Eleições EUA
Alon Feuerwerker: O que decidiu: a pandemia e George Floyd
Donald Trump ainda não aceitou a derrota, é possível que a luta nos tribunais se arraste, mas a contagem puramente numérica dos votos aponta vantagem decisiva de Joe Biden, o presidente aritmeticamente eleito dos Estados Unidos. A surpresa foi, e ainda vem sendo, a tensão nas apurações, tensão de origem mais política que aritmética. Causada principalmente pelo ineditismo do número de votos pelo correio. “Culpa” da Covid-19.
A luta pelo poder nos Estados Unidos interessa ao mundo, por razões óbvias. Para nós aqui, será particularmente útil tentar fazer alguma análise mais aprofundada, dado o sabido paralelismo entre as duas correntes atualmente no governo nos dois países. Saber o que aconteceu, ou não, por ali, pode dar algumas pistas de eventuais desdobramentos no Brasil nas eleições presidenciais de 2022.
Em primeiro lugar, deve-se notar que Donald Trump não sofreu erosão na sua base desde que se elegeu. Ao contrário, está recolhendo algo da ordem de sete milhões de votos a mais do recebido quatro anos atrás. A maciça campanha democrata pelo voto parece, curiosamente, ter atingido positivamente também o adversário. O problema de Trump: Biden vem recebendo cerca de nove milhões de votos a mais que Hillary Clinton em 2016.
Esse é outro sinal de que Donald Trump caminhava para uma reeleição, se não tranquila, ao menos bastante provável, antes de dois acontecimentos: a pandemia da Covid-19 e a morte de George Floyd. Ambos desencadearam dois movimentos no eleitorado: uma imparável onda pelo registro eleitoral de votantes pretos e um sentimento de urgência que ajudou a convergência de todos os potenciais adversários do incumbente.
As pesquisas ao longo do ano sempre registraram uma tendência dominante de desaprovação, da ordem de 50%, mas um contingente sólido entre 40% e 45% de aprovação para Trump. Bastaria ao presidente, portanto, manter coesa sua base e impedir que a maioria desaprovadora se agrupasse em torno do adversário. Era possível, mas a maneira como enfrentou a pandemia e a morte de Floyd catalisaram com violência a convergência dos opositores.
Poderia ter acontecido sem esses dois fatos? A dúvida ficará. Há alguns meses, o Partido Democrata vinha dividido, pulverizado numa disputa interna sem luz no fim do túnel e com suas alas divididas. Ao final, convergiu para uma solução convencional, contra uma alternativa que se dizia abertamente de esquerda. Mostrou-se adequado. Teria sido assim não fossem os acontecimentos extraordinários que se seguiram? De novo, jamais se saberá.
E no Brasil? Jair Bolsonaro chegará a 2022 com um desafio parecido ao de Trump em 2020: impedir a convergência dos votos que não são em princípio bolsonaristas. Ao contrário dos Estados Unidos, a dispersão partidária por aqui ajuda. E é possível, provável, que até lá a pandemia tenha sido em grande medida controlada. E os conflitos raciais não parecem ter por aqui, até agora, o impacto eleitoral dali.
Qual será o fator decisivo daqui a dois anos? Uma candidata forte vai ser a economia. Mas, como os Estados Unidos acabam de comprovar, nunca é bom subestimar o imprevisível. Ele é sempre muito difícil de prever.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Dorrit Harazim: O despejo
É quase humilhante constatar que, por quatro anos, mundo civilizado conviveu com um delinquente na Presidência dos EUA
Foram 1.460 dias. É quase humilhante constatar que, por quatro anos, o mundo civilizado sobreviveu e conviveu com um delinquente cívico na Presidência dos Estados Unidos. E essa eternidade não acabou: ao se confirmar sua derrota, Donald Trump dispõe de outras 11 semanas para minar com ferocidade vingativa o funcionamento da máquina governamental até a posse de Joe Biden em janeiro. Esse serviço de porão já foi iniciado. Na última semana de outubro, de forma atipicamente silenciosa, Trump lascou sua assinatura num documento de nome quase esotérico: “Ordem Executiva sobre a Criação do Nível F no Serviço Protegido”. Tradução: pelo novo decreto, uma vasta gama de postos federais passam a ser designados como “cargos de confiança e de formulação de políticas”. Poderão perder o direito à estabilidade que sempre tiveram como servidores de carreira. Esses milhares de funcionários que trabalham e analisam fatos — cientistas e juristas, médicos, economistas — seriam repassados a essa nova categoria F. Inversamente, os nomeados políticos de Trump passam a integrar a classe dos funcionários, com estabilidade e tempo para travar a máquina do futuro governo Biden.
Mas isso são meras migalhas. Atual e alarmante é a combustão do ocupante da Casa Branca, entrincheirado com sua bílis por ter acreditado nas próprias fake news. Na última “New Yorker”, a jornalista Jane Mayer escreve sobre a possibilidade de Trump, quando perder a imunidade, vir a ser preso. Mayer inicia a reportagem com uma cena histórica — a de um presidente dos EUA em pânico dando ordens descontroladas e exigindo dos assessores uma lista de escapatórias. Sem ser particularmente religioso, o chefe da nação cai de joelhos e passa a rezar alto; soluça, bate com os punhos no tapete e grita “O que que houve?”. O chefe de gabinete acha prudente chamar a equipe médica e ordena o confisco de todos os tranquilizantes, para afastar a possibilidade de suicídio. Tudo isso aconteceu de fato na Casa Branca de Richard Nixon, no verão de 1974, e está narrado con gusto pela dupla Bob Woodward-Carl Bernstein em “Os últimos dias”.
Mas Trump não é Nixon — nem na formação intelectual (sim, Nixon tinha sólida formação, o que não deve ser confundido com caráter), nem na índole, nem no reconhecimento da existência de um estado de direito. Nixon nunca foi mimado, tinha medo da vergonha, do opróbrio público. Trump tem medo da humilhação social. São coisas muito distintas. Para o Narciso-em-Chefe na Casa Branca, a ideia de ser perdedor, ou de parecer perdedor, o obrigaria a desprezar a si mesmo — e essa possibilidade inexiste. Parecem nulas as chances de Trump jamais vir a “vestir calça de menino que cresceu e congratular o vencedor”, como sugeriu Jim Kenney, o prefeito democrata da Filadélfia. Mesmo que, ao final da tortuosa apuração dos votos, o resultado lhe tenha sido desfavorável, Trump quer parecer indestrutível aos olhos de seus devotos.
A nação de quase 63 milhões de eleitores que o elegeu em 2016 cresceu e se multiplicou para 70 milhões em 2020. “Me sinto seguro ao garantir que Donald Trump estará entre os candidatos à eleição em 2024”, lançou de Dublin o seu ex-chefe de gabinete e atual enviado especial à Irlanda do Norte, Mick Mulvaney. Não sem razão: em quatro anos Trump conseguiu moer a cúpula partidária em massa de manobra. À exceção de John McCain, que já morreu, não sobrou nenhuma figura de porte nacional. Viraram moluscos. O vice-vassalo Mike Pence só existe enquanto Trump existir. Mesmo derrotado, Donald Trump pretende continuar representando o partido que já teve “Honest Abe” (apelido e sinônimo de Abraham Lincoln) como primeiro presidente republicano.
Ainda assim, e independentemente de quando e como o resultado for referendado, a extraordinária catarse democrática que deu a Joe Biden a maior votação da história do país — mais de 4 milhões acima da de Trump — será um marco indelével. O colosso americano parece ter despertado de uma longa noite de quatro anos para redescobrir o valor de cada voto e o júbilo de votar.
Recompor uma nação separada por duas realidades, duas visões de si e dois conjuntos de fatos poderá levar uma geração inteira. Perdeu-se o conhecimento básico que um cidadão americano acreditava ter do outro. O escritor e colunista Anand Giridharadas, americano nascido na Índia, aponta para a oportunidade de os Estados Unidos aprenderem a real história do país. Hora de aceitar que a visão de James Baldwin da sociedade americana nunca foi radical. Se para nada mais serviu o ano de 2020, ele ao menos consolidou a urgência dos Estados Unidos se reconhecer como nação onde não basta ser não racista. É preciso aprender a ser antirracista.
O radical de hoje é Donald Trump. Por quatro anos, ele comandou uma nação incapaz de deliberar seu futuro baseada numa mesma fonte de fatos. Joe Biden chega para iniciar a longa jornada de retorno, senão à normalidade, pelo menos à sensatez quando diz: “Não cabe a mim nem a Donald Trump declarar quem venceu a eleição. Esta é uma decisão do povo americano”.
Para Trump, a questão do despejo é inconcebível. A única transição de poder que aceita é dele para ele mesmo. Talvez precise de monitoramento.
Vera Magalhães: Nova diplomacia
Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico
Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.
A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.
Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.
Mas existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.
Joe Biden já deixou claras as restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no comprometimento com metas climáticas, por exemplo.
Acenou com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.
Ainda entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria, não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.
O prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de Salles provoca).
Um breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.
Araújo se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos. Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.
Na questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair, enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump está de saída. Para quê? Absolutamente nada.
É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.
Ricardo Noblat: Bolsonaro escolheu sair derrotado das eleições americanas
O risco do isolamento
Deu no The New York Times, o mais importante jornal do planeta: “Enquanto os líderes da América Latina e do Caribe se apressaram em parabenizar Biden por sua vitória e prometeram trabalhar em estreita colaboração com seu governo, os governos do México, Brasil e El Salvador permaneceram em silêncio”.
O presidente Jair Bolsonaro custou a acreditar que Donald Trump pudesse ser derrotado pelo democrata Joe Badin, “esse cara”. Ao perceber que isso seria possível, passou a acreditar que ao fim e ao cabo as ações movidas por Trump e pelo Partido Republicano acabariam sendo acolhidas pela Suprema Corte.
Ao dar-se conta nas últimas 48 horas de que não serão, decidiu ainda assim que tão cedo enviará a Biden uma mensagem de parabéns. O que ele pensa em ganhar com isso? Até Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido, mais ligado e mais dependente de Trump do que é Bolsonaro, parabenizou Biden.
Não falta vida inteligente ao lado do presidente brasileiro ou ao alcance de um telefonema dele em busca de conselho. Falta vida inteligente em Bolsonaro, bem como disposição de ouvir o que o contrarie. Nisso ele e Trump são iguaizinhos: querem que todos que os cercam digam amém às suas ideias e as exaltem.
Há os que imaginam que existe método na loucura de Bolsonaro. Ocorre que nem sempre há. Sobra estupidez. O que Trump fez por ele ou pelo Brasil para merecer tamanha admiração e vassalagem por parte dele? Nada. O que Bolsonaro fez para que Trump pelo menos se interessasse por ele? Tudo que pode.
Nem assim Trump se interessou. A única coisa em Bolsonaro que chamou a atenção do presidente americano foi o fato de ele ser apontado pela imprensa internacional como o Trump do Brasil. Trump achou curioso e mais de uma vez falou a respeito. Uma coisa, de fato, os aproximava: eram presidentes acidentais.
Bolsonaro é bem capaz de bater o pé e de resistir às evidências de que terá de rever suas posições em relação a vários temas se quiser se entender com Biden depois que ele tomar posse. A questão ambiental é um desses temas, mas não é o único. O respeito aos direitos humanos é outro. A situação da Venezuela, outro.
O que é bom para os Estados Unidos nem sempre é bom para o Brasil, mas algumas coisas podem ser. As apostas internacionais feitas por Bolsonaro deram erradas. O país que ele governa perdeu conceito no exterior. Bolsonaro arrisca-se a se tornar um presidente cada vez mais isolado, o que é péssimo para o Brasil.
Merval Pereira: Efeito Orloff
Certamente o fator decisivo para a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump foi a capacidade do ex-vice-presidente de encarnar o que mais os Estados Unidos precisam hoje, um conciliador. O caminho para derrotar um extremista de direita não é um extremista de esquerda, e por isso Bernie Sanders se perdeu pelo caminho durante as primárias, e Biden recuperou sua vantagem moral com os votos dos negros na Carolina do Sul.
O mesmo pode acontecer entre nós. O famoso efeito Orloff, eu sou você amanhã. Se em 2018 o eleitorado queria sangue nos olhos, e por isso o PT ainda conseguiu levar seu candidato Haddad ao segundo turno, menos por ele, que é um moderado, mais pela história do partido, radicalizado pela prisão do ex-presidente Lula, talvez não seja esse o cenário em 2022.
Essa tensão permanente que Trump impunha aos Estados Unidos e ao mundo cobra seu preço, assim como aqui entre nós Bolsonaro já teve que dar uma meia trava em sua beligerância. Trump e Bolsonaro têm os mesmos arroubos autoritários que acabam sendo uma ameaça à democracia que lhes proporcionou chegarem onde chegaram.
Ambos se batem contra as instituições democráticas que limitam os poderes de um presidente da República, como sói acontecer na democracia ocidental. Ambos se colocam contra a imprensa livre e tentam constrangê-la com ataques e críticas. Agora, nos Estados Unidos, Trump viu-se na condição de censurado a bem da verdade pelas três redes de televisão aberta do país, uma atitude drástica que mostrou a que ponto de conflito as relações do presidente com os órgãos de imprensa chegaram.
Os conflitos estimulados, a violência tolerada, como Trump com os supremacistas brancos e Bolsonaro com os radicais que cercaram o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçavam o fechamento do Congresso, acabam cansando os cidadãos comuns, que não estão em guerra com o mundo e buscam um ambiente pacífico para viver, especialmente empregos para trabalhar.
Ser popular não requer usar camisas de times de futebol, nem oferecer pão com leite moça a uma autoridade que o visita. Nem fazer piada homofóbica, estimulando pelo exemplo um hábito brasileiro que deveria ser erradicado. Seria preciso uma política econômica que gerasse empregos, uma atitude séria diante da pandemia da Covid-19, um governo sólido que desse aos cidadãos confiança no futuro.
A popularidade de Trump levou o Partido Republicano a ter uma votação histórica, com a possibilidade de manter a maioria no Senado. Mas para Trump, a perda da presidência é uma dor pessoal, não partidária, assim como Bolsonaro já pertenceu a cerca de 10 partidos e continua à disposição de qualquer legenda que lhe ofereça submissão total. Não são políticos a serviço do país, mas deles mesmos.
Diz-se em política que presidência é destino. No Brasil, temos exemplos vários disso, com Collor, Itamar, Sarney, Temer, o próprio Bolsonaro, que nunca sonharam em ser presidente e chegaram lá por caminhos diversos. Com Joe Biden, essa premissa se confirma. Concorreu três vezes dentro de seu partido, quatro anos antes deveria ter sido o candidato natural após os oito anos de vice-presidência, mas as forças políticas dos democratas levaram Hillary Clinton a ser a candidata contra Trump.
Biden chegou a presidente quando menos se esperava, aos 78 anos, mas com o perfil talhado para derrotar o arrogante autoritário que havia chegado à Casa Branca também fora de qualquer possibilidade previsível. Populistas escrachados como Trump ou Bolsonaro apenas aproveitam-se das fragilidades da população para vender ilusões e alimentarem seu autoritarismo. Falta-nos, no momento, uma figura que represente o político de centro-esquerda que Biden encarna, um político confiável como já tivemos, que represente a solidez de uma carreira dedicada à conciliação e ao combate à desigualdade.
Míriam Leitão: Vitória da causa da humanidade
'A causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade.' A frase escrita por Thomas Paine em 1766 amanheceu ontem como nova. “O sol jamais brilhou sobre uma causa com maior importância”, escreveu Paine, o incandescente fundador da pátria, no “Senso Comum”. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris tem múltiplos significados. O presidente eleito Joe Biden avisou no seu primeiro comunicado: “O trabalho adiante de nós vai ser duro.” E será. Ninguém expressou melhor o sentimento de deixar para trás um governo que pregou a intolerância e praticou a mentira do que o comentarista Van Jones. E o fez aos prantos. “É mais fácil ser pai esta manhã. Mais fácil falar aos filhos que ter caráter é importante.”
Quando Donald Trump, no primeiro debate, se negou a condenar um grupo que prega a supremacia branca, o negro Van Jones, comentarista da CNN, perguntou o que dizer às crianças, ao filho. Agora há muito a contar aos jovens sobre velhas lutas contra preconceitos. O homem mais velho a ocupar a Casa Branca vem junto com uma mulher negra, filha de imigrantes. “We did it, Joe”, disse ela, rindo no telefonema ao vencedor. Tudo é simbólico. Há 100 anos as mulheres americanas conquistaram o direito de voto. Kamala Harris é água desse rio que corre há um século e que abrigou em seu leito outros rios. Será lindo vê-la assumindo a vice-presidência do país escolhido por sua mãe indiana e pelo seu pai jamaicano. É o momento em que se pensa que não há impossíveis, não há “isso não é para você”.
O dia 7 de novembro é histórico para Joe Biden por lembrar sua posse como senador há 48 anos. Mas para toda a sua geração e as que vieram depois serve como quebra de outro preconceito, o que recai sobre os velhos. Nunca é tarde para um sonho. Essa é a mensagem.
Há, em qualquer eleição, duas direções para olhar o evento. Olha-se para o que virá e o que se deixa para trás. O passado agora é Donald Trump. Ele é o líder que exibiu os piores sentimentos como se fossem normais. “Há muita gente que não consegue respirar, acorda, vê os tuítes, vai a uma loja e vê que as pessoas que antes tinham medo de mostrar seu racismo estão ficando cada vez mais desagradáveis”, disse Jones. Um presidente sempre amplifica suas mensagens. Quando mente, ofende, discrimina, ele autoriza esse comportamento. Trump, certa vez, debochou de um jornalista por ter um defeito físico. Foram quatro anos expostos ao governante do país mais forte do mundo estimulando as piores atitudes. Como ensinar às crianças que ser decente vale a pena se o presidente debocha de valores, desrespeita códigos civilizatórios, descumpre as leis?
Em uma vitória há também o olhar para o futuro e esse é o mais relevante. O futuro não será azul. Será uma transição hostil para um governo que assumirá no meio de uma pandemia e de uma crise econômica. Há ainda as fraturas da América para serem curadas. Todos terão trabalho a fazer para reatar o país partido. Alguns republicanos cumprimentaram o novo presidente, como fez Jeb, da casa Bush, que por 12 anos governou o país. “Eu tenho orado pelo nosso presidente em grande parte da minha vida adulta. Eu vou orar por você e seu sucesso.” Um protestante republicano estava dizendo a um democrata católico que oraria por ele.
Filadélfia foi o berço da Constituição e foi simbolicamente o ponto do recomeço. O ex-presidente Fernando Henrique ressaltou a coincidência e lembrou que em dois séculos e meio nenhum presidente havia atacado os alicerces da democracia. “O atual o fez sistemática e deliberadamente”. No mundo, inúmeros líderes cumprimentaram Joe Biden. O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, falou da aliança na luta contra a mudança climática.
“Vejo as águas que passam e não as compreendo (…) Como poderia compreender-te América?”, Drummond lançou essa pergunta há 75 anos. A dúvida amanheceu ontem como nova. Como entender tudo o que houve nesses dias? Como entender os últimos quatro anos e os 70 milhões de votos em uma pessoa nefasta? “Tantas cidades no mapa… nenhuma porém tem mil anos.” O poeta parecia ver o que vivemos esta semana investigando a geografia americana para adivinhar a cor de cada cidade. É forçoso entender tudo o que houve porque, como ensinou Paine, essa é a causa da humanidade.
Eliane Cantanhêde: O Trump tupiniquim
Com derrota externa e interna, Bolsonaro está abatido, isolado e sem referências
É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção, atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior democracia do planeta. Mas Donald Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.
Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de votos…
No Brasil, o voto é obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.
Quanto à votação, o Brasil tem coordenação nacional e regras do TSE e, desde 1996, a urna eletrônica, segura, fácil, rápida, que permite o anúncio do novo presidente no dia do pleito. Já nos EUA cada estado tem suas regras e as cédulas são de papel, do século passado. A apuração é manual, voto a voto, envolve milhões de pessoas, gera incertezas, disputas judiciais e o resultado pode demorar semanas.
Bolsonaro, porém, insiste na volta da cédula impressa, depois de criar uma figura inédita no mundo: a do eleito que denuncia fraude na própria eleição – sem prova nenhuma, aliás, como o Trump real nos EUA. E as semelhanças não param aí. Trump se nega a coordenar a reação nacional à pandemia, diz que é só uma gripe, desdenha de máscaras e isolamento social e fez propaganda da cloroquina. Você já viu esse filme aqui? Mas isso não é brincadeira, é brincar com a vida.
Trump lá e Bolsonaro cá vivem numa realidade paralela, como velhos populistas convencidos de que podem falar e fazer qualquer coisa, espancar a China, aliar-se ao que há de pior e promover retrocessos em gênero, direitos humanos e meio ambiente na ONU. Bolsonaro só não saiu do Acordo de Paris, como fez Trump no dia da eleição, por falta de condições políticas.
Há, porém, diferenças entre o “mito” Bolsonaro e o “Deus” Trump, que não rasga dinheiro e manteve o slogan “America First” com o Brasil. Ganhou todas, inclusive ao derrubar um brasileiro em favor de um americano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ao impor cotas de aço, alumínio e etanol para o Brasil. Logo, usou os produtores brasileiros para comprar votos desses setores nos EUA.
Apesar da ridícula convocação de manifestações pró Trump em cidades brasileiras, até o mercado financeiro avalia como positiva a vitória de Joe Biden, que defende princípios, não é dado a maluquices e vai manter o decantado pragmatismo da política externa americana. Os dois presidentes podem se bicar, mas Brasil e EUA manterão acordos comerciais, programas de cooperação e a negociação em prol dos interesses de cada um. E quem discorda da pressão em defesa da Amazônia?
A troca de Trump por Biden é saudável para o mundo, os EUA e o Brasil, mas Bolsonaro tem razão em estar abatido. Ele perde o único grande parceiro internacional e seus candidatos às eleições municipais afundam como Trump. Com derrota externa e interna e a obsessão por 2022, será cada vez mais engolido pelo Centrão, quicando de um palanque a outro e falando besteira.
Carlos Melo: O desafio de Joe Biden
Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.
Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal, pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas, exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado” particular.
Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu. Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há muito tempo. A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o ministro Paulo Guedes percebeu existir.
Eles não têm formação, não têm profissão, não têm emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num processo de precarização aparentemente sem fim.
Foi dessa decadência que se fez a noite, desse pântano que emergiu o monstro que deu vida ao Brexit, a Donald Trump e às mancheias de genéricos que carregam o mesmo princípio ativo: a demagogia, posto que há muita espuma em barulho, mas nenhuma providência concreta para resolver problemas reais. Quais as grandes medidas adotadas por Trump – ou por Bolsonaro ou pelo Reino Unido, pós Brexit – capazes de alterar a rota de exclusão e desalento, catalisada pela covid-19?
Da estagnação econômica e da desigualdade brota a degeneração política – e se o original traz essa degenerescência, o que dizer das cópias espalhadas pelo mundo? Enfim, são ecos do desespero, é a nostalgia de um passado idealizado – make America great again –, são a ignorância e o ressentimento que apelam à violência e ao oportunismo que invade a religião e assenhora-se de um deus, como se Deus fosse só seus.
O iluminismo de Barack Obama foi incapaz de estabelecer vínculos e diálogos com essa população brutalizada pela desigualdade cuja arrogância do liberalismo radical e dogmático apenas ampliou. Hillary Clinton foi vítima da própria presunção, natural dos bem-nascidos formados na Yve League, que acreditam poder passar ao largo do mal-estar que espreita pelas janelas e ocupa as esquinas, presa fácil de todo tipo de milícias.
Donald Trump é o líder demagogo surge nos balcões do desemprego e da cabeça baixa dos invisíveis — assim como aquele outro que surgiu dos balcões das cervejarias de Munique, na Alemanha dos anos 1920. Ele expressa o mal-estar da civilização contemporânea. É isso que o levou tão longe. Se é verdade que tem contas a pagar, verdade também são os saldos que tem a recolher se a dívida social não for liquidada. Por detrás de si, há uma horda de desvalidos a procura de um fiapo qualquer de esperança. É preciso ter atenção para isso e qualificar essa esperança.
Esse será o grande desafio de Joe Biden: compreender os problemas de seu país e do mundo; não fugir à responsabilidade de governar para todos; somar e não mais dividir, incorporar os destroços do século 20 aos melhores sonhos do século 21. Estabelecer vínculos e políticas públicas com e para os rejeitados pela 4ª. Revolução. Retirar-lhes do sanatório, abrir-lhes a porta de um abrigo seguro e as janelas das oportunidades. Terá no seu encalço, se não Donald Trump, o seu fantasma. Se fracassar, do caudaloso lago da desigualdade e da ignorância, outro monstro da demagogia poderá surgir. Inviabilizá-lo é seu desafio e o desafio do mundo todo.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Luiz Sérgio Henriques: Derrotar Trump, desconstruir o trumpismo
Não há possibilidade de escrever nem mesmo uma linha sobre política que não carregue consigo a alta tensão elétrica que nos rodeia e angustia. A atmosfera pesada em que temos vivido não se dissipará com o provável resultado favorável a Joe Biden nas eleições norte-americanas, e não só por causa do arsenal de chicanas que são o elemento vital de personagens como Donald Trump. Mais do que isso, a direita subversiva no poder – não podemos esquecer nunca que há outras modalidades de direita, que aderem aos valores constitucionais e, por isso, são participantes com todos os títulos do jogo democrático – sempre deixa como herança um terreno deliberadamente minado; e, como se sabe, minas explodem muito tempo depois de terem sido enterradas, estropiando e matando aleatoriamente. Continuaremos, por isso, a conviver com o perigo por tempo indeterminado.
O caso norte-americano é, na prática, um exemplo de manual, pronto para ser aplicado, ou reiterado ainda mais fanaticamente, em várias partes do mundo. Por mais que Trump e o Partido Republicano, remodelado ao seu feitio, tenham obtido resultados não previstos pela generalidade das pesquisas, o fato é que essencialmente lidamos com um líder e um agrupamento de vocação “minoritária”. Maiorias eleitorais, se e quando acontecerem, serão conquistadas a golpes publicitários, manipulação nas redes sociais, difusão organizada de fake news, tudo voltado para a exploração de medos e paranoias coletivas. Não se faz nenhum segredo quanto a isso.
Nunca é muito difícil achar bodes expiatórios contra os quais mobilizar artificialmente eventuais maiorias: a partir do judeu, o “outro” do Ocidente por excelência, podem-se inventar variados inimigos da raça superior ou da pátria excepcional. Houve um tempo, por exemplo, em que judeus e bolcheviques se misturavam e viravam alvo deste tipo doentio de imaginação; mesmo hoje, por trás dos tais “comunoglobalistas”, pode-se entrever a cauda repugnante do velho antissemitismo. E, como estamos no terreno resvaladiço do engodo, também não é complicado canalizar o ódio e o desprezo para outros portadores de estigma – para o imigrante, por exemplo, inclusive o de origem islâmica. Não se peça coerência e racionalidade ao moderno populismo de extrema direita: a linguagem do ódio é o seu meio, o objeto dela pode variar amplamente ao sabor do acaso.
Empregada como método, esta linguagem tem como resultado a regressão intelectual de amplas camadas da população e a consequente degradação da esfera pública. O que se busca é romper o nexo virtuoso entre participação e conhecimento, democracia e ciência, política e cultura. Seitas como QAnon, especializadas em caçar supostos pedófilos entre opositores políticos e até líderes religiosos, aparecem ruidosamente em cena, reivindicando voz e representação parlamentar. Para não falar, ainda no caso norte-americano, de milícias tão fortemente armadas que tornaram há quase duas décadas o “terrorismo doméstico” uma ameaça muito mais real e presente do que o extremismo jihadista ou qualquer outro extremismo.
Não é possível nos determos aqui nas vertiginosas mudanças “estruturais” que abalam as sociedades modernas e que, “em última análise”, como talvez ainda se possa dizer, condicionam fenômenos como os brevemente apontados. É inteiramente certo, porém, que estes últimos obedecem a uma dinâmica própria e gozam de ampla autonomia. É no contexto deles que vastas parcelas da população se mobilizam, muitas conjunturas eleitorais se definem, dificuldades econômicas e medos existenciais encontram uma explicação qualquer, por mais torta ou equívoca que seja.
O conservadorismo revolucionário – valha-nos o oxímoro – explora e aprofunda tais dificuldades; por definição, não pretende governar democraticamente os conflitos ou buscar alguma forma de recomposição social, mas sim afirmar um poder autocrático por sobre sociedades profundamente divididas ou mesmo dilaceradas em razão de situações agudamente críticas. Sequer uma circunstância pandêmica, como a que vivemos, “comove” este tipo de poder. A máquina econômica tem de seguir adiante inapelavelmente, como se não houvesse nada ao redor, e isso é tudo.
Se há algum consolo no drama que nos afeta, é que, pelo menos num plano mais imediato, não há maiores dúvidas para o diagnóstico: a crise do nosso tempo está toda contida na oposição entre democracia política e subversão de direita (bem entendido, a “direita revolucionária”). Neste sentido, os democratas americanos, até o momento, agiram magnificamente em meio às dificuldades sabidas. Bem verdade que, dado o bipartidarismo vigente naquele país, a montagem da amplíssima frente necessária para barrar a reeleição de Trump constituiu um assunto interno dos próprios democratas, o que em tese terá facilitado suas ações ao longo da campanha pré-eleitoral.
O resultado alcançado diz muito: Joe Biden e Kamala Harris não são um mero biombo atrás do qual se escondem perigosos socialistas e comunistas, mas, antes, a expressão de um centro forte e pragmático, capaz de atrair os republicanos tradicionais que não se submeteram a Trump. E desta vez, ao contrário de 2016, a própria esquerda partidária, representada entre outros por Bernie Sanders, parece ter entendido a dimensão da aposta em jogo: sem ocupar o centro político, só pode haver proposições virulentas e minoritárias, cujo método de ação é o caos, a demagogia, a manipulação. Em suma, só pode haver, e nos seja perdoada nova expressão paradoxal, leninismos de esquerda e de direita, todos os dois muito aquém dos requisitos da política contemporânea e portadores de soluções autoritárias.
Vencer eleitoralmente é, pois, a tarefa imediata rumo à recuperação de um mínimo de equilíbrio e sanidade. Desarmar as minas retardatárias do trumpismo e seus avatares mundo afora é outra história, muito mais complexa, que nos ocupará por muito tempo nos Estados Unidos e nos outros países do Ocidente político, o que inclui obviamente o Brasil.
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição). Dirige, nesta Fundação, a coleção Brasil & Itália, com duas dezenas de livros publicados. Sua atividade de tradutor tem como eixo difundir a cultura democrática e socialista italiana. Há 10 anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo, uma colaboração de que resultou o volume Reformismo de esquerda e democracia política (Verbena & FAP, 2018).
Hélio Schwartsman: Democracia na América
Sistema eleitoral nos EUA é pouco republicano e ruim de apurar
Se fizéssemos um concurso para escolher o pior sistema eleitoral do planeta, teríamos dificuldades para projetar algum que superasse o americano. Ele é pouco republicano (os votos dos cidadãos não têm o mesmo peso), ruim de apurar e multiplica por 51 a probabilidade de resultados apertados que podem dar margem a contestações. Ainda assim, não vejo como se possa afirmar que os EUA não são uma democracia.
E isso nos leva ao tema da coluna de hoje: boas leis ajudam a criar um ambiente favorável à democracia e a outras virtudes públicas, mas é possível exercê-las mesmo se as leis não forem muito boas. Temos um justificado fetiche por protocolos e normas escritas que tanto nos facilitam a vida, mas eles são só a face mais visível da institucionalidade, que, ao fim e ao cabo, tem mais a ver com os comportamentos e atitudes adotados no mundo real do que com sua codificação.
Isso nem deveria ser uma surpresa. O Reino Unido e Israel são democracias mesmo sem dispor de uma constituição escrita. No polo oposto, a constituição soviética de 1936 era ótima no capítulo dos direitos e liberdades, o que não impediu a URSS de ser uma ditadura.
Nada disso era segredo para Tocqueville, que, em sua obra clássica, identificou nas atitudes da sociedade civil a força da democracia na América. Podemos ter visto uma demonstração disso na reação de cidadãos, empresas e instituições à tentativa de Trump de melar as apurações.
O presidente transpôs uma linha vermelha, porque até políticos aliados e órgãos de comunicação simpáticos ao magnata rejeitaram com veemência seu discurso delirante sobre fraudes. Redes de TV aberta chegaram a interromper a transmissão de sua fala. Algo parecido se deu nas redes sociais. Órgãos federais, como a FAA (agência federal de aviação) e o Serviço Secreto, em tese subordinadas a Trump, já começaram a proteção do virtual presidente eleito —sem perguntar nada para o chefe.
João Gabriel de Lima: A comédia Donald Trump pode estar perto do fim
Se previsões se confirmarem, americanos interrompem peça enquanto se pode ir dela
Comédias têm três atos, ensinam os clássicos da dramaturgia. Tragédias têm cinco. Se as projeções se confirmarem num país dividido, a comédia Donald Trump terá chegado à última cena com o esperneio final – e patético – do presidente dos Estados Unidos.
É possível delinear os três atos da comédia Trump a partir da leitura de O Povo Contra a Democracia, do alemão Yascha Mounk. O livro disseca esse tipo de político que, sem ser propriamente de esquerda ou de direita, fustiga uma e envergonha a outra: o populista.
O primeiro ato de um populista típico é vender soluções simples – e erradas – para problemas complexos. No mundo globalizado, governar não é trivial. Não é possível, por exemplo, criar empregos por decreto, tampouco evitar que eles migrem para outros países. Nem combater pandemias com poções mágicas. Líderes modernos – como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou António Costa, para citar exemplos de vários lados do espectro político – são aqueles que conseguem explicar os limites de um governo a seus eleitores. Tratam-nos como adultos.
Um populista, por seu turno, infantiliza os que votaram nele. Trump prometeu tornar os Estados Unidos novamente grandes – e, ao longo de sua presidência, tratou os cidadãos americanos como crianças a quem se promete um chocolate para que parem de chorar. Inventou um muro para evitar que imigrantes mexicanos disputassem postos de trabalho nos Estados Unidos – e seu governo acabou sendo aquele em que mais americanos perderam seus empregos desde a Segunda Guerra. Eis o segundo ato da comédia populista. Os embustes vendidos na campanha eleitoral são esmagados pela realidade.
No terceiro ato, o populista diz que a culpa não é dele. Se algo deu errado, é porque os inimigos não deixaram o governante trabalhar. Por “inimigos” entendam-se a ONU, o Congresso, os “comunistas”, a imprensa, os chineses, os mexicanos. Ou, ainda, os cientistas que sugeriam medidas sensatas contra o coronavírus. Se as projeções se confirmarem, será porque a maioria dos americanos não engoliu a fake news dos inimigos e escolheu Joe Biden presidente da República, encerrando o terceiro ato. Fim da comédia. Cai o pano.
Trump já é, e continuará sendo, um caso de estudo em ciência política. Poucos o entenderam melhor que Mounk, intelectual que milita contra o populismo. Suas trincheiras são o site “Persuasion”, uma rede de defesa da democracia, e um podcast com o nome sugestivo “The Good Fight”, “O Bom Combate”. Nos episódios, Mounk entrevista expoentes da reflexão política num gradiente amplo de convicções, de Anne Applebaum a Francis Fukuyama.
O maior risco de um país governado por um populista é a reeleição. Neste cenário, o ciclo continua: o governante diz que a culpa não é dele, os eleitores acreditam e o reconduzem ao cargo. A peça evolui para um quarto ato, em que o populista dobra a aposta nas soluções simples e erradas. As cenas finais mostram a corrosão das instituições. Temos aí os cinco atos de uma tragédia. As cortinas da democracia se fecham.
Se as projeções se confirmarem, será porque a maior parte dos americanos, cansados de ser tratados como crianças, decidiram que a América deveria ser, novamente, gente grande no mundo. Se as projeções se confirmarem, os americanos terão evitado que a comédia se transformasse em tragédia, ao interromper a peça enquanto ainda era possível rir dela.
*Jornalista, escritor e professor da Faap e do Insper
Míriam Leitão: O inesperado caminho de Biden
Joe Biden parecia a pessoa errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e, como ele mesmo tornou público, foi gago. Além disso, foi acusado durante as primárias — época de explicitar divergências partidárias internas — de ser próximo demais de republicanos. Ele venceu as eleições contra o presidente que mais usou a presidência para os seus propósitos eleitorais. Onde foi que ele acertou?
Ele acertou em chamar Kamala Harris para a sua chapa. Ela representa um outro patamar no nível de representatividade que toda democracia deve almejar. Primeira em muitos quesitos. Mulher, negra, filha de um latino e uma asiática, casada com um judeu. Quando ela se sentar na sala de vice-presidente dos Estados Unidos muitas barreiras estarão sendo superadas. Com Kamala se retoma também a caminhada dos negros para uma sociedade de iguais. À eleição de Barack Obama se seguiu um movimento radical no sentido oposto. O presidente Donald Trump é supremacista, como tornou evidente.
Joe Biden acertou em ser ele mesmo. A empatia que todos dizem ser da sua natureza foi mostrada na campanha. E esse era um elemento que faltava na política do país mais atingido pela pandemia de Covid-19. Seus dramas pessoais foram muitos e são conhecidos. Ele os expôs na medida certa. A morte da mulher e da filha bebê, seu esforço para ser pai e mãe dos filhos pequenos na viuvez e manter seu mandato de senador, o golpe da morte do filho Beau de câncer no cérebro. Até o fato de ser gago foi mostrado na história de um menino a quem ele tem estimulado na superação da dificuldade. Enfim, ele não era o super-homem que enfrentaria o mal. Era mesmo o Joe.
Ser normal diante de tanta anomalia trumpista foi um ativo. Mas houve outros improváveis caminhos do sucesso. Na primeira vez que tentou disputar as primárias, era jovem, pouco mais de 40 anos. Na segunda vez, perdeu para Barack Obama e virou seu vice e amigo. Agora não seria tarde demais? Os avanços da ciência nos trouxeram a longevidade, mas a pandemia, subitamente, mostrou aos mais velhos o quanto eles são vulneráveis. O candidato expôs esse sentimento misto. É um veterano ainda em busca do seu sonho maior, mas ao mesmo tempo fez uma campanha cuidadosa, sem aglomerações, com uso insistente de máscara. Foi até alvo de deboche de Donald Trump por usar supostamente máscaras enormes. Joe Biden mostrou saber que a vida é frágil. Um sentimento que compartilha com tantos num país em que o vírus contaminou 10 milhões, atinge mais de 100 mil todos os dias e matou 240 mil pessoas. Só na semana passada, os EUA tiveram 650 mil novos casos, mais do que a Alemanha durante toda a pandemia.
Biden acertou em costurar uma coalizão agregando forças dentro do partido e na sociedade. Sua campanha atraiu independentes e até republicanos, o que mostrou uma capacidade de diálogo que será muito exigida nos próximos e difíceis anos que os Estados Unidos têm pela frente no trabalho de reconstrução. Destruir é fácil, e foi a essa tarefa que se dedicou Donald Trump. Ele demoliu muitas pontes com países aliados. Hostilizou o Canadá, tratou de forma arrogante países europeus, a tal ponto que a chanceler Angela Merkel disse que até agora não entendeu como os americanos escolheram Trump. Biden terá que buscar os organismos multilaterais maltratados e acordos abandonados por Trump. E, nesse caminho, nós sempre teremos Paris. O Acordo de Paris.
No primeiro debate, Trump parecia ter engolido Joe Biden. Era o comunicador agressivo que impunha sua hora de falar, contra o homem que parecia travar em certos momentos. Quem estava certo? Qual é a melhor estratégia na eleição e na vida? A vitória eleitoral de Joe Biden inverte a avaliação sobre o que é sucesso. A vitória não é impor-se. É convencer. Sem a capa da invencibilidade que o seu adversário exibe, Joe Biden derrotou o maior perigo que já rondou a América.