Eleições
BBC Brasil: Como análises matemáticas afastam hipótese de fraude nas urnas
A pretensa análise matemática dos resultados das eleições brasileiras se tornou a principal arma de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para sustentar que já houve fraude nas urnas eletrônicas — alegação contestada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
Mariana Schreiber, Da BBC News Brasil
Em sua live semanal desta quinta-feira (29/7), o presidente fez uma série de acusações contra a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e anunciou que a Polícia Federal analisará um vídeo em que são apresentadas supostas provas de que a apuração dos votos de 2014 foi manipulada para garantir a vitória da então presidente Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves (PSDB) no segundo turno, quando o tucano perdeu por uma margem apertada de votos. O próprio PSDB, porém, reconhece que o resultado foi legítimo.
Eleição em 2022 'é inegociável': as reações de autoridades à suposta ameaça do ministro da Defesa
Nesse vídeo de 2018, um anônimo analisa a evolução da contagem dos votos minuto a minuto, identificando o que seria um supostamente um padrão estatisticamente impossível de ocorrer naturalmente.
O vídeo foi produzido e divulgado por Naomi Yamaguchi, que tentou ser eleita deputada federal em 2018 pelo PSL e é irmã da médica Nise Yamaguchi, apoiadora de Bolsonaro conhecida por defender o uso da cloroquina no tratamento de covid-19, apesar de o remédio não ter eficácia comprovada contra a doença.
A argumentação exposta nesse vídeo, porém, é contestada pelo TSE e por especialistas em segurança de dados e estatística ouvidos pela BBC News Brasil. Análises matemáticas produzidas por acadêmicos têm identificado, inclusive, o oposto: que não há evidências de fraudes nas urnas eletrônicas.
Nessa reportagem, a BBC News Brasil destrincha os argumentos matemáticos que tentam comprovar as supostas fraudes e explica por que os cálculos são inconsistentes na avaliação de especialistas. Você vai entender, por exemplo, como o uso da Lei de Benford nessas análises tem sido aplicada de forma controversa para tentar detectar padrões fraudulentos na distribuição de votos nas urnas.
Os questionamentos e as suspeitas sobre a proxalutamida, nova droga defendida por Bolsonaro contra a covid-19
Ao final, a reportagem mostra também como o cientista político Guilherme Russo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aplicou uma metodologia desenvolvida por acadêmicos estrangeiros para analisar a distribuição dos votos nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 e não encontrou evidências de fraudes.
Os especialistas ouvidos enfatizam que análises estatísticas não são capazes de provar que houve ou não manipulação nas eleições. Elas servem apenas como ponto de partida para detectar se há algum indício de anormalidade que precise ser melhor investigado.
Bolsonaro tenta provar que houve fraude nas eleições para sustentar a necessidade de alterar a urna eletrônica para incluir um comprovante impresso do voto. Segundo ele, apenas isso permitiria a auditoria do resultado eletrônico.
Já o TSE afirma que a urna eletrônica permite a auditoria dos resultados por meio do Boletim de Urna que é impresso ao final da votação na seção eleitoral (o documento possibilita comparar os votos computados em cada urna no sistema eletrônico do TSE com os do respectivo boletim).
Críticos de Bolsonaro dizem que ele não está de fato preocupado com a segurança da votação e deseja lançar desconfianças sobre o sistema eletrônico para contestar o resultado do pleito de 2022 caso não consiga se reeleger.
Entenda a seguir as falhas nas análises matemáticas que vem sendo apresentadas como "provas" de fraudes por Bolsonaro e seus apoiadores e como outras aplicações da ciência estatística têm afastado essa hipótese.
Os problemas nos cálculos que tentam provar fraude em 2014
"Em 2014, a pessoa que eu vou entrevistar, usando apenas as parciais (da apuração de votos) fornecidas pelo TSE e cálculos matemáticos, descobriu as fraudes nas urnas", afirmou Naomi Yamaguchi ao iniciar o vídeo de cerca de 15 minutos em que fala com um homem anônimo que diz ter provas de uma suposta ilegalidade na apuração da eleição presidencial.
Temperatura para impeachment de Bolsonaro 'vai esquentando', diz vice-presidente da Câmara
A imagem do entrevistado não é revelada, sendo possível apenas ouvir sua voz enquanto conversa com Yamaguchi.
A análise parte de uma premissa falsa: no vídeo, o homem diz ter certeza que a eleição foi fraudada porque o candidato Aécio Neves, no início da apuração, quando um volume ainda pequeno de urnas tinha sido contabilizado, atingiu um percentual de quase 70% dos votos válidos contra cerca de 30% de Dilma.
Conforme mais votos foram sendo contabilizados, Dilma inverteu a vantagem, conquistando uma vitória por pequena margem: o placar final da eleição ficou em 51,64% para a petista contra 48,36% do tucano.
Essa inversão, porém, é explicada pela dinâmica da contagem de votos em 2014, segundo o TSE. Por causa do horário de verão que era adotado em parte do país naquele ano, zonas eleitorais de estados do Norte e Nordeste fecharam depois de zonas do restante do país.
Dessa forma, a contagem começou com urnas de regiões onde Aécio era mais forte (Sul e parte do Sudeste), dando vantagem inicial ao tucano. Quando mais urnas do Norte e Nordeste foram contabilizadas, Dilma virou.
"Isso frustrou o país todo, inclusive a mim. E naquela hora eu tive certeza de que as urnas foram fraudadas", disse o anônimo no vídeo, ao comentar a inversão da vantagem de Aécio ao longo da apuração.
O homem conta então que buscou uma forma de provar a fraude a partir de uma análise da evolução da contagem de votos minuto a minuto, divulgada pelo TSE. "Se eu analisar esses números e descobrir um padrão, eu comprovo que esses números foram frutos de uma fórmula matemática, de um algoritmo", disse.
A partir daí, ele afirmou ter analisado a variação do incremento de votos de Dilma e Aécio em cada minuto e encontrou um padrão que seria praticamente impossível estatisticamente: por 241 minutos seguidos, os dois candidatos teriam se alternando na liderança da variação do ganho de votos.
"Aqui nós temos (a alternância) Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio. Quantas vezes, Naomi? 241 vezes Dilma, Aécio (se alternando)", sustentou o entrevistado de Yamaguchi.
"Aqui eu encontrei o padrão que eu procurava. E isso aqui não é o resultado de uma eleição natural, aonde se abrem urnas de vários pontos do país e você tem minuto a minuto uma variação imprevisível. Aqui, é totalmente previsível. E eu concluo com isso que somente uma fórmula poderia produzir este minuto a minuto que a gente enxergou em 2014", disse ainda o homem.
Ao analisar os dados brutos da apuração minuto a minuto, a BBC News Brasil não encontrou um padrão de alternância entre os incrementos de votos de Dilma e Aécio em 2014 durante os 333 minutos que duraram a contagem.
Os números oficiais do TSE indicam, na verdade, que Aécio liderou sozinho o ganho de votos nos minutos iniciais. Depois, Dilma apresentou maior incremento de votos na maior parte do tempo, com o tucano recebendo mais votos em alguns momentos pontuais.
O especialista em segurança de dados Conrado Gouvêa, doutor em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também analisou a apuração minuto a minuto e não encontrou um padrão de alternância entre os ganhos de votos de Dilma e Aécio. Sua análise está detalhada em seu site pessoal.
Gouvêa reproduziu as tabelas divulgadas no vídeo de Yamaguchi para tentar entender a análise sugerida pelo entrevistado e identificou que foi feito um cálculo errado que tem o resultado prático de necessariamente levar a alternância de Dilma e Aécio como o vencedor da apuração minuto.
Isso porque, em vez de analisar quem ganhou o maior incremento de votos a cada minuto, o homem anônimo elaborou uma metodologia em que analisou alternadamente o desempenho de cada candidato nos minutos ímpares e pares da apuração.
Ele passou a somar a cada minuto par os votos obtidos em todos os minutos pares anteriores de cada candidato. E fez o mesmo para os minutos ímpares. Depois calculou a evolução da proporção de votos ímpares e pares de cada candidato minuto a minuto.
O problema, afirma Gouvêa, é que com o avançar da apuração a proporção de "votos pares" e "votos ímpares" de cada candidato tende a se estabilizar de uma forma que necessariamente um dos candidatos sempre aparece como "vencedor" nas linhas pares e o outro sempre como "vencedor" das ímpares.
Isso explica porque nos 241 minutos finais de apuração, Dilma e Aécio aparecem alternados na análise feita pelo homem anônimo.
"Eu fiz um teste usando o mesmo cálculo aplicado no vídeo, em que gerei votos aleatórios para Dilma e Aécio, e o resultado alcançado foi o mesmo: dava uma alternância entre os dois. Se a mesma metodologia for usada nos resultados do resultado da eleição de 2018, fatalmente haverá uma alternância por muitos minutos entre Bolsonaro e Haddad (candidato do PT derrotado). Isso não é indício de qualquer fraude", disse Gouvêa à BBC News Brasil.
Ele afirma que é difícil saber se o erro de cálculo no vídeo apresentado por Yamaguchi foi por desconhecimento do entrevistado ou algo intencional para gerar uma falsa prova de fraude.
"Tem duas hipóteses: ou a pessoa realmente achou que estava fazendo uma análise certa e não estava, ou realmente foi má fé. É difícil diferenciar uma coisa da outra, mas a consequência é a mesma: levanta essa acusação (de fraude nas urnas) que não faz sentido, coloca em dúvida todo o processo eleitoral e muitas pessoas caem", lamentou.
Uma conversa de Bolsonaro no início de julho com apoiadores na porta do Palácio do Alvorada evidencia que o presidente é um dos que deu crédito a essa análise. "A fraude está no TSE, para não ter dúvida. Isso foi feito em 2014", disse na ocasião.
"O minuto a minuto, por 271 vezes consecutivas, dá para imaginar? Dá quatro horas e pouco. Momentos antes de as curvas se tocarem, dava: Dilma ganhou, Aécio ganhou, Dilma ganhou, Aécio ganhou, por 271 vezes. É vocês jogarem uma moeda 271 vezes para cima e dar cara, coroa, cara, coroa. Isso deve ser a quantidade de átomos aqui na terra", acrescentou, reproduzindo a tese divulgada no vídeo de Yamaguchi.
A BBC News Brasil procurou Naomi Yamaguchi por meio de sua irmã Nise Yamaguchi. Foram enviadas perguntas por email na segunda-feira (26/7) questionado se ela gostaria de responder às críticas ao seu vídeo, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.
O uso controverso da Lei de Benford
Outra análise matemática que tem sido usada para questionar a integridade da urna eletrônica é a aplicação da Lei de Benford, que é citada na segunda parte do vídeo de Naomi Yamaguchi como mais uma evidência de que a eleição de 2014 foi fraudada.
Além disso, é usada por Hugo Cesar Hoeschl, ex-procurador da Fazenda Nacional, para sustentar em um vídeo de 2018 que "a probabilidade de fraude na última eleição presidencial brasileira (2014) foi de 73,14%".
Sua tese é exposta em um texto de 11 páginas, com explicação superficial da metodologia empregada, e ganhou projeção por meio do veículo conservador Brasil Paralelo, que mantém em sua página do YouTube vídeos em que Hoeschl expõe suas conclusões.
A Lei de Benford, que leva o nome do físico Frank Benford, estabelece que em alguns conjuntos de números, como tamanhos de rio ou da população de cidades, o dígito inicial mais comum é o 1 (com 30,1% de frequência), seguido do 2 (17,6%). A frequência dos demais algoritmos como dígito inicial vai caindo sucessivamente também do 3 até o 9, quando é de apenas 4,6%.
Ou seja, ao analisar a população de todas as cidades do Brasil, por exemplo, há bem mais chances de o número começar com o dígito 1 (por exemplo, 100.148 habitantes, ou 13.400 habitantes, etc), do que começar com 8 ou 9.
Essa regra se mostra consistente na análise de vários conjuntos numéricos e é aplicada inclusive para detectar possíveis fraudes financeiras. Porém, segundo estatísticos consultados pela BBC News Brasil, não serve para prever a distribuição do dígito inicial de todo e qualquer conjunto de números.
Por exemplo, se formos analisar a distribuição da altura de todos os brasileiros adultos, encontraremos uma frequência inicial do dígito 1 muito maior que 30,1% como sugere a Lei de Benford, porque o mais comum é que adultos meçam mais de um metro e menos de dois.
A Lei de Benford, portanto, tende a funcionar quando se está analisando um conjunto abrangente de números que não tenham uniformidade.
No caso do vídeo da Naomi Yamaguchi, o entrevistado diz que aplicou a Lei de Benford para analisar a distribuição do primeiro dígito "nas parciais minuto a minuto fornecidas pelo TSE" da soma de votos de Dilma e Aécio.
O resultado que ele encontra porém destoa totalmente do previsto na lei porque dá uma baixa frequência para os dígitos iniciais 1, 2, 3 e 4 e mostra como algoritmo mais frequente no primeiro dígito o 5, tanto para os votos de Dilma como os de Aécio. E do 6 em diante a frequência é próxima de zero.
A questão é que ele usou na análise a evolução do acumulado dos votos de cada candidato minuto a minuto e, para ambos, a soma dos votos foi subindo gradualmente até atingir o patamar de mais de 50 milhões de votos, se estabilizando pouco acima disso.
O resultado final ficou em 54,5 milhões de votos para Dilma e 51 milhões para o Aécio, sendo impossível, portanto, que os dígitos de 6 a 9 aparecerem com frequência relevante.
"O dígito 5 é o mais frequente por um simples motivo: foram 105 milhões de votos válidos, resultando cerca de 50 milhões de votos para candidato. E a apuração foi ficando mais lenta conforme foi avançando (o que é normal), fazendo com que exista um grande número de parciais na casa dos 50 milhões (primeiro dígito 5), e um número razoável na casa dos 40, 30, 20 e 10 milhões (primeiros dígitos 4, 3, 2, 1). Isso é exatamente o que está ilustrado no gráfico do vídeo (Naomi Yamaguchi)", explica em seu site o especialista em segurança de dados Conrado Gouvêa.
Essa análise, porém, é tratada no vídeo como grande evidência de fraude.
"Nós não temos a Lei de Benford nas parciais minuto a minuto fornecidas pelo TSE. Isso aqui também tem um embasamento muito forte na Matemática de que praticamente é impossível você ter um universo natural de números aonde a maior parte dos números começam com 5. Isso vai totalmente contra a lógica matemática", diz o entrevistado anônimo.
"O Brasil Paralelo fez um estudo esse ano que falou que em 2014 houve 74% de chances das urnas serem fraudadas. Você está nos dando a prova de que foi 100% de chances de elas terem sido fraudadas", responde Naomi Yamaguchi, em referência às teses de Hugo Hoeschl.
A pedido da BBC News brasil, o professor do departamento de Estatística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Rafael Stern analisou o texto de 11 páginas que Hoeschl assina com mais três pessoas (Tania Cristina D'Agostini Bueno, Gilson da Silva Paula e Claudio Tonelli).
Esse artigo diz em sua conclusão que "a eleição brasileira de 2014, sob a ótica da Lei de Newcomb Benford, encontra-se reprovada na análise de conformidade, com grau de certeza de 73,149%".
Para Stern, "faltou rigor científico" ao texto, já que ele não explica detalhadamente a metodologia utilizada e os cálculos feitos. Isso impede que cientistas reproduzam a análise para testar sua validade.
"Parece que é um texto científico, mas não mostra muito bem algumas premissas por trás da análise dele. Eu não saberia replicar exatamente o que ele fez ali. Ele não explica como esse valor de 73% foi calculado. Para um texto rigoroso científico, está faltando muito", disse o professor.
"A Lei de Benford é complicada de um ponto de vista estatístico. Tem muitos artigos escritos sobre as condições em que essa lei é satisfeita, mas se o cenário eleitoral com o processamento que ele fez estaria dentro ou não da lei eu não sei te dizer porque ele não explica bem como foi aplicada", disse ainda.
O estatístico Carlos Cinelli, doutorando na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, usou a Lei de Benford para analisar os resultados da eleição de 2014 e identificou limitações da sua aplicação.
Em seu blog pessoal, ele mostrou que a distribuição da frequência do primeiro dígito na quantidade de votos obtidos por Dilma em cada município apresentou boa correlação com a lei quando aplicada para analisar essa distribuição nacionalmente (ou seja, em todos os municípios do país).
Já quando a análise dos municípios era feita por Estado, foram encontradas discrepâncias grandes com os resultados previstos na lei em locais como Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Sul.
Segundo ele, isso não serve como indicativo de fraude, porque a variação do primeiro dígito no número de habitantes das cidades desses Estados também não segue a Lei de Benford.
Como o número de eleitores (votos) está relacionado ao número de habitantes, logo a lei não seria aplicável nesses casos, ele ressalta em seu site: "Deste modo, para o caso em questão, as grandes discrepâncias entre a Lei de Benford e o número de votos em alguns Estados parecem decorrer, em grande medida, do próprio desvio já presente nas distribuições da população e do eleitorado".
À BBC News Brasil, Cinelli explicou que isso provavelmente ocorreu porque o tamanho da população nas cidades desses Estados deve ser mais homogêneo. E a Lei de Benford funciona melhor quando há uma abrangência grande de números variados.
"Isso (a falta de correlação em alguns Estados) diminui a utilidade da Lei de Benford para identificar indícios de possíveis manipulações", afirma.
Ele ressalta que, mesmo nos casos em que a Lei de Benford se aplica, ela não serve como prova de que houve ou não alguma fraude, mas sim como um indicativo de possíveis focos que devem ser melhor investigados.
Ao analisar o texto de Hoeschl a pedido da BBC News Brasil, Cinelli também identificou problemas, já que ele diz ter aplicado a Lei de Benford nos resultados das zonas eleitorais (em vez de municípios) de cada Estado.
"Não teria porque esperar que a distribuição de votos dentro de cada Estado seguisse a Lei de Benford (para os primeiros dígitos), dado que a própria população não segue. A situação piora ainda mais se olharmos por zona eleitoral. Quanto menor o âmbito da análise, menos a gente espera que a Lei de Benford se aplique para os primeiros dígitos", disse Cinelli.
Procurado pela BBC News Brasil, Hoeschl respondeu aos questionamentos após a publicação da reportagem. Ele discordou da crítica de Cinelli e insistiu que sua análise por zona eleitoral e Estado é adequada.
"Via de regra, os estados possuem mais zonas eleitorais do que municípios, o que significa um universo maior de dados para serem comparados com as proporções de Benford, o que torna a análise mais rica e mais distribuída", disse.
No entanto, o portal do TSE mostra que praticamente todos os Estados têm mais municípios que zonas eleitorais (apenas no Rio de Janeiro ocorre o inverso). O país tem no total 5,5 mil municípios e 2,6 mil zonas eleitorais.
Hoeschl também refutou que falte rigor científico à sua publicação. Questionado se poderia detalhar como chegou ao resultado de 73% de probabilidade de fraude na eleição de 2014, disse que isso já estava claro em seu texto.
"A forma como o método está descrito no texto está bastante simples, clara e objetiva, e se deve discordar da negativa de reprodutibilidade do procedimento ali descrito - ou do seu teor conclusivo - sem que tal negativa esteja escorada em dados concretos, registros de tentativas, logs reconstrutivos, ou resultados diversos dos encontrados até então", afirmou.
A reportagem também questionou o Brasil Paralelo sobre as críticas ao conteúdo de Hoeschl divulgado em seu canal do YouTube. Identificando-se como chefe de relações institucionais do veículo, Renato Dias respondeu por email que Hoeschl foi um dos entrevistados para o mini-documentário Dossiê Urnas Eletrônicas, motivado pelo "grande movimento de pessoas que estavam desconfiadas sobre a auditabilidade das urnas eletrônicas" em 2018.
"Reforçamos que em nenhum momento a Brasil Paralelo afirmou que alguma eleição já foi fraudada. O objeto de pesquisa sempre foi a confiança do eleitor na urna eletrônica", afirmou ainda.
Outras análises matemáticas contradizem hipótese de fraudes
O cientista político Guilherme Russo, pesquisador da FGV, aplicou outra análise matemática da distribuição dos votos entre os candidatos nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 e obteve resultados que afastam a suspeita de fraudes nas duas disputas.
A metodologia empregada por ele é detalhada em um artigo de 2012 dos cientistas políticos Bernd Beber e Alexandra Scacco, então professores da New York University, nos Estados Unidos. Hoje ambos são pesquisadores do WZB Berlin Social Science Center, na Alemanha.
A metodologia consiste em analisar como se distribuem os últimos algarismos do número de votos dos candidatos em cada urna.
O último algarismo pode variar de 0 a 9 e, numa eleição não manipulada, a incidência de cada um desses dez algarismos tende a estar próxima de 10%.
Por exemplo, o site do TSE permite ver que, no primeiro turno de 2018, na 6ª seção da 4ª zona eleitoral São Paulo, localizada na zona leste da cidade, Bolsonaro recebeu 85 votos contra 34 de Fernando Haddad (PT) e 31 de Ciro Gomes (PDT).
O que é levado em conta nessa análise é o último dígito do número de votos. Ou seja, 5 no caso de Bolsonaro, 4 no caso de Haddad e 1 no de Ciro Gomes, considerando essa sessão específica de São Paulo.
Segundo a metodologia aplicada, ao se analisar todas as urnas do país, a quantidade de vezes que o número de votos de Bolsonaro, Haddad ou Ciro acaba em 5, por exemplo, deve ser cerca de 10% para cada um deles. E a mesma coisa para o número de vezes que acaba em qualquer um dos outros dígitos entre 0 e 9.
Já quando há manipulação nas eleições, essa distribuição de frequência dos dígitos finais não tende a ser uniforme, argumentam Beber e Scacco.
No artigo de 2012, publicado pela revista científica Political Analysis, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, eles usam pesquisas da área de psicologia para mostrar como eventuais fraudes nas urnas tendem a deixar rastros detectáveis por análises matemáticas.
Isso porque os seres humanos são pouco habilidosos para gerar números aleatórios. Dessa forma, ao fraudar os números de votos, tendem a alterar o resultado das urnas sem respeitar a aleatoriedade que uma votação sem manipulação produz.
Ao testar sua metodologia em eleições da Suécia, Nigéria e Senegal, os dois encontraram evidências de manipulação no pleito nigeriano de 2003 e no senegalense de 2007.
Ao aplicar essa metodologia para os resultados do primeiro turno de 2018 no Brasil, Russo identificou que a distribuição do último dígito da quantidade de votos em cada urna do país entre os três candidatos presidenciais mais votados naquele pleito — Jair Bolsonaro (então no PSL), Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT) — se deu de maneira bastante uniforme entre os três, sempre em torno de 10%.
Outra maneira de tentar identificar a interferência humana no resultado das eleições proposta por Beber e Scacco é olhar para os dois dígitos finais do número de votos.
"Humanos tendem a subestimar a repetição de um mesmo algarismo (por exemplo, 1-1 e 4-4). Também utilizamos pares de algarismos sequenciais mais do que o acaso criaria (por exemplo, 2-3 e 7-8)", explica Russo.
A aplicação dessa análise à última eleição presidencial também não apontou sinais de manipulação. "Em 2018, a frequência de algarismos repetidos nos dois últimos dígitos é 10,025% nos votos de Bolsonaro no 1º turno, 9,674% para Haddad e 10,139% para Ciro Gomes. Ou seja, são muito próximos da expectativa de 10%", nota ele.
"Já a existência de algarismos consecutivos deve acontecer 20% das vezes em um sorteio, pois há duas entre dez possibilidades de que o segundo algarismo seja vizinho do primeiro (considerando 9 e 0 como vizinhos). Os números obtidos são: 19,159% (Bolsonaro), 19,922% (Haddad) e 20,129% (Ciro)", acrescenta.
As mesmas análises foram aplicadas por Russo para votos do primeiro turno presidencial de 2014 recebidos por Dilma, Aécio e Marina Silva (Rede), com resultados semelhantes. Na sua visão, esses dados "contradizem a irresponsável alegação de fraude".
Análises matemáticas não servem para cravar se houve ou não fraude
A pedido da BBC News Brasil, o professor de Estatística da UFSCar Rafael Stern também avaliou a metodologia usada por Russo e a considerou "bem consistente" para a análise dos resultados das eleições. Ele ressaltou, porém, que essa análise estatística também não permite cravar se houve ou não fraude.
"Não dá pra concluir categoricamente que não houve fraude. O que essa análise mostra é que não houve um tipo de fraude que resultaria nessa quebra de padrão (de frequência dos últimos dígitos da quantidade de votos por urna). Você pode imaginar que um fraudador suficientemente sagaz tentaria manter esses padrões", nota o professor.
Isso poderia ser alcançado, exemplifica Stern, se o fraudador subtraísse um número de votos de um determinado candidato e transferisse para outro de forma idêntica em uma quantidade suficientemente grande de urnas que não alterasse essa distribuição aleatória do dígito final.
Uma série de mecanismos de segurança adotados pelo TSE, porém, dificultam as invasões das urnas eletrônicas.
"Não é um processo trivial, é necessário encontrar alguma vulnerabilidade que permita fazer isso sem ser detectado", nota Paulo Matias, professor do Departamento de Computação da UFSCar que participou de testes de vulnerabilidade nas urnas eletrônicas em 2017.
"Não existem evidências de fraudes desse tipo em eleições passadas, nem de risco iminente de fraude nas eleições do ano que vem", disse ainda.
Apesar disso, Matias é um dos estudiosos da segurança das urnas eletrônicas que defendem a adoção do voto impresso associado à urna eletrônica, como forma de aperfeiçoar os mecanismos de segurança no futuro, com mais um instrumento de auditagem. O modelo é usado em alguns locais, como Índia e distritos dos Estados Unidos.
"É extremamente irresponsável tentar implementar o voto impresso em apenas um ano (para a eleição de 2022), pois uma implementação descuidada trará mais riscos ao processo eleitoral que benefícios", diz.
"Por outro lado, justamente por ser um mecanismo que demanda implementação cuidadosa, devemos começar a pensar em implementá-lo desde já, em vez de deixar para começar só quando ele se mostrar necessário. Não sabemos se o panorama vai continuar o mesmo daqui a dez anos", argumentou ainda.
Fonte:
BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58007138
Bolsonaro ignora apelo do centrão, volta a ameaçar eleições e diz que 'não aceitará farsa'
Presidente novamente desrespeitou protocolos sanitários em motociata no interior de SP e fez live com problemas técnicos
Ana Luiza Albuquerque e Emerson Voltare, da Folha de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ignorou apelos de líderes e dirigentes de partidos do centrão que dão sustentação ao seu governo e voltou a atacar o sistema eleitoral durante manifestação a seu favor em Presidente Prudente (SP) neste sábado (31).
Em transmissão ao vivo na quinta-feira (29), Bolsonaro havia feito o mais duro ataque contra as urnas eletrônicas, sem, entretanto, apresentar qualquer prova das supostas fraudes nas eleições que denuncia há três anos. Ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF (Supremo Tribunal Federal) reagiram nos bastidores, e aliados do centrão apelaram ao presidente para que moderasse o tom.
Dois dias após os ataques e a disseminação de informações falsas, porém, Bolsonaro afirmou em palanque que a democracia só existe com eleições limpas e que não aceitará uma "farsa".
"Queremos eleições, votar, mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor. O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Jamais temerei alguns homens aqui no Brasil que querem impor sua vontade", disse.
O discurso de Bolsonaro foi transmitido ao vivo em suas redes sociais, mas a transmissão enfrentou problemas técnicos e caiu diversas vezes.
A motociata em Presidente Prudente foi a sexta promovida pelo presidente, que voltou a ignorar protocolos sanitários, gerar aglomerações e cumprimentar apoiadores sem máscara. Acompanharam o chefe do Executivo os ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).
A manifestação ocorreu em meio ao avanço da variante delta da Covid-19, mais transmissível que as demais. O Brasil registrou 886 mortes pela doença nesta sexta-feira (30), e chegou a 555.512 óbitos desde o início da pandemia. A média móvel de mortes é de 1.013 —o país está há 191 dias seguidos contabilizando mais de 1.000 mortes por dia.
As cinco motociatas anteriores foram realizadas entre maio e julho, em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Chapecó (SC) e Porto Alegre. O presidente anunciou que a próxima será em Florianópolis, no dia 7 de agosto.
Segundo resposta obtida pela Folha via Lei de Acesso à Informação, somente a motociata realizada no Rio em maio custou ao menos R$ 231 mil aos cofres públicos, somando os gastos com o cartão corporativo, transporte terrestre, passagens, telefonia e diárias.
Na soma não estão inclusos os custos do governo estadual com reforço no policiamento. Na motociata da capital paulista, esses gastos chegaram a R$ 1,2 milhão com a participação de 1.433 policiais, cinco aeronaves, dez drones e aproximadamente 600 viaturas, informou a Secretaria de Segurança Pública do estado.
Em Presidente Prudente, ainda segundo a secretaria, esses custos foram superiores a R$ 300 mil. O efetivo foi reforçado com 450 policiais militares, drones e um helicóptero.
Para a passagem de Bolsonaro em Presidente Prudente, foi bloqueado o acesso das principais rodovias que vão para o norte do Paraná, para a divisa de Mato Grosso do Sul, para a capital paulista e para o norte do estado de São Paulo. Foram escalados para o evento 500 policiais militares, 150 rodoviários, batalhões especiais e um helicóptero.
Além de apoiar o presidente, segundo os organizadores, a motociata teve como objetivo fortalecer o movimento “Brasil livre e a favor do voto auditável” —fazendo coro às mentiras espalhadas por Bolsonaro sobre supostas fraudes nas eleições, nunca provadas por ele.
Bolsonaro chegou no aeroporto por volta das 9h, percorreu um percurso nas estradas que circundam o local, e seguiu para o parque do Povo, principal parque urbano da cidade.
Segundo a agenda oficial, o presidente foi a Presidente Prudente para formalizar o credenciamento do Hospital de Esperança, antigo HRCPP (Hospital Regional do Câncer de Presidente Prudente), junto ao SUS.
Além da motociata, a agenda extraoficial de Bolsonaro previa um megachurrasco com 2.000 pessoas no centro de exposições da cidade.
A pedido do Ministério Público, o evento foi cancelado pela Justiça, que alegou que uma cerimônia deste tamanho só poderia estar inserida na categoria dos eventos-teste anunciados pelo governo paulista em meio à pandemia da Covid-19.
A prefeitura afirmou que o evento era encabeçado pela UDR (União Democrática Ruralista), uma associação civil que despontou em defesa dos ruralistas em meados dos anos 1980, quando o oeste paulista se tornava epicentro de conflitos fundiários, com a presença do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na região.
A organização já foi presidida por Luiz Antonio Nabhan Garcia, líder ruralista local e hoje secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura do governo federal e aliado próximo do presidente. Desde a corrida presidencial de 2018, Nabhan Garcia é ainda um dos principais fiadores de Bolsonaro entre parte do setor do agronegócio no país.
Na CPMI da Terra, concluída em 2005, Nabhan Garcia foi acusado de estar associado a milícias armadas no campo em defesa de fazendeiros na região de Presidente Prudente. À época, o agora secretário de Bolsonaro responsável pela reforma agrária e demarcação de terras indígenas negou as acusações e não foi indiciado.
Irmão dele, Maurício Nabhan Garcia chefia hoje a Secretaria de Agricultura e Abastecimento em Presidente Prudente, pasta criada pelo atual prefeito prudentino, que, apesar de estar filiado a um partido que faz oposição a Bolsonaro a nível nacional, se mostra alinhado ao presidente.
Desde a eleições municipais de 2020, quando garantiu seu primeiro mandato à frente da prefeitura, Ed Thomas (PSB) mantém elogios públicos e fotos com Bolsonaro nas redes sociais. A cidade elegeu o presidente com 78% dos votos válidos no segundo turno das eleições de 2018
Nesse sábado, o prefeito publicou uma nova imagem com o presidente, afirmando que sua visita é uma "oportunidade para manifestar gratidão pelo credenciamento do Hospital de Esperança junto ao SUS".
Fonte:
Folha de S. Paulo
Em busca de novos caminhos
O Brasil precisa tomar o rumo da racionalidade para ter sucesso
Murillo de Aragão / Revista Veja
Na tese do copo d’água meio cheio, o Brasil só não fracassou em termos. Estamos entre as maiores economias do mundo e somos o segundo maior produtor de alimentos, entre outras façanhas. Mas existe o meio copo d’água vazio, que, em algum momento, terá de ser preenchido. Ou nos afogaremos em um país de fato fracassado.
Aos que têm recursos é fácil imaginar uma vida amena fora do Brasil. E, de lá, meter o pau no país, entre uma taça e outra de vinho. Mas a questão importa para os mais de 200 milhões de brasileiros, pelo menos, que não vão sair daqui, e nem sequer sabem o que é um passaporte. Devemos pensar neles.
Qual seria o caminho para incorporar milhões de brasileiros em uma nação potencialmente virtuosa? Devemos começar pensando que as soluções do passado não funcionaram. O tenentismo nos trouxe a estatização e terminou reforçando a supremacia do Estado sobre a sociedade.
O esquerdismo também não deu certo quando se revelou reforçando a presença do Estado na economia. O centro, com uma social-democracia mais equilibrada, foi capturado pela lógica financeira e tributária, perdendo a chance de fazer revoluções sem grandes dores.
Em um afã “liberaleiro”, há quem queira abrir as fronteiras para que produtos chineses destruam nosso parque industrial no melhor estilo de Martínez de Hoz, que acabou com a indústria argentina. O caminho do sucesso não deve ser nem “nacionaleiro” nem “liberaleiro”. Deve ser racional. E a racionalidade nos aponta, com obviedade, o caminho do sucesso.
“O tenentismo nos trouxe a estatização e o esquerdismo também não deu certo”
Para trilhar o caminho do sucesso devemos respeitar fundamentos importantes. Quais? Vamos por partes. Garantir a liberdade de empreender, já que a iniciativa privada, com todos os seus defeitos, é o que gera dinamismo econômico. A liberdade de expressão deve ser assegurada, pois a força da palavra traz questionamentos, aperfeiçoamentos e o livre pensar.
A liberdade de cátedra deve ser garantida, para bem ensinar de forma plural. Devemos renegar tanto o ensino enviesado e “canhoteiro”, que predomina em nossas academias públicas, como a tentativa de domesticar a aprendizagem por outros cânones ideológicos.
A partir desse entendimento, devemos superar os obstáculos que nos amarram ao passado. O primeiro a ser removido é o custo do dinheiro, que nada mais é do que papel pintado. Temos de ter abundância de crédito. Em crise, os Estados Unidos nos dão o exemplo: injetam dinheiro na economia, assim como a China.
O segundo obstáculo a ser encarado refere-se à necessidade de simplificar o sistema tributário. O Brasil devia se transformar em um paraíso fiscal onde pagar impostos seja tão fácil e barato a ponto de a sonegação se tornar irrelevante.
O terceiro obstáculo a ser demolido reside no custo do Estado: pensões e penduricalhos, entre outros gastos, devem ser removidos por decisão judicial. São claramente inconstitucionais e uma penada da Justiça pode eliminá-los.
O quarto obstáculo encontra-se no sistema partidário e eleitoral, que termina por perpetuar o atraso. O caminho para removê-lo é também pela via judicial, com o fim da fragmentação partidária e de fundos eleitorais e partidários abundantes.
Enfim, o caminho do sucesso estará em outra via, seja quem for nosso futuro presidente. E a construção de uma nova via impõe uma reflexão sobre qual futuro desejamos para o Brasil.
Fonte:
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/em-busca-de-novos-caminhos/
Perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário
Risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
A "prova matemática" que Jair Bolsonaro apresenta de que houve fraude em 2018 é, ela mesma, uma fraude já desmoralizada pelos... matemáticos. O truque, a exemplo do que se dá com o cloroquinismo, consiste em chamar de mera opinião a ciência, e de ciência a mera opinião ou o proselitismo ideológico. Uma postura corrói a democracia; a outra mata pessoas. O momento é delicado. Bolsonaro já sabota seu recém-indicado ministro da Casa Civil.
A trapaça se opera com a mesma sem-cerimônia com que o crime é chamado de liberdade de expressão, e a liberdade de expressão, de crime. E tudo se dá sob o silêncio cúmplice do procurador-geral da República, Augusto Aras, ele próprio empenhado em criminalizar os que têm uma opinião desabonadora não a respeito de sua pessoa privada —talvez seja um cara bacana—, mas de seu desempenho à frente da PGR, a exemplo do que faz com Conrado Hübner Mendes, colunista deste jornal.
Antes de sua patuscada matemática —criminosa por si mesma porque ataca a institucionalidade por meio de uma falácia—, foi o presidente a acusar o Supremo de ter cometido crime ao supostamente tê-lo impedido de atuar contra a pandemia. É evidente que não agiria com tamanha desenvoltura não fossem a certeza da impunidade e a esperança da virada de mesa "manu militari". E aqui está o xis da questão.
O centrão terá de decidir se vai ser esbirro do golpismo, que conta com apoio de alguns fardados de pijama, ou se vale o combinado entre o próprio Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Ciro Nogueira, novo ministro da Casa Civil: apoio até o fim, mas dentro das regras do jogo. Nogueira, note-se, foi o intermediário do recado golpista de Braga Netto, o gendarme da Defesa, a Lira: ou voto impresso ou suspensão das eleições de 2022.
Como desdobramento imediato da ameaça, deu-se o revés da fortuna para o Partido Militar (PM). O presidente do PP foi guindado à Casa Civil, definida por Bolsonaro como "a alma" do governo. Convém lembrar que Luiz Eduardo Ramos, o defenestrado, saltara do Comando do Sudeste para a Secretaria de Governo, encarregando-se, então, da articulação política. Uma aberração.
A 18 de fevereiro de 2020, assumiu a Casa Civil outro general: justamente Braga Netto, oriundo da chefia do Estado Maior do Exército. Mais uma aberração. Quando o presidente houve por bem "mostrar quem manda" nas Forças Armadas, tirou Fernando Azevedo e Silva da Defesa, substituindo-o por aquele que ameaçou pôr fim às eleições, e entregou a Casa Civil a Ramos.
Ora, é preferível que o centrão seja "a alma" do governo a que o governo tenha uma alma fardada e golpista. Os parlamentares podem ser aposentados pelo voto. O moralismo estridente que tomou conta do meio ambiente político com o lavajatismo policialesco destruiu a nossa hierarquia de valores. E não é raro que se leiam na imprensa textos de pessoas até bem-intencionadas a relegar a própria democracia a aspecto lateral em nome do que entendem ser a moralidade.
Pululam em todo canto, por exemplo, os vídeos da campanha de Bolsonaro em que ele assegura que vai governar sem o centrão, sem os políticos, sem os partidos, sem as ONGs, sem os entes da sociedade civil. Era candidato a César, não a presidente. E aí se contrasta aquele postulante, como se virtuoso fosse, com o presidente de hoje, que faz acordo com o centrão.
Esperem aí! Aquele era o Bolsonaro fascistoide, que voltou a dar as caras nesta quinta. Já o acordo com o centrão pertence ao universo da política se cumprido. Ocorre que, tudo indica, o novo ministro da Casa Civil nem deu os primeiros passos e já está sendo sabotado pelo presidente.
A nomeação de Nogueira representou uma derrota para o Partido Militar. Pela primeira vez em dois anos e sete meses, o governo pode ter um eixo que não seja a força, ainda que seja o centrão. A nova agressão de Bolsonaro ao STF e a mentira sobre a fraude eleitoral indicam que o risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira, mas no seu descumprimento. O perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/07/o-perigo-esta-na-derrota-do-centrao-para-o-partido-militar-nao-no-contrario.shtml
Centrão ajuda Bolsonaro a fazer o governo do extremistão
Não há ilusão de normalidade na contratação de um operador político para o Planalto
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
O novo chefe da Casa Civil chegou ao Planalto com a missão de azeitar relações com o Congresso, reduzir tensões com o STF e preparar terreno para a reeleição de Jair Bolsonaro. A contratação de um profissional para cumprir essas funções deixa o presidente livre para continuar exercendo sua especialidade: trabalhar na direção contrária.
Ao mesmo tempo em que abria as portas do governo para o centrão, Bolsonaro espalhou novas mentiras sobre a atuação do Congresso na aprovação do fundo eleitoral, acusou integrantes do Supremo de conspiração e voltou a divulgar informações falsas para tumultuar a realização das próximas eleições.
Não há nenhuma ilusão de normalidade na contratação de um nome como Ciro Nogueira para administrar as articulações e gerenciar o trabalho do Planalto. O centrão pode até tentar reduzir danos políticos provocados pelos ataques de Bolsonaro às instituições, mas a linha mestra do governo continua sendo executada no gabinete presidencial, controlado pelo líder do extremistão.
O presidente já mostrou que não tem interesse numa relação saudável com outros Poderes. Nas últimas semanas, ele insinuou que o STF trabalha para fraudar a disputa de 2022 e acusou o vice-presidente do Congresso de fazer uma manobra que não existiu na votação que reservou R$ 5,7 bilhões para o fundo de financiamento de campanhas.
O centrão também acompanha placidamente o trabalho de Bolsonaro na destruição da credibilidade das eleições. Nesta quinta (29), o presidente divulgou informações falsas coletadas na internet e reproduziu relatos já desmentidos de anormalidade na urna eletrônica. O crime de responsabilidade foi transmitido ao vivo pela TV oficial do governo.
Os caciques do centrão já deixaram de ser parceiros de ocasião, que extraem benefícios políticos do governo enquanto Bolsonaro conduz um projeto de degradação contínua da democracia. Agora, esse grupo parece mais do que satisfeito em ajudar o presidente a completar sua missão.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/07/centrao-ajuda-bolsonaro-a-fazer-o-governo-do-extremistao.shtml
Sem provas, Bolsonaro faz mais uma live eleitoral; não foi bomba, foi traque
Carlos Melo / O Estado de S. Paulo
Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap das suas redes.
Verdade que nada disso importa ao negacionismo nacional, mas os dados do TSE são transparentes, estudiosos os acompanham em detalhe, há fiscalização de candidatos e partidos, observadores internacionais; tudo pode ser auditado, sim. A acirrada concorrência na imprensa não facilitaria silêncios e conluios. Eventos isolados não constroem um fato; nunca se constatou algo relevante. Ainda assim, depois de muito cobrado, Jair Bolsonaro se dispôs a apresentar sua “bomba” contra a Justiça Eleitoral.
A expectativa era mais de forma que de conteúdo: a versão acima dos fatos. E não foi bomba, foi traque. Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Exibiu falsos brilhantes, silogismos, falou em nome de um povo que supostamente o apoia, mas que as pesquisas não comprovam. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap da sua rede.
Tática de escolher um inimigo, atacou o ministro Luís Roberto Barroso. Fez ilações, mas não apresentou provas. Impedida de contestá-lo, a imprensa séria rejeitou a isca e não lhe deu palco. Aos seus fanáticos, sobraram farrapos e desculpas para que contestem, preventivamente, as urnas em 2022.
Até porque não lhes importa a irrefutabilidade das afirmações, reúnem cacos inverossímeis para construir realidade paralela. A partir disso, aprofunda-se o conflito político. Com o ouro de tolo apresentado, semeia-se confusão que, talvez, favoreça o presidente. Contudo, nada é original. Essa pedra bruta já esteve nas mãos de Donald Trump.
Fraude eleitoral é crime, atentado à democracia e ao pacto político. Há mais de ano, Bolsonaro afirma saber de crimes vinculados às eleições de 2018 – recentemente, também ao pleito de 2014. Crimes que, em tese, seriam continuados pois, após isso, houve eleição em 2020. Fica a questão: se houve fraude, o presidente se omitiu; se não houve, o presidente não atentaria agora contra a eleição?
*Cientista político. Professor do Insper
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/sem-provas-bolsonaro-faz-mais-uma-live-eleitoral/
Bolsonaro mexe as peças com um só objetivo: salvar o pescoço e garantir reeleição em 2022
O governo virou comitê de campanha de presidente, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho para 2022
Eliane Cantanhêde / O Estado de S. Paulo
Goste-se ou não de Roberto Jefferson, o polêmico político do PTB e do Centrão que detonou a crise do mensalão no governo Lula, ele tem razão: a reforma ministerial do presidente Jair Bolsonaro lembra a manobra de Fernando Collor para salvar o pescoço em 1992, quando mudou o seu governo para ampliar a base de apoio no Congresso. No caso de Collor, foi tarde demais. E no de Bolsonaro?
O fato é que foi uma decisão drástica entregar a “alma do governo” para o senador Ciro Nogueira, do PP, líder do Centrão e aliado do PT em 2018, quando chamava Bolsonaro de “fascista”. O Centrão está com tudo, os militares vão escorregando para o segundo pelotão e Paulo Guedes perde de nacos de poder para Onyx Lorenzoni construir sua campanha durante curtos – ou longos? – oito meses, até se desincompatibilizar para disputar o Governo do Rio Grande do Sul.
Onyx foi da Casa Civil, do Ministério da Cidadania e da Secretaria Geral da Presidência, até Bolsonaro criar o Ministério de Emprego para gerar um único emprego, o dele. E Guedes tinha um latifúndio ministerial, mas nunca teve poder. Agora, não tem um nem outro. Seu ministério vai continuar sendo fatiado para o Centrão e ele desliza para o ostracismo, não pelo que não fez, mas pelo que insiste em fazer: engolir sapos em nome da reeleição.
O argumento de Guedes é o mesmo dos generais que insistem em se submeter ao capitão insubordinado: “espírito de missão”. Heroico, mas não verdadeiro. Ele só fica pela sensação de poder e por resistir a admitir a derrota, ao contrário do também “superministro” Sérgio Moro, que demorou mais do que o razoável, mas mostrou que tinha limite. Guedes não tem limite.
O governo virou comitê de campanha de Bolsonaro, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho da reeleição. Ao atravessar a rua e ir para o Planalto,
Ciro Nogueira anula as chances do seu amigo Arthur Lira abrir um dos 125 pedidos de impeachment, reforça a articulação com o Senado e abre espaço para o filho “01”, Flávio Bolsonaro, virar suplente da CPI da Covid com direito a palavra, impropérios contra a cúpula da comissão e acesso direto a todos os documentos da CPI. Presentão para o papai.
Além de reformar a casa, melhorar os alicerces governistas da CPI e penetrar mais firmemente no Nordeste (Ciro é do Piauí e Lira, de Alagoas), Bolsonaro também cria vales e aumenta as bolsas para o eleitorado mais pobre, e mais numeroso. De quebra, fideliza o núcleo duro do seu eleitorado ao se assumir cada dia mais radical.
Vem daí a foto, às gargalhadas, com a líder de um partido alemão xenófobo e de inspiração nazista, investigado no próprio país por mensagens e práticas ilegais. Não é trivial presidentes receberem deputados estrangeiros. Menos ainda, presidentes de países democráticos receberem parlamentares antidemocráticos.
Além disso, o presidente deu a Michelle Bolsonaro a medalha Oswaldo Cruz, para quem se destaca em ciência, educação e saúde, e o governo comemorou o Dia do Agricultor com uma foto, não de um trabalhador com sua enxada, mas de um jagunço com um rifle. Nem Michelle se destaca em nenhuma dessas áreas, nem o sofrido agricultor é jagunço, grileiro, desmatador, miliciano do campo. O governo estimula a guerra no campo?
O presidente também assinou um decreto para regulamentar a Lei Rouanet e, como tem sido um desastre para a Cultura, boa coisa não sai daí. E ele ainda não vetou o fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, mas atendeu aos planos de saúde e vetou a lei que os obrigava a custear a quimioterapia oral para pacientes com câncer. É esse Jair Bolsonaro, o verdadeiro, que disputará voto na urna eletrônica em 2022.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-mexe-as-pecas-com-um-so-objetivo-salvar-o-pescoco-e-garantir-sua-reeleicao-em-2022,70003794364
Grupos de zap fervem após live de Bolsonaro, mostrando real objetivo do presidente
A longa live de Jair Bolsonaro na noite desta quinta-feira (29), em que desfiou um compêndio de acusações contra o voto eletrônico, cumpriu seu principal objetivo: manter a base de apoiadores do presidente hiperenergizada
Fábio Zanini / Folha de S. Paulo
Bolsonaro e aliados sabem que não há hipótese de o voto impresso (ou “auditável”, como preferem os bolsonaristas) ser aprovado no Congresso Nacional. Os impropérios de Bolsonaro contra o atual modelo, que sempre se provou confiável desde a adoção, há 25 anos, provavelmente terão o efeito contrário: fortalecer no Legislativo a disposição em rejeitar qualquer mudança.
Por que ele insiste, então? A resposta está no efeito quase imediato que a estratégia de Bolsonaro de espalhar suspeitas infundadas contra a urna eletrônica teve em grupos de WhatsApp que este blog acompanha.
O presidente nem havia acabado de falar quando já circulava em grupos bolsonaristas um clipe de sua fala com o título: “Live bomba de Bolsonaro: a urna em xeque”.
“Que live, meus amigos, que live!! Histórica!”, bradou Kim Paim, um ativista defensor do presidente que se declara especializado na montagem de “dossiês” para militantes usarem nas redes sociais.
Na mesma linha, de que foi um pronunciamento definitivo do presidente sobre o tema, manifestaram-se lideranças bolsonaristas como os influenciadores Allan dos Santos e Leandro Ruschel, o comentarista político Rodrigo Constantino e o deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP).
Como sempre acontece, suas falas reverberaram fortemente nos grupos bolsonaristas, acompanhados de convocações para diversos atos previstos para este domingo (1º) a favor do voto impresso.
A expectativa dos organizadores é que haja manifestações nas principais capitais e em um punhado de cidades médias. Em São Paulo, novamente, o palco será a avenida Paulista, e no Rio, a orla de Copacabana.
Outro hit do zapzap dos apoiadores do presidente foi o esculacho ao presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, novo inimigo número 1 dos defensores do voto impresso.
Aqui, um exemplo de imagem que circulou em grupos após a fala de Bolsonaro:
Com o arrefecimento da pandemia e o pit stop da CPI da Covid no Senado, a fervura do tema da saúde baixou um pouco entre bolsonaristas. Em seu lugar, a defesa do voto impresso e o ataque ao sistema eleitoral entraram com força, como se fossem os únicos assuntos relevantes do momento no país.
A mudança reflete muito da estratégia eleitoral do presidente para 2022, que pode ser explicada em dois passos: o primeiro, manter a base de apoiadores unida, e com isso garantir a passagem para o segundo turno.
Neste momento, não interessa a Bolsonaro fazer acenos de moderação ou tentativa de ampliação de seu eleitorado cativo, que soma algo entre 20% e 30%.
É preciso radicalizar em bandeiras palpáveis, e a defesa do voto impresso vem bem a calhar, por três razões: tem um componente de paranoia, que está na base do DNA do bolsonarismo; revitaliza o espírito do presidente de insurgir-se contra “o mecanismo” (novo nome para “o sistema”), que ele tão bem soube usar na campanha de 2018; e, obviamente, fornece um elemento aglutinador para o futuro, em caso de derrota eleitoral.
Basta notar que a grande estratégia do presidente americano, Donald Trump, para se manter relevante no debate político e tentar um retorno em 2024 é a alimentar a ladainha de que foi roubado na eleição do ano passado, em que perdeu limpamente para Joe Biden.
Garantida a passagem para o segundo turno, como espera Bolsonaro, a segunda parte da estratégia é fazer um duelo de rejeições contra seu provável adversário, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A demonização do petista e de seus aliados “comunistas” foi um dos principais componentes da live do presidente.
Bolsonaro, assim, mais uma vez rasga a cartilha da maioria dos candidatos ao Palácio do Planalto, que em algum momento fazem acenos ao centro do tabuleiro político.
Político nada convencional, o presidente aposta em radicalizar de agora até o fim do segundo turno do ano que vem. Para isso, o voto impresso é um instrumento perfeito.
É o que explica sua insistência no tema, mesmo sabendo que a chance de aprovação é menor que a do Brasil ganhar ouro no badminton.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/grupos-de-zap-fervem-apos-live-de-bolsonaro-mostrando-real-objetivo-do-presidente/
Cristovam Buarque: O espírito do tempo e a educação
Estamos percebendo a necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo com o espírito do tempo, as curvas que a história está fazendo
Em janeiro do ano passado, a Unesco criou um grupo de 15 pessoas para elaborar proposta sobre o futuro da educação no mundo. A diferença desta nova proposta para outras duas, décadas atrás, é o espírito do tempo atual. Os relatórios anteriores foram elaborados em momentos de evolução, sem as rupturas que temos em marcha no século XXI. Nos debates do grupo, do qual participo, estamos percebendo a necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo com o espírito do tempo, as curvas que a história está fazendo.
Uma mudança diz respeito aos novos recursos tecnológicos, graças à computação, à telecomunicação, aos grandes acervos de imagem e som, à inteligência artificial, às redes sociais digitais e a tudo que permite levar a realidade para dentro da sala de aula, e fazer o ensino-aprendizagem à distância, de forma remota entre professores e alunos. O espírito deste tempo permite e induz à passagem da “aula teatral” – professor e quadro negro na presença dos alunos – para a “aula cinematográfica” - professor usando todos os modernos recursos audiovisuais e computacionais para uma aula dinâmica, presencial ou não. A escola do futuro não será apenas um aperfeiçoamento da atual, será uma “nova escola”. Da mesma forma que, um século atrás, a arte dramática descobriu o potencial do cinema, levando o teatro ao mundo inteiro e com uma linguagem que rompia os limites do palco.
A segunda mudança se refere aos novos conhecimentos a serem desenvolvidos. Os destinos, dificuldades e potenciais de cada ser humano ficaram interligados planetariamente à toda a humanidade. Até pouco tempo atrás, as ideias de planeta e humanidade eram temas limitados a astrônomos e filósofos. No espírito do tempo atual, estes conceitos dizem respeito ao dia a dia de cada pessoa: os alunos do futuro viverão na Terra, não apenas em um país, e a preocupação deles deve ser com toda a raça humana, além da família e dos compatriotas. O ensino deverá tratar dos problemas que ameaçam a humanidade: mudanças climáticas; abismo da desigualdade que está quebrando a semelhança da espécie humana; pobreza e desemprego estrutural; riscos e vantagens da inteligência artificial; o entendimento do papel da ciência na construção de um mundo melhor e mais belo; a prática da solidariedade com todos os seres humanos, especialmente os pobres nacionais, os refugiados apátridas, os migrantes e todos que sofrem exclusão e discriminação; o valor da diversidade social e natural, com respeito às especificidades.
O terceiro desafio é fazer o ensino-aprendizagem em sintonia com o rápido avanço do conhecimento, que evolui e se transforma a cada instante. Esta velocidade faz obsoletos os conhecimentos, as profissões, a concepção de escola e os métodos pedagógicos, inclusive a posição relativa entre professor e aluno. A educação do futuro exige que o aprendizado seja contínuo, não termine ao longo da vida de uma pessoa; diplomas devem ser provisórios. O verbo aprender deve ser usado no gerúndio, sempre aprendendo e aprendendo sempre.
É um desafio também, sobretudo no ensino superior, sair das algemas do conhecimento por disciplina e adotar o conhecimento multidisciplinar, única forma de avançar para novas ciências que estão nascendo nas fronteiras das atuais e de trazer os problemas da realidade para dentro do processo de ensino-aprendizagem. Especialmente os problemas éticos que desafiam a humanidade e as possibilidades da educação de base para construir o futuro, ao formar as novas gerações.
O quinto desafio é a coerência entre o conteúdo humanista e planetário com o compromisso político de assegurar o direito de cada criança desenvolver seu potencial, desde a primeira infância, independente da nacionalidade e do status social, da renda e do endereço; cada criança do mundo tratada como filha da humanidade, com o mesmo direito à educação para seu próprio benefício e para que seu talento beneficie sua família, sua vila, seu país e toda a humanidade. A educação de qualidade - respirar conhecimento - deve ser um direito tão humano, quanto aspirar oxigênio para estar vivo, aprendendo ao longo de toda a vida. Ninguém deixado para trás na alfabetização para a contemporaneidade: falar, escrever e ler bem seu idioma, falar pelo menos um outro idioma, adquirir um ofício, conhecer história e geografia, filosofia e as bases da matemática e das ciências, ser capaz de usar as ferramentas do mundo moderno.
Certamente que o espírito do tempo exige um plano mundial para dar apoio à educação das crianças do mundo inteiro.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/07/4939914-cristovam-buarque-o-espirito-do-tempo-e-a-educacao.html
O fantasma que ronda a democracia brasileira
Um golpe que anteceda as eleições é improvável. Exigiria um cenário de radicalização política extrema e grande conturbação social, o que não é o caso até agora
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O fantasma que ronda a democracia brasileira não é o do comunismo, como na antológica abertura do Manifesto, escrito em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels. Com o fim da guerra fria e a morte de Luís Carlos Prestes, e dos líderes da luta armada contra o regime militar na década de 1970, como Carlos Marighella, essa narrativa se tornou completamente inverossímil, até por falta de protagonistas, sendo necessário encontrar outros pretextos: o do presidente Jair Bolsonaro é o de um fantasioso plano de fraude eleitoral, tão imaginário quanto fora o plano forjado, em 1937, pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, para legitimar o golpe do Estado Novo, de Getúlio Vargas. General, Mourão seria um dos líderes da deposição de João Goulart pelos militares, em 1964.
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso voltou a defender o sistema eleitoral brasileiro, que “nunca foi alvo de fraude”, e denunciou o caráter golpista da narrativa de Bolsonaro, ao participar da inauguração da nova sede do Tribunal Regional Eleitoral do Acre. “O discurso de que ‘se eu perder houve fraude’, é um discurso de quem não aceita a democracia”, disse. Barroso também fez referência à denúncia apresentada pelo ex-candidato a presidente do PSDB Aécio Neves (MG), derrotado por Dilma Rousseff (PT) em 2014: “O candidato derrotado pediu auditoria, e o próprio partido reconheceu que não houve fraude. Nunca se documentou fraude. No dia que se documentar, a Justiça Eleitoral vai apurar imediatamente. Ninguém tem paixão por urnas, mas sim por eleições livres e limpas”.
A polêmica alimentada com Barroso é uma estratégia deliberada de Bolsonaro para desacreditar a urna eletrônica e criar um ambiente eleitoral de radicalização, favorável a que não se reconheça o resultado das urnas, caso seja derrotado. As pesquisas de opinião são desfavoráveis à reeleição do presidente por causa de seu próprio radicalismo e do mau desempenho do governo À falta de uma terceira via competitiva, o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), porém, é o verdadeiro motivo da narrativa da fraude. O antipetismo é muito forte na sociedade, principalmente para aqueles que consideram toda a esquerda comunista, a tese predominante entre os bolsonaristas.
Anticomunismo
O anticomunismo no Brasil sobreviveu ao fim da União Soviética e ao colapso dos regimes do Leste Europeu, mesmo tendo a China e o Vietnã adotado uma economia de mercado, baseada no capitalismo de Estado, e os regimes da Coreia do Note e de Cuba terem se estagnado. O preconceito contra os chineses foi explorado por Bolsonaro, mas a realidade da nossa balança comercial com o gigante asiático, que transformou o nosso agronegócio no setor mais dinâmico da economia, acabou se impondo, inclusive durante a pandemia. Restaram as ligações políticas de Lula com o regime castrista de Cuba e o bolivarianismo da Venezuela, que são até um desconforto para o candidato petista. Ambos são um anacronismo político e estão em grave crise econômica e social.
Bolsonaro se opõe a Lula como Carlos Lacerda se opusera à volta de Vargas ao poder, nas eleições de 1950: “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Não repete as palavras, mas seu raciocínio é o mesmo. É aí que a politização das Forças Armadas e seu controle têm um papel fundamental. Existe uma rejeição atávica ao PT por parte dos militares, exacerbada no governo de Dilma Rousseff, muito embora Lula tenha investido muito no reaparelhamento da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — mais até do que Bolsonaro. Porém o atual governo tem mais militares em ministérios e cargos comissionados do que todos os governos do regime militar.
Um golpe que anteceda as eleições é muito improvável. Exigiria um cenário de radicalização política extrema e grande conturbação social, o que não é o caso, porque nenhuma força política responsável atua nessa direção, exceto os grupos de extrema direita que apoiam Bolsonaro, uma militância armada. Mas a hipótese de uma tentativa de golpe caso Lula seja eleito não deve ser desconsiderada. Bolsonaro trabalha para isso, apesar de não ter apoio suficiente nas Forças Armadas.
Novos acordos políticos não resolvem o problema da reeleição
Alon Feuerwerker / Revista Veja
Suponhamos, por exercício intelectual, um Brasil sem a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 no Senado. O cenário para o governo estaria razoável. Os números da vacinação avançam e são expressivos, e as curvas de casos e mortes vêm caindo faz algum tempo. E todas as projeções são de recuperação robusta do produto interno bruto este ano, compensando com alguma margem a retração do ano passado.
Mas há a outra face da realidade. Iluminar o lado escuro da lua mostrará que os casos e mortes pelo novo coronavírus ainda vão em patamares altos. E o sofrimento social nascido do desemprego e da pobreza não dá sinal de arrefecer. Apesar disso, todas as pesquisas demonstram que vetores positivos começam a superar os negativos na resultante de percepção popular.
Falando nela, a política, a avaliação do presidente da República anda algo estacionada. Verdade que o ótimo+bom das pesquisas deslizou para em torno de um quarto do eleitorado, mas o número retorna ao resiliente um terço se juntarmos o “regular positivo”. Um terço que, aliás, tem sido o patamar da aprovação de Jair Bolsonaro e também a intenção de voto nele no segundo turno. Ou seja, o presidente parece ter chegado a um certo piso.
“Sinal de acerto de Bolsonaro é a escolha de Ciro Nogueira ter sido bombardeada pelos adversários”
O “parece” aqui é recurso de prudência, porque a política gosta de trazer elementos que desestabilizam cenários. Entretanto, como já repetido tantas vezes, o imprevisível é muito difícil de prever. O fim do filme só saberemos em outubro de 2022, mas o retrato agora projeta disputa acirradíssima na urna eletrônica daqui a pouco mais de catorze meses. Entre um candidato à esquerda (hoje seria Lula) e um à direita (hoje seria Bolsonaro).
E as alternativas? Outro dado trazido pelas últimas pesquisas: se houvesse um único nome da terceira via, ou “centro”, ele (ou ela) partiria de algo em torno de 15% a 20%. Um número bastante razoável. E aí o desafio seria lipoaspirar o candidato à reeleição em uns pontinhos, passar ao segundo turno e tentar ganhar a disputa surfando na rejeição a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT. À luz de hoje é difícil, mas não impossível.
Os aspectos objetivos da realidade (contenção da pandemia e aceleração da economia) tendem a favorecer Bolsonaro na resistência contra a ofensiva do centrismo para tirar o incumbente do segundo turno. Mas há os aspectos subjetivos. Até que ponto as confusões e polêmicas que tanto ajudam o presidente a manter agrupado o núcleo duro da base dele vão gerar efeitos centrífugos prejudiciais, e assim facilitar o trabalho de quem disputa com ele o eleitorado à direita?
Bolsonaro fez o movimento by the book ao trazer o senador Ciro Nogueira (PP-PI) para a Casa Civil. Um sinal do acerto é a escolha ter sido bombardeada pelos adversários hoje mais renhidos do presidente. Mas é preciso saber se, como diz o clichê, Bolsonaro vai ajudar Nogueira a ajudá-lo. Pois a operação político-parlamentar avança bem na solução do desafio imediato de não ser derrubado, mas é insuficiente para resolver outro: a reeleição.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
Fonte:
Revista Veja
"Me ajude a te ajudar"
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/me-ajuda-a-te-ajudar/
Ameaça de golpe militar: General nega envolvimento das Forças Armadas
Francisco Mamede de Brito Filho, que participa de webinar organizado pela FAP nesta sexta (30), a partir das 16h, diz não ver riscos de os militares reagirem se Bolsonaro perder a eleição em 2022
Cleomar Almeida, da equipe da FAP
O general da reserva do Exército Francisco Mamede de Brito Filho, de 59 anos, 40 deles na ativa, diz não ver risco de as Forças Armadas serem usadas em reação ao resultado das urnas diante de uma possível derrota do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2022. Francisco, que também foi chefe de gabinete do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) nos quatro primeiros meses do atual governo, vai participar de evento online sobre o tema A questão militar: do Império aos nossos dias. O webinar será sexta-feira (30/7), a partir das 16h.
Assista ao vivo!
Coordenado pelo professor Hamilton Garcia de Lima, o evento será realizado pela FAP e também terá a participação do professor de história José Murilo de Carvalho e do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann. O webinar terá transmissão em tempo real no portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade.
“É inimaginável achar que as Forças Armadas vão ser empregadas em favor de um posicionamento ou de um chefe de governo contrário ao parecer das urnas e do próprio presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Isso seria uma ruptura institucional grave”, afirma, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Desprestígio
Ex-instrutor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Ecme) e ex-chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, o general explica que “a questão militar é um fato histórico pontual”. Segundo ele, está relacionada ao desprestígio da categoria de maneira geral, por causa da questão salarial, e à legislação leniente.
“Os fatores ali presentes na questão militar vão se replicar em outras situações de ruptura, além da República, como na Revolução de 30, no Estado Novo e no movimento de 1964”, analisa ele.
O conjunto de leis, por exemplo, de acordo com o general, ainda é leniente por não estabelecer limites para a participação política do segmento militar. “Era de se esperar que o Estado propusesse mecanismo de controle para se evitar interferências políticas”, ressalta.
“Controle não é, simplesmente, ter arcabouço legal que venha impor restrições”, explica. “Mas é preciso reconhecer que a despolitização ocorre, principalmente, por meio de legislação que coíba situações que favoreçam a politização”, acrescenta.
Caso Pazuello
Além disso, ele chamou de “obscura” a razão que levou à absolvição do general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Em junho deste ano, o colega de corporação se livrou de punição administrativa após discursar em ato político em defesa de Bolsonaro, apesar de regulamento disciplinar definir como transgressão a participação de militar da ativa em evento de natureza político-partidária.
“Quanto a isso, a coisa está obscura porque o comandante do Exército decretou 100 anos de sigilo sobre os motivos que o levaram a não punir Pazuello. Deve ter levado em conta algum dado que o deixou à vontade para tomar aquela decisão, mas está clara a situação transgressora, considerando os dados aos quais tive acesso”, diz Francisco.
Na avaliação do general da reserva, é preciso fortalecer ainda mais a legislação para evitar brechas interpretativas que favoreçam militares em cenários de transgressão disciplinar. “Se estamos vivendo situações que colocam a sociedade ansiosa ou com clima de confiança indesejável na democracia, é porque não tratamos bem o arcabouço legal”, assevera.
PEC
O general ressalta que um passo importante será a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos políticos em governos.
A autora da PEC, deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), afirmou que a “sensação” é de que não se sabe mais onde termina o governo e onde começa o Exército. “É o que pode acontecer de pior para esta instituição e as demais Forças Armadas”, disse, nas redes sociais.
Pré-celebração do bicentenário da Independência
A questão militar: do Império aos nossos dias
Dia: 30/7/2021
Transmissão: a partir das 16 horas.
Onde: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da Fundação Astrojildo Pereira
Realização: Fundação Astrojildo Pereira
Frente democrática deve ser condicionada a programa político, diz historiador
Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública
Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento do Brasil
‘Passado maldito está presente no governo Bolsonaro’, diz Luiz Werneck Vianna
FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia