Eleições

José Eduardo Faria: A “sinalização do povo”

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.

*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).


Luiz Carlos Azedo: A conta do Orçamento

Como a conta não fecha, os cortes nos orçamentos dos ministérios, principalmente nas despesas de custeio, podem paralisar as políticas públicas

Não é de agora que o ministro da Economia, Paulo Guedes, vem sendo fritado em fogo brando no Congresso, com o doce constrangimento do presidente Jair Bolsonaro, que conseguiu desmoralizar seu Posto Ipiranga junto aos agentes econômicos. O mercado só não pede para tirar o ministro porque não sabe o rumo que o substituto adotará. Como Bolsonaro costuma surpreender na troca de ministros, os agentes econômicos preferem não arriscar, e Guedes vai ficando, cada vez mais enfraquecido. Agora, está engolindo um acordo com o Centrão que representa gastos acima do teto do Orçamento de 2021 da ordem de R$ 132,5 bilhões. Publicamente, Guedes minimiza o fato, mas sua equipe e os especialistas sabem fazer as contas.

A narrativa do governo é de que foi preservada a responsabilidade fiscal e o compromisso com a área da saúde. Bolsonaro deve sancionar o Orçamento hoje ou amanhã. A redução de gastos com despesas obrigatórias, que foram subestimadas, e o aumento do valor das emendas parlamentares pelo Senado levaram os técnicos do Ministério da Economia a propor o veto integral ao Orçamento aprovado pelo Congresso, mas Guedes não bancou a posição. Bolsonaro é o grande interessado nas emendas parlamentares destinadas à realização de obras, por razões eleitorais.

A saída que Guedes encontrou para Bolsonaro não ser enquadrado na Lei de Responsabilidade Fiscal foi salomônica: retirar do Orçamento os gastos extras com a pandemia da covid-19, ou seja, R$ 20 bilhões para enfrentamento da doença; R$ 10 bilhões para renovação do Benefício Emergencial; e mais R$ 5 bilhões para o Pronampe, para socorrer pequenas e médias empresas. Com R$ 44 bilhões do auxílio emergencial e outras despesas com a saúde, que foram considerados créditos extraordinários, o rombo pode chegar a R$ 132 bilhões.

Fuga pra frente
O deficit fiscal previsto para 2021 já é de R$ 247,1 bilhões. Com o extra-teto de R$ 132 bilhões, o Orçamento de 2021 será uma grande fuga para a frente, que pode causar mais inflação e redundar numa nova recessão. No fundo, Bolsonaro foi complacente com os seus aliados no Senado, que aumentaram o volume de emendas parlamentares de R$ 16 bilhões para R$ 47 bilhões. Nas negociações, até agora, só se chegou a um acordo para vetar R$ 10 bilhões. Sobram R$ 21 bilhões a serem expurgados pelos vetos de Bolsonaro, nas despesas discricionárias do governo, e pelo contingenciamento de gastos.

Como a conta não fecha, a expectativa em relação aos vetos e contingenciamentos se volta para os cortes que serão feitos nos orçamentos dos ministérios, principalmente nas despesas de custeio, que podem paralisar as políticas públicas. O sinal de que os cortes serão direcionados, principalmente, para a área social foi o cancelamento do Censo Demográfico de 2021, por falta de verbas. Sem estatísticas confiáveis, todo o planejamento do governo fica comprometido. A área de Defesa também será atingida, com cortes de investimento no reaparelhamento de Exército, Marinha e Aeronáutica, originalmente em torno de R$ 8,2 bilhões, porque Bolsonaro considera os militares muito bem contemplados na reforma da Previdência, com os aumentos de salários e a ocupação de cargos no governo.

Não estava nos planos do Executivo que a pandemia da covid-19 chegasse às proporções que atingiu. Mesmo assim, com o negacionismo de Bolsonaro pondo em risco a sua reeleição, essa lógica continua presidindo as ações do governo. Sua aposta é de que a execução orçamentária, com o auxílio emergencial e as obras públicas, alavanque a economia e possibilite a geração de empregos e a retomada da economia informal. O problema é que a vacinação da população está muito atrasada. A variante brasileira da covid-19 tem atingido duramente a população mais jovem e de meia idade, os prejuízos econômicos são imensuráveis. A conta da pandemia, além do grande número de mortos, que já chega próximo dos 400 mil, inclui o desemprego em massa e o apagão de capital de pequenos e médios empreendedores.


Luiz Carlos Azedo: O favoritismo de Lula

Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo

O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, ontem, a anulação de todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por 8 a 3, com base no princípio do “juiz natural”, pedra basilar do chamado devido processo legal, invocado pela defesa do petista desde quando o processo começou a andar na 13a Vara Federal de Curitiba, sob a batuta do então juiz Sergio Moro. Quando a revisão do caso do ex-presidente da República começou a ser ventilada nos bastidores do Supremo, o presidente Jair Bolsonaro imaginava que Lula como adversário seria meia reeleição garantida, mas a vida está mostrando, com a pandemia da covid-19, que a roda da Fortuna girou em favor do petista.

Como já era de se esperar, a reação de Bolsonaro e seus aliados será na direção de contestar a decisão do Supremo e desacreditar os integrantes da Corte, além de intensificar a narrativa de que houve fraude nas eleições passadas e de que o voto eletrônico não é seguro. Os propósitos golpistas dessa narrativa são conhecidos, porém não têm encontrado eco nos meios políticos, nem mesmo entre os aliados do Centrão, e também nas Forças Armadas, apesar das insatisfações com a decisão. A ideia de que a polarização com Lula seria a chave da vitórianas eleições de 2022 está furada.

A decisão do Supremo anulou as condenações de Lula por um aspecto formal, o foro de seu julgamento deveria ser o Distrito Federal, e não Curitiba. Isso não significa que Lula tenha sido inocentado, porque o processo terá que ser reiniciado (há controvérsias sobre a anulação de provas). Entretanto a narrativa de que Lula foi injustiçado por Sergio Moro é cada vez mais robusta, pela revelação de suas conversas com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato e, também, por causa da decisão da Segunda Turma que aprovou a suspeição do ex-juiz na condução do processo, por 3 a 2. Esse é outro assunto que terá de ser examinado pelo plenário do Supremo, podendo ter sérias consequências para o ex-magistrado, um pré-candidato à Presidência ainda encabulado.

Mudança de cenário
A presença de Lula na disputa mudou completamente o cenário eleitoral de 2022. A expectativa de poder que a possibilidade de reeleição garante aos ocupantes do Palácio do Planalto, no caso de Bolsonaro, está sendo volatilizada pela pandemia da covid-19, a recessão econômica e o mau desempenho do governo federal em muitas frentes. As políticas públicas que contavam com certo consenso nacional e reconhecimento internacional foram substituídas pela improvisação, pelo obscurantismo e pela incompetência administrativa, além de um viés ideológico reacionário. Isso correu na política externa, no meio ambiente, nos direitos humanos, na cultura e na educação, mas é na saúde pública que o desastre pôs no telhado a reeleição de Bolsonaro em 2022.

Cada dia que passa, as consequências da má gestão do ex- ministro da Saúde Eduardo Pazuello mostram-se mais graves, com o agravante de que o novo ministro, Marcelo Queiroga, embora tenha flexibilizado a narrativa governista, está capotando na área administrativa da pasta. Hoje, é o principal responsável pelo colapso do fornecimento de insumos para tratamento dos casos graves da doença, principalmente os kits de intubação. Como o Ministério da Saúde requisitou toda a produção nacional e não consegue atender à demanda, hospitais de vários estados estão entrando em colapso. Pacientes estão sendo amarrados nas UTIs para não retirarem os tubos de respiração ou deixando de ser intubados, por falta de analgésicos adequados e outros recursos, o que acaba aumentando o número de óbitos.

Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo e se prolongará para além da pandemia, por causa do grande número de mortos. Isso significa que Bolsonaro está derrotado e Lula com o caneco na mão? Não, ninguém ganha eleições de véspera. Lula já foi favorito antes e perdeu a eleição, em 1994, para Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-favoritismo-de-lula/

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Luiz Carlos Azedo: Lula e Moro no Supremo

A decisão do Supremo terá efeito catalisador no processo político, pode contribuir para transferir expectativas de poder do presidente Jair Bolsonaro para a oposição

A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu levar a plenário, hoje, a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela 13a Vara Criminal de Curitiba, ou seja, pelo ex-juiz Sergio Moro, a pedido do relator da Operação Lava-Jato, ministro Edson Fachin, autor da liminar que livrou o petista da inelegibilidade. Fachin entendeu que o foro natural do processo deveria ser o Distrito Federal, por não se tratar de processo diretamente vinculado ao escândalo da Petrobras. Com a decisão de ontem do Supremo, por 9 a 2, tanto Lula quanto Moro voltam ao centro do noticiário, como possíveis adversários do presidente Jair Bolsonaro, ambos com muita força.

Esse julgamento no Supremo terá um efeito catalisador no processo político, contribuindo para transferir expectativas de poder de Bolsonaro, candidato à reeleição, para a oposição. A Lava-Jato ainda tem um grande apelo popular e é a principal face de desgaste
da candidatura de Lula à Presidência, mas, sem o julgamento, o petista não seria candidato. Entretanto, Bolsonaro se descolou da bandeira da ética por causa do escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e de suas manobras para proteger o filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), um dos principais investigados no caso.

Moro, principal responsável pela condenação de Lula, também sofre desgastes. É acusado de ser parcial e ter usado recursos inadmissíveis durante a investigação para condenar Lula e afastá-lo da disputa eleitoral de 2018, beneficiando Bolsonaro. Ao aceitar o convite para ser ministro da Justiça do atual governo, de certa forma, o ex-juiz corroborou as acusações da defesa de Lula. Seu estridente rompimento com Bolsonaro, acusando-o de tentar usar a Polícia Federal em benefício próprio, manteve a bandeira da ética nas suas mãos, mas sua atuação como magistrado acabou fragilizada por gravações feitas por hackers de suas conversas com integrantes do Ministério Público que comandavam as investigações, desnudando sua parcialidade.

Por isso mesmo, o julgamento do mérito da liminar de Fachin, que anulou as condenações de Lula, abrirá espaço, também, para a discussão sobre a atuação de Moro, cuja suspeição foi aprovada pela Segunda Turma do STF. Não sem razão, o julgamento terá repercussão eleitoral, tanto do ponto de vista legal — Lula estará livre ou não para concorrer às eleições — quanto midiático. O Supremo pode jogar o petista para cima nas pesquisas, mas também alavancará Moro, que passa de algoz a vítima, como paladino da ética e dos bons costumes, a não ser que o ex- juiz seja punido severamente e impedido de concorrer.

Decantação

Quem mais perde com o julgamento é Bolsonaro, que tenta fazer do limão uma limonada. Ao atacar o Supremo e a decisão de liberar Lula para disputar as eleições, o presidente da República mantém em sua esfera de influência os setores mais radicalizados do antipetismo. A aposta do chefe do Planalto é que esse sentimento garanta o seu lugar no segundo turno das eleições, mas não é bem assim. A queda dos seus índices de aprovação em razão da crise sanitária e da recessão e a perda da bandeira da ética podem abrir espaço para uma candidatura robusta do chamado polo democrático, capaz de capturar o eleitor mais conservador, porém, insatisfeito com o desempenho do governo e de Bolsonaro.

O julgamento de Lula será o primeiro grande momento de decantação do processo eleitoral. Outro momento será a decisão do apresentador Luciano Huck (sem partido) sobre a proposta de renovação de contrato com a TV Globo, como substituto do Faustão nas tardes de domingo. O terceiro grande lance no xadrez eleitoral é a prévia do PSDB, marcada para outubro, na qual o partido escolherá seu candidato. Disputam a vaga os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Restarão ainda as definições do DEM, em relação ao ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta e do próprio Moro, que não se comporta como candidato.

 


Maria Cristina Fernandes: Contra CPI, Bolsonaro ameaça sócios

São 90 dias regulamentares, mas a única certeza sobre a CPI da Pandemia é de que ninguém sabe quando esta termina. Ainda não está composta, mas já produziu, sobre o Senado, o ajuntamento de duas de suas três forças. Os que querem o cargo do presidente Jair Bolsonaro uniram-se àqueles que se contentam com sua caneta. É a junção dessas duas forças que esticará a CPI até 2022. A pauta vai muito além da incúria bolsonarista na pandemia ou de sua consequência para os Estados. O que estará em jogo é a ocupação do governo, do Judiciário e do próprio Senado.

A CPI já começou a se definir pelo parto. A anexação das duas propostas foi resultado do jogo duplo que marcou a gestão do ex-presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), colocou o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no cargo e continua a operar no varejo da sustentação bolsonarista na Casa, a um alto custo para o erário, como se viu no relatório do Orçamento do senador Márcio Bittar (MDB-AC).

Com os governadores e prefeitos na roda, ainda que de forma mitigada, os aliados de Bolsonaro que hoje comandam o Senado lhe deram a chance de barganhar o avanço da investigação sobre seu governo. Foi esta a porta que se abriu com a possibilidade de serem investigados não apenas o labirinto das verbas federais nos Estados como a alocação de recursos das emendas parlamentares nos municípios. Ambas passam pelas planilhas da Secretaria de Governo, ocupada até outro dia pelo ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.

A CPI ainda avançará sobre as brasas que restaram nas relações entre Ramos e o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Ontem o Ministério Público Federal no Amazonas adiantou-se à CPI e denunciou Pazuello por improbidade administrativa decorrente da crise de oxigênio naquele Estado. O processo correrá em primeira instância e pode levar à primeira condenação dos generais do governo. Com um adendo: Pazuello ainda está na ativa.

Com este caldeirão sob fervura, o presidente jogou com a ameaça de implodir a sociedade nada anônima em que se transformou seu governo. O sucesso de sua estratégia dependerá não apenas da composição da CPI mas dos senadores que virão a ocupar a relatoria e a presidência. A meta é reproduzir a CPI dos Correios, tida até hoje como aquela que produziu mais resultados, mas o cenário parece interditado pela força governista na Casa.

Aberta no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esta CPI entregou a relatoria à oposição. Depois daquela comissão, os parlamentares descobriram meios para assar o porco sem queimar a cabana e os inquéritos mais efetivos passaram para o Ministério Público. A dupla Pacheco-Alcolumbre, estreante na matéria, tenta controlar a labareda mas, uma vez instalada, é a CPI quem manda.

No voto de ontem, respaldado por nove de seus pares, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu que as manobras protelatórias estarão sob a vigilância do Supremo: não cabe ao Senado definir se e quando a CPI será instalada, apenas como procederá, se por videoconferência, presencialmente ou por ambos os meios.

É o MDB o partido que hoje mais se arvora a tomar assento num cargo de comando da CPI e, a partir dele, ganhar terreno. Em 36 anos desde a redemocratização, o MDB mandou no Senado ao longo de 30. Perdeu para o DEM em 2019, graças a uma aliança de Alcolumbre com o grupo lavajatista do Senado. Dois desse grupo são os primeiros signatários das CPIs fundidas na Casa. O senador Eduardo Girão (Podemos-CE), autor do requerimento de ampliação do escopo, continua a gravitar sob a mesma órbita, e o senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP) aliançou-se com o MDB.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL) foi convidado ao Palácio do Planalto na próxima semana numa operação que visa a tornar palatável, para o presidente, sua escolha para um dos cargos da CPI. A ambição emedebista não se restringe aos domínios do DEM no Senado, mas também sobre o governo.

Os ministros políticos da gestão Bolsonaro são ou foram deputados: Flávia Arruda (Secretaria de Governo), João Roma (Cidadania), Onyx Lorenzoni (Secretaria Geral da Presidência), Teresa Cristina (Agricultura) e Fabio Faria (Comunicações). A ambição primeira dos senadores é o Ministério das Minas e Energia, foco histórico de disputa entre MDB e DEM. Contra todos, Bolsonaro reforça a ala ideológica do governo. Não apenas tirou o almirante Flávio Rocha da Secretaria de Comunicação, como mantém o ex-ministro Ernesto Araújo como entreposto entre si e o novo chanceler, Carlos França.

O Senado, porém, também ganhará força na queda de braço que hoje antagoniza a Câmara e o ministro da Economia, Paulo Guedes. A instalação da CPI eleva o preço de quaisquer das decisões de Bolsonaro sobre o Orçamento. As ambições no Senado estendem-se ainda à vaga do ministro Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal. O passado lavajatista do preferido de Bolsonaro, o advogado-geral da União André Mendonça, o condena no Senado.

A operação, porém, tem três obstáculos. O primeiro é que o posto de governista-mor de Alagoas está hoje ocupado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O segundo é que a ampliação do escopo colocou todos os governadores sob a mira da CPI, entre os quais o de Alagoas, Renan Filho (MDB). E, finalmente, o terceiro é que a nomeação de Renan para um cargo na CPI deixaria em maus lençóis dois de seus correligionários, os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE) e no Congresso, Eduardo Gomes (TO).

Quem quer que ambicione o cargo de relator ou presidente na CPI se transformará num pivô do cenário de 2022. A dominância do MDB fortaleceria o partido na disputa pela vice do PT. Em meio às disputas intestinas, um presidente menos imiscuído, como o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), seria uma solução tão desejável quanto improvável.

No pior das hipóteses, às pilhas de cadáveres se juntarão os áudios de whatsapp, comuns entre integrantes deste governo, que a CPI não custará a obter. É a espetacularização da tragédia que vai entrar no ar. Ambas poderiam ter sido evitadas se a apuração das responsabilidades tivesse começado junto com a incúria.


Gil Alessi: Governadores preparam carta a Biden para driblar protagonismo negativo de Bolsonaro

Com presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de críticas pelo aumento do desmatamento no país, chefes dos executivos estaduais querem acesso aos recursos dos EUA

Em meio à lentidão do processo de imunização contra a covid-19 no Brasil, e com o pedido feito por ONGs para que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não negocie “a portas fechadas” questões ambientais com Jair Bolsonaro, governadores brasileiros lançarão nos próximos dias iniciativas nestas duas frentes em busca de protagonismo —e de resultados concretos. Chefes de 23 Executivos estaduais formaram um bloco chamado “Coalizão Governadores Pelo Clima”, que assina uma carta endereçada ao mandatário americano.

O documento será entregue ainda este mês ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem de três páginas eles divergem de Bolsonaro ao defender o Acordo de Paris —que o presidente já falou em abandonar— e “o cumprimento do Código Florestal para a conservação das florestas e da vegetação nativa” —outro contraste com o Planalto, cujo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defende a flexibilização das leis para “passar a boiada”.

A carta é assinada por governadores de oposição a Bolsonaro, como João Doria (SP), Flávio Dino (MA) e Fátima Bezerra (RN), mas também por simpatizantes do presidente, como Romeu Zema (MG) e Cláudio Castro (RJ). Na mensagem eles se dizem preocupados com a situação e “conscientes da emergência climática global”. Também se colocam como atores capazes de contribuir com a solução caso tenham acesso aos recursos necessários, preenchendo um certo vácuo diplomático deixado pelo Governo Federal. “Nossos Estados possuem fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação segura e transparente de recursos internacionais, garantindo resultados rápidos e verificáveis”, diz o texto.

A articulação acontece às vésperas da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, que será realizada de forma virtual em 22 e 23 de abril e para qual o Governo Joe Biden convidou Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral em 2020 Biden chegou a dizer que poderia aplicar sanções contra o Brasil caso o país não controlasse o desmatamento. Depois de eleito, o tom de ameaça foi suavizado apesar dos recordes de devastação da floresta, e o enviado especial do Clima da Casa Branca, John Kerry, chegou a realizar uma videoconferência com o ministro Ricardo Salles e o então chanceler Ernesto Araújo para tratar do tema.

Todo o interesse não é em vão. A proteção dos biomas brasileiros é um negócio que movimenta bilhões de dólares. Desde o início do Governo Bolsonaro diversos fundos europeus ameaçaram suspender repasses destinados à preservação da floresta até que o Brasil mostrasse comprometimento com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e também em outros biomas. Noruega e Alemanha, por exemplo, bloquearam no final de 2019 o envio de recursos para o Fundo Amazônia, um dos principais do setor. Até o acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, assinado em junho de 2019, tem sua implementação arrastada à medida em que países como França e Áustria resistem a que ele saia do papel alegando preocupações ambientais.

O anúncio do contato dos governadores com Biden também ocorre uma semana após um grupo com mais de 200 ONGs ligadas a questões ambientais ter enviado ao presidente americano uma carta na qual criticam eventuais negociações “a portas fechadas” feitas entre os dois mandatários sobre a Amazônia sem a inclusão da sociedade civil. “Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo [Bolsonaro]”, afirmam em um trecho da mensagem, que também defende a participação dos Estados e comunidades locais nas tratativas. “Bolsonaro (...) compromete os Acordos de Paris ao retroceder na ambição da meta climática brasileira. Negacionista da pandemia, transformou seu país num berçário de variantes do coronavírus, condenando à morte parte da própria população”, conclui o texto.

Novos focos de atrito entre governadores e Planalto

A iniciativa dos governadores de contactar diretamente Biden tem potencial para provocar ainda mais atrito entre eles e o presidente. Ambas as partes já vivem uma relação bastante conturbada, erodida desde o início da pandemia quando Bolsonaro passou a atacar os executivos estaduais por tentarem controlar a crise sanitária com isolamento e restrições. Posteriormente, acusou os governadores de fazerem uso político da covid-19 e desviar recursos do Governo Federal destinados à Saúde.

Indagado sobre a possibilidade de conflitos com o Planalto, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), um dos signatários da carta, é taxativo: “Não estamos defendendo uma posição política individualista, e sim a posição do Brasil. Ela não foi alterada, apesar de verbalização [de Bolsonaro] no sentido diferente, as regras continuam as mesmas, não houve alteração da Constituição ou no Legislativo e Judiciário com relação à necessidade de proteger o Meio Ambiente”. Segundo ele, a ideia é que “Biden atente ao fato de que a posição no Brasil precisa ser uma posição que envolva os três poderes, e não apenas um”.

A carta dos Governadores pelo Clima não é a única iniciativa destes políticos que pode afrontar Bolsonaro. Nesta sexta-feira integrantes do Fórum Nacional de Governadores irá realizar por videoconferência uma reunião com a secretária-geral adjunta da Organização das Nações Unidas, Amina Mohammed. Na pauta, o pedido por “ajuda humanitária ao Brasil” em função da situação de descontrole da pandemia do novo coronavírus no país. “Queremos a sensibilização da ONU para que a Organização Mundial da Saúde agilize a entrega de vacinas para o Brasil”, afirmou Dias, referindo-se às doses do consórcio capitaneado pela entidade.

O protagonismo dos governadores na pandemia é uma questão crucial para Bolsonaro. Até o momento o Planalto ficou a reboque de iniciativas estaduais quando o assunto é imunização: boa parte das doses aplicadas nos mais de 23 milhões e brasileiros até esta terça-feira foi produzida no Instituto Butantan, em uma iniciativa do Governo paulista. Desde fevereiro outros governadores já iniciaram tratativas com laboratórios estrangeiros em busca de mais vacinas —algumas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como é o caso do imunizante russo Sputnik V, adquirido por Camilo Santana (CE) e Flávio Dino (MA).


Piauí: Os números chocantes da desigualdade vacinal

Imunização brasileira é lenta e discriminatória. País é o 73º em proporção de vacinados. E regiões pobres, com menos idosos, ficam no fim da fila. Em SP, distritos mais protegidos são 8 vezes mais ricos que os com menos doses aplicadas

 

Por Antonio S. Piltcher, Amanda Gorziza e Renata Buono, na Piauí

A vacinação contra a Covid-19 no Brasil caminha a passos lentos. Em relação à proporção da população vacinada, o país está na 73ª posição do ranking mundial. Alguns locais do Brasil são mais impactados pela falta de vacinas e pela distribuição desigual do imunizante. Na cidade de São Paulo, os distritos mais vacinados têm renda média oito vezes maior e vacinam quatro vezes mais que os distritos menos vacinados. Na cidade do Rio, um morador do Baixo Leblon tem três vezes mais chance de ter recebido a primeira dose da vacina contra Covid que um morador do Vidigal. Municípios com maior proporção de população indígena estão com taxas de vacinação maiores. Na Paraíba, uma cidade de maioria indígena aplicou quinze vezes mais doses que o município vizinho. Para realizar as comparações, foram utilizados os microdados do Open Data SUS, que permitem mapear a imunização dentro dos municípios, pois incluem os primeiros cinco dígitos do CEP de cada pessoa vacinada. Assim, foi possível estimar a proporção de habitantes imunizados em cada bairro. Os números foram compilados pelo Pindograma, site de jornalismo de dados.

O Mato Grosso do Sul é o estado que mais aplicou doses de vacina contra a Covid-19 proporcionalmente à sua população – 18 doses a cada 100 habitantes até 9 de abril. O ideal é que se tenham 200 doses a cada 100 indivíduos, já que são necessárias duas aplicações para a completa imunização. Por outro lado, o Mato Grosso, estado vizinho, aplicou metade das doses – apenas 9 a cada 100 pessoas. Ambos têm proporções semelhantes de idosos em sua população: MS com 13% e MT com 12%.

No Rio Grande do Sul, 14% da população recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19, enquanto o Acre vacinou apenas 8% de seus habitantes até o dia 9 de abril. No entanto, a proporção de gaúchos idosos é de 19%, enquanto a de acrianos é de 8%, ou seja, a população do Acre é majoritariamente jovem. O PIB per capita dos estados também difere: R$ 15 mil no Acre e R$ 37 mil no Rio Grande do Sul.

Dois municípios com porte parecido, Santos e Carapicuíba, no estado de São Paulo, têm níveis distintos de vacinação contra a Covid-19. Em Santos, 13% dos 433 mil habitantes já tomaram a primeira dose da vacina. Já em Carapicuíba, na região metropolitana, apenas 3% dos 403 mil habitantes foram vacinados. Os PIBs per capita dos municípios são bastante desiguais: aproximadamente R$ 52 mil em Santos e R$ 14,4 mil em Carapicuíba.

Na cidade de São Paulo, a vacinação dos distritos mais ricos e mais pobres difere significativamente. Nos cinco locais mais vacinados até 25 de março – Pinheiros, Jardim Paulista, Alto de Pinheiros, Campo Belo e Vila Mariana –, a primeira dose foi aplicada em 17% da população, e a renda média é de R$ 9.230. Já nos cinco menos vacinados – Anhanguera, Parelheiros, Jardim Ângela, Perus e Cidade Tiradentes –, apenas 4% dos habitantes foram vacinados, e a renda média de R$ 1.167.

Até 25 de março, Marcação, na Paraíba, administrou 73 doses de vacina contra Covid-19 a cada 100 habitantes. A vizinha Cuité de Mamanguape distribuiu apenas 5 doses a cada 100 habitantes. Ambas as cidades têm PIB per capita baixo, R$ 10 mil em Cuité de Mamanguape e R$ 9 mil em Marcação, que tem população majoritariamente indígena, o que não é o caso de Cuité.

Na região do Parque Bom Jesus, na periferia de Goiânia, 2% dos moradores foram vacinados até 25 de março. Nessa região, 70% das pessoas se autodeclaram negras. Já no Setor Marista, no centro da cidade, onde menos de 20% da população é preta e parda, foram vacinados 13% dos habitantes com a primeira dose até a mesma data.

A desigualdade na vacinação também está presente dentro da favela. Na cidade do Rio de Janeiro, no CEP 22452, que cobre metade da favela do Vidigal, apenas 4% dos moradores foram vacinados com a primeira dose. A renda média dos habitantes do Vidigal é de R$ 1.789. Já no Baixo Leblon, 13% da população recebeu a primeira dose, e 4%, a segunda dose. A renda média dos moradores do bairro Leblon é de R$ 11.311.

Nota metodológica:  As comparações do Open Data SUS limitam-se a dados de ao menos duas semanas antes da data de publicação do =igualdades e não comparam UFs distintas, pois há atraso na importação das informações das secretarias estaduais de Saúde para a plataforma federal, o que gera distorções para datas mais recentes.

 

Fonte: Dados do Open Data Sus, IBGE, Bacen e Secretarias Estaduais de Saúde via coronavirusbra1/Giscard, compilados pelo Pindograma

 


Luiz Carlos Azedo: Cenário ruim para 2022

Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, como o desemprego

Com a leitura do requerimento da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), consolidou-se uma das principais linhas de força da disputa eleitoral de 2022, a crise sanitária. Mesmo que a pandemia venha a ser controlada, suas consequências políticas se farão sentir durante a campanha eleitoral, devido ao agravamento do desemprego, que não se resolverá facilmente, e o presidente Jair Bolsonaro será responsabilizado pela oposição, não somente pelo número muito alto de mortes. Os dois problemas ainda se somarão à disputa em torno da Operação Lava-Jato, mesmo que seus processos sejam concluídos ou arquivados, e à defesa da democracia, uma pauta que Bolsonaro reiteradamente põe na ordem do dia ao atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), além de os partidos de oposição e a imprensa.

Não foi à toa que Bolsonaro tentou melar a CPI e orientou seus aliados a ampliarem o escopo das investigações, para chegar a governadores e prefeitos, o que somente é possível, constitucionalmente, seguindo o dinheiro destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelo governo federal. Pacheco, cumprindo determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, apensou o requerimento da CPI apresentado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) para investigar a responsabilidade de estados e municípios em más condutas no enfrentamento da pandemia, ao pedido original do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), unificando as duas CPIs requeridas.

Segundo Pacheco, “estão excluídos do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes federados”. A guerra de narrativas entre Bolsonaro e a oposição marcará o funcionamento da comissão, mas são os fatos que determinarão o rumo das investigações.

No dia em que CPI passou a existir de fato, o Brasil registrou 3.808 óbitos por covid em 24 horas e mais 82.186 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 358.425, e o total de casos aumentou para 13.599.994. Na segunda-feira, foram registrados 1.480 óbitos e 35.785 novos casos. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu, ontem, que o Brasil tem 1,5 milhão da segunda dose de vacina em atraso. Ou seja, o cobertor está curto: muitas pessoas não estão recebendo o reforço adequado porque o fluxo de produção de vacinas, principalmente na Fiocruz, não acompanhou a escala da imunização pela primeira dose e houve uma opção de reduzir os estoques de segunda dose para aumentar o número de vacinados parcialmente.

Inflação

Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, que registra uma de suas maiores taxas de desemprego da história, em torno de 14,5% neste ano, ultrapassando a de países como Colômbia, Peru e Sérvia, e caminha na contramão da taxa média global, cuja estimativa é de recuo para 8,7% este ano, ante 9,3% em 2020. Uma das consequências do desemprego é a fome, que atinge seis de cada 10 domicílios brasileiros; no Nordeste, são sete em cada 10 domicílios, segundo pesquisa das universidades federais de Brasília e Minas Gerais, e a Universidade de Berlim.

Ciente do problema, Bolsonaro tenta culpar governadores e prefeitos. A falta de comida na mesa é leve em 32% das casas, moderada em 13% e grave em 15% (nada pra comer). Além disso, a qualidade da alimentação piorou: queda superior a 40% no consumo de carnes e frutas e de 37% no consumo de verduras e legumes. A pesquisa mostra, ainda, que, em 63% dos domicílios, o auxílio emergencial ser- viu para comprar cesta básica. É um cenário perigoso, porque o auxílio emergencial e o Bolsa Família estão sendo insuficientes para resolver o problema alimentar das famílias de baixa renda por causa da inflação dos alimentos. Nos dois primeiros anos do atual governo, o custo da cesta básica subiu 32%.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-cenario-ruim-para-2022/

Bernardo Mello Franco: Bolsonaro está com medo

Jair Bolsonaro está com medo. O capitão sabe que a CPI da Covid pode se tornar uma ameaça ao seu mandato. Por isso, descontrolou-se quando o Supremo mandou o Senado instalar a comissão.

Na sexta-feira, o presidente vociferou contra o ministro Luís Roberto Barroso. Acusou-o de fazer “politicalha”, “militância” e “jogada casada” com a oposição. Faltou dizer que o juiz se limitou a aplicar a lei.

Barroso anotou que a comissão parlamentar de inquérito é um direito da minoria. O Supremo reconheceu isso quando contrariou o governo Lula e determinou a abertura das CPIs dos Bingos e do Apagão Aéreo.

No sábado, Bolsonaro passou do protesto à conspiração. Em conversa com o senador Jorge Kajuru, sugeriu retaliar a Corte com uma ofensiva para destituir ministros. “Tem que fazer do limão uma limonada”, justificou.

No mesmo telefonema, ele disse que desejava “sair na porrada” com o senador Randolfe Rodrigues. Um presidente que ameaça bater no líder da oposição parece avacalhação demais até para o Brasil de 2021.

No desespero, o governo ainda tentou desviar o foco da investigação para mirar em governadores e prefeitos. A ideia esbarrou num detalhe: o Senado não pode invadir o terreno de Assembleias e Câmaras. A comissão se limitará a apurar o destino de repasses federais a estados e municípios.

Bolsonaro sabe o que fez e deixou de fazer para que o Brasil se transformasse no epicentro da pandemia. Agora a CPI poderá identificar suas digitais na falta de vacinas, na sabotagem às medidas sanitárias e na morte de pacientes por falta de oxigênio.

No melhor cenário para o capitão, a investigação ampliará seu desgaste às vésperas da campanha. No pior, ajudará a responsabilizá-lo criminalmente pelo morticínio.

Ontem o senador Fernando Collor escancarou os riscos que o presidente passou a correr. “Temos que ter consciência do momento em que vivemos”, discursou. “Falo isso como alguém que já passou e viveu episódios dramáticos da vida nacional.”

No caso dele, a CPI deu em impeachment.


Felipe Salto: Alô, alô, planeta Terra chamando

O Brasil perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado

O ministro da Economia usou estranha analogia ao tratar do Orçamento de 2021: o pouso de uma nave em Marte. Não vale a pena transcrever o que foi dito. Nos anos 1990 a TV Cultura transmitia o programa Mundo da Lua. Lucas Silva e Silva, personagem principal, gravava suas histórias sempre começando com o bordão: “Alô, alô, planeta Terra chamando”.

O governo tem nas mãos verdadeiro imbróglio orçamentário a resolver até o dia 22 de abril, prazo final para sancionar ou vetar a Lei Orçamentária Anual (LOA). A subestimativa das despesas obrigatórias, a exemplo das previdenciárias, é expressiva, como mostrei no meu artigo de 30/4. Em que pese a incerteza intrínseca aos cenários futuros, é fato que o volume de despesas discricionárias (as mais suscetíveis de cortes) da LOA não caberá no teto dos gastos públicos.

O teto é uma regra constitucional. Não tem escapatória. Os créditos extraordinários ficam de fora, é verdade, mas só podem ser editados em situação específica, quando comprovada situação de imprevisibilidade e urgência, conforme o parágrafo 3.º do artigo 167 da Constituição. O auxílio emergencial, por exemplo, será pago por meio de crédito extraordinário. Outros gastos com saúde têm sido feitos na mesma base, como em 2020. Aí incluídas as verbas para a compra de vacinas.

Mas a despesa ordinária é limitada ao teto. Se as despesas obrigatórias projetadas pela Instituição Fiscal Independente (IFI) se confirmarem e as despesas discricionárias da LOA não forem cortadas, o gasto total sujeito ao teto ficará em R$ 1,518 trilhão, isto é, quase R$ 32 bilhões acima do limite constitucional. E atenção: o processo orçamentário não se desenrolou em um dia, o projeto da LOA foi apresentado em agosto.

É da natureza do Congresso buscar elevar as emendas parlamentares. Não é novidade. Em 1989, o presidente José Sarney viu-se diante de um dilema: vetar o primeiro Orçamento com receitas reestimadas pelo Congresso ou sancioná-lo e, dali em diante, consagrar uma prática que alteraria a lógica do processo orçamentário concebido na Carta de 1988. A correção desse sistema passa pela adoção de projeções independentes para as receitas públicas. A estimativa de arrecadação não deveria ser fruto de decisão política, mas de trabalho de especialistas com autonomia.

Quando o teto de gastos passou a limitar a estratégia do recálculo das receitas, partiu-se para o cancelamento de despesas como meio para abrir espaço fiscal. Seria legítimo se realista. Vale dizer, em 22 de março de 2021, antes da aprovação do Orçamento, o governo publicou documento com números atualizados para o cenário fiscal prospectivo que não batem com a LOA.

Em entrevista a Idiana Tomazelli, do Estado, o senador Márcio Bittar explicou: “Para mim é muito ruim ficar levando a responsabilidade de ter inventado o número e os cortes. Jamais eu faria isso. Não foi obra minha. Isso foi construído a todas as mãos”. De fato, o processo orçamentário – que tem rito próprio definido na Constituição, em razão de sua importância – sempre foi gestado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso e pelo Poder Executivo. Foi assim em todos os governos.

Os que acompanham minimamente o processo orçamentário sabem que o trabalho é conjunto, como bem disse o senador Bittar. Não adianta, agora, gastar energia com o que não resolverá a confusão. É momento de construir soluções, que demandarão articulação, participação dos técnicos da área jurídica e orçamentária e coordenação com os órgãos de controle. Para ter claro, é a vez da experiente burocracia estatal.

A matemática é simples: as despesas de Previdência, abono salarial, seguro-desemprego e compensação ao regime geral de aposentadorias pela desoneração da folha de salários terão de ser suplementadas, pois vão ser realizadas. Caso contrário, quando faltar orçamento, os beneficiários não receberão suas aposentadorias e pensões, seus auxílios e transferências. Seria inimaginável operar sob esse risco.

Para suplementar as dotações orçamentárias desses gastos obrigatórios será preciso cortar as discricionárias, que incluem as emendas parlamentares. Uma solução seria o veto parcial da LOA combinado com o envio de projeto de lei do Executivo para o Congresso a fim de corrigir os problemas. Outra, a sanção da LOA sem alterações acompanhada de projeto de lei mais amplo. Esta segunda opção, a meu ver, é arriscada, pois pode envolver a sanção de uma lei em desacordo com os preceitos da responsabilidade fiscal.

Fernando Rezende, referência no tema das finanças públicas nacionais, defende, há anos, que se promova verdadeira reforma orçamentária e fiscal no País. Contudo os caminhos escolhidos têm sido pavimentados por pinguelas. Mais dia, menos dia, elas desabam. De remendo em remendo, tem-se um sistema fiscal pouco eficiente, rígido e sem transparência. O País perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado.

É hora de trazer a nave de volta. “Alô, alô, planeta Terra chamando.”


Hélio Schwartsman: O paradoxo de Bolsonaro

Quanto mais crimes de responsabilidade o presidente comete, mais nos acostumamos com a situação

Atribui-se a Eubulides de Mileto o paradoxo do monte (“sorítes”). Um grão de areia obviamente não constitui um monte. Se eu adicionar um segundo grão ao primeiro, ainda não tenho um monte. Nem com um terceiro. Mas, se eu continuar com esse processo, em algum momento eu chegarei lá. De quantos grãos eu preciso para fazer um monte?O diálogo entre Jair Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru pode sem grandes pinotes interpretativos ser enquadrado como mais um crime de responsabilidade, ou até dois, se valorizarmos a linguagem chula.
Pelas contas da Folha, em janeiro já havia 23 situações que poderiam ser classificadas como crimes de responsabilidade do presidente. Nos últimos três meses, Bolsonaro adicionou novos itens à lista. Quantos delitos mais ele precisa cometer para que tenhamos um monte de ilícitos e o Congresso decida pará-lo?

Filósofos, matemáticos e linguistas estão há 2.500 anos propondo soluções engenhosas para paradoxos como os de Eubulides, que fazem recurso à indeterminação ou à vagueza dos termos. Numa delas, a filósofa Diana Raffman traz a noção de histerese e sustenta que os limites em que os termos serão usados são elásticos e se relacionam com a história dos objetos.

Assim, se um objeto já era reconhecido por todos como um “monte de areia”, poderá continuar a ser chamado de monte mesmo que perca uma quantidade de grãos que, fosse outro o objeto, levaria a um rebaixamento de monte para pilha.

Vincular a categoria à história, porém, pode ser diabólico quando lidamos com questões institucionais. É mais ou menos o que estamos presenciando. Quanto mais crimes de responsabilidade Bolsonaro comete, mais nos acostumamos com a situação e mais difícil fica estabelecer que ele já excedeu o limite que exige uma ação. Em suma, quanto mais ele viola a lei, menor a possibilidade de que venha a ser punido —o que nos leva a uma outra família de paradoxos.


FHC: “Não pode ser o candidato da elite”

Para ex-presidente, nome da terceira via em 2022 precisa conhecer bem realidade brasileira

Cristiano Romero, Valor Econômico

BRASÍLIA - Na polarização que se desenha para a eleição de 2022, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) afirma ser possível criar o “espaço” para uma terceira via competitiva que enfrente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual, Jair Bolsonaro (sem partido). Desde que a alternativa construa esse “espaço” com um forte discurso de “progresso econômico”, que conheça a realidade brasileira e não seja “anódina”. “É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite”, defende, em entrevista ao Valor.

Para FHC, o Brasil “gosta de novidade” e a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos é “positiva” por refletir “aqui de alguma forma” a possibilidade de se escolher “uma candidatura que seja equilibrada”. O ex-presidente almeja, mas não enxerga no momento o portador do perfil ideal para combater Lula e Bolsonaro em 2022: alguém que exerça liderança nacional, “atenda aos mais pobres” e seja popular.

“Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição”, diz. “Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas eles não simbolizam nada nacionalmente”, acrescenta FHC, correligionário dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, pré-candidatos na corrida presidencial.

Para o tucano, “política não se faz com o passado”, mas com o futuro. Apesar disso, a disputa em 2022, afirma, pode favorecer Lula. Em sua opinião, o petista, na falta de uma terceira via competitiva, pode aglutinar forças do centro. “Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo”, diz o tucano, que tampouco é a favor do impeachment de Bolsonaro. “Estamos muito longe de uma situação de impeachment. Bolsonaro está governando. Então, acho que é insensato”, disse.

A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: O senhor imaginou que o Brasil fosse se tornar o epicentro da pandemia?

Fernando Henrique Cardoso: Na minha casa falavam muito da gripe espanhola, que foi algo muito difícil, mas nunca mais se falou de uma pandemia no sentido que temos hoje. As pessoas não estavam, em geral, preparadas para isso. Quando o governo não sinaliza a gravidade, é pior. A situação é muito complicada, o número de mortos não para de crescer. E o pior é que os pequenos negócios na economia estão fechando, todo mundo está sofrendo as consequências e vai sofrer por muito tempo ainda.

Valor: Como estaremos depois da pandemia?

FHC: Não sei o que vai acontecer porque, neste momento, todos querem salvar a própria pele, todo mundo pensando em si mesmo, depois vai pensar na vida. E a vida é o trabalho, a política. O Brasil é curioso porque tem um serviço de saúde bom. Quando eu era criança, aqui só havia as santas casas de misericórdia e olhe lá. Hoje, temos o SUS e ele funciona, atende às pessoas. Eu uso o SUS.

Valor: Mas o senhor é bem atendido porque é ex-presidente.

FHC: Espero que sim, mas a cama é a mesma, os lençóis são os mesmos, os médicos, enfim, o SUS é razoável.

Valor: O que está faltando?

FHC: Confiança. É difícil manter a confiança numa situação dessas. E com o nosso presidente que acha que a pandemia é uma gripezinha, ninguém acredita em nada. Agora, isso não para a vida política. Ainda bem que tem eleição, mas sempre repito: política não se faz com o passado.

Valor: Não?

FHC: Não. Política se faz com o futuro. O que você apresenta, qual é o caminho. Num país como o Brasil, isso é mais forte.

Valor: Por quê?

FHC: Porque aqui não tem partido para disciplinar os políticos. O povo vai atrás de pessoas que expressam aquele momento. Neste momento, você olha em volta e vê falta de quem expresse alguma coisa. Vamos ver quem, depois da pandemia, vai expressar o momento novo do Brasil. É um país que tem futuro, tem riqueza, tem gente.

Valor: Mas não cresce há sete anos.

FHC: O problema fundamental é retomar o crescimento, mas diminuir a desigualdade, que é muito grande. Quando falam do meu governo, dizem: “Ele fez o Plano Real”. O real foi importante, mas fiz a reforma agrária, algo que tem um peso grande para a população. A educação melhorou bastante, Paulo Renato [de Souza] era um bom ministro; a saúde, onde o [José] Serra foi um bom ministro, antes dele o [Adib] Jatene, deu um salto grande. Comecei a reforma fiscal para enfrentar o déficit público, que sempre existiu e agora vai aumentar.

Valor: Bolsonaro, ex-deputado sem grandes pretensões políticas, rompeu com a polarização PSDB-PT que prevaleceu de 1994 a 2018. Como se explica isso?

FHC: Bolsonaro veio como o anti-PT. O pessoal ficou com medo da vitória do PT.

Valor: Medo do que exatamente?

FHC: O medo não estava baseado propriamente em fatos, mas muito mais na pintura que se fazia das coisas. Na verdade, quando foi presidente, Lula governou de acordo com o mercado. A presidente Dilma [Rousseff] foi mais voluntariosa, mas não fez nada que fosse contra os interesses predominantes. Ela podia ser menos capacitada que o Lula para lidar com a máquina pública.

Valor: Onde o senhor acha que a ex-presidente errou?

FHC: Ela rompeu [com o modelo macroeconômico herdado de Lula], sobretudo, no segundo mandato [2015-2016], quando fez outra coisa. A Dilma era mais estatizante que o Lula.

Valor: Lula manteve o modelo adotado em seu governo e, inclusive, o aperfeiçoou. Um exemplo foi a acumulação de reservas cambiais. Como o senhor o define?

FHC: O Lula é prático. Eu o conheci bastante quando ele era dirigente sindical. Ele é inteligente, sensível e prático. Sempre teve mais amor ao capital, mas nunca deixou de olhar para o povo, sempre fez uma mescla das duas coisas. É mais paulista: “O governo faz, mas quem faz também é o mercado”. Com a Dilma, é mais Estado. Não deu certo não só por ser Estado, mas também porque a conjuntura não favoreceu. Bolsonaro se elegeu na base de que é um liberal.

Valor: Ele é um liberal?

FHC: Não é liberal. É um militar e eu conheço bem os militares. Meu pai era general e meu avô, marechal. Nada contra isso, mas conheço a mentalidade militar deles, que é mais Estado. No caso do presidente, ele é capitão, então, é mais reivindicativo ainda. Nunca falei com ele, mas lembro que ele era um ser reivindicante, queria coisas para os militares. Não me parece que ele tenha grandes habilidades políticas.

Valor: Mas foi eleito presidente.

FHC: Sempre disse: quem tem votos eu respeito. Ele foi eleito. Sou visceralmente antigolpe. Nossa sociedade provou o gostinho da liberdade, é difícil voltar atrás.

Valor: O senhor não vê risco de golpe da parte do presidente?

FHC: Acho que não tem. Ele pode ter o ímpeto que tiver, não sei qual é o ímpeto dele, mas não pega. É difícil você botar um país do tamanho do Brasil na risca, tem que ter um partido. Aqui não tem nem partido nem de esquerda nem de direita.

Valor: E os partidos que chegaram ao poder, como PT e PSDB, são hoje bem menores do que eram, o que mostra que a fragmentação das legendas continua aumentando.

FHC: Além da fragmentação partidária, temos tradição de seguir o líder, de seguir pessoas. Bolsonaro, querendo ou não, tem liderança, o Lula também. Estão pregando a necessidade de localizar o centro. Depende de pessoas. Quem é? Não pode ser um centro anódino. Isso não pega na política.

Valor: Quem teria esse perfil?

FHC: Tem que ser alguém que faça a economia crescer e dê emprego para quem precise e atenda aos mais pobres. É fácil falar e difícil fazer, mas tem que simbolizar isso. Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas não simbolizam nada nacionalmente.

Valor: É torcedor do Fluminense ou do Flamengo?

FHC: Eu era mais Fluminense, mas estava errado. Era melhor ter sido mais Flamengo... Quando fui candidato à Presidência [em 1994], Marcello Alencar era [candidato a] governador do Rio. Ele tinha força na Baixada Fluminense e me levou a uma cidade da região. No [Estado do] Rio, não conhecia nada; mais Niterói. Era assustador para mim.

Valor: Por quê?

FHC: Fui a um lugar onde tinha um bar, uma escadinha, por onde subimos e chegamos a uma sala grande, meio escura, onde estavam os “chefes” da Baixada, todos com pulseiras e colares de ouro. Eu era ministro da Fazenda. Conhece a Ana Tavares [então assessora especial]? Ana ia comigo e dizia: “Não vai falar com fulano!”. Eu dizia: “Ana, eu tenho que falar”. É complicado. Nossos líderes que estão aí têm que conhecer o Brasil. Eu tinha algum conhecimento de Brasil porque, primeiro, fui sociólogo. Minha mãe nasceu em Manaus. Minha família, por parte de mãe, é de Alagoas. Meu pai nasceu no Paraná, mas a família é de Goiás. Você tem que conhecer essa realidade, a diversidade que é o Brasil. Não adianta saber pelos livros, tem que ter contato com as pessoas. Ser líder político no Brasil não é fácil.

Valor: Como assim?

FHC: Bolsonaro tem a vantagem de ser capitão da reserva. Não sei o quanto ele andou pelo país, mas, mesmo que não tenha feito isso, eles [os militares] têm um certo conhecimento da realidade. Algum conhecimento do povo o líder político tem que ter. Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição. Os que estão aí e que são possíveis candidatos podem vir a ter, mas têm que obrigatoriamente vir a ter.

Valor: O senhor disse que ficou assustado com o encontro na Baixada Fluminense. Como foi?

FHC: Ah, chegou uma hora, depois de me ouvirem, que um deles disse: “Eu aposto não sei quanto nesse menino aí”. O menino era eu [com 63 anos na época]! Andei muito na Baixada com o Zito [José Camilo Zito dos Santos Filho, ex-prefeito de Duque de Caxias]. É muito importante falar com todo mundo e isso, que as pessoas pensam que é fácil, não é. Quando era presidente, eu falava com os motoristas, o sujeito que tomava conta da piscina [do Palácio da Alvorada], a moça que cuidava das flores, que se chama Dalina... Eu queria saber como as pessoas simples sentem a vida. Como não há estrutura partidária que sustente uma candidatura, é você que tem que se projetar. Projetar é jogar para fora, não é ficar para dentro. É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite. Se ficar só na elite, está perdido.

Valor: Pesquisas mostram que, com a volta de Lula, neste momento a disputa de 2022 está entre ele e Bolsonaro. Há espaço para uma terceira candidatura, de centro?

FHC: Em política, o espaço é criado. Não está dado. Eu gostaria que houvesse alguém que criasse esse espaço. A maioria [dos eleitores] não é uma coisa nem outra, então, alguém tem que criar. No Brasil, o importante é o progresso econômico. Os que são espertos, Bolsonaro e Lula, ganharam espaço porque tiveram a capacidade de demonstrar [que conhecem a realidade].

Valor: Terão a mesma capacidade agora?

FHC: O Brasil gosta de novidade. Depende de aparecer uma novidade que seja palatável para a maioria da população. O mundo hoje é um mundo mais calmo, não tem expectativa de guerra. Isso reflete aqui de alguma maneira. Ganhou nos Estados Unidos o [Joe] Biden. Isso para nós é positivo porque não foi o extremo que ganhou. Então, há condições para uma candidatura que seja equilibrada, que não seja do extremo.

Valor: Lula é do extremo?

FHC: Não estou dizendo que Lula seja de extremo porque ele não é. Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo. O Lula é inteligente, pegou no ar, aprendeu. O que ele vai simbolizar? Não sei. O que foi que ele simbolizou com o governo? Foi uma época feliz da vida no Brasil. E a economia foi bem. Mas ele não vai simbolizar o que vão dizer que ele simboliza, que é o socialismo, o comunismo, o Lula vermelho.

Valor: O que a sociedade tem a seu alcance para lidar com um presidente que nega a gravidade da pandemia desde o início e, por isso, não comprou a vacina ao tempo?

FHC: Ele vai pagar um preço por isso se houver alguém que diga isso, com força. Se não houver, não adianta. Política é sempre assim.

Valor: O governador de São Paulo, João Doria, está fazendo isso e o resultado tem sido o oposto. O Estado produz a vacina, mas esta tem que ser entregue ao governo federal para distribuição nacional. Como o governo atrasa a importação de vacina, o governador tem que fazer “lockdown” e isso derruba sua popularidade. Ele não corre risco de perder a reeleição?

FHC: Pode ser que ele ganhe de novo, pode ser. Por enquanto, quem está pagando um preço elevado [pela falta de vacinas] são os governadores. Você sabe como é o povo aqui. O povo não olha quem está tão lá em cima.

Valor: Quando começar a imunização em massa, Bolsonaro não pode se tornar o “pai” da vacina?

FHC: Quem for o pai da vacina terá vantagem eleitoral enorme, mas, isso hoje. Não sei daqui a um ano, porque as pessoas esquecem.

Valor: Em 36 anos de redemocratização, tivemos dois presidentes afastados por impeachment. Nossa democracia é frágil?

FHC: Não. Acho que já está consolidada, o povo gostou da liberdade de escolher. Eu acho difícil que dê marcha à ré. Não é impossível. Como dizia Otávio Mangabeira [ex-governador da Bahia], “a democracia é uma plantinha tenra que tem que ser regada todo dia”.

Valor: O senhor apoiaria Lula?

FHC: No segundo turno, se ficar o Lula contra o Bolsonaro, não sei se o PSDB vai fazer isso... Se depender da minha inclinação, iria nessa direção, com muita dificuldade porque o Lula jogava pedra em mim.

Valor: Mas ele ainda joga?

FHC: Não, ultimamente não tem jogado, porque ele não precisa.

Valor: As condenações, agora anuladas, e a prisão de Lula o tiraram da eleição de 2018. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro é acusado de ter agido politicamente. Como o senhor avalia isso?

FHC: É isso aí, o Moro fez isso. Acho que ele fez um erro ao aceitar ser ministro. Ele mostrou, na época da Lava-Jato, sua importância no combate à corrupção. É importante, é verdadeiro. Mas, depois, entrou no jogo de poder. Não é a dele. Ele é um bom juiz. O jogo do poder é um jogo difícil e ganhar do Lula não é brincadeira, é difícil. Ele sabe. Lula segue a regra. Instintivamente, ele sempre faz isso. Isso não quer dizer que o outro lado não possa transformar o Lula num fantasma outra vez. Pode, independentemente do Lula. É claro que eu não vou contribuir para isso nunca.

Valor: Para onde vai o PSDB, que, assim como o PT, se enfraqueceu e sem dividiu nos últimos anos?

FHC: Unir o PSDB é uma tarefa sempre difícil. E não sei se se deveria perder muito tempo com isso, porque não são os partidos que elegem os governantes. Eu me dou com o Doria. Sou amigo dele há muito tempo. Conheço pouco o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é do PSDB também. Ele tem bom nome também. Agora, é mais recente e o Sul é longe do centro. Mas vai ficar entre esses dois, você vai ver.

Valor: E o Luciano Huck?

FHC: Eu o conheço bem, sou amigo da mãe e do padrasto dele. Não sei... Ele vai ter que decidir agora. Ele teria que queimar a vela e deixar a [Rede] Globo. É agora. Se ele tomar a decisão e se jogar, tem condição de se transformar num político. Mas tem que se transformar num político, naquilo que os outros já são. Não é tão simples assim. Ele tem mais popularidade do que qualquer deles, hoje. Ter popularidade é uma coisa, ser líder político não é a mesma coisa. É bom ter popularidade, mas tem que ser como líder político. Eu não quero dizer que ele não possa, mas ele vai ter que mostrar que pode se transformar em um líder político. Custa mais a ele do que aos outros porque os outros já queimaram as velas.

Valor: O senhor acha que há motivos para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro?

FHC: Nunca fui favorável à ideia que você trabalhasse pelo impeachment. É golpe, de outra maneira. Na situação da Dilma, ela mesma inviabilizou. Mas agora estamos muito longe de uma situação de impeachment. Ele está governando. Então eu acho que é insensato.