou não nosso apoio", afirma o líder do Solidariedade na Câmara, deputado Zé Silva (MG). "Prestígio e fama não asseguram competência para fazer gestão pública com eficiência e eficácia."

O Solidariedade é um dos partidos que compõem o centrão, junto de PP, PL e Republicanos.

O senador Esperidião Amin (PP-SC), líder do bloco formado por senadores de PP, Republicanos e MDB, afirmou que a chapa Moro-Huck ainda se mostra uma "especulação sem qualquer consequência" e não "um projeto".

"Nós estamos em uma pandemia. Temos um período eleitoral que vai até o dia 29. Então eu nem tenho coragem de discutir a sucessão no Senado quando me perguntam, quanto mais 2022", disse.

"Não estou criticando quem queira discutir. [Mas] O Huck almoçar com o Rodrigo Maia. O Rodrigo Maia deveria estar preocupado em organizar a comissão do Orçamento", afirmou.

Congressistas também afirmaram que o "timing" do encontro entre Huck e Moro demonstra uma falta de conhecimento da política nacional, que avaliam ser um ponto negativo para a aliança.

Um senador, que não quis se identificar, disse que os dois foram ingênuos se consideraram que o encontro não seria descoberto ou então, caso soubessem que seria divulgado pela mídia, escolheram o momento errado para se reunirem, semanas antes do primeiro turno das eleições municipais —com a atenção de políticos e do público voltada para esse tema.

Além disso, nos bastidores, a interpretação é que, se quiserem se tornar uma chapa viável, ambos precisam buscar apoios partidários e evitar incorrer no que é visto como um equívoco de Bolsonaro: vencer a eleição sem uma base consolidada e, agora, depender do apoio de partidos do centrão para aprovar projetos de interesse do governo no Congresso.

Bolsonaro se elegeu pelo PSL, mas rompeu com o partido em novembro de 2019, em uma decisão que rachou a legenda e diluiu a rede de congressistas que respaldam os textos do Executivo.

Diante da ameaça de processos de impeachment, precisou recorrer à política do "toma lá dá cá" e oferecer cargos ao centrão —formado por partidos como PP, PL e Republicanos— em troca de votos.

"Eu sempre acho que, por trás de uma candidatura, tem que ter uma base partidária forte de sustentação, para não acontecer o que aconteceu com o Bolsonaro, que chega ao poder, criticou a vida inteira a política velha, a política do centrão, e hoje é ícone do centrão", disse o senador Otto Alencar (PSD-BA), líder da legenda.

Para não correrem risco de ficar sem base no Congresso, uma aliança entre Moro e Huck precisaria do apoio não só do centrão, mas de partidos com grandes bancadas, como MDB e DEM —que somam 63 deputados.

Os congressistas avaliam que alianças apenas eleitorais pouco contribuiriam para criar uma situação de governabilidade.

Por isso consideram que a época de "dois outsiders" na mesma chapa tenha se encerrado com a eleição de Bolsonaro. Acham mais viável uma chapa com uma figura de alta popularidade fora da política compondo com algum político de partido estabelecido.

A viabilidade da chapa também esbarra em alguns outros entraves.

Um deles é a interpretação de que Huck e Moro não representariam uma candidatura de centro, como argumentou o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), presidenciável que terminou em terceiro lugar na eleição de 2018.

"No dia em que [o governador de São Paulo, João] Doria, Huck e Moro forem de centro, eu sou de ultraesquerda, o que eu nunca fui", disse na segunda-feira.

O senador Otto Alencar também tem posição parecida, afirmando que Moro é uma figura política de direita.

"Se o Moro foi ser ministro de Bolsonaro é porque ele concorda com o Bolsonaro. Se a demissão mudou o juízo dele, aí é outra história", provocou o senador.

"Na minha opinião, ele [Moro] não tem nada que ver com centro. Eu, por exemplo, defendo uma posição de centro-social, centro-esquerda, uma posição bem organizada de finanças e trabalho para conter o déficit fiscal e investir tudo o que puder na educação, na saúde e ação social", disse Alencar.

Em setores do Congresso, o discurso anticorrupção de Moro abre portas, enquanto há dúvidas sobre quais pautas seriam prioritárias para Huck —para alguns, o apresentador é pouco liberal e inclinado a uma agenda social.

Mas o ex-ministro também tem rejeição mais forte, principalmente por deputados que criticam a forma como conduziu a Lava Jato.

A aproximação de Huck e Moro seria, na leitura de congressistas, um balão de ensaio para testar a recepção aos dois nomes. Nesse contexto, alguns interpretam a decisão de Huck de almoçar com Maia logo após as críticas do deputado ao ex-ministro como uma tentativa de reorganizar o apoio.

Assim, em vez de compor chapa com o ex-juiz, Huck poderia se filiar ao DEM. Isso abriria também caminho para uma aliança com Doria, o que eliminaria um dos argumentos que poderiam ser usados contra o discurso de que se trata de alternativa ao governo: o de que Moro, afinal, fez parte do governo Bolsonaro até abril deste ano.


Luiz Carlos Azedo: O presidente dos maricas

As reações de Bolsonaro são típicas de quem tem uma grande perda, no caso, o colapso da sua aliança estratégica com Trump. É um processo que começa pela negação e evolui para a raiva

O presidente Jair Bolsonaro ainda não conseguiu processar a derrota de Donald Trump nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. Em parte, isso explica o fato de não ter manifestado, ainda, as congratulações devidas ao democrata Joe Biden, o novo presidente norte-americano, somando-se aos poucos chefes de Estado que ainda não o fizeram, entre os quais Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, que têm disputas estratégicas com os norte-americanos muito diferentes das nossas contradições com os EUA. No momento, a atitude de Bolsonaro situa o Brasil nesse quadrante político, mas isso não tem a menor aderência à realidade geopolítica da qual fazemos parte historicamente.

Para usar uma velha expressão popular, Bolsonaro está sem pai nem mãe na política internacional. Seu comportamento parece emocional, porém, politicamente, é muito semelhante ao de Vladimir Putin em relação ao então presidente norte-americano Barack Obama, e à primeira-ministra alemã, Angela Merkel. Ambos o decepcionaram por tratarem a Rússia como uma nação decadente e a ele, pessoalmente, como um líder de segunda classe. Putin deu as costas ao Ocidente e recorreu ao nacionalismo russo para se manter no poder, até hoje, com apoio dos militares, controle do Judiciário e da imprensa, e uma estreita aliança com a Igreja Ortodoxa Russa, para uma contrarreforma nos costumes.

Entretanto, na prática, uma conexão ideológica com Putin não faz o menor sentido em termos geopolíticos. As reações de Bolsonaro são típicas de quem está em dificuldades diante de uma grande perda, no caso, o colapso da sua aliança estratégica com Trump. É um processo que, psicologicamente, começa pela negação e evolui para a raiva. O presidente da República parece estar entre uma fase e outra. Num divã de psicanálise, suas declarações levariam a essa conclusão: “A minha vida aqui é uma desgraça, problema o tempo todo. Não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem essa imprensa me perturbar. Pegar uma piada que eu faço com Guaraná Jesus para tentar me esculhambar”.

Bolsonaro disse, ontem, que o Brasil é um “país de maricas”, por duas vezes: “Tudo agora é pandemia. Tem de acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem de deixar de ser um país de maricas, pô. Olha que prato cheio para a imprensa, para a urubuzada que está ali atrás. Temos de lutar. Peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa? A geração hoje em dia é toddynho, nutella, zap. É uma realidade”, disse.

Saliva e pólvora
Depois, ao se referir às articulações envolvendo o apresentador Luciano Huck, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e o governador de São Paulo, João Doria, revelou certo temor de que a oposição de centro se unifique em torno de um desses nomes: “Vem uma turminha falar ‘ah, queremos um centro: nem ódio para cá, nem ódio para lá’. Ódio é coisa de marica, pô. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora, chamar o cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil. Não terão outra oportunidade. O Macri, na Argentina, não conseguiu implementar as suas políticas. Começou a levar pancada dos seus seguidores, como eu levo, agora, também. Voltou a turma da Kirchner, Dilma, Maduro e Evo”.

Bolsonaro voltou a investir contra a urna eletrônica: “Não temos um sistema sólido de votação no Brasil, que é passível de fraudes, sim. Tudo pode mudar no futuro com fraude. Eu entendo que só me elegi presidente porque tive muitos votos, e não gastei nada, não: 2 milhões de reais, arrecadado por vaquinha”. Bolsonaro defende a volta do voto impresso, já rechaçada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e endossa as acusações de Donald Trump de que a vitória de Biden está sob suspeita de fraude, o que, a essa altura do campeonato, é um desastre diplomático.

Mas o fato que assustou todo mundo, inclusive ministros do governo e os líderes governistas no Congresso, foi a declaração de Bolsonaro comemorando a morte de um dos voluntários que estão testando a vacina chinesa CoronaVac, em pesquisa do Instituto Butantan, que a Anvisa, indevidamente, suspendeu. Além da absurda falta de empatia, Bolsonaro mentiu, ao afirmar que a vacina foi a causa mortis, quando se trata de um caso de suicídio. Se o presidente da República continuar nessa rota, teremos um formidável caso de suicídio político.

Sua declaração de que pode defender a Amazônia com pólvora, contra a suposta interferência de Biden, é simplesmente insana: “Assistimos, há pouco, um grande candidato a chefia de Estado dizer que, se eu não apagar o fogo da Amazônia, ele levanta barreiras comerciais contra o Brasil. E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas na diplomacia não dá, não é, Ernesto (Araújo)? Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora, senão não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas tem de saber que tem. Esse é o mundo. Ninguém tem o que nós temos.”

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/o-presidente-dos-maricas/

Eliane Cantanhêde: O impacto em 2022

Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar

Derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, fragilidade do presidente Jair Bolsonaro nas eleições municipais e total falta de estratégia para enfrentar a crise econômica e social. É nesse ambiente que viceja a articulação de uma chapa alternativa de centro para 2022, com participação de Luciano Huck, João Doria, Rodrigo Maia, Luiz Henrique Mandetta e agora Sérgio Moro, além de Fernando Henrique Cardoso. O cerco vai se fechando contra Bolsonaro.

Mais à centro-direita do que propriamente ao centro, a ambição é atrair a direita moderna, que votou em Bolsonaro, mas agora só pensa em se descolar dele, e a parcela da esquerda que cansou da hegemonia e dos erros do PT, mas tem como prioridade livrar o País de Bolsonaro. Os ventos favoráveis vêm de fora, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris, e de dentro, com as eleições municipais e as investigações sobre rachadinhas no Rio.

Como sempre, Bolsonaro vai na contramão do mundo democrático e se recusa a cumprimentar o vitorioso nos EUA, até mesmo a explicar por que não, o que só piora as perspectivas para a relação com o novo governo. Tão negacionista quanto Trump na pandemia, ele também nega os votos e a realidade, como ele. Bolsonaro acha que Trump venceu? Foi tudo fraude?

Assim, ele repete a campanha de 2018 só na forma, animando claques com muita antecedência pelo País afora, mas vai ter de inventar um novo conteúdo. O de dois anos atrás caducou: “nova política”, combate à corrupção, apoio à Lava Jato, reformas e carta-branca para o “Posto Ipiranga”, caneladas no mundo árabe e alinhamento automático com os EUA de Trump.

No governo, ele mergulhou no Centrão, derrubou Moro, botou a mão em PF, Coaf e Receita, abandonou as reformas tributária e administrativa, tirou gás de Paulo Guedes e agora fica sem Trump – e sem política externa. É bem mais complicado dar caneladas na China. Sem falar da pandemia…

Logo, Bolsonaro precisa, para se reeleger, muito mais do que fazer piadas de profundo mau gosto com Guaraná Jesus, assim como precisa mais do que Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio para escapar da derrota no domingo. Dificilmente a onda bolsonarista de 2018 se mantém agora e em 2022. O PSL foi um meteoro e passou.

O quadro que se desenha também é outro. Pela esquerda, o ex-presidente Lula, sem viço e sem discurso, já não é o mesmo. E as eleições municipais são um bom presságio do que vem pela frente, com o PT perdendo espaço para PSOL, PDT e PSB, pela ordem, em São Paulo, Rio e Recife e projetando que em 2022 é cada um por si, ou todos por um – que não será o PT.

Pela direita, Bolsonaro reina sozinho, agarrado ao mesmo Centrão que não deu para o gasto com o tucano Geraldo Alckmin em 2018. Mas ele, Bolsonaro, não é mais novidade, sofre o desgaste do poder e não tem o que mostrar. As “qualidades” eram falsos brilhantes, os defeitos se tornam mais e mais evidentes.

Há, portanto, um cenário que favorece o centro conhecido, confiável, que não dará cambalhotas, com surpresas e choques. Os articuladores de uma chapa alternativa veem insegurança por toda parte – na economia, na política, no meio ambiente, na política externa… – e chegaram a uma conclusão: a palavra de ordem de 2022 será estabilidade.

Reunir tanta gente, com tantos interesses e divergências ideológicas, porém, não será fácil. Rodrigo Maia se opõe à integração de Moro, que tenta incluir até o general Hamilton Mourão, rifado da chapa de Bolsonaro. De concreto, portanto, só é possível dizer que a derrota de Trump é um forte baque no bolsonarismo e terá impacto na eleição presidencial de 2022. Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar. Alguém acredita que seja capaz?


Rubens Barbosa: Notas sobre a eleição presidencial nos EUA

A sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador

A histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a maioria no Senado.

A polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.

Os EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do emprego e da renda.

Apesar da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da sociedade norte-americana.

Outro aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes muçulmanos.

As incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais, ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024? Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas isolacionistas?

Uma vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.

Os institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do que na eleição de 2016.

Ficam no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos, qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir ao trumpismo?

*Presidente do IRICE


Luiz Carlos Azedo: Biden antecipa 2022

“O encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro político. O apresentador de tevê se fingia de morto”

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob aquela com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Quem já não leu ou ouviu essa frase na crônica política? É citada com frequência, literalmente ou não, mas com o mesmo sentido. Está no segundo parágrafo do O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx (Martin Claret), escrito em Londres, sob encomenda, para um semanário que seria lançado em Nova York, em 1º de janeiro de 1852, cujo editor, Joseph Weydemeyer, morreu. O texto acabou publicado numa revista mensal intitulada Die Revolution e introduzido na Alemanha semiclandestinamente, antes de virar um livro-reportagem sobre o golpe de Estado de Napoleão III, em 1851. O título faz alusão ao golpe de 9 de novembro de 1799, esse, sim, dado por Napoleão Bonaparte. É um clássico da análise política, que cunhou os conceitos de “bonapartismo”, “transformismo político” e “cretinismo parlamentar”.

O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra dos grandes personagens da História que se repetem, citados por Marx naquele texto: depara-se com circunstâncias que não escolheu e são completamente diferentes daquelas nas quais se elegeu. É como se a roda da Fortuna tivesse girado a favor dos seus adversários, zerando a vantagem estratégica que a conjuntura de 2018 havia lhe proporcionado. Para piorar a situação, antecipou sua campanha à reeleição em todos os movimentos que fez desde quando assumiu a Presidência e, agora, com o gênio fora da garrafa, não tem como pô-lo de volta. Nem bem o primeiro turno das eleições municipais acabou, o quadro eleitoral de 2022 começa a ser desenhado à sua revelia, agora impulsionado por um fator externo cujo impacto no Brasil não pode ser subestimado: a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, inequívoca, embora o presidente Donald Trump se recuse a admiti-la e se movimente como quem deseja criar uma crise institucional para permanecer no poder.

Não é à toa que líderes mundiais como Vladimir Putin, da Rússia; Xi Jinping, na China; e López Obrador, no México, ainda não enviaram congratulações ao democrata e aguardem o resultado oficial da disputa, cuja divulgação Trump procura retardar ao máximo, com seus recursos judiciais. São líderes políticos que têm grandes contenciosos com os Estados Unidos e não desejam tornar a vitória de Biden ainda mais consagradora, fortalecendo-o nas negociações. Nenhum deles, porém, tem tanta identidade ideológica com Trump como Bolsonaro. Também não se manifestaram durante o pleito a favor do candidato republicano. O retardo em reconhecer a vitória de Biden, por lealdade a Trump, está aprofundando o mal-estar que já existia com o novo presidente dos Estados Unidos. Além das implicações da vitória dos democratas em relação à política externa e à questão ambiental no Brasil, já estão aparecendo suas consequências para a política nacional propriamente dita, inclusive do ponto de vista eleitoral.

O centro renasce
Por exemplo, o encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro das eleições presidenciais. O jovem comunicador se fingia de morto e sua candidatura somente existia no Twitter do ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania. A partir do momento em que se tornou público seu encontro com Moro e que ambos discutiram o cenário eleitoral de 2022, todos os possíveis candidatos e seus aliados se mobilizaram. É ingenuidade acreditar que o encontro em si alterou o cenário político — o prestígio de ambos estava em declínio nas pesquisas —, o que mudou a correlação de forças foram as novas circunstâncias criadas pela vitória de Biden, com uma narrativa que não tem sintonia com Bolsonaro, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem mesmo com Ciro Gomes (PDT).

O encontro de Huck e Moro sinalizou que o campo liberal-democrático pode buscar uma convergência e ocupar, novamente, o centro político, mas isso passa, ainda, por João Doria (PSDB), governador de São Paulo; Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul; Rodrigo Maia, presidente da Câmara; Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde; e Marina Silva (Rede), ex-ministra. Unificar o centro democrático não é uma tarefa fácil, nunca foi. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, no MDB, disputaram a liderança da oposição até a derrota das Diretas Já. Fernando Henrique Cardoso teve de dobrar Mário Covas, no PSDB, para consolidar sua aliança com o PFL, de Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel.

De volta aos programas de tevê com forte cunho social, Huck se movimenta de forma dissimulada, mas sua permanência na TV Globo tem data marcada, precisa decidir até meados do próximo ano se é candidato ou não. Moro enfrenta o sereno na planície, é um candidato encabulado, mas tem um partido pronto para abrigá-lo, com forte bancada no Senado, o Podemos. Doria tem as dificuldades de todo político paulista para sair do Palácio dos Bandeirantes, podendo se reeleger, e arriscar a Presidência. Mandetta é candidato declarado, enquanto houver pandemia, terá pista para correr, mas precisa seduzir a cúpula partidária, que sonha com a candidatura de Huck pela legenda. Eduardo Leite pode ser a nova cara do PSDB, se Doria não concorrer. Marina Silva sonha em renascer como Fênix, para viabilizar a Rede. Reunir todos numa candidatura é um projeto ambicioso. Além disso, não se deve subestimar a força da oposição de esquerda, que pode se reagrupar, a partir das conversas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula (PT) da Silva e Ciro Gomes (PDT), para chegar ao segundo turno.

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Ascânio Seleme: O fim de um pesadelo

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade. Esta talvez seja a única boa notícia de 2020 até aqui. Melhor do que isso, quem sabe, pode ser o desenvolvimento final de uma vacina eficiente contra o coronavírus. Mas ainda assim, e apesar de a vacina ter o poder de salvar milhares de vidas que seriam perdidas prematuramente, a saída de cena do megalomaníaco Trump produz um grau também muito elevado de relaxamento, porque era grande o risco dele permanecer infernizando o mundo por mais quatro anos.

A saída de Trump representaria um recomeço para o mundo. Desaparecera a espada que pairava sobre o globo presa apenas nas mãos de um líder errático, egocêntrico e mentiroso. Se o mundo respirar aliviado com a vitória de Biden, os Estados Unidos terão de procurar entender o recado das urnas. O mais importante deles talvez seja a mensagem de respeito absoluto à democracia, onde quem manda é o eleitor, e ponto final. Mesmo com as imperfeições do modelo eleitoral americano, quem votou e deve eleger um novo presidente foi o eleitor.

Outra vencedora desta eleição foi a verdade. O maior mentiroso que já ocupou o Salão Oval deve deixar o poder acumulando extraordinárias 20 mil mentiras contabilizadas pelo jornal “The Washington Post” até agosto. Embora metade do país tenha votado em Trump, e destes muitos compraram e seguirão comprando as lorotas do presidente derrotado e seus alucinados seguidores, o fato é que a maioria foi às urnas e votou também massivamente num partido que absolutamente não é socialista, como Trump insistia em proclamar.

Restabelecida a verdade, falta ainda aos EUA recuperarem sua dignidade. Trump transformou o país numa chacota global, como Bolsonaro fez com o Brasil. A diferença entre os dois é que um é periférico e outro comanda a maior potência econômica e militar do planeta. Joe Biden é muito bem talhado para esta tarefa. Não importa como seja a saída de Trump, confirmada sua derrota, se esperneando como um menino mal-educado ou de modo civilizado, quem deverá mandar a partir do dia 20 de janeiro de 2021 será um homem educado, tolerante e conciliador.

Mesmo que Trump bata o pé e faça birra, insistindo com suas diversas ações nos tribunais regionais e na Suprema Corte, o resultado final será mais uma derrota para ele. Sem qualquer evidência que sustente as acusações de fraudes eleitorais que fez, as ações são ridículas e serão desconsideradas pela Justiça. Nesta empreitada, Trump já perdeu o apoio da sua maior aliada na mídia, a Fox News, que condenou a iniciativa. Falta perder o suporte do seu partido.

Ao ser retirado do ar na noite de quinta-feira por emissoras de TV americanas, quando fazia um pronunciamento na sala de imprensa da Casa Branca, Trump mentia descaradamente sobre como as alegadas fraudes se processavam. Os veículos que o silenciaram disseram que não podiam permanecer trazendo ao público americano mentiras que desinformavam quando sua missão é exatamente o contrário, bem informar a população.

Se a onda azul esperada não aconteceu, é verdade também que a vitória desenhada de Biden não será por pequena margem como se chegou a imaginar. O número de delegados no Colégio Eleitoral de Biden pode ser exatamente igual àquele que levou Trump para a Casa Branca em 2016. As filas de votação em plena pandemia, onde pessoas passaram até dez horas para votar, provam que os americanos entenderam o que estava em jogo. Por isso também esta eleição teve recorde de eleitores e o vencedor passa a ser o presidente com o maior número de votos da História.

No Brasil temos um problema interessante a ser considerado a partir de agora. Confirmada a vitória de Biden, o presidente Jair Bolsonaro terá de se adaptar aos novos tempo. Vai ser difícil. Por ora, o governo do Brasil pode se tornar em adversário das duas maiores potências globais, a China e agora os EUA. Para se reposicionar globalmente, terá de dar uma guinada de 180° na política externa e demitir o aloprado chanceler Ernesto Araújo. São novos tempos, absolutamente diferentes do que vivemos até aqui. Quem não se recolocar rapidamente, vai comer poeira.

Escapamos, Lenin

“A democracia alimenta os germes da sua própria destruição”. A frase é de Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, líder máximo da revolução soviética de 1917. “A democracia dá a cada um o direito de ser o seu próprio opressor”. Esta é do poeta, escritor, diplomata e abolicionista do século XIX James Russell Lowell. O que ambos queriam dizer é que é bem possível transformar uma democracia numa outra coisa qualquer através do voto. Basta votar errado. Os Estados Unidos tiveram tempo e clareza e estão prestes a impedir que o erro cometido em 2016 seja consolidado este ano.

Não sonhe

Quem acha que o presidente Jair Bolsonaro vai se reagrupar globalmente se Donald Trump for derrotado é melhor colocar as barbas de molho. Se internamente houve um reagrupamento, ele se deu em razão da habilidade do centrão e da fraqueza política do capitão. No plano externo, o Brasil vai precisar retomar o caminho da lucidez e do bom senso, no caso de Biden vencer. Além de demitir o chanceler Ernesto Araújo, o Brasil terá também de rever sua política ambiental, se quiser construir um entendimento com a nova Casa Branca. Neste caso, Ricardo Salles também terá de pirulitar.

Era da lorota

Eles se parecem até nisso. O filho de Donald Trump é tão primário quanto os três zeros de Bolsonaro. Não é necessário citar as besteiras que Eric Trump escreveu no Twitter, que as apagou por atentarem contra a democracia. No Brasil, você viu, o zerinho Eduardo Bolsonaro atacou a eleição americana e acusou Biden de fraudá-la. Claro que sem provas. O que os iguala é a impressão que têm de que as pessoas vão engolir todas as mentiras e invenções que colocam nas suas redes sociais. Pelo que se viu nos EUA, a era da lorota parece estar chegando ao fim.

Biden e as artes

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a arte não precisa necessariamente do dinheiro de empresas privadas e muito menos de dinheiro público para sobreviver. Os negócios da cultura são muito bem consolidados, e o público americano é mais maduro que o brasileiro. Mas ainda assim, é reconfortante saber que o provável presidente eleito Joe Biden é um entusiasta e um estimulador da arte. Segundo reportagem de Graham Bowley, do jornal “The New York Times”, Biden sempre viu a arte como “um instrumento importante para a economia, um gatilho para a ação política e um agente de construção comunitária”. De acordo com depoimento ao “NYT” feito por Robert L. Lynch, presidente do movimento “Americans for the Arts”, a atitude de Biden em relação à arte “é menor do ponto de vista do consumidor de cultura e mais de acordo com os valores inspiracionais e de transformação” que ela pode produzir na sociedade.

O que vale mais

“Em campanha eleitoral não importa apenas o que você apoia, mas também o que você é contra”. A frase é do personagem Eli Gold, um estrategista político da série “The Good Wife”. Ele explica a Alicia Florrick, a estrela da série e candidata a um cargo eletivo, que não basta apenas você apontar os bons caminhos que pretende percorrer se eleito, mas também os caminhos que vai necessariamente evitar na jornada. Biden deve ganhar porque disse claramente aos eleitores americanos que não seguiria pela trilha do moribundo Trump.

Bom para o Brasil

A eleição dos Estados Unidos prova a força do eleitor. Mesmo em meio a uma pandemia letal, milhões de eleitores bateram recorde e foram às urnas para julgar o governo de Donald Trump. O mesmo vigor que rejeitou Hillary Clinton há quatro anos, pode sabotar agora o homem que a derrotou. O exemplo americano precisa ser observado mundo afora, e especialmente aqui, porque todos sabem que o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.

Gota a gota

Você pode dizer tudo sobre a eleição presidencial americana, menos que ela não foi emocionante.