Eleições
Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts
Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018.
Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Para avaliar bem isso, deve-se considerar o insucesso eleitoral que tiveram, dessa vez, os discursos de polarização ideológica e o da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e o pouco peso do da luta contra a corrupção. Considerar também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.
Mas não se pode excluir da análise um importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020, que é o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de “centrão” e aquela que, há tempos, tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição aos governos do PT.
Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016, restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?
Analiticamente é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui uma chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.
Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu, apesar de Doria, e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.
O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.
Dessa bifurcação surge uma segunda questão: saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Eles sinalizam a chance de uma frente mais ampla ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, os que trabalham com essa meta ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo - Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.
Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.
*Paulo Fábio Dantas Neto, Cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa)
Pedro S. Malan: Quadriênios: Trump e Bolsonaro
É duro imaginar que possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil exibe ao mundo
Na campanha eleitoral de 2014, em discurso feito para a militância do PT, Lula afirmou que já se via “com Dilma, em 2022, nas comemorações dos 200 anos da nossa independência, defendendo tudo o que haviam conseguido conquistar nos últimos 20 anos”. Referi-me a essa fala de Lula na abertura do artigo publicado neste espaço há exatos seis anos, Quadriênios: velhos e novos. Apontei então que é perfeitamente legítimo qualquer pessoa expressar de público suas “memórias do futuro”, a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos.
Antes de chegar às eleições de 2022 haveria, no entanto, que vencer em 2018. Era óbvio que já não seria fácil explicar, então, as conquistas dos “últimos 16 anos” (2002-2018) como se fossem um período singular, um todo coerente, como havia feito a marquetagem política em 2014 a propósito dos “últimos 12 anos”. Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1, diferente de Lula 2; e (afirmei) Dilma 2 seria muito diferente de Dilma 1, “e o mais difícil dos quatro quadriênios”. Como escrevi à época, “quem viver verá, ou já está vendo”.
Quem viveu viu até mesmo as consequências – notadamente a vitória de Bolsonaro em 2018 e o início de outro problemático quadriênio. Volto ao tema de “quadriênios”, agora a propósito de Trump e Bolsonaro. Este último estará agora privado de sua fonte inspiradora e modelo de comportamento. O quadriênio de Trump terminou de facto na primeira semana de novembro, com as claras evidências da vitória de Biden.
Contudo parte expressiva dos 74 milhões de americanos que votaram em Trump acredita ter havido fraude eleitoral; que Trump fez bem em se recusar a reconhecer o resultado das urnas. “Frankly, we won” foi o tuíte com que se declarou vencedor na madrugada de 4 de novembro, quando ainda faltavam milhões de votos a contar, em vários Estados-chave. Advogados a seu serviço ajuizaram dezenas de ações nesses Estados, enquanto o candidato anunciava sua ida à Corte Suprema, com a qual disse “estar contando” para lhe dar um segundo quadriênio.
Foi e perdeu. No dia seguinte (9/12) chegava à Corte Suprema outra ação, ajuizada pelo procurador-geral do Texas contra vários Estados-chave que haviam certificado a vitória de Biden. Sua tese é de que a alteração, feita por esses Estados neste ano de 2020 de forma supostamente ilegal, teria diluído os votos do Texas no colégio eleitoral. É, talvez, a última tentativa judicial. Até o momento em que este texto está sendo escrito, Trump recusa-se a admitir a vitória de Biden. E os presidentes de Rússia, México e Brasil não cumprimentaram o presidente eleito dos EUA.
O fato é que em 20 de janeiro de 2021 termina o inacreditável quadriênio de Donald Trump. Quatro anos de “fatos alternativos”, de relação conflituosa com a verdade. Mas foram 74 milhões de votos, 10 milhões a mais que em 2016. “74 milhões” é o título do imperdível artigo de Moisés Naim publicado neste jornal (23/11). São 74 milhões, escreve Naim, que “não se importaram em votar em um presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que (…) não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou não se importam com isto, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.
Sobre o quadriênio Bolsonaro. Meu mais recente artigo neste espaço (Faltam dois anos, 8/11) perguntava: dois anos é muito? É pouco? Bolsonaro está a aprender a diferença entre disputar uma eleição e governar um país da complexidade do Brasil. Como notaram vários analistas, nosso presidente atuou sem partido e sem base no Congresso até abril/maio de 2020. Deu-se conta, então, de que a sobrevivência política e sua reeleição dependiam de aceitar o que sempre negara, como pedra de toque de sua campanha eleitoral: a necessidade de abrir espaços para indicações de partidos de sua futura “base” na máquina pública.
Marcus André Mello (O futuro de Bolsonaro, FSP, 7/12) chamou a atenção para o paradoxo: “Um chefe do Estado populista irá se deparar com um sistema institucional que imporá limites à sua discricionariedade. E o apoio do bloco só existirá se Bolsonaro for popular”. Política, afinal, é expectativa de poder, de preservação de espaços ocupados e de expectativas de espaços por ocupar. Como veremos nos próximos meses.
Naquele mesmo artigo chamei a atenção para as importantes lições das transições de 2002/2003 (FHC/Lula) e de 2016 (Dilma/Temer). Em excelente artigo publicado desde então (Um Acordo de Transição, Globo/Estado, 29/11), Gustavo Franco nota que “o Brasil possui vasta experiência em transições turbulentas (…) mas não dentro de um mesmo governo”. Gustavo lista razões a explicar a dificuldade para fazê-lo “no atual estado de polarização, quando o governo (…) não consegue fazer acordo nem com ele mesmo”.
E dizer que metade de seu quadriênio já se foi… Em áreas cruciais como saúde, educação, meio ambiente e relações exteriores, é duro imaginar que na segunda metade possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil hoje exibe ao mundo. E não é por falta de gente competente nessas áreas em nosso país.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
Cristovam Buarque: Letras e Cores
Passadas as eleições municipais, as lideranças nacionais se dedicam a imaginar alianças para 2022. Tentam composições com base em nomes de candidatos e siglas. Não se fala qual o propósito de cada aliança, salvo vencer o nome e a sigla do adversário. Uma disputa por letras, não por cores.
Deve ser assim nos países onde tudo funciona bem e o presidente deve apenas gerenciar o governo. Mas diante da crise que o Brasil atravessa, as siglas deveriam ser menos importantes do que as cores das propostas para o futuro.
As alianças deveriam construir as bases políticas para enfrentar:
- a violência generalizada que domina nossas cidades;
- quais os instrumentos para manter a estabilidade monetária;
- qual estratégia para retomar o crescimento econômico com sustentabilidade; para eliminar a tragédia da pobreza, e desfazer a brutal desigualdade de renda entre pessoas e regiões;
- como dar eficiência na gestão, eliminar corrupção e garantir ética na definição das prioridades do Estado;
- como elevar a qualidade e garantir equidade na educação de base, independente da renda e do endereço do aluno e como erradicar o analfabetismo de adultos;
- o que fazer para transformar nossas “monstrópoles” em centros urbanos eficientes e conviviais;
- o que fazer para assegurar acesso de milhões de brasileiros a um endereço limpo, com água potável, coleta de lixo e esgoto;
- quais medidas poderão dar futuro à juventude;
- como recuperar o prestígio perdido pelo Brasil no cenário internacional, por causa das decisões do governo, nos últimos dois anos;
- que ações para assegurar emprego, sem perder eficiência, nem competitividade, neste tempo de modernização;
- quais e como fazer as reformas do Estado: fiscal, trabalhista e política, para sintonizar o Brasil com os rumos do progresso mundial;
- como eliminar os privilégios que caracterizam a sociedade brasileira e tiram legitimidade do poder público.
As letras de nomes e de siglas ficam sem sentido se não tiverem cores definidas pelos propósitos das propostas de cada candidatura para o futuro. Mas não se vê debate sobre cores, apenas letras que amarrarão o Brasil no seu passado, qualquer que seja a sigla e o nome vitorioso.
*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
El País: Suprema Corte enterra a tentativa de Trump de reverter as eleições
O tribunal rejeita ação iniciada no Texas, com o apoio do presidente, para anular os votos de quatro estados, o que deixa quase morta a cruzada republicana contra sua derrota
Amanda Mars, El País
A Suprema Corte dos EUA rejeitou nesta sexta-feira uma ação movida pelo procurador-geral do Texas para anular os resultados eleitorais de quatro estados-chave na derrota do ainda presidente Donald Trump―Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin― e deixou praticamente morta a cruzada legal em andamento para reverter as eleições, acenando com o espectro da fraude. A resolução se soma à da terça-feira passada, que também rejeitou uma tentativa republicana da Pensilvânia na mesma direção, e deixa claro que a mais alta autoridade judicial do país, com maioria conservadora, não participará da campanha incomum do presidente.
Sim, participaram disso vários altos funcionários e membros do Partido Republicano, companheiros de viagem em mais de cinquenta iniciativas judiciais, todas e cada uma delas malsucedidas. Este último processo no Texas foi um dos mais desconcertantes, apresentado pelo procurador-geral Ken Paxton diretamente à Suprema Corte para anular o escrutínio de quatro outros territórios. “O Texas não demonstrou interesse judicial em sua jurisdição na forma como outro estado conduziu suas eleições. O resto das moções pendentes é rejeitado como discutíveis “, disse o tribunal superior em sua decisão.
Além do apoio do próprio presidente, a tentativa do Texas teve o suporte de uma centena de republicanos no Congresso e de mais de uma dúzia de advogados de estados da mesma cor política. Paxton alegou perante o tribunal superior que Joe Biden havia vencido graças a “votos ilegais” naqueles territórios, uma fraude causada pelo relaxamento das regras de votação antecipada e por correio (que um grande número de Estados promoveram pela pandemia). Assim, solicitou que sejam as câmaras legislativas desses Estados a conceder o voto final.
Trump lançou alegações infundadas de fraude ao longo da campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio era um terreno fértil para irregularidades. Assim que a derrota foi percebida, já na noite das eleições, ele disse que o levaria à justiça. Com os resultados finais, Biden é o claro vencedor das eleições, com seis milhões de votos à frente de Trump, e depois de ter recuperado para os democratas aqueles territórios que o republicano reivindicou para si em vários processos: Wisconsin, Pensilvânia, Michigan , Arizona e Geórgia.
No entanto, nenhum juiz, independentemente de sua cor política, nem seu próprio Departamento de Justiça encontraram vestígios de fraude nas urnas com entidades que alterariam esse resultado. Ainda há algumas questões legais pendentes, mas a Suprema Corte deixou a batalha de Trump mortalmente ferida. Nesta segunda-feira, o Colégio Eleitoral dará os votos finais ao democrata. Os norte-americanos elegem seu presidente de forma indireta: seus votos populares servem para eleger delegados que são os que, na próxima segunda-feira, 14 de dezembro, confirmarão a vitória de Biden. Ele obteve 306 dos 538 votos eleitorais em jogo (são necessários 270 para vencer), em comparação com 232 para Trump. Em 6 de janeiro, o Congresso deve contar esses votos e, no dia 20, Biden toma posse.
Mas Trump não planeja admitir a derrota. Seus seguidores mais leais também não. Neste sábado, eles convocaram novamente uma manifestação em Washington para protestar contra esta suposta fraude e pedir ao seu líder que não ceda.
Folha de S. Paulo: Trump implodiu direita intelectual e deixa legado populista
Mesmo derrotado, presidente ampliou votação entre negros e latinos e pode moldar futuro do Partido Republicano
Carlos Gustavo Poggio, Folha de S. Paulo
[RESUMO] Mesmo derrotado, presidente se firma como a maior referência simbólica do Partido Republicano desde Reagan. Rejeitado pela elite partidária, ele implodiu a vertente conservadora mais intelectual, impôs uma agenda nacional populista no lugar da liberal internacionalista e ampliou a votação de sua sigla na classe média pouco instruída e entre negros e latinos, o que pode levar a uma completa reformulação trumpista do partido.
As eleições de 2020 nos Estados Unidos confirmaram o diagnóstico que já havia ficado claro em 2016: os republicanos enfrentam um desafio demográfico, ao passo que os democratas estão diante de um dilema geográfico.
A dependência dos republicanos em relação ao eleitorado branco e mais velho em um país que se torna cada vez mais diverso tem sido um problema que há anos assombra as lideranças do partido. Por outro lado, o apoio aos democratas se concentra crescentemente nos grandes centros urbanos.
Como eles perceberam dolorosamente em 2016, em um país que elege presidentes via Colégio Eleitoral e não por voto popular, não basta ser mais votado: os votos precisam estar distribuídos nos lugares certos.
O futuro da política norte-americana vai depender de como ambos os partidos vão lidar com esses impasses. O resultado das urnas neste ano pode nos dar algumas pistas.[ x ]
O caminho para o Partido Democrata, como a vitória de Joe Biden deixou claro, é contar com um alto índice de comparecimento às urnas para aproveitar a vantagem demográfica —e torcer para que a margem de vitória nos grandes centros urbanos de estados-chave seja grande o suficiente para compensar a vantagem republicana no interior.
Pode parecer uma fórmula relativamente simples, mas depende de algum fator que mobilize o eleitorado. Em 2008, esse fator foi Obama. Em 2020, Trump. A má notícia para os democratas é que uma candidatura que gere o tipo de entusiasmo verificado em 2008 e 2020, seja por estímulos positivos ou negativos, não ocorre com frequência.
O desafio dos republicanos, porém, é bem mais complexo. Antes de mais nada, terão de lidar com uma profunda crise de identidade. Até 2016, a referência central do partido era o ex-presidente Ronald Reagan —reconheça-se, contudo, que mesmo antes da eleição de Trump esse apelo dava sinais de enfraquecimento.
Em 2010, Lindsey Graham, senador republicano pela Carolina do Sul, chegou a dizer que mesmo Reagan, fosse vivo, teria dificuldades em se eleger pelo partido naquela ocasião. Todavia, foi com a vitória de Trump que, pela primeira vez em quase 40 anos, surgiu uma figura para disputar a influência simbólica no partido.
Reagan subiu ao poder em 1980 depois de anos de articulação intelectual do conservadorismo norte-americano, a partir da fundação da revista National Review em 1955, por William Buckley Jr. Por outro lado, Trump é produto da implosão dessa vertente conservadora. A questão agora é o que os republicanos vão fazer com os cacos.
A captura trumpista do Partido Republicano ocorreu de baixo para cima e não no nível do establishment —que, a propósito, ainda tem dificuldades em lidar com a novidade. Um dos poucos apoios da elite partidária a Trump veio de Bob Dole, que disputou a eleição presidencial de 1996.
Mitt Romney, candidato em 2012, tem sido um dos maiores críticos de Trump entre os republicanos. John McCain, que morreu em 2018, também rejeitou o atual presidente no pleito de 2016, e a sua esposa fez campanha para Biden neste ano. George W. Bush tem adotado uma postura mais discreta, mas sabe-se que não votou em Trump nem em 2016 nem em 2020. O filho de Reagan chegou a declarar em entrevista recente que o pai ficaria horrorizado com o governo que se encerra agora.
Parte do apelo de Trump, contudo, reside justamente na rejeição a esse establishment. Ele soube identificar uma parcela significativa do eleitorado americano que não se sentia representada, por exemplo, pela globalização e seus acordos de liberalização comercial, por uma postura aberta com relação à imigração e por uma política externa assertiva de promoção dos valores americanos ao redor do mundo, mesmo que pela via militar.
Como alternativa a essa postura liberal internacionalista, Trump requentou um nacional-populismo que até então se encontrava às margens no Partido Republicano. Em 1992 e 1996, o representante dessa vertente foi Pat Buchanan, que concorreu às primárias republicanas nas duas ocasiões defendendo uma pauta de caráter nacionalista, isolacionista, protecionista, de combate ao multiculturalismo e fortemente anti-imigração.
Tudo isso estava na contramão dos valores defendidos pela elite republicana nos anos 1990. A rejeição à retórica de Buchanan ficou clara quando ele deixou a legenda e concorreu às eleições de 2000 pelo Partido Reformista. Com o slogan “America first” (“Estados Unidos em primeiro lugar”), obteve menos de 0,5% dos votos e hoje poucos se lembram de sua campanha.
Ajudado pelas novas ferramentas de mídias sociais, que não estavam disponíveis à época de Buchanan, e pelas sequelas da crise econômica de 2008, Trump reuniu uma nova coalizão eleitoral que se mostrou vencedora em 2016 e competitiva em 2020, mesmo com os problemas demográficos enfrentados pelo Partido Republicano.
Da base que sustentava o partido desde Reagan —formada principalmente por defensores do livre-comércio, neoconservadores que advogam uma política externa intervencionista e os conservadores sociais representados pelo eleitorado evangélico—, Trump preservou apenas este último grupo. Os dois primeiros permanecem como os principais críticos internos do trumpismo, mas a sua influência parece ter diminuído consideravelmente.
Para o lugar deles, Trump cooptou uma parcela significativa da classe média e de brancos sem ensino universitário que costumavam votar nos democratas, enfraquecendo a chamada muralha azul em estados como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
Assim, quando Trump ressuscitou a agenda de Buchanan em 2016, encontrou uma audiência mais receptiva nos eleitores que se afastaram do Partido Democrata tanto por razões econômicas quanto culturais. Esse eleitorado passou a não enxergar diferenças significativas nas pautas econômicas dos dois partidos, dado que ambos levantavam a bandeira do livre-comércio, por exemplo.
Tal diferenciação deslocou-se então para o campo cultural, a partir da rejeição à agenda progressista na esfera dos valores, como a defesa de pautas identitárias e do aborto, e da percepção de que os democratas falavam apenas às elites costeiras, ignorando o interior do país. Nesse contexto, a adoção de uma linguagem politicamente incorreta por Trump ajudou a capturar esse eleitorado.
Não foi à toa que, na convenção republicana de 2016 em que foi sacramentado candidato, Trump voltou-se para o que chamou de os esquecidos pela elite política e bradou: “Eu sou a sua voz”.
O Partido Republicano deve responder agora se a coalizão reunida por Trump será uma divisão interna de relevo ou a nova base de toda a sigla. No médio prazo, parece descartada a hipótese de que a derrota neste ano signifique um retorno completo ao período anterior a 2016. O partido foi profundamente modificado pelo trumpismo.
A questão é de grau, ou seja, se o Partido Republicano irá se reformular completamente à imagem e semelhança de Trump ou se vai simplesmente absorver algumas mudanças, ao mesmo tempo que tenta preservar características da era pré-Trump.
Parte da resposta a essa pergunta passa por compreender quais lições os republicanos vão tirar de 2020, em especial no que se refere aos desafios demográficos —e elas não são óbvias.
Nas últimas oito eleições, da de 1992 à de 2020, os republicanos tiveram três vitórias (duas de Bush, em 2000 e 2004, e uma de Trump, em 2016), mas apenas a segunda de Bush também ocorreu no voto popular.
Desde 1964, nenhum candidato republicano em disputas presidenciais atingiu mais que 15% do voto negro —desde 1980, esse número tem flutuado entre 4% e 12%. Em 1992, um artigo na revista Political Science Quarterly indicava que os republicanos deveriam ter como meta capturar 20% do voto negro para permanecerem competitivos no futuro.
Em 2016, o partido obteve 8% do voto de negros com Trump. A estimativa para 2020 é de 12%, um crescimento de 50%, e apenas a terceira vez em 40 anos que os republicanos chegam a esse índice.
Se considerarmos somente homens negros, Trump chegou a 19%, bem próximo da desejada meta. Mesmo entre mulheres negras, Trump foi de 4% em 2016 para 9% em 2020, um incremento de mais de 100% nesse grupo.
Além disso, para serem eleitoralmente viáveis, os republicanos precisam se esforçar para atrair parcelas expressivas do eleitorado latino, o grupo minoritário que mais cresce nos Estados Unidos e que hoje representa parcela idêntica à do eleitorado negro: 13%.
Aqui também o trumpismo demonstrou ter algum apelo, conseguindo expandir a votação nesse grupo, de 28% em 2016 para 32% em 2020, o melhor índice para o partido em quase duas décadas, com ganhos expressivos em estados como Texas, Flórida e Nova York.
Assim como a expressiva votação obtida por Biden é em grande parte produto da rejeição a Trump, o desempenho de Trump entre alguns grupos demográficos pode ser mais uma rejeição da agenda democrata que um apoio explícito ao trumpismo. Afinal de contas, muitos eleitores negros e latinos, em especial os mais velhos, definem-se como conservadores.
A questão crucial sobre esses dados é se representam uma tendência ou se são pontos fora da curva. Ainda é cedo para responder. Uma hipótese plausível é que o aumento do apoio a Trump em determinados segmentos demográficos deve-se a uma percepção de melhora econômica, terreno em que a avaliação do presidente sempre foi relativamente boa.
Uma pesquisa do instituto Gallup publicada em setembro indicou que 56% dos americanos diziam que estavam em uma situação melhor que quatro anos atrás, um recorde desde que essa pergunta foi feita pela primeira vez, em 1984.
De qualquer forma, dado que muitos analistas estimavam que a retórica de Trump tenderia a afastar grupos minoritários, esses números apresentam um enigma a ser desvendado por estrategistas de ambos os partidos.
Se os republicanos concluírem que um efeito colateral não antecipado do trumpismo foi uma melhora no desempenho entre negros e latinos, isso pode ter impactos significativos para os rumos que o partido deve tomar a partir de 2021.
*Doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010)
Marcus Pestana: As necessárias, mas difíceis fusões partidárias
As eleições municipais cumpriram seu papel de oxigenação do sistema político. Na democracia é assim, cada eleição é mais uma etapa de aprendizagem e amadurecimento. A sociedade brasileira deu mostras que está cansada da radicalização excessiva e com o estresse permanente daí derivado.
Problema ainda longe de ser resolvido é a pulverização partidária e suas repercussões negativas no ambiente de governabilidade. Avançamos é verdade. Em 2016, apenas metade dos municípios brasileiros (2.787) ficaram com até seis partidos nas câmaras de vereadores. Em 2020, este número cresceu para 4.506, ou seja, em 81,62% das cidades teremos uma representação política mais racional e menos pulverizada. Isto facilitará o trabalho dos prefeitos e a formação de maiorias e minoritárias estáveis e nítidas. Parece que isto tem correlação direta com o fim de coligações proporcionais.
No plano nacional, o fenômeno poderá se repetir. E haverá ainda a incidência da cláusula de desempenho de 2% dos votos nacionais. É possível que haja reversão da situação presente aonde 24 partidos políticos têm representação no Congresso Nacional, tornando tarefa impossível a formação de uma base sólida de apoio ao governo e, portanto, a implantação do plano de governo eleito. O fim das coligações parece ter atingido seu objetivo racionalizador, mas provocou uma pulverização inédita de candidaturas majoritárias. Talvez uma mudança simples: o candidato majoritário apoiado por coligação ganharia um número diferente de seu partido para não privilegiar a sua chapa de deputados, desestimulando o lançamento de candidaturas não competitivas, apenas com o papel partidário de puxador de votos proporcionais.
A cláusula de desempenho também poderia ser aprimorada melhorando sua eficácia. O ideal é que fosse efetivamente uma cláusula de barreira como na Alemanha ou no texto aprovado no Brasil pelo Congresso Nacional em 1995 para entrar em vigor em 2006, mas derrubado como inconstitucional pelo STF em final de 2006. A atual cláusula de desempenho apenas pune o partido que não alcança-la com a perda do acesso ao Fundo Partidário e do direito ao Horário Partidário da TV, que foi extinto, diminuindo a eficácia da medida.
Diante de tudo isto, seria necessário e desejável um processo de fusões partidárias preparando o terreno para 2022. O atual quadro partidário é, via de regra, inorgânico e sem nitidez política e ideológica. Seria possível imaginar uma fusão entre partidos como PP, Republicanos, PL, PTB que hoje formam o chamado “Centrão” para fundar um partido de índole conservadora e de sustentação a Bolsonaro. Por outro lado, o polo democrático, liberal e progressista formado por DEM, PSDB, MDB, Cidadania, PSD poderia construir um forte partido no centro do sistema político. Também à esquerda poderiam se reaglutinar PSB, PDT, Rede e PV, o que poderia ocorrer também com PT, PCdoB e PSOL, embora as diferenças sejam muitas.
O que impede o Brasil de ter um quadro partidário semelhante aos EUA e à Europa? Primeiro, os fundos financeiros (Partidário e Eleitoral) que são manipulados pelas cúpulas dos partidos menos orgânicos para se perpetuar em seu comando. Segundo, divergências locais e regionais acumuladas ao longo do tempo. Mas não há problema que não tenha solução quando a realidade exige a mudança.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Dora Kramer: Cai uma estrela
O PT reluta em aceitar que não é mais o dono da bola na esquerda
Das cinco fases do luto, a primeira é a negação, a segunda é a raiva e, reza a psicologia, antes da aceitação há que passar pelos estágios da negociação e da depressão.
A julgar pela reação de petistas ao desempenho ruim do partido nas eleições municipais, ainda prevalece entre eles a negação. Embora existam manifestações de raiva, tentativas de negociar com a situação adversa e os deprimidos (se houver) não mostrem a sua face, no conjunto o PT dá sinais de quanto é difícil aceitar que o partido perdeu relevância e já não é o dono da bola no campo de esquerda.
Ninguém, partido, político ou indivíduo, gosta de admitir derrotas, não obstante seja esse o ponto de partida para o início de qualquer recuperação. No terreno das autocríticas francas é que são semeadas as soluções. O PT vem se recusando a enfrentar seus fantasmas desde que se sentou no banco dos réus dos escândalos de corrupção, perdeu o comando do poder central e entrou em estado de desprestígio junto à sociedade.
De lá para cá recebeu inúmeros recados da população, sendo o mais recente — não necessariamente o último, se persistir no vacilo — das urnas municipais deste ano: ficou sem prefeitos nas capitais e reduzido a estar à frente de cidades correspondentes a 3% do eleitorado nacional. Essa proporção já foi de 19%, mais do que os cerca de 16% obtidos agora pelo PSDB, primeiro colocado nesse quesito entre os partidos.
“Nada, a não ser o autoengano, impede o partido de voltar a ter a importância que já teve na política”
E como reagiu o PT? Seu líder maior, Luiz Inácio da Silva, não deu uma palavra ao público. Relativamente recolhido esteve durante a campanha, completamente recolhido ficou ao menos até quatro dias após a divulgação dos resultados, quando escrevo. Lula não avalizou as manifestações dos defensores da autocrítica (os mesmos, habitualmente ignorados), tampouco disse qual a avaliação dele ou indicou o rumo a tomar.
Não houve tempo ainda para uma análise mais precisa? O argumento valeria caso a trajetória descendente não tivesse sido sinalizada há uns quinze anos e se aprofundado há pelo menos quatro, a partir do impeachment de Dilma Rousseff. A ida ao segundo turno em 2018 deve-se a uma situação anômala, a um pico de polarização que parece ter cansado o eleitor. A corda não cedeu, mas afrouxou-se. Voltará a ficar esticada quando o próximo processo eleitoral pegar velocidade, mas o PT não será mais o centro de gravidade.
Não ajudam a insistência no culto à personalidade de Lula, o discurso persecutório como forma de fugir às próprias responsabilidades e o aguardo de que o circo pegue fogo na esperança de, assim, voltar a brilhar num ambiente de conflito permanente sem precisar prestar contas internas e externas das mazelas que produziu para si.
Nada, a não ser a reverência ao autoengano, impede que o PT volte a ter o protagonismo de antes. Afinal, é como se diz: na política o fundo do poço tem mola. Mas ela só funciona mediante a rendição seguida de impulso e esforço.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716
Clara Becker e Gabriela de Almeida: Desinformação sobre processo eleitoral mira base da democracia
Neste ano, grande parte das notícias falsas não foi contra candidatos ou partidos, mas contra a eleição em si. A estratégia, especialmente perigosa, pode mostrar seus danos apenas no longo prazo
Em comparação com 2018, as eleições deste ano apresentaram uma redução na circulação de fake news. Essa foi a avaliação feita pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que encontrou respaldo na diminuição do volume de desmentidos publicados pelas agências de checagem parceiras do Programa de Enfrentamento a Desinformação nas Eleições 2020, da corte. Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Cristina Tardáguila, diretora da International Fact-Checking Network, apontou que a aliança de checadores detectou neste ano apenas um terço do total de notícias falsas visto na última eleição presidencial, quando comparados os dois finais de semana que antecederam o primeiro turno dos pleitos.
Mas talvez ainda seja cedo para comemorar. Primeiro porque eleições municipais tendem a polarizar menos o país do que as nacionais. Segundo porque grande parte das notícias falsas não foi contra candidatos ou partidos específicos, mas colocava em dúvida o processo eleitoral em si. A estratégia, especialmente perigosa, pode mostrar seus danos apenas no longo prazo.
Quando se trata de desinformação, é impossível elencar qual é a mais prejudicial. As que difamam e ferem a honra de alguém podem destruir reputações injustamente, as que enganam sobre assuntos relacionados à saúde podem levar à morte ou ajudar a propagar doenças já erradicadas. Mas e quando o conteúdo enganoso coloca em suspeita o sistema eleitoral?
Na superfície parece ser uma atuação sem grandes danos, mas por baixo a democracia vem sendo golpeada. Golpes nada singelos, nem um pouco silenciosos, mas que muitas vezes só apresentarão suas reais marcas —e o tamanho dos estragos— mais à frente.
Não é de agora que sistema eleitoral vem sendo colocado em xeque no Brasil. Nas eleições de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) foi eleita presidente do país, o candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) pediu, via partido, que fosse feita uma auditoria para verificar a “lisura” da eleição. Um dos argumentos do texto protocolado apontou para um questionamento que estaria circulando pelas redes sociais a respeito da infalibilidade da apuração.
Corta para 2020. Seis anos depois, os atores são outros, mas o discurso segue uma lógica muito semelhante.
Um estudo feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV (Fundação Getulio Vargas), em cooperação com o TSE, mapeou e analisou postagens que questionam a integridade do processo eleitoral desde 2014 no Facebook e no YouTube. De acordo com a pesquisa, o recorde de achados ocorreu em 2018, com a soma de 32.586 publicações sobre desconfiança no sistema eleitoral. Em 2020, em apenas nove meses foram encontrados 18.345 posts sobre o assunto, superando todo o ano de 2014.
Em entrevista à Folha, o coordenador digital de combate à desinformação no TSE, Thiago Rondon, chamou atenção para o horizonte que se forma para as eleições de 2022. “Há uma probabilidade altíssima de que o cenário que estamos vendo na eleição americana, de tentativa generalizada de desacreditar o sistema eleitoral, vá se repetir no Brasil em 2022 se não nos prepararmos de forma adequada”, alertou.
Analisando o cenário dos últimos meses, esse futuro de fato não parece tão distante assim. Uma apuração feita por Marianna Spring, repórter especialista em desinformação da BBC, revelou que a estratégia de Donald Trump de alegar uma possível fraude no sistema eleitoral vem acontecendo há meses, com o auxílio de contas influentes no Twitter. E foi na plataforma favorita do presidente americano que foi dada a largada para as primeiras acusações de fraude em abril deste ano.
Desde então, e até as eleições que ocorreram no início de novembro, Trump mencionou “eleições fraudulentas” ou “fraude eleitoral” pelo menos 70 vezes, criando paulatinamente um conflituoso clima de desconfiança no sistema eleitoral. A estratégia agitou os aliados e fez crescer uma onda questionadora que embarcou nas teorias conspiratórias criadas pela equipe do presidente.
A ferramenta de monitoramento da agência de checagem Aos Fatos verificou que entre os dias 15 e 22 de novembro, mensagens criadas com o intuito de questionar a lisura do sistema eleitoral no Brasil foram compartilhadas ao menos 303 vezes em 55 grupos de discussão política no WhatsApp.
Assim como a experiência americana, por aqui esses conteúdos também ganharam força ao serem impulsionados por influenciadores e apoiadores de Jair Bolsonaro, um dos principais questionadores do sistema eleitoral brasileiro e, veja só, também do praticado nos Estados Unidos.
Em live recente em seu perfil no Facebook, Bolsonaro endossou o apoio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL), que exige a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos.
De acordo com o texto, essas cédulas poderão ser conferidas pelo eleitor e deverão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria, mas críticos temem que a medida possa ser alvo de ações fraudulentas, com o intuito de um retorno da prática massiva de compra de votos.
Para especialistas, as falas públicas de Bolsonaro que colocam em suspeita o sistema eleitoral preparam o terreno para as eleições de 2022, para o caso de um resultado que seja desfavorável para o presidente.
Ao defender as urnas eletrônicas após o fim do segundo turno das eleições municipais, no domingo (29), Luís Roberto Barroso chamou atenção para a impossibilidade de fraude no sistema eleitoral e disse não ter “controle sobre o imaginário das pessoas”. “Há aqueles que acreditam que a terra é plana, tem gente que acha que o homem não chegou na lua e tem gente que acha que o Trump venceu as eleições nos Estados Unidos”, ironizou.
Poucas horas depois, apoiadores do presidente orquestraram uma ação de ataque ao ministro, que chegou aos trending topics do Twitter. Por meio do nome de João de Deus, médium que está preso acusado por mais de 300 mulheres de crimes sexuais, Barroso foi citado em posts que questionavam a fala dele sobre crenças a partir da reprodução de um vídeo antigo em que o ministro falava abertamente sobre o respeito que tinha pelo médium após a cura de um câncer, em um caso clássico de desinformação movida por descontextualização.
Barroso tem razão, não temos controle sobre o imaginário das pessoas.
Mas agentes da desinformação conhecem estratégias eficazes para manipulá-lo. A repetição é uma delas. O cérebro humano tende a confundir aquilo que é familiar com aquilo que é verdadeiro. Por isso, mentiras repetidas muitas vezes acabam se tornando verdades para alguns.
E é por isso também que precisamos agir desde já contra esse tipo de desinformação que não é de hoje que vem envenenando o processo democrático.
Clara Becker e Gabriela de Almeida Pereira integram o Redes Cordiais, uma iniciativa que alia educação midiática no combate às notícias falsas.
Cristovam Buarque: Desculpas pelo atraso
Não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos
No dia seguinte ao pleito de 15 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pediu desculpas pelo atraso de algumas horas na divulgação dos resultados eleitorais. Surpreende que ninguém antes tenha pedido desculpas pelo atraso educacional de cem anos. Nem temos a quem responsabilizar: não há TSE da educação nacional.
Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.
Todos os presidentes e políticos, desde 1889, especialmente depois de 1985, devem pedir desculpas pelo atraso e pela desigualdade educacional no Brasil.
Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.
Reitero as desculpas por não ter convencido a opinião pública de que educação é o vetor do progresso e a estratégia para isso passa pela nacionalização do sistema municipal. A educação não será de máxima qualidade, nem será igual nas 200 mil escolas do Brasil, enquanto a responsabilidade pela educação das crianças brasileiras não for do governo federal.
Para isso cinco passos são necessários: 1) transformação do MEC em ministério com a responsabilidade exclusiva de cuidar da educação de base; 2) criação de uma carreira nacional do magistério, todos os professores com muito boa formação, avaliados permanentemente, com dedicação exclusiva e, para isso, muito bem remunerados; 3) prédios escolares com a máxima qualidade e instalações culturais e esportivas; 4) escolas com os mais modernos equipamentos da pedagogia, que permitam saltar das tradicionais aulas teatrais para as aulas cinematográficas com recursos da teleinformática, adotando métodos que desenvolvam a criatividade; 5) todas as escolas em horário integral.
Raríssimas cidades são capazes de financiar a execução dessa estratégia. Ela requer processo de nacionalização da educação de base ao longo de alguns anos, com adesão voluntária de cidades que queiram substituir seus frágeis sistemas educacionais por um robusto sistema nacional.
O custo para ter essa “escola ideal” é de R$ 15 mil/ano por aluno. Valor que permitiria financiar todos os gastos e investimentos e pagar salário de R$ 15 mil ao professor por mês, em salas com 30 alunos. Esse salário faria do magistério uma profissão atraente, permitindo que o selecionado aceitasse ir para a cidade que lhe fosse determinada, com dedicação exclusiva à sua escola e submetido a avaliações periódicas. Num ritmo de 300 cidades por ano, o novo sistema chegaria a todo Brasil em 20 anos. Se o PIB crescesse a um ritmo médio de 2% ao ano, o sistema nacional custaria cerca de 7% do PIB, para atender 50 milhões de alunos.
Considerando que o número de alunos deverá ser menor e que as novas técnicas permitirão diminuir o custo por aluno, a dificuldade dessa estratégia é política: convencer os ricos de que a escola com qualidade apenas para seus filhos amarra o progresso do País e limita o bem-estar e o futuro de todos; e os pobres, de que seus filhos têm direito a uma escola que ofereça muito mais do que merenda e seja tão boa quanto as melhores do país. Convencer também os políticos de que terão de enfrentar eleitores mais conscientes; e mostrar aos sindicatos que os interesses dos professores devem ser associados aos interesses das crianças, da educação e do futuro do país.
Não será fácil atrair a população para a ideia de que as escolas brasileiras poderão ser tão boas quanto as de países com educação de qualidade. E que crianças pobres devem ter escolas com a mesma qualidade das dos ricos.
No final do século 19 tivemos dificuldade para convencer que era possível o Brasil ser um país industrial e para isso era preciso abolir a escravidão. Agora o desafio é convencer que sem escola com a máxima qualidade para todos não completaremos a Abolição, nem avançaremos para o progresso com eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ecológica no mundo global da civilização que caracteriza o século 21. Antes não tínhamos futuro com a escravidão, agora não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos. E que nenhum cérebro seja deixado para trás. Enquanto isso não for feito, precisamos pedir desculpas pelo atraso a que condenamos o Brasil.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
O Estado de S. Paulo: João Doria defende uma frente em 2022 com a centro-esquerda
Governador diz não ser candidato à reeleição e afirma que cabem todas as forças nesta aliança, menos os ‘extremistas’
Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
Depois de se eleger à Prefeitura, em 2016, e ao governo do Estado, em 2018, com um discurso marcado pelo antipetismo, o governador João Doria (PSDB) se reposicionou e, agora, tem pregado um diálogo “contra os extremos”, por meio de uma frente que inclua a centro-esquerda.
Potencial candidato ao Palácio do Planalto em 2022, Doria é, atualmente, desafeto político do presidente Jair Bolsonaro. “O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado”, disse o governador em entrevista ao Estadão, na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. Apesar do embate com o presidente, Doria afirma que ainda não é o momento de fazer oposição ao governo federal.
Leia, a seguir, trechos da entrevista.
Houve um reposicionamento no discurso do sr. entre 2016, 2018 e hoje? O antipetismo perdeu espaço e o sr. parece menos radical e buscando o centro...
O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado, congelado das pessoas nem da sociedade. O comportamento evolui. Pode evoluir para melhor, para pior, mas evolui.
Candidatos passaram a campanha tentando colar Bruno Covas no sr., dada a alta rejeição ao seu nome na capital. O paulistano não perdoou sua saída da Prefeitura antes do fim do mandato?
Isso é tempo passado. Eu hoje sou governador do Estado de São Paulo, eleito. O Bruno no primeiro turno foi votado para ser reconduzido à Prefeitura de São Paulo. Em suma, o que vale na democracia é o voto.
O presidente Jair Bolsonaro antecipou o debate sobre a eleição presidencial de 2022. É hora de se discutir a construção de uma frente para disputar as eleições contra ele?
A frente não deve ser contra Bolsonaro, mas a favor do Brasil. A frente deve reunir o maior número possível de pessoas e pensamentos que estejam dispostos a proteger o Brasil e a população. (Essa frente) Comporta o pensamento liberal de centro, que é o que eu pratico, mas comporta também centro-direita, centro-esquerda, aqueles que têm um pensamento mais à esquerda e à direita. Só não caberá o pensamento dos extremistas, até porque os extremistas não querem compartilhar, discutir. Eles querem impor situações ao País, tanto na extrema-esquerda, quanto na extrema-direita. Destes extremos nós temos que ficar longe.
Com qual centro-esquerda o sr. acha ser possível dialogar?
Com todos aqueles que integram um sentimento múltiplo, compartilhador e dedicado ao País, sem interesses pessoais se sobrepondo ao interesse do País. Temos que ter a capacidade de diálogo com humildade. Saber ouvir e valorizar o contraditório. O contraditório ajuda o Brasil, e não prejudica. O que prejudica é o extremismo.
É possível incluir nas conversas Ciro Gomes e Marina Silva?
Não devemos excluir ninguém que tenha esse sentimento. Todos que têm esse sentimento são bem-vindos, até mesmo os que no passado praticaram posições mais extremistas, mas que possam ter mudado e estejam hoje no campo do diálogo.
Não é difícil que alguém abra mão de ser candidato à Presidência em 2022? Nas conversas estão Sérgio Moro, Luciano Huck...
O pressuposto para unir o maior número possível de pensamentos pelo Brasil é não haver prerrogativa pessoal.
Sérgio Moro desponta nesse grupo?
Ele deve fazer parte dessa frente. Tem história, biografia e posicionamento. Nunca declarou que era candidato. Sempre teve altivez e grandeza para defender o País, independentemente dos interesses pessoais.
O sr. evita falar que essa frente é contra Bolsonaro. Por quê?
A frente não deve ser de oposição, nem contra o Bolsonaro. Deve ser a favor do Brasil. Esse é o sentimento que une. O sentimento do contra não agrega. Tudo tem a sua hora. Agora é hora de estarmos unidos pelo Brasil, e não fazer oposição a este ou aquele governo.
O PSDB pode estar à frente desse projeto de centro em 2022?
O PSDB deve participar desse movimento, mas não é preciso liderar. Esse é um movimento de compartilhamento, não de exclusão ou de escolha, um lidera e os outros são liderados. Todos devem liderar.
Essa aliança partidária feita em São Paulo, com DEM, MDB e PSDB, pode se repetir na eleição para a presidência da Câmara?
Por que não? O sentimento desses partidos é dialogar para achar um nome e apoiá-lo.
O sr. descarta disputar a reeleição para governador?
Não se trata de ser ou não candidato a presidente, mas de manter minhas convicções. Sou contra a reeleição. Sempre defendi mandato único de cinco anos. Não critico nem condeno os que disputam reeleição, como Bruno Covas. Mas eu, por ser contra a reeleição, vou manter a minha coerência. Não vou disputar a reeleição.
Ainda é uma ideia promover uma fusão, mudar a logomarca e reformular o discurso do PSDB? Ou, diante da ascensão de Bruno Covas, que prega a volta às origens do partido, retomar a bandeira da social-democracia?
O Bruno não prega a volta às raízes, mas um PSDB moderno, digital, inovador e com uma visão social de atender aos mais pobres. Com respeito aos programas de desestatização, ao liberalismo econômico.
O sr. defende que o PSDB seja mais progressista em pautas como casamento gay, aborto, drogas, escola sem partido?
O PSDB é progressista, tanto na economia quanto no plano social. Sem preconceitos.
Arrepende-se do “Bolsodoria” na disputa de 2018?
A eleição do Bolsonaro foi um grande erro para o Brasil. Eu não mantenho meu compromisso diante de um equívoco tão grande. O Bolsonaro prometeu um país liberal, economia globalizada, combate à corrupção. E não fez.
O que os governadores estão fazendo para evitar a politização da vacina contra a covid-19?
Os governadores estão unidos. Todos defendem as vacinas, a vida, e não a politização nem da vacina nem da covid. O único que faz essa defesa hoje se chama Jair Bolsonaro.
Mas o sr. também não politizou a vacina aqui em São Paulo?
Não politizamos. Nós defendemos a vida, a ciência e a saúde. Vacina não deve ser avaliada pela origem, mas pela eficácia.
Como avaliou essa coalizão que se formou na Assembleia Legislativa contra o ajuste fiscal do governo estadual? Partidos como Novo e siglas de esquerda se uniram contra o pacote.
Um equívoco. O Novo demonstrou que já ficou velho logo no início da sua existência, o que é uma pena. A reforma administrativa foi aprovada e São Paulo foi o primeiro Estado a fazer. Fizemos aquilo que o Brasil deveria ter feito no governo federal e não fez.
Foi precipitado pôr o Estado na fase verde, que é mais flexível?
Não há nenhuma relação do aumento dos casos de covid-19 em São Paulo com o Plano São Paulo. A correlação está no relaxamento que estão, infelizmente, adotando. As pessoas estão saindo sem máscara, participando de aglomerações, festas e encontros em momento inadequado. Enquanto não tivermos a vacina, as pessoas devem se preservar.
Valor: “Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau
Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor
Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.
Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.
Essas legendas viram a redução de seus exércitos de vereadores, com os quais contam para sua recondução. Nas contas de Nicolau, 15 partidos não chegaram a 2% dos votos para vereador em 15 de novembro. É esta a cláusula de desempenho para 2022. Com isso, o tema já entrou na barganha dos pequenos partidos na disputa pela Mesa da Câmara. Em alguns deles a discussão já é aberta - o apoio estará condicionado ao compromisso dos candidatos à Mesa com a flexibilização das regras. Não é um acordo fácil de ser operacionalizado. Até porque os partidos com mais chances de levar a presidência da Câmara estão entre aqueles mais beneficiados pelo fim das novas regras: PP, DEM, MDB e Republicanos.
Jairo Nicolau vê com ceticismo a proposta da federação de partidos como alternativa à coligação. Ao contrário desta, a federação vai além da conjuntura eleitoral e prevê a atuação conjunta dos partidos também ao longo da legislatura. O dispositivo já foi derrotado na Câmara. Para não ser uma burla à coligação, diz Nicolau, teria que ser uma federação nacional, de canto a canto do país, o que confronta as contingências regionais dos partidos.
O fim das coligações não é o único retrocesso que pode advir das eleições municipais. O atraso na contagem dos votos, amplificado pela militância de extrema direita, deu asas a teorias conspiratórias de fraude eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro retomou a defesa do voto impresso e encontrou guarida em parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nicolau acompanhou de perto o tema quando o TSE, na gestão Gilmar Mendes, promoveu debates sobre o aprimoramento do processo eleitoral. Os engenheiros presentes alertaram para a inviabilidade técnica da alternativa pelo potencial de problemas que as impressoras podem causar. No limite, diz, o TSE poderia fazer a impressão do voto por amostragem.
Outra mudança aventada que Nicolau teme é a do voto pelo aplicativo. A questão chegou a ser levantada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, antes dos problemas com a apuração. Animado com a boa aceitação do registro da ausência no local de votação pelo aplicativo do TSE, ao qual se atribui, somado à pandemia, o aumento na abstenção, o ministro foi adiante e disse que o Brasil, um dia, também poderia votar pelo aplicativo. A mudança, diz o professor, não poderá ser feita sem anuência legislativa, uma vez que abre portas para a adoção paulatina do voto facultativo. E não apenas. Ameaça o sigilo do voto. “Não é fantasioso imaginar que se formem filas nos currais eleitorais para se ‘ensinar’ o eleitor a votar”, diz. É a volta - ou a modernização - do voto de cabresto.
Merval Pereira: O que é, o que é?
O ministro da Economia, Paulo Guedes, volta e meia se arrisca a uma análise política, e quando o faz costuma tecer conceitos elásticos sobre o conjunto ideológico. Ontem, ele disse que “a mesma aliança de centro-direita que ganhou as eleições em 2018 continuou ampliando seu espectro de votos” nas eleições municipais. Quase a mesma análise do pastor Silas Malafaia, que também ontem esteve com o presidente para fazer um balanço do resultado, garantindo que quem perdeu a eleição foi PT e PSDB, Bolsonaro saiu vencedor.
Também o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, festejou a vitória dos partidos do Centrão como sendo do governo. Para combater o que chamam de “narrativa da esquerda”, vários governistas têm insistido nessa outra “narrativa”.
Guedes considera que a “centro-direita” aumentou seu poder, colocando essa avaliação na conta do grupo de apoio ao governo Bolsonaro. O Centrão agradece, e vai cobrar mais espaço no governo, mas PSD já quer ocupar lugar próprio e DEM e MDB saíram do Centrão.
Na campanha de 2018, Guedes insistia em colocar no mesmo balaio PT e PSDB, atribuindo a eles mais de 20 anos de domínio da social-democracia no Brasil, todos governos de esquerda que estariam sendo substituídos por um governo de direita.
Guedes recuperou a imagem de esquerda do PSDB, causando indignação do PT, que passou os últimos anos tentando colocar os tucanos na direita política, tarefa que cabe hoje ao PSOL em São Paulo, ligando Bruno Covas a Bolsonaro, através do governador Dória.
Conforme as forças vão se colocando no tabuleiro político, a definição ideológica obedece mais aos interesses eleitorais do que a análises com bases acadêmicas. Assim como é risível a tentativa de pregar em Fernando Henrique Cardoso ou em José Serra a peja de direitistas, também é um exagero de retórica política dizer que o ex-ministro Sérgio Moro é de extrema-direita pelo simples fato de que aceitou participar do governo Bolsonaro.
No momento, para a esquerda, todos os candidatos opositores são de direita, não se admitindo nem mesmo que haja políticos de centro. No entanto, é o centro político que, no momento, tem mais capacidade de se impor nas composições partidárias que devem frutificar ainda no primeiro semestre de 2021, quando as forças eleitorais terão que começar a se definir. Até mesmo o ex-ministro Ciro Gomes, um quadro da esquerda brasileira, se coloca como de centro-esquerda, e foi nesse papel que tentou chegar ao segundo turno em 2018.
Essa divisão ideológica num país que sempre foi conservador abre a chance de uma série de enganos, e é aí que entra a teoria da Janela de Overton, criada por Joseph P. Overton, um ex-vice presidente do Mackinac Center for Public Policy, um centro de estudos liberal nos Estados Unidos. Overton imaginou uma “janela” onde as teses aceitas pela sociedade naquele momento determinado podem ser defendidas pelos políticos.
Seriam teses “aceitáveis” ou “populares”. Se ideias “impensáveis” ou “radicais” forem defendidas, elas saem da “janela” e o político não ganha votos. Portanto, os políticos defendem as teses “populares”, e não o que realmente pensam. Mas ideias antes “impensáveis” podem se tornar “aceitáveis” para a maioria. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o divórcio. Ou o casamento de homossexuais. Mas há também quem queira alargar a “janela”, criando situações que tornem ideias “radicais” em “aceitáveis”. É o que Boulos tenta fazer na campanha paulista.
Da mesma maneira, as definições ideológicas passam por essa “janela” e podem ser ou não aceitas. Os bolsonaristas consideram inaceitável que Ciro seja considerado de centro, mas muita gente também rejeita as definições de Bolsonaro como um “conservador” ou “liberal”, que o fizeram palatável para muitos eleitores de 2018.
A mudança que pretendem fazer com Bolsonaro, transformando-o em um membro do Centrão moderado, é uma tentativa, possivelmente a ser frustrada, de ampliar seu eleitorado para fora da extrema-direita, onde estão seus apoiadores radicais. Por isso também esses bolsonaristas “de raiz” preferem que o presidente vá para seu próprio partido, ou, pelo menos, para um partido menor do Centrão, onde poderia ter o controle.