Eleições EUA
Pedro Fernando Nery: Nosso norte
A Amazônia é fundamental para a economia, mas ganhos precisam ser compartilhados
Saindo de São Paulo, leva-se menos tempo para chegar em Tel-Aviv do que a Ipixuna – a cidade brasileira com o pior nível de desenvolvimento no índice Firjan. É localizada no Amazonas, mas o aeroporto de médio porte mais próximo fica no Acre, de onde partem barcos para a longa viagem para a cidade. A precariedade da infraestrutura no Norte do Brasil vai muito além da rede elétrica do Amapá, às escuras depois de um incêndio que chamou a atenção do resto do País nos últimos dias.
Na Região Norte, 1 milhão de brasileiros não correm risco de apagão: eles já não têm acesso a energia elétrica, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). Outros milhões estão em um sistema ainda vulnerável, como mostra o caso do Amapá, cuja solução definitiva levará dias e depende da chegada de balsas.
O País ainda tem um Estado inteiro – Roraima – desconectado do sistema elétrico nacional. A ligação é historicamente polêmica, pelas questões ambientais e indígenas envolvidas. Elas também aparecem na polêmica da pavimentação da BR-319, ligação de uma das maiores cidades brasileiras – Manaus – com o restante do País.
No Norte do Brasil, 40% dos cidadãos vivem abaixo da linha da pobreza – número quase igual à taxa do Nordeste. Mas a pobreza amazônica não ocupa ainda muito espaço no imaginário do Centro-Sul como a pobreza nordestina. É preciso admitir uma verdade inconveniente: esse baixo PIB per capita é um complicador para a preservação da floresta. A influente revista Science publicou este ano um artigo sobre as obras da BR-319: o título é “Estrada para o desmatamento”. Mas estamos falando de uma conexão terrestre com a 7.ª maior cidade do Brasil, ou a nossa Filadélfia.
E se a detestável política ambiental que temos tiver o apoio da população local? Nas eleições de 2018, somente quatro Estados entregaram votação para algum candidato acima de 70% (todos para Bolsonaro). À exceção de Santa Catarina, eles estão na Amazônia: Roraima, Rondônia e o Acre – este com a maior votação. Bolsonaro teve 77% no Estado de Marina Silva e Chico Mendes. Se tivéssemos um colégio eleitoral como o americano, esses não seriam battleground states.
Como convencer tantos brasileiros que devem ter aspirações menores e conviver com infraestrutura de país subdesenvolvido? A floresta de pé se justifica claramente pelos seus ganhos econômicos, seja por limitar a mudança climática que ameaça a atividade econômica de diversas regiões do planeta, seja pela biodiversidade da selva – que guarda informação valiosas geradas por milhões de anos de evolução. Mas quase todos esses potenciais benefícios, futuros e difusos, não são auferidos hoje pelos habitantes locais.
É momento de discutir pagamentos à população nortista como compensação pelos serviços ambientais? Se aceitamos que a região não pode se urbanizar como o resto do País, devem receber recursos federais para que as famílias não sejam tão vulneráveis à pobreza? O PIB da área é tão incipiente que, apesar da crise severa deste ano, a arrecadação em quase todos os Estados da região cresceu – por conta dos efeitos no consumo do pagamento do auxílio temporário aos mais pobres.
Afinal, a ideia simpática de que a Região Norte pode se desenvolver normalmente apenas com empreendimentos verdes esbarra em uma dificuldade: ali moram 18 milhões de pessoas. É mais que a Pensilvânia e a Geórgia somadas.
A ciência pode orientar a política pública nas escolhas para desenvolvimento da região. Publicado na Nature Sustaintability em 2018, um estudo literalmente mapeia tanto as áreas da floresta de maior biodiversidade quanto aquelas em que sua conservação pode resultar em mais produtos (madeira, borracha, castanha) e serviços (como chuvas para hidrelétricas e agropecuária) – onde a necessidade de preservação é portanto mais inquestionável. O trabalho é assinado por pesquisadores brasileiros apoiados pelo Banco Mundial e pela Noruega (Strand et al.).
Enquanto os votos nos Estados Unidos indicavam a eleição de Joe Biden, o que pressionará para uma mudança dramática na nossa política ambiental, centenas de milhares de brasileiros não acompanhavam o resultado porque não havia como fazer chegar energia elétrica ao Amapá. A Amazônia preservada é fundamental para a economia do País e do planeta, mas ganhos precisam ser compartilhados com a população local – e não há clareza sobre solução inteligente e efetiva para fazer isso.
A agenda de conservação precisa do apoio de habitantes que ainda vivem com carências que não existem no resto do Brasil. Os eventos da última semana são alegóricos de uma tensão que deve existir nos próximos anos na definição sobre o nosso norte.
*Doutor em economia
Joel Pinheiro da Fonseca: O jornalismo deveria fazer oposição ao populismo?
Derrota de Trump anima, mas é desmotivador ver a imprensa se tornar tão parcial
Biden venceu, viva! Uma vitória da democracia, da ciência, das instituições, da imprensa. Mas espere um momento: por acaso a imprensa deveria ser torcedora, ou até participante, nessa disputa?
Todo mundo sabe que não existe veículo completamente imparcial e objetivo. Há sempre valores, ideologias, narrativas, interesses, que inevitavelmente influenciarão as decisões sobre o que e como publicar. Nesse sentido, vejo muitas vozes defendendo que, como a imparcialidade perfeita é impossível, cada veículo de imprensa deveria assumir seu lado. Discordo.
A imprensa é relevante justamente na medida em que não é apenas mais um porta-voz de um campo político. A perfeita objetividade e imparcialidade pode ser uma utopia, inatingível na prática, mas é importante que siga como ideal operante na conduta institucional. A partir do momento em que aceitamos abrir mão de um valor em nome da defesa de um grupo político, é inevitável que a prática seja contaminada e que os padrões rigorosos sejam sacrificados ao partidarismo. À “opinião” do jornal basta o editorial; o jornalismo deve mirar a verdade e objetividade como valores superiores a qualquer causa política, mesmo as desejáveis.
A situação da imprensa não é fácil. Num momento de polarização, em que qualquer conteúdo que não seja feito sob medida para um dos lados da disputa é imediatamente rechaçado por ambos, publicar informações com objetividade não conquistará o amor de ninguém. Por mais que um lado possa estar mais próximo da verdade e dependa menos da fabricação sistemática de mentiras para se viabilizar, a realidade não costuma estar perfeitamente alinhada a ninguém. Assim, um jornalismo objetivo raramente encantará a torcida de qualquer lado. Mesmo quando confirma nossas crenças, não é com a ênfase e na medida que realmente gostaríamos. E aí reside seu valor para alimentar o debate público responsável.
As redes sociais participam desse debate também. Todas buscam alguma maneira de limitar o alcance de fake news. Não tenho a resposta para como fazê-lo, mas sei o tipo de medida que definitivamente não desce: suprimir notícias que prejudicavam o candidato democrata na semana da eleição.
As notícias envolvendo o filho de Joe Biden, veiculadas para tentar manchar a reputação do pai às vésperas do pleito, eram vazias. No entanto, quantas reportagens igualmente irresponsáveis em suas especulações e acusações contra Trump não foram compartilhadas livremente sem qualquer entrave do Twitter? O conluio com a Rússia, o caso com a atriz pornô, o abuso sexual. Se o site decidir que notícias bombásticas, sem o devido rigor jornalístico, devem ser limitadas perto das eleições, então que essa regra seja formulada abertamente e aplicada com transparência. Caso contrário, vira apenas sabotagem contra a direita, ao mesmo tempo em que se toleram todos os excessos do progressismo.
Populistas como Trump fazem do ataque à imprensa parte de seu jeito de governar. É muito fácil para a imprensa reagir conforme o esperado e transformar a oposição ao governo parte de seu ideário. Ao agir assim, apenas confere legitimidade aos ataques sem base de que é alvo. Considero a derrota de Trump um dos melhores eventos deste ano difícil que tem sido 2020. Mesmo assim, é desmotivador ver o The New York Times ou a CNN se tornarem tão abertamente parciais em sua cobertura.
O valor de uma fonte confiável de fatos relevantes para o debate público é muito maior do que o de uma militância de discursos louváveis.
*Joel Pinheiro da Fonseca,economista, mestre em filosofia pela USP.
Cristina Serra: A democracia nas Américas
A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar
As imagens de celebração nos Estados Unidos mostram um carnaval incomum. Uma explosão de alegria e alívio por se verem livres do governante que exerceu o poder com doses extremadas de ódio, mentira e violência.
Biden venceu porque conseguiu convencer a maioria dos eleitores de que será capaz de restaurar a civilidade no jogo político. O jogo é bruto, mas para ter sua legitimidade reconhecida precisa ser exercido com algum nível de lealdade e respeito às regras. Fora isso, é a barbárie, que seria aprofundada num segundo mandato de Trump.
Sua derrota é o triunfo de uma percepção de sociedade em que se espera que haja lugar para todos, em que pese a profundidade do abismo que separa as classes. Por isso, a palavra "possibilidade" tão presente nos discursos de vitória da dupla Biden-Harris.
Mais do que palavras, porém, a poderosa figura de Kamala Harris é a tradução concreta dessa possibilidade. Mulher, negra e filha de imigrantes, ela chegou lá, na chapa com o político branco e rico, há 50 anos no mainstream da política.
A dupla vencedora é a imagem síntese das contradições e das possibilidades na sociedade norte-americana. Se isso vai se refletir em políticas de redução ou contenção das desigualdades, só os próximos quatro anos vão dizer.
A chapa eleita também encarna a vitalidade da política identitária. No seu discurso, Biden deu ênfase à necessidade de erradicar o racismo sistêmico e destacou a participação de gays, transgêneros, latinos, asiáticos e populações nativas na aliança que o alçou à vitória. Um contraste notável com seu oponente.
A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar, bem como os acontecimentos recentes no Chile e na Bolívia. A extrema direita conta com a apatia e o cansaço da população com a política. É contra esse desânimo que as forças progressistas no Brasil têm que lutar. Não inventaram nada melhor que a democracia para derrotar a barbárie.
Hélio Schwartsman: Sem Trump, o normal volta?
Assim como Trump sucedeu Obama, nada impede que Biden seja sucedido por um neo-Trump
Derrotado Donald Trump, a política nos Estados Unidos volta ao normal? É difícil fazer previsões, mas acho que há duas afirmações que podemos fazer desde já.
A primeira é que, embora a iminente demissão de Trump nos poupe das cenas mais constrangedoras do populismo, as condições socioeconômicas que favoreceram a eleição do magnata laranja em 2016 estão longe de superadas. Assim como Trump sucedeu Obama, nada impede que Biden seja sucedido por um neo-Trump.
A segunda é que está nas mãos dos republicanos definir qual será o jogo daqui para a frente. Não gosto de pintar a história em termos de heróis e vilões, mas é forçoso reconhecer que os republicanos levaram bem mais longe do que os democratas a ideia de que vencer é mais importante do que manter o "fair play" democrático. O Partido Republicano (GOP) precisa decidir se seguirá nessa rota ou tentará algo diferente.
A demografia conspira contra o GOP. As populações que mais crescem nos EUA (hispânicos e negros) costumam votar em democratas. A crescente urbanização reforça a tendência. Ao apostar na tática de guerrilha, os republicanos ampliam seu poder por um tempo, mas não evitam a asfixia demográfica.
Faria mais sentido, creio, modificar o ideário do partido para torná-lo mais convidativo para as minorias que vão ganhando espaço. Os recentes avanços da legenda com latinos da Flórida mostram que isso é factível.
No mais, o posicionamento ideológico de partidos não é algo inscrito em pedra. Inicialmente, o GOP é que era a legenda progressista, defendendo a abolição e reformas econômicas. A troca de posições só ocorreu a partir do início do século 20 e foi lenta. Até os anos 60, os democratas é que representavam o conservadorismo racista no sul do país.
A dificuldade para mudar é que alguém precisaria pensar na sobrevivência do partido além dos dois ou quatro anos que são o horizonte de operação dos políticos.
Carlos Andreazza: O recado dessas pessoas
É aposta na derrota desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e Bolsonaro
O que ora vemos nos EUA é um dos futuros do Brasil. Este expediente golpista, de acusar fraude no sistema eleitoral, será usado por Jair Bolsonaro daqui a dois anos, qualquer que seja sua condição competitiva. Ninguém se poderá proclamar surpreendido. O presidente brasileiro não esconde as cartas; ou não terá sido ele, poucos meses atrás, a afirmar ter provas — jamais apresentadas — de que a eleição de que saiu vencedor fora fraudada? Não falava de 2018, mas para 2022.
Donald Trump ataca, em 2020, a mais poderosa expressão da democracia na América: o voto combinado à independência federativa. Mobiliza suspeição sobre a integridade da exata mesma estrutura descentralizada por meio da qual se elegeu em 2016. Empreendimento especialmente grave porque mina — com mentiras vestidas de teorias da conspiração — uma instituição, a tradição eleitoral americana, fundada na confiança entre cidadãos.
Não se trata de um mau perdedor, com o que se confundiria com uma criança. Mas de um sabotador. Um populista autoritário que manipula, como fazem os personalistas, a fantasia influente sobre a própria potência. Ou seja: alguém como ele não perde senão roubado — eis a mensagem, destinada a fomentar o choque e manter ativa a militância.
Trump fala para 2024 e age amparado por um precedente lamentável, embora de natureza diversa. Judicialização de processo eleitoral é sempre trauma. Refiro-me à eleição de 2000; aquela em que o democrata Al Gore levou a apertada derrota para o republicano George W. Bush à Suprema Corte. Dirão ambas as partes, os democratas de então e os republicanos de hoje, que recorrer à Justiça é do jogo. Certo. Vendo agravar-se fissura nunca curada, digo eu que, do jogo, certamente não é, ancorar as demandas judiciais plantando dúvida, sem provas, contra um pacto social, o eleitoral, dependente de boa-fé. Democratas afirmam que assim procedem agora os republicanos. Republicanos, que assim procederam os democratas há 20 anos. Aí está. Não é belo; sendo óbvio o tipo de oportunista que se beneficia do império da suspeição.
Trump opera a desconfiança com maestria. Mas só o faz porque produto de uma grande parcela da sociedade americana que descrê. E que, porque descrê, endossa que seu presidente dilapide pilares civilizacionais e aposte na cultura da suspeita. Ele é a manifestação de uma doença no pulmão da democracia liberal. Um sintoma que teve mais de 70 milhões de votos, muitíssimos dos quais ou não acreditam ou não se importam que um aparato eleitoral vigente há mais de dois séculos seja esculachado.
Esperava-se — nas bolhas elitistas — que das urnas emergisse dura resposta a Trump. A realidade que se impõe é outra, porém. Ele perde, mas fica. Vasta porção da comunidade está de saco cheio do sistema e sustenta as condições permanentes para que discurso e prática trump-bolsonaristas, de desconstrução institucional, prosperem. Boa parte da sociedade americana — idem a brasileira — não acredita que o establishment, aí incluído o aparelho eleitoral, represente-a, que cuide de seus interesses. Há uma erosão agressiva do valor da representação. É daí que se eleva o populismo autoritário.
É erro grave enfrentar o que Trump e Bolsonaro são criminalizando aqueles que representam. Eles representam gente. Milhões de pessoas. É erro estúpido, obra de arrogância, aposta na derrota, desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e Bolsonaro — como se fossem monstros fascistas ou imbecis alienados. Trump, como Bolsonaro, é fruto do esgarçamento do tecido social; esgarçamento que decorre de as pessoas sentirem, na pele, que o fosso se alarga e aprofunda entre elas e aqueles que as deveriam defender. Descrença. As pessoas estão convencidas de que o establishment se voltou para si, que existe apenas para cuidar dos próprios interesses, o que vai agravado — no caso brasileiro — pelo processo de condenação da atividade política.
O fosso aumenta. A antiga classe média, outrora liga, perde — perdeu — a musculatura. Amplia-se o volume de excluídos. Amplia-se a sensação de desamparo dos que se sentem traídos, abandonados, pelas elites político-econômicas. A ideia de voto se deteriora. Amplia-se a base de ressentimentos e de ressentidos. É o circuito que alimenta a desconfiança.
O trump-bolsonarismo é um orgânico complexo enriquecedor e explorador de ressentimentos. Chamar de gado quem dá vazão a suas insatisfações-desilusões votando em Bolsonaro é empurrar ainda mais esses indivíduos aos braços do populismo; equivale a tratar como bovina uma rara escolha — talvez a forra — de quem muitas vezes nunca tem escolha. Trump e Bolsonaro ascendem dessa captação de sentimentos, desse arrebanhar de impotentes. Eles atacam as instituições republicanas autorizados por uma engrenagem de descrenças que processa República como coisa de poucos.
Vá falar a um desempregado, cuja esperança é não ter o filho cooptado pelo tráfico, sobre a importância da democracia… Trump ora se insurge — será Bolsonaro amanhã — contra o mesmo sistema que o cidadão do país profundo sente que o exclui. Eles têm mandato para isso. É preciso entender o recado dessas pessoas.
Bernardo Mello Franco: Meninos mimados. O chororô de Trump e Bolsonaro
Jair Bolsonaro quer bajular Donald Trump até o fim. Em Washington, o republicano se recusa a admitir que foi derrotado por Joe Biden. Em Brasília, seu imitador se finge de morto para não cumprimentar o presidente eleito.
A birra de Bolsonaro expõe o país a mais um vexame diplomático. Ao ignorar a vitória de Biden, o Brasil aprofunda seu isolamento no mundo. Outras nações governadas pela ultradireita, como Hungria e Polônia, já reconheceram a derrocada de Trump.
Por aqui, todos os ex-presidentes vivos deram os parabéns ao democrata: Sarney, Collor, FH, Lula, Dilma e Temer. A galeria reúne políticos de esquerda, de direita e de centro. Só o extremista Bolsonaro, atual inquilino do Planalto, insiste na tática do avestruz.
Não é por falta de oportunidade. Ontem o capitão conversou com eleitores, discursou numa solenidade e fez propaganda para candidatos a prefeito de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus, Santos e Parnaíba. Pediu voto até para Wal do Açaí, que foi apontada como sua funcionária fantasma e agora quer ser vereadora em Angra dos Reis.
Bolsonaro falou de tudo, menos do que interessa. Na cerimônia oficial, repórteres tentaram saber quando ele pretende cumprimentar Biden. O presidente ouviu as perguntas, mas desviou o olhar e saiu de fininho.
Um chanceler com juízo teria evitado o novo desastre diplomático. Mas o Itamaraty permanece nas mãos de Ernesto Araújo, que vê comunistas embaixo da cama e enxerga em Trump o salvador do Ocidente.
O capitão insiste em pôr paixões ideológicas acima do interesse nacional. Ele já havia hostilizado a China, provocado os países árabes e boicotado líderes eleitos na Argentina e na Bolívia. Agora comete outro erro grave para não melindrar seu ídolo americano.
Os dois presidentes se comportam como meninos mimados. O americano sai de cena como mau perdedor, e o brasileiro mostra, mais uma vez, que é incapaz de ser pragmático e agir como um adulto. As relações de Biden e Bolsonaro já seriam difíceis sem esse chororô. Agora devem começar sob tensão ainda maior.
Míriam Leitão: Política externa perdida no mundo
O Brasil fica mais distante da OCDE, do acordo com a União Europeia e do mundo, enfim, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris. Isso porque o governo brasileiro deveria ter a esta altura uma estratégia de como mover suas peças no tabuleiro do xadrez mundial. Mudaram as circunstâncias, e o erro bolsonarista ficará mais caro. Estados Unidos e União Europeia estarão mais juntos a partir de agora na questão ambiental, e Jair Bolsonaro é o vilão óbvio, com sua política de desprezo à preservação ambiental, de desrespeito aos indígenas, de afronta aos negros.
O governo Biden tem uma lista imensa de urgências. A pandemia é a primeira delas e por isso ontem já estava sendo anunciado o grupo de transição que vai preparar o plano de combate ao coronavírus. A crise econômica é outra emergência. O plano de socorro terá que ser maior do que o programado, e no meio do caminho tem o Senado. A campanha de Biden, muito energizada pela vitória, está jogando tudo para garantir as duas cadeiras do Senado da Geórgia que foram para segundo turno. Caso se confirme o controle dos republicanos no Senado, tudo será mais difícil.
Na área ambiental, contudo, o avanço está garantido. O governo Biden já avisou que voltará ao Acordo de Paris. E poderá também desfazer ordens executivas e regulações infralegais que foram impostas pelo governo Donald Trump, que entregou a Environmental Protection Agency (EPA), a agência de proteção ambiental, a um lobbista da indústria do carvão. Nesse contexto de volta aos princípios do acordo e às regulações ambientais mais severas, os Estados Unidos ficarão mais próximos da Europa, que já tem pressionado o Brasil. Portanto, Bolsonaro estará mais sozinho com a sua política insensata na área do meio ambiente.
A política externa atual tenta apagar o Brasil do mapa-múndi. É um esforço diário para nos tornar irrelevantes. Demorar a cumprimentar o presidente eleito Joe Biden e não enviar autoridade para a posse de Luiz Arce na vizinha Bolívia são decisões obtusas. Caberia a Ernesto Araújo avisar a Bolsonaro: pode já ir se acostumando. Mas ficaram os dois velando o falecido governo Trump, erro que nem o autocrata Viktor Orban cometeu. Fazer pirraça com a Bolívia é ridículo. O país vizinho escolheu em eleições livres trazer de volta o partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar.
O Brasil tem muito a perder com os erros da dupla. Primeiro, porque Bolsonaro com suas falas rudimentares sobre a Amazônia é um alvo fácil. Se fosse só ele, tudo bem. O problema é que empresas brasileiras também podem ser prejudicadas por essa política externa e ambiental sem sentido. Por isso, se Bolsonaro insistir em não ter um plano convincente de preservação ambiental, aumentarão as pressões aqui dentro. Empresas e o terceiro setor, a imprensa, os especialistas, lideranças políticas estão cada vez mais se alinhando numa coalizão pela preservação. Sem Trump, Bolsonaro ficará mais só e entre dois fogos. Caberia ao Itamaraty traçar uma estratégia. Mas o Ministério não pode fazer seu trabalho porque está sendo dirigido por um dos mais medíocres diplomatas que a Casa já produziu.
A ditadura militar no Brasil nasceu no contexto da guerra fria. Naquele momento, havia países comunistas, e os militares eram, por suposto, adversários da ideologia. Pois o Brasil de Ernesto Geisel foi o primeiro a reconhecer o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apesar de ser comunista.
O mais elementar em política externa é saber a distância entre as preferências pessoais do chefe de Estado e o seu papel de representante do país. Bolsonaro pode ter torcido muito contra Joe Biden e Luis Arce, mas em processos eleitorais legítimos Biden é hoje o presidente eleito dos Estados Unidos e Arce acaba de assumir a Bolívia. É um erro não mandar um alto representante para a posse do governante da Bolívia, país com o qual o Brasil tem a sua maior fronteira (3.423km). Os bolivianos escolheram a volta do partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar. Com o país vizinho temos um acordo do gás e antigas tradições de amizade. Com os Estados Unidos, inúmeros interesses. A demora dos cordiais parabéns ficou ridícula para o Brasil. A descortesia com a Bolívia não faz qualquer sentido.
A OCDE tem regras de conformidade ambiental que ficarão mais fortes com o governo Biden. A União Europeia não ficará sozinha exigindo do Brasil mudança da política ambiental. O projeto de Ernesto Araújo de transformar o Brasil num grande pária avançou ainda mais nos últimos dias.
José Casado: Cresce pressão sobre o Brasil
Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda ou fica refugiado nas cinzas da era Trump
A realidade bate à porta do insone Jair Bolsonaro. O delírio da “reinvenção do Brasil” numa “nova ordem mundial” sob comando de Donald Trump, como repetia seu chanceler, acaba na quarta-feira 20 de janeiro, quando Joe Biden assume com o plano de mudar o rumo dos Estados Unidos. Aos 78 anos, ele terá pressa em abrir um “caminho irreversível” para a inovação tecnológica em saúde, comunicações e energia limpa.
Se conseguirá, é outra história. Mas sinaliza o fim de uma tragicômica sintonia de negação da ciência: enquanto Trump considerava a mudança climática uma conspiração chinesa, Bolsonaro reduzia a pandemia a gripezinha.
Outra consequência é o impulso ao cerco legislativo ao Brasil. Democratas e republicanos atravessaram os últimos 12 meses apresentando um novo projeto a cada 50 dias para forçar Brasília a conter o desastre na Amazônia e proteger os indígenas.
Bolsonaro se enrolou na bandeira da soberania nacional quando viu Biden acenar com US$ 20 bilhões (R$ 104 bilhões) para “deixar de destruir” a Amazônia. Mas aceitou, em silêncio, uma interferência externa bem mais barata. No Orçamento de 2020, o Congresso americano separou US$ 15 milhões (R$ 78 milhões) para financiar “assistência estrangeira na Amazônia”, condicionados a provas de respeito aos direitos humanos. Também não reclamou da repetição da ajuda em 2021, com veto ao uso do dinheiro na remoção de indígenas (emenda nº 6395, já aprovada na Câmara).
O cerco legislativo à antipolítica ambiental antecede Biden. Desde o ano passado, avançam projetos como a “Lei da Amazônia” (HR nº 4263), com punições como bloqueio de ativos e de importação de algumas commodities, além de restrições militares — entre elas a revogação da recente designação do Brasil como aliado militar dos EUA fora da Otan.
Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda o rumo ou atravessa a segunda metade do mandato, e a campanha de reeleição, refugiado na saudade e nas cinzas da era Trump.
Cacá Diegues: A última que morre
Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança
A democracia não é uma ciência. Muito menos exata, como a matemática. Você pode somar ou subtrair seus elementos sem provocar os mesmos resultados, dependentes de onde, quando e com quem o fizer. Isso, em qualquer lugar do mundo. Imagine então num espaço de grande mudança étnica e cultural em curso que, por sua vez, produz novos conceitos éticos, religiosos e cívicos, que mexem com a vida diária de uma população, como nos Estados Unidos da América de hoje. Hoje, a maior contribuição dos EUA ao mundo contemporâneo não são o capitalismo financeiro, as viagens ao espaço ou os craques da NBA. Mas a ideia de um país com entrada para outros povos, capaz de absorver peles de outras cores, línguas de outras origens, costumes dos outros. Um país que será sempre novo, porque tem como se renovar.
Mudanças radicais produzem sempre consequências para o bem e para o mal. Nesse caso, para o bem, acho que é sobretudo a excitação do que ainda pode nos surpreender, os rumos inéditos que a humanidade toma em qualquer canto da Terra. Para o mal, é sem dúvida o medo do que não se conhece, traduzido em providências de impedimento e rejeição, quando professamos um nacionalismo de direita oportunista, que nos diz que o que é diferente de nós não pode prestar. Nessa recente eleição americana, Joe Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança. Quanto ao mal, ficou, mais uma vez, com Donald Trump e seu horror ao que não entende, ao diferente e ao inesperado, ao com o que não contava.
Na terceira noite de apuração, quando as coisas já iam mal para ele, Trump fez, no salão da Casa Branca, um discurso cheio de mentiras e falsidades tão revoltantes que as equipes de televisão que cobriam o evento desligaram as câmeras e se retiraram revoltadas, antes que o presidente encerrasse sua intervenção hedionda.
Durante seu mandato, Trump separou filhos pequenos de seus pais imigrantes, sem nenhuma compaixão. Centenas de crianças centro-americanas estão até hoje em cárceres coletivos, sem que os pais saibam onde se encontram. O mais estranho é que Trump, nesta eleição, ganhou votos importantes em centros de imigrantes, hispânicos e negros, como a Flórida. Durante seu mandato, o presidente ainda protegeu e incentivou grupos neofascistas, como os Proud Boys e os Patriot Players, que, em suas camisetas com o slogan trumpista costurado(Make America Great Again), esfaquearam à morte dois membros do movimento Black Lives Matter em Portland. E Trump ainda assustou seus eleitores mais ingênuos, com a notícia de que, do outro lado, estava o fantasma do socialismo, como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé.
É claro que não é essa a nova América que surge dessa eleição e que queríamos saudar. Mas a América que sai dela gloriosa pela confirmação de uma outra nação que se constrói aos poucos, na mistura de tudo. Não é possível esquecer a gigantesca militância de Nova York ou da Califórnia, mas também não se pode desprezar a importância das minorias, protagonistas nos resultados da Geórgia ou da Pensilvânia, redutos clássicos do voto conservador.
Nosso coração ficou mais leve quando comecei a me dar conta das forças políticas que animam o novo, quando jovens americanos vibraram porque Joe Biden se referiu, em sua curta fala de menos de dois minutos, à “hora de ouvir um ao outro, de ver, respeitar e cuidar um do outro, ficar juntos como uma nação”. Conforta saber que foi esse o discurso que fez a Miragem Vermelha (os Republicanos de Trump) esbarrar na Muralha Azul (Democratas de Biden), fazendo uma diferença de cerca de 5 milhões, entre uns e outros, no voto nacional.
Ao longo de sua história, os Estados Unidos não são um país que se caracteriza por ter sofrido muito, embora tenha feito tanta guerra. Já o Brasil quase não fez guerra, mas é muito louco, como diz Nelson Motta: “De tanto sofrer, ficou pirado”. Podemos dizer que, em vez de ciência, a democracia é um desejo que cada povo alimenta como pode e quer, em nome de sua liberdade e da liberdade do outro, em benefício de um novo mundo a construir. Vivemos da esperança nesse novo mundo.
Bruno Carazza: Trump 2024
Engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho: Biden venceu, mas o trumpismo sai fortalecido
“I’ll be back”, teria dito o presidente Grover Cleveland ao deixar a Casa Branca depois de perder a reeleição em 1888. E ele cumpriu a promessa. Ao dar a volta por cima em 1892, Cleveland ainda é, até hoje, a única pessoa na história americana a governar o país em dois mandatos não consecutivos (1885-1888 e 1893-1896). Donald Trump pode lhe fazer companhia em 2024.
Cleveland era democrata - e o vínculo partidário não é a única característica que o diferencia de Trump. Discreto, fez da austeridade e da retidão seus principais ativos políticos. Na sua primeira eleição, sofreu uma intensa campanha difamatória na imprensa, com os adversários acusando-o de ter um filho ilegítimo. Ao ser questionado por seus apoiadores sobre qual deveria ser a sua estratégia de defesa, respondeu com uma frase que marcou época: “Tell the truth”. Ao assumir que caiu em tentação e admitir a possibilidade de ser pai da criança, Grover Cleveland mereceu um voto de confiança do puritano eleitorado americano no final do século XIX.
Mas à parte a coloração partidária, a discrição e a postura em relação ao dilema “fato ou fake”, há pontos em comum entre eles. Ambos tiveram uma carreira política meteórica: em apenas dois anos, Cleveland elegeu-se prefeito de Buffalo, governador de Nova York e presidente da República, enquanto Trump… bem, todos sabemos o quão rápida foi sua ascensão.
Os dois presidentes também viveram em mundos muito polarizados. Cleveland chegou ao poder derrotando seu adversário James Blaine por apenas 0,3% dos votos nacionais e se não fosse uma diferença de apenas 1.200 votos no estado de Nova York, teria perdido a disputa no Colégio Eleitoral - assim como Donald Trump venceu Hillary Clinton com margens apertadas e ainda perdendo nacionalmente.
Ao tentarem a reeleição, tanto Cleveland quanto Trump ampliaram seu eleitorado, mas por um triz não conseguiram manter o domínio sobre Estados relevantes, e acabaram sendo derrotados. Em 1888, Nova York e Indiana representaram para Grover Cleveland o que Georgia, Pensilvânia e Michigan foram para Trump em 2020.
Quatro anos depois, o retorno de Cleveland à Casa Branca foi possível pelo agravamento da situação econômica, o acirramento das disputas raciais no país e a ausência de alternativas no seio de seu partido - condições que podem contribuir para a volta de Trump em 2024.
A vitória de Joe Biden vem sendo efusivamente comemorada como o fim de uma era. Analistas chegaram a dizer que “a aventura populista norte-americana chegou ao fim” e que a razoabilidade e a sensatez se impuseram de modo definitivo sobre a truculência das táticas de Donald Trump. Calma lá.
Deixando de lado a teatralidade das acusações de fraude e as ameaças de judicialização do resultado das urnas, Trump poderá deixar a presidência de cabeça erguida. Ele conseguiu mobilizar seu eleitorado para fazer frente à onda azul que se mobilizou desde os protestos em resposta ao assassinato de George Floyd, manteve o domínio republicano em suas bases tradicionais e ainda angariou votos em redutos antes considerados monopólio democrata, como parcelas relevantes do eleitorado latino - tudo isso em meio a uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes na história recente.
A derrota trumpista se deu em margens tão apertadas quanto as de 2016, o que evidencia que os Estados Unidos continuam tão divididos quanto antes, tanto geográfica (litoral x interior, cidades grandes x zonas rurais) quanto demograficamente (brancos x não brancos, homens x mulheres, alta x baixa escolaridade). Não é por outro motivo que tanto Joe Biden quanto Kamala Harris, em seus discursos da vitória, usaram a mesma expressão: “curar o país”, como se ele sangrasse em função de tantas divisões.
Amainar diferenças tão acirradas até 2024 será uma tarefa hercúlea, ainda mais se os democratas não conseguirem o controle do Senado. É bom lembrar que nem Barack Obama, com todo o seu carisma e contando com oito anos de mandato, conseguiu vencer resistências, unificar o país e fazer sua sucessora.
Como a Emenda nº 22 da Constituição americana não impede um ex-presidente que perdeu a eleição de candidatar-se de novo, Donald Trump tem à sua frente quatro anos para fazer campanha e azucrinar o governo de Joe Biden pelas redes sociais e manipulando as atenções da mídia.
Outra circunstância que o favorece é a ausência de novas lideranças em ambos os partidos. Do lado republicano, ainda que existam críticas às suas postura e personalidade, nenhum nome lhe faz sombra. Entre os democratas, as primárias deste ano, com um número recorde de pré-candidatos e a escolha recaindo sobre um senhor de 77 anos, dizem muito sobre o deserto de alternativas.
É verdade que o atual presidente tem um passado nebuloso e a perda da imunidade presidencial abre flancos para processos judiciais que podem inviabilizar um plano de retorno ao centro máximo do poder nos Estados Unidos. Nesse caso, ainda lhe restaria um plano B, que atende pelo nome de Donald Trump Jr.
Clãs sempre fizeram parte da política americana: John & John Quincy Adams, no alvorecer da República, e George H. & George W. Bush são duplas de pais e filhos que chegaram à presidência. Outro exemplo é William Harrison (1841-1844) e seu neto Benjamin Harrison, que derrotou Grover Cleveland em 1888. Também tivemos os Dead Kennedys na década de 1960 e o casal Clinton mais recentemente, todos com grande protagonismo. E ainda há Michelle Obama - que nega interesse em entrar no jogo, mas parece ser uma carta guardada na manga dos democratas para o futuro.
Com um perfil super ativo nas redes sociais, papel de comando nas campanhas do pai e tendo participado como consultor na administração que se encerra, não seria surpresa ver Trump Jr., 43 anos, sendo preparado para assumir o bastão do pai caso ele não possa concorrer em 2024.
É muito cedo para especular sobre o que vai acontecer nos EUA daqui a quatro anos. Mas engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho. Sua campanha, aliás, já começou.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ana Cristina Rosa: Yes, we can'
Kamala Harris tem significado enorme em termos de representatividade
As Américas estão vivendo em 2020 um ano memorável para as mulheres na política. Depois das conquistas femininas na Bolívia e no Chile, pela primeira vez uma mulher, negra de ascendência asiática, chega à Vice-Presidência de um dos países mais influentes do planeta.
A vitória da chapa Biden-Harris é um marco dos mais significativos na luta pela igualdade de gênero e de raça não só nos Estados Unidos, mas também no mundo. Como vice-presidente, Kamala será também a pessoa que irá presidir o Senado.
O ineditismo da eleição de Kamala Harris para Vice-Presidência dos Estados Unidos tem significado enorme em termos de representatividade. Por representatividade, entenda-se permitir que as pessoas, sobretudo as que integram grupos que estão à margem das esferas de poder e de decisão, se reconheçam no outro.
E isso não diz respeito necessariamente a minorias quantitativas, mas também a grupos numerosos que são minorizados em termos de representação. É sentir-se capaz a partir da linha do exemplo, independentemente de rótulos e preconceitos.
A mensagem é clara por si, mas foi reforçada e explicitada por Kamala em seu primeiro discurso como vice-presidente eleita ao dirigir-se às crianças do país e recomendar que "sonhem com ambição, liderem com convicção e se vejam onde os outros podem não ver, simplesmente porque eles nunca viram antes".
Esta não é a primeira vez que Kamala Harris desbrava e conquista espaços, ajudando a abrir o caminho para as mulheres que seguramente virão depois. Como ela mesma afirmou, "serei a primeira vice-presidente dos Estados Unidos, mas não serei a última". Ela foi a primeira pessoa negra a assumir a procuradoria-geral da Califórnia e uma cadeira no Senado por aquele estado.
A eleição de uma mulher negra para o segundo mais alto cargo eletivo da maior potência do mundo ocidental traz à memória o slogan de campanha do primeiro negro eleito presidente dos EUA: "Yes, we can".
Alex Ribeiro: Derrota de Trump não afeta bolsonarismo
Mercado se anima com falso declínio do populismo de direita
As eleições americanas animaram o mercado financeiro na semana passada, com alta da Bolsa e queda dos juros e do dólar. Boa parte dos ganhos se deve à esperança de um comando dividido nos Estados Unidos, com Biden na presidência e o Senado sob controle republicano, que limita extravagâncias da esquerda democrata. Mas analistas citam uma força adicional: a derrota de Trump seria um revés para a onda global populista de direita, incluindo o bolsonarismo.
Embora tenha apoiado a eleição de Bolsonaro em 2018, o mercado financeiro, em geral, não gosta de populismo. A retórica ideológica do governo em áreas como meio ambiente, relações exteriores e saúde causa preocupação dentro da própria equipe econômica. Também gera inquietação a aproximação do presidente com o populismo fiscal. Por isso, o enfraquecimento do populismo de direita seria positivo para a economia e para os mercados financeiros.
O cientista político Christopher Garman, managing director para as Américas da Eurasia Group, discorda da tese de que a derrota de Trump representa um enfraquecimento do populismo de direita. Ele pondera que Trump superou as expectativas. As forças que, em primeira instância, levaram à ascensão do populismo de direita seguem presentes. E são independentes nos Estados Unidos e Brasil, por isso Bolsonaro não será afetado.
“O Trump se saiu bem, superou as pesquisas, demonstrou ser mais resiliente do que as pessoas estavam antecipando”, diz Garman, que cita a melhora de sua performance no votos dos latinos e dos afroamericanos nas cidades. A eleição foi decidida por alguns pontos percentuais em favor de Joe Biden em estados competitivos, em que se alternam vitórias democratas e republicanas. “Se não fosse pela forma desastrosa que lidou com a Covid 19, Trump teria sido reeleito.”
Uma pesquisa feita pelo Ipsos Public Affairs, uma empresa de opinião publica, mostra que às vésperas do pleito 28% dos eleitores consideravam o combate à pandemia como o principal tarefa do próximo presidente. Biden estava 14 pontos percentuais à frente de Trump quando se pergunta quem está mais preparado para lidar com a pandemia
O fato de Trump ter sido um candidato competitivo a despeito da sua incapacidade no tema prioritário para o eleitorado mostra como é forte a sua base de apoio. Garman diz que as forças que levaram à ascensão do populismo nos EUA seguem presentes.
“É o desencanto profundo de boa parte da população com o chamado sistema, com a mídia, com o judiciário, com a política tradicional”, afirma. “Os fatores que levaram a isso são o aumento de desigualdade de renda, cada vez maior, o distanciamento entre o desempenho econômico dos centros metropolitanos com a velha economia industrial e os centros mais dinâmicos, com a nova economia.”
A perspectiva não é muito animadora. A pandemia da Covid-19 deverá exacerbar essas desigualdades. A recuperação econômica se desenha no formato em “K”, com a volta mais forte da nova economia e o desempenho mais fraco do setor de serviços.
As enquetes de opinião pública mostram que os americanos estão muito divididos. Uma pesquisa da Ipsos revela que cerca de um quarto dos americanos (26%) apoiaria a continuidade de Trump no cargo no caso de ele perder a eleição e declarar que o resultado não é legítimo.
“Vejo mais polarização, não moderação. O partido Democrata está migrando para uma base mais liberal, progressista e, no partido Republicano, temos o recrudescimento da base trumpista e um presidente que permanece como uma sobra.”
Não deixa de ser paradoxal o fato de que Biden é a moderação em pessoa - um presidente multilateralista, inclinado ao diálogo e à convergência. Mas seria um erro tomar sua vitória como um sinal de crescimento dos moderados, assim como muitos acharam que Emmanuel Macron, na França, seria um sinal nessa direção. Macron foi um candidado de fora do sistema político convencional.
O Brasil é uma história completamente independente do que acontece nos Estados Unidos. A eleição de Bolsonaro está ligado a fatores locais que levaram a uma profunda descrença nas instituições e na política tradicional. A tese de Garman é que esse terreno fértil ao populismo surgiu com a ascensão da nova classe média, que ficou frustrada com a péssima qualidade de serviços públicos, como saúde, educação e segurança.
“É claro que o presidente Bolsonaro pode imitar, tomar lições do trumpismo, e teve muito disso”, afirma Garman. “Mas o fenômeno bolsonarista foi um desencanto profundo por razões domésticas, e não será o Trump fora do poder que vai mudar isso.” Ele propõe um contrafactual: se Hillary Clinton tivesse derrotado Trump em 2016, o presidente Bolsonaro não teria sido eleito?
Não se deve esperar uma moderação, no Brasil, do discurso ideológico do presidente. Bolsonaro migrou para o centro recentemente, mas foi apenas um recuo tático, diz Garman. “Ele não vai demitir o ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) nem o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) só porque o Biden foi eleito. Acho muito improvável que vá se acovardar para uma liderança mais de esquerda nos Estados Unidos e desagradar a base ideológica.”
O futuro eleitoral de Bolsonaro, diz Garman, dependerá do custo político que terá que pagar com o fim ou redução do auxílio emergencial e de como vai manejar o abismo fiscal no ano que vem, quando os estímulos fiscais que mantém a economia viva terão que ser retirados para retomar o ajuste das contas públicas. “O presidente Bolsonaro deve encontrar um quadro eleitoral bastante competitivo”, afirma. “Qual é a perspectiva de melhora dos serviços públicos em dois anos, com uma crise fiscal em Estados e municípios? O presidente Bolsonaro vai ter que lidar com a falta de melhora desses serviços público e a economia recuperando. O futuro político dele depende disso, não do que aconteceu com Trump.”