Eleições EUA

Folha de S. Paulo: O Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica, diz Obama

Em entrevista à Folha, ex-presidente americano afirma esperar que trauma eleitoral recente leve a uma política diferente

Sérgio Dávila, Folha de S. Paulo

Dez dias depois de Joe Biden ver seu nome confirmado como o próximo presidente dos EUA, é a vez de seu ex-chefe, Barack Obama, roubar a cena. Nesta terça (17), dia do lançamento mundial de “Uma Terra Prometida” (Companhia das Letras), detalhes do primeiro volume de suas memórias na Casa Branca tomaram o mundo.

Folha enviou nove blocos de perguntas (com 12 questões no total) por escrito ao democrata no dia 5 de novembro. Ele se comprometeu a responder ao menos cinco delas e pediu que todas fossem ancoradas no livro, condições aceitas pelo jornal.

Na segunda (16) à noite, chegaram suas respostas.

O sr. escreve na apresentação de seu livro que a democracia em seu país parece estar à beira do precipício uma crise enraizada no embate entre duas visões opostas do que são os EUA e do que deveriam ser. O sr. acha que, pelos acontecimentos de hoje [5/11], com a vitória de seu ex-vice-presidente, o precipício fica mais longe? Você tem razão: a divisão entre o que a América é e o que a América deveria ser é um tema importante no livro, mas também existe outro conjunto concorrente de visões para nosso país. Há uma visão mais inclusiva e uma visão mais tribal. As duas interagem constantemente, e assistimos a essa interação acontecendo não apenas nos últimos quatro anos, nem nos oito anos que os antecederam, mas ao longo de nossa história. A pergunta permanece: quem vai vencer essa disputa de ideias?

Tenho fé em que a visão generosa e acolhedora do nosso país sairá por cima. E conservei meu otimismo, mesmo ao longo dos últimos quatro anos. Porque, ao mesmo tempo em que vimos nossos piores impulsos revelados, também testemunhamos o que podemos ser quando mostramos nosso lado melhor, quando americanos saíram às ruas em número sem precedente para protestar contra a separação de famílias, a violência armada, a brutalidade policial e mais.

É isso que me dá esperança especial em relação à próxima geração. Sua convicção do valor igual de todas as pessoas é inata, natural. Para Malia, Sasha [suas filhas de 22 e 19 anos, respectivamente], e seus amigos, nossas diferenças são algo a ser festejado. Para eles, isso é evidente.

Este livro é sobretudo para esses jovens. É um convite para mais uma vez reformarem o mundo e, com trabalho árduo, determinação e uma grande dose de imaginação, criarem uma América que finalmente se alinhe com o que existe de melhor dentro de nós.

O sr. descreve com detalhes o processo que o levou a escolher Joe Biden para ser seu vice-presidente. Dezenove anos mais velho que o sr., não parecia um candidato natural a concorrer a sua sucessão em 2016, tanto que não foi Hillary Clinton foi a escolhida. O sr. antevia então, no momento de sua escolha para vice, que ele um dia viria a ser presidente dos EUA? Admito: quando comecei minha busca por um vice-presidente, eu não fazia ideia que acabaria por encontrar um irmão. Joe e eu não temos muito em comum, à primeira vista. Temos origens diferentes, somos de gerações distintas. Mas em muito pouco tempo comecei a admirar sua resiliência, sua empatia e seu engajamento em tratar cada pessoa que ele encontra com respeito e dignidade. Joe vive segundo o preceito que seus pais lhe ensinaram: “Ninguém é melhor que você, Joe, mas você não é melhor que ninguém”.

Essa empatia, essa honradez, a crença de que todos têm valor —isso é quem Joe é. E foi por isso que durante oito anos eu quis que ele fosse o último na sala comigo sempre que eu precisava tomar uma decisão importante.

Ele me fez um presidente melhor. E sei que ele nos tornará um país melhor.

Numa passagem interessante, o sr. descreve o efeito do envolvimento da ex-primeira-dama Michelle Obama numa escola de ensino médio para meninas em Londres. Segundo estudos de um economista, após as visitas, as meninas melhoraram seu desempenho escolar. O sr. nunca a encorajou a seguir carreira política? Nunca discutiram isso a sério, como uma possibilidade de segundo ato para ela? Bem, não, porque isso não vai acontecer. Michelle já deixou isso muito claro. Mas não direi que me surpreendi ao ver que um estudo confirma a ideia de que a presença dela inspira as pessoas a realizar seu potencial. Porque convivo com os benefícios disso desde que ela e eu nos conhecemos, mais de três décadas atrás.

Como mostra o livro, não há dúvida de que Michelle não apenas me fez um presidente melhor, mas também uma pessoa melhor. Não há ninguém mais brilhante que ela, ninguém mais divertido, ninguém mais sábio. Há uma razão por que tantas pessoas gravitam em direção a Michelle. (E há uma razão por que, não importa quantas vezes ela diga não, as pessoas não param de perguntar se ela vai se candidatar a um cargo político algum dia!)

O sr. narra uma visita a uma das favelas no Rio de Janeiro e conjectura sobre o efeito que pode ter tido nos meninos e meninas negras que o observavam de suas casas num país de racismo profundamente enraizado, ainda que com frequência negado. Não muitos anos depois, o movimento Black Lives Matter explodiu nos EUA, com reflexos no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O sr. anteviu que a tensão racial desaguaria num movimento desse tipo? Teria feito algo diferente nesta questão durante seu mandato? O racismo está entre nós desde muito antes mesmo de sermos um país, e nunca tive qualquer ilusão de que minha Presidência pudesse de alguma maneira tornar nosso país pós-racista. Eu esperava que ela pudesse inspirar crianças, quer fossem crianças das favelas na periferia do Rio ou crianças do South Side de Chicago, mas também sabia que elas precisavam de mais do que apenas inspiração. Elas precisam de escolas e habitação de boa qualidade, ar e água limpos, empregos quando se formam, e mais.

E, embora tenhamos feito progresso sobre muitos desses pontos, também é fato que, se você analisar a luta pela justiça ao longo de nossa história, ela tende a avançar dois passos e então retroceder um, algo que vivenciamos mais uma vez nos últimos anos.

Mas acredito que estamos indo no rumo certo. E sei que a resposta vai vir desses jovens, cujo ativismo no verão deste ano não poderia ter sido mais importante.

Sinto orgulho enorme do engajamento deles com a desobediência civil. Porque, ao longo de nossa história, o protesto pacífico e o ativismo resoluto têm sido a única maneira de fazer o sistema político prestar atenção às comunidades marginalizadas. E espero que elas usem esta oportunidade, com os olhos do mundo voltados a elas, para traduzir seu ativismo em leis e política públicas que precisamos para construir um país mais inclusivo.1 21

O sr. descreve seu encontro com o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, dizendo que a visita dele ao Salão Oval causou boa impressão. Depois, ao falar dos Brics numa reunião do G20 em Londres, o sr. o elogia e a seus programas sociais, mas escreve: “Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão de Tammany Hall [uma organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a corrupção e abuso do poder], e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”. Qual Lula sobreviveu em sua memória? Aquele que o sr. um dia disse “Ele é o cara!” ou o “chefão”? Minhas interações com Lula aconteceram na maioria anos antes de seus problemas com a Justiça, de modo que minhas recordações dele são moldadas pelo tempo em que ele era uma presença dominante na política brasileira e uma figura influente no palco mundial.

O que ficou claro para mim era que ele e Dilma simbolizavam algo importante para muitos brasileiros —a ideia de que eles estavam representados nos mais altos níveis do governo e que o governo seguia políticas que beneficiavam as massas maiores de pessoas. Não há como negar o dom que Lula possuía de se conectar com as pessoas e o progresso que foi feito nesse período para tirar pessoas da pobreza.

Mas, como escrevi, sempre havia rumores girando em torno dele sobre clientelismo, e está claro que o Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica.

Minha esperança é que o trauma político recente possa levar a um tipo diferente de política e que uma nova geração de brasileiros possa liderar nesse caminho.


Oliver Stuenkel: Um demagogo mais competente que Trump asfixiaria a democracia nos EUA mais facilmente

O sistema democrático norte-americano sobreviveu, em grande parte, graças à falta de disciplina de Trump. Um populista com ambições autoritárias, que aprendesse com os erros do magnata, representaria muito mais riscos no futuro

Joe Biden venceu as eleições presidenciais americanas de 2020 porque soube transformar o pleito em um referendo sobre Donald Trump. Mesmo a poucas semanas das eleições, o candidato democrata era econômico em suas aparições públicas, dando a seu adversário a maior visibilidade possível. “Trump deve receber corda suficiente para se enforcar. Quanto mais ele fala, melhor para mim”, Biden apostou. Deu certo: acima de tudo devido a sua gestão desastrosa da pandemia, que ceifou a vida de um quarto de milhão de norte-americanos, Trump tornou-se o primeiro presidente dos EUA, desde 1992, a não se reeleger.

O clima festivo nas grandes cidades americanas depois da declaração do resultado final, na semana passada, foi diferente daquele de 2008, quando o jovem senador Barack Obama acabara de se tornar o primeiro presidente-eleito negro da história dos EUA. Doze anos mais tarde, não se celebrava a vitória de Joe Biden, mas o fim da presidência de Donald Trump e a ameaça autoritária que ela representava. “Parece que acabamos de completar um exorcismo”, o cientista político Francis Fukuyama resumiu.

Não há dúvida de que a derrota de Trump pode ser interpretada como prova de resiliência da democracia americana. Numerosas iniciativas do Republicano, ao longo dos últimos quatro anos, foram bloqueadas pela justiça, ele não conseguiu calar jornais ou intimidar acadêmicos e, em uma mensagem pouco sutil na semana passada, o general Mark Milley, oficial militar de mais elevada patente das Forças Armadas dos EUA, alertou: “Não fazemos juramento (...) a um ditador. Fazemos juramento à Constituição. Cada soldado (...) vai defender esse documento, independentemente do preço que tenhamos que pagar.” Vista dessa perspectiva, a principal diferença entre os Estados Unidos e países cuja democracia colapsou ao longo das últimas décadas ―como Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Rússia, Zimbabwe, Egito e Filipinas― seria a qualidade de suas instituições.

Porém, enquanto as instituições certamente tiveram papel relevante para explicar o fracasso do projeto autoritário do presidente Trump, há uma outra razão, possivelmente ainda mais importante: a democracia norte-americana sobreviveu, acima de tudo, graças à incompetência e à falta de disciplina do presidente, que muitas vezes atuou visando a pequenas vitórias táticas, em vez de planejar o longo processo de desmonte das estruturas democráticas, como fizeram outras lideranças autoritárias ao redor do mundo.

A pandemia talvez seja o melhor exemplo. Em vez de aproveitar-se da crise sanitária para concentrar mais poder na presidência ―como fez o líder húngaro Viktor Orbán―, Trump optou pelo negacionismo meia-boca, permitindo a permanência de cientistas sérios no seu próprio governo. Em vez de aprovar um grande pacote de estímulo e aumentar gastos públicos para a população mais pobre, o que provavelmente teria aumentado sua taxa de aprovação, Trump não tomou a dianteira no debate.

Diferentemente de muitos líderes autoritários que conseguiram se consolidar no poder, o presidente norte-americano nunca tentou engajar aqueles fora da sua base eleitoral. Suas tentativas de atrair o voto feminino pouco antes do pleito ―dizendo, durante um comício, “Mulheres suburbanas, vocês por favor podem gostar de mim?”― nunca foram sérias. Da mesma forma, apesar da boa vontade inicial no mercado financeiro, Trump jamais tentou controlar seus impulsos nas redes sociais, mesmo ciente de que a incerteza gera frustração em Wall Street.

O presidente poderia ter provocado tensões internacionais alguns meses antes do pleito, tática clássica para impulsionar o sentimento nacionalista e aumentar a aprovação popular. Diferentemente da grande maioria dos líderes autoritários, que entendem que a destruição de um sistema democrático requer foco, dedicação e paciência, Trump aproveitou-se da presidência, até o fim, para lidar com suas ansiedades pessoais. Como a professora Ayse Zarakol observa, “[Trump] não teve o foco de Putin, a coragem de Erdogan ou a crueldade de Rodrigo Duterte.”

A verdade alarmante é que uma versão igualmente autoritária, porém mais disciplinada, mais afável e empática, mais paciente e mais competente de Donald Trump, provavelmente teria sido reeleita com tranquilidade, e há muitos indícios de que o Republicano teria tido mais espaço para implementar medidas antidemocráticas no seu segundo mandato ―como, aliás, costuma acontecer na maioria das vezes quando a democracia morre lentamente.

Não restam dúvidas de que muitos americanos votaram em Biden no último 3 de novembro para defender a democracia. Muito sugere, porém, que a vitória do democrata não se deve tanto à rejeição às tendências autoritárias, mas ao repúdio pela incompetência do presidente Republicano. Como os resultados no Senado mostram, onde aliados de Trump conseguiram defender a maioria republicana e no Congresso, onde a maioria democrata diminuiu, o trumpismo nos EUA veio para ficar. A próxima ameaça autoritária que os EUA poderão enfrentar ―possivelmente já em 2024― dificilmente seria tão amadora quanto a de um tosco apresentador de TV, que pouco se interessa pelo ato de governar. Na hora de enfrentar um caudilho mais competente, o bloco democrático não poderá se limitar a jogar parado e torcer para que o candidato com ambições antidemocráticas se enforque sozinho. Esse risco é um luxo que os democratas não poderão mais ter.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Demétrio Magnoli: A eleição que não terminou

Partido Republicano corre o risco de ser reduzido a movimento de contestação do sistema democrático

‘Nós precisamos considerar o antigo vice-presidente como presidente eleito. Joe Biden é o presidente eleito.” A declaração do governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, riscou o céu de Washington uma semana depois que a apuração dos votos da Pensilvânia concluiu a disputa pela Casa Branca. O óbvio caiu quase como uma bomba nas hostes republicanas, ainda congeladas pelo negacionismo eleitoral de Donald Trump. A eleição americana não terminou: ela prossegue sob a forma de um conflito existencial no interior do Partido Republicano.

Trump assentou sua estratégia pós-eleitoral em três pilares. O primeiro: a alegação de que o candidato democrata fraudou a vontade popular. O segundo: o Partido Republicano, submetido a sua liderança incontestável, rejeitará de modo monolítico qualquer diálogo com o governo do suposto usurpador. O terceiro: o partido funcionará, desde já, sob o signo de sua candidatura presidencial de 2024.

Trump começa a erguer o Comitê de Ação Política “Save America” (Salvar os EUA), destinado a operar como direção efetiva do Partido Republicano. Simultaneamente, prepara-se para criar uma nova rede de TV, concebida como veículo pessoal e alternativa à direita da Fox News. O projeto trumpiano é subordinar as bancadas republicanas na Câmara e no Senado a suas conveniências, transformando-as em máquinas de sabotagem permanente do governo Biden.

Os tribunais derrubarão, uma a uma, as alegações vazias de fraude de Trump. Biden será, certamente, empossado em 20 de janeiro. Mas Trump planeja jamais reconhecer a legitimidade do novo presidente, esticando até o limite a corda que prende os EUA ao mastro da democracia representativa. Se os republicanos o acompanharem nessa aventura, reduzirão o partido à condição de movimento nacional-populista de contestação do sistema democrático.

A ascensão da direita nacionalista produziu dois tipos de deslocamento nos sistemas político-partidários ocidentais. Países como França, Itália, Alemanha e Espanha experimentaram o declínio de partidos moderados tradicionais e a emergência de um grande partido de direita. Nos EUA, porém, assim como no Reino Unido, o deslocamento ideológico realizou-se no interior de um dos dois partidos históricos, que foi capturado pelo nacionalismo.

No caso do Partido Conservador britânico, verificou-se uma captura parcial, impulsionada pela rejeição à União Europeia e pelo plebiscito do Brexit. Já o Partido Republicano dos EUA conheceu uma cisão mais profunda com seu passado.

O governo de Boris Johnson flerta com a xenofobia e com o nacionalismo, mas não contesta os fundamentos da democracia parlamentar ou os valores básicos do Ocidente. O governo Trump, por outro lado, operou no plano internacional como parceiro de regimes autoritários (Putin, Erdogan, Orbán) e, no plano nacional, como motor de restauração da “nação de colonos brancos”. Nesse passo, os republicanos assumiram as feições de partido da reação.

A resistência republicana a Trump percorreu a campanha presidencial pela voz do Projeto Lincoln, uma dissidência do partido que fez campanha aberta por Biden. O presidente eleito recebeu mensagens de congratulação da velha guarda republicana, representada por figuras como o ex-presidente George W. Bush, o ex-candidato presidencial Bob Dole e o atual senador e também ex-candidato Mitt Romney. Contudo, fora eles e um punhado de parlamentares, o partido segue mais ou menos alinhado ao negacionismo eleitoral trumpiano. É por isso que a declaração do governador de Ohio tem especial relevância.

A encruzilhada diante da qual se encontra o Partido Republicano interessa ao mundo inteiro. Se os republicanos se ossificarem como partido antidemocrático controlado por Trump, será comprometida a estabilidade política da maior potência mundial e se acelerará a tendência ao declínio internacional dos EUA. Se, pelo contrário, a maioria cindir com Trump, restabelecendo a tradição moderada republicana, a nação americana voltará a conversar, e os movimentos populistas de direita, na Europa e no Brasil, sofrerão um golpe devastador. Olho nos EUA.


Marcelo Trindade: Coalizão em torno do centro

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia

Menos de 50 mil votos em três estados (Arizona, Geórgia e Wisconsin). Essa foi a real diferença que elegeu Joe Biden presidente dos Estados Unidos, não os mais de cinco milhões de votos de vantagem no resto do país.

Para a maioria dos analistas, essa vitória só foi possível porque Biden é de centro, capaz de atrair eleitores de todas as correntes. Só a coalizão foi capaz de vencer o radicalismo, e por tão pouco. É urgente traduzir essa lição para o ambiente brasileiro, se pretendemos, como nação, voltar a progredir, deixando para trás a ignorância e o ódio.

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia e trabalhar imediatamente por uma coalizão em torno do centro, que possa vencer as eleições de 2022.

Depois há que negociar as medidas consensuais nos setores mais urgentes — educação, saúde, segurança, saneamento. Há muita convergência nesses campos, e em outros praticamente só há consenso — meio ambiente, cultura, política externa, liberdades, minorias. Os debates nas trincheiras da divergência ideológica devem ser adiados, pelo bem comum.

Para a conversa evoluir, será também preciso definir, de saída, o modelo para a escolha do futuro candidato a presidente — não necessariamente o nome. Uma ideia seria exigir reputação e experiência, e permitir apenas um mandato de quatro anos, a ser cumprido até o fim. O movimento poderia incluir, ainda, a volta ao regime original da Constituição de 1988, de cinco anos de mandato sem reeleição, a partir de 2026.

Só com ousadia e espírito público será viável uma concertação de centro. O momento é de grave crise institucional, e a polarização só tende a aumentar, em benefício de quem a promove. Quatro anos de pacificação política, gestão profissional, retomada de fôlego e preparação para o futuro são essenciais antes de uma nova disputa eleitoral dividida, sob pena de um radical prevalecer. Foram menos de 50 mil votos que livraram a maior democracia do mundo desse risco. Não temos tempo a perder.

*Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio


Cacá Diegues: Vai melhorar, sim

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Que a saliva não acabe nunca!

Depois de quase dois anos ouvindo absurdos políticos e assistindo desorientados às trapalhadas totalitárias do presidente; depois dos cerca de nove meses de uma pandemia de muitos mortos, para os quais as autoridades federais não deram a menor bola; depois de uma recuperação significativa de nosso PIB, que fez o Brasil ter agora, contados pelo IBGE, 199 mil milionários e 52 milhões de pessoas, um quarto de sua população, vivendo abaixo da linha de pobreza; depois de tanto susto e surpresa, os brasileiros foram enfim às urnas escolher seus administradores municipais. Menos, é claro, em Macapá, capital do Amapá, o estado sem luz.

Celebremos nesta eleição o sucesso do espírito democrático, um teste de nossa capacidade de escolher quem vai mandar na nossa rua pelos próximos quatro anos. Passaremos quatro anos explicando a nossos pares o que anda acontecendo e eles ainda não entenderam; ou nos declarando traídos por um governo municipal e uma câmara de vereadores de sacripantas e enganadores. Pois é disso que trata a democracia, o regime mais parecido com o ser humano. Ou, como dizia Churchill (ou não sei quem), o pior regime que existe, excetuando todos os outros.

Passei esses dias lendo o livro de Karla Monteiro sobre Samuel Wainer, “O homem que estava lá”, uma enciclopédia do que foi a política no Brasil durante os anos de vida do biografado. Pelo que a autora conta do período que conheci e vivi, só posso acreditar piamente no resto do tempo que ela aborda. Trata-se da vida de Samuel, de tudo e de todos que circularam à sua volta, desde que sua família, fugindo do antissemitismo em voga na Europa, chegou da Bessarábia quando ele tinha 8 anos de idade, até seu falecimento, com 68 anos, vítima de uma pneumonia da qual não cuidou. No dia de sua morte, em setembro de 1980, terminávamos “Bye Bye Brasil”, o filme em que, a seu pedido, Bruno, seu filho adolescente, fora nosso estagiário, sua porta para o cinema. Samuel Wainer foi um brasileiro que tive a sorte de conhecer. E de aprender o que ele entendia e pensava do Brasil. E ainda foi um dos primeiros, no país, a acreditar e promover o Cinema Novo.

Nesta semana assistimos também ao assassinato de Cadu Barcellos, um homem brilhante, um cineasta de talento, um cidadão generoso. Cadu foi diretor de um dos episódios de “5XFavela”, a versão de 2010 realizada por moradores de favela, e, aos 34 anos, se empenhava em fazer do Complexo da Maré um centro de cultura, criação e invenção. Cadu morreu sem fazer os filmes que só ele sabia fazer. De madrugada, numa esquina solitária da Avenida Presidente Vargas, foi assaltado e esfaqueado à morte. Os ladrões levaram tudo o que ele tinha: um celular e alguns poucos reais que guardara para o ônibus.

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Queremos incentivar a saliva, que ela não acabe nunca, tenha sempre mais um pouco, seja como líquido que escorre natural da boca, seja como lágrimas que jorram dos olhos. Ou até mesmo na forma de um beijo.

E foi como um beijo que vimos Kamala Harris cantar e dançar com um grupo de crianças nosso baile funk de favela em português das quebradas, rebolando como se fosse uma das nossas. O sereno Joe Biden é um Tancredo, que vem na frente para sossegar o coração de quem tem medo do novo. Mas Kamala Harris é o futuro que vai ser construído sobre o terreno que Joe Biden aplaina. É ela que parece dizer aquele trecho da encíclica de Francisco, em homenagem ao santo xará: “Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou (…) não nos turvará, o fato de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz”.

Segundo o IBGE, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo, com uma distribuição de renda pior que a dos africanos mais pobres. Cada vez que melhoramos no conjunto, são só os mais ricos que ficam mais ricos. Outro dia, policiais da 31ª DP, de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte do Rio, prenderam um homem que estava vendendo ossos humanos, retirados de túmulos no cemitério local. O homem declarou à polícia que estava desempregado, só roubava o que lhe era encomendado e que cobrava muito pouco pelo serviço. O delegado Fábio Souza o autuou em flagrante, por “vilipêndio de cadáveres”.

A vida é mesmo meio como um jogo de perde-ganha. Quanto pior agora, melhor será daqui a pouco. Vai melhorar. Vai melhorar, sim. Tenho certeza de que vai melhorar. Acho que sim.


Dorrit Harazim: À exaustão

Segundo assessores, Trump não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até 20 de janeiro

Joe Biden derrotou Donald Trump por uma diferença que pode chegar perto de 7 milhões de votos populares. Um mundaréu. Biden também ultrapassou com folga os 270 votos eleitorais necessários para merecer a Casa Branca — o placar foi de 306 a 232. Mas festão de arromba dá ressaca. E a aldeia democrata que sacolejou como não fazia desde 2016 despertou para a realidade. Trump continua entrincheirado no Twitter, mantém quase intacto seu monopólio midiático, e o núcleo duro do Partido Republicano ainda o teme como líder de mais de 72 milhões de eleitores. Outro mundaréu.

Também não dá para continuar a festança diante do ressurgimento tentacular da Covid no país. Ao longo das últimas semanas, a pandemia adquiriu contornos de crise humanitária nos Estados Unidos, comparável à mortandade no Japão causada pelo tsunami de 2004 ou ao terremoto de 2010 no Haiti. O novo coronavírus é apenas mais silencioso e longevo. E insidioso.

O trunfo de Biden diante da birra existencial de Trump são os oito anos em que atuou como vice e parceiro diário de Barack Obama na Presidência. Ele não precisa de mapa — aprendeu e frequentou os meandros da Casa Branca como poucos. Precisa sim, e com urgência, de acesso irrestrito à máquina do governo para começar a formular políticas e inteirar-se do tamanho dos problemas que o aguardam. Ou não é para isso que servem as equipes de transição e os 72 dias de preparo entre a vitória nas urnas e a cerimônia de posse?

Mas esse compartilhamento só funciona quando o ocupante de saída da Casa Branca é minimamente convencional, civilizado e temente ao lugar que ocupará na História. Ou seja, qualquer um menos Donald Trump.

O atual presidente já deixou de simular interesse pela nação. Segundo relatos de assessores próximos, o comandante-em-chefe não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até o meio-dia do dia 20 de janeiro. E poder, para Trump, significa dominar o noticiário, alimentar o suspense em torno de seus rompantes, pequenas e grandes vinganças, demissões bombásticas de última hora, do mistério de como se dará sua despedida. Ele espera assim manter aceso o engajamento dos seguidores para lançar a campanha Trump2024 — mesmo que ela seja fake.

Na verdade, existem apenas dois poderes presidenciais quase absolutos na democracia americana. O primeiro é o controle final do mandatário sobre o arsenal nuclear, envolto em minuciosos controles e salvaguardas até uma bomba ser de fato disparada. Mas continua válido o comentário de Richard Nixon durante um jantar na Casa Branca para membros do Congresso: “Eu poderia sair deste salão agora e, em 25 minutos, 70 milhões de pessoas estariam mortas”. Hoje seriam apenas 5, no máximo 7 minutos, até o disparo final e, para sorte do nosso planetinha, nem Nixon nem Donald Trump acionaram a ferramenta.

O segundo poder quase absoluto do ocupante da Casa Branca consta do Artigo II, Seção 2 da Constituição americana e tem raízes na monarquia britânica do século VII: a concessão do perdão presidencial. A ideia de que brotou essa prerrogativa foi benigna, elaborada como contrapeso à severidade institucional da Justiça criminal. O artigo em questão contém apenas duas restrições. O perdão só pode ser concedido a quem praticou uma ofensa aos Estados Unidos (portanto, só é cabível para crimes federais) e não pode ser usado para casos de impeachment.

Mas a Constituição de 1787 deixou em aberto uma questão que somente agora, no crepúsculo do mandato de Trump, adquire relevância — pode um presidente conceder clemência para si mesmo? Como essa hipótese não ocorreu a nenhum dos 44 presidentes antes do atual, a dúvida permaneceu restrita a interpretações de causídicos. Somente em 1974, com o impeachment e a renúncia de Richard Nixon em andamento, o Departamento de Justiça tomou a decisão de declarar que um autoperdão não deveria poder ser concedido, com base na lei fundamental de que ninguém pode ser juiz de seu próprio processo.

Só que a leitura do 45º presidente é outra. Muito antes de ser derrotado nas urnas, Trump proclamou algumas vezes seu “direito absoluto de conceder perdão a mim mesmo”. Pode até ser tentador como apoteose final ou autoimolação de sua presidência disruptiva. Mas nem isso o livraria da penca de processos que o atormentam em tribunais estaduais. Segundo a CNN, o presidente se informa sobre o tema desde 2017, de forma obsessiva, inclusive inquirindo assessores sobre a possibilidade de conceder perdão por antecipação, na eventualidade de alguém próximo vir a ser condenado mais adiante. Espera-se, no mínimo, uma enxurrada de perdões para aliados puro-sangue que foram parar na cadeia por sua causa.

Ou seja, Trump será Trump até a exaustão.


Rubens Ricupero: A vitória de Joe Biden é uma boa notícia para o Brasil? Sim

Haverá espaço para relação construtiva, inclusive em meio ambiente e comércio

Para o Brasil, isto é, para o povo brasileiro, é bom. Para o governo Jair Bolsonaro, não tanto. Os leitores talvez não se lembrem da frase do general Juracy Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Pois bem, neste caso ele teria razão.

Basta pensar no aquecimento global. Se não fizer mais nada além de voltar ao Acordo do Clima de Paris, Joe Biden já terá feito um bem imenso ao mundo e, portanto, à parte que nos cabe no planeta comum.

Para o nosso povo, abandonado pelo próprio governo diante da Covid-19, é ótimo que o novo presidente tenha a intenção de prestigiar a ciência na luta contra a pandemia, regressar à Organização Mundial de Saúde e liderar o esforço mundial por uma vacina.

Também será excelente para os amantes da liberdade que Biden convoque, como anunciou, uma Cúpula em favor da Democracia para discutir o aumento do autoritarismo, a luta anticorrupção e os direitos humanos. Quem não vai gostar são os que defendem torturadores, os nostálgicos da ditadura e do AI-5, que querem fechar o Congresso e o Supremo. Para os democratas, a notícia traz alento e esperança.

Da mesma forma, só hipócritas obscurantistas lamentarão que o futuro governo dê impulso às políticas de promoção da igualdade da mulher, aceitação das mudanças sociais em comportamento sexual, diversidade e LGBT. Ao contrário, terá o aplauso de todos os que favorecem a emancipação individual e a evolução da consciência moral da humanidade.

Para o povo brasileiro, que partilha com o americano a herança racista da escravidão, a disposição de Biden de superar o racismo estrutural servirá de estímulo para enfrentarmos nossos fantasmas nessa área. O mesmo vale para a desigualdade crescente, incomparavelmente mais grave entre nós.

O interesse do Brasil nem sempre coincide com o do governo Bolsonaro. Exceto para quem crê que é bom para o país deixar a Amazônia e o Pantanal serem incinerados por grileiros, madeireiros ilegais, pecuaristas gananciosos. Ou permitir que garimpeiros envenenem rios e povos indígenas.

Não para se alinhar à agenda americana, e sim para realizar as genuínas aspirações de nosso povo, a eleição de Biden representa oportunidade de mudar, mais que ameaça. O próprio governo Bolsonaro, se tivesse um mínimo de bom senso, deveria aproveitar a ocasião para repensar a política externa e as orientações em meio ambiente e direitos humanos.

Da parte do democrata Biden, tudo indica que haverá espaço para relação construtiva com o Brasil, inclusive em meio ambiente e comércio. Do lado do governo brasileiro, os sinais não são animadores. A ameaça de recorrer à pólvora para rebater declarações sobre a Amazônia não vai tirar o sono do Pentágono. Mas revela a tamanha imaturidade de Bolsonaro, que provocará no exterior misto de espanto e galhofa.

A eleição de Biden completa o cerco de isolamento internacional de um governo já com péssimas relações com França, Alemanha, União Europeia, China e boa parte da América Latina. Diante disso, Bolsonaro tem duas saídas possíveis. Ou responde com equilíbrio e sensatez, começando por cumprir o dever de civilidade de felicitar o vitorioso na disputa americana, ou age como o fanático que redobra a aposta no erro.

Seja qual for a escolha do governo, o misto de alegria e alívio que saudou a vitória de Biden traz esperança de que se aproxima do fim a hora do poder das trevas nos Estados Unidos e, oxalá, no domínio do seu imitador nos trópicos. E isso é o melhor de tudo para o Brasil!

*Rubens Ricupero, diplomata, ex-embaixador do Brasil em Washington (1991-1993) e Roma (1995); ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (1993-1994 e 1994, governo Itamar)


Fernando Gabeira: Um grande exorcismo

Se foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

A derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas possibilidades.

Alguns países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por Trump e seu isolacionismo.

O caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do cristianismo.

A pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo precisava.

Agora tudo acabou. Se há esperanças na Europa, aqui há apreensão. É muito difícil Bolsonaro adaptar-se à posição ambiental de Biden. Para Bolsonaro será mais uma forma de adotar uma falsa postura nacionalista e não interromper o processo de destruição da Amazônia, o único caminho que vê para o progresso, nos termos em que o entendem as pessoas que ficaram congeladas nos anos 70 do século passado.

Logo depois da eleição de Biden Bolsonaro pensa em lançar um marco regulatório das ONGs. Na verdade, é uma promessa antiga, pois afirmou que iria acabar com o ativismo no Brasil. Trata-se de algo inconstitucional, que deve encontrar resistência no Congresso e no Supremo.

Além disso, circula um documento no Conselho da Amazônia dizendo que chineses e europeus têm planos para levar a água de lá. Não se sabe como o fariam sem o consentimento brasileiro É mais uma história para fantasiar uma luta nacionalista e ampliar o processo de destruição em nome dos interesses do Brasil.

No passado era o minério e agora, a água. Não creio que elaborem essas teorias de má-fé. Lembro-me, no passado, de já se ter discutido a possibilidade de exportação de água. Foi uma discussão baseada no Canadá, também exportador. Não foi adiante. Era uma exportação controlada, mas não se demonstrou a viabilidade.

Se os chineses podem levar nossa água, por que não nosso açaí, nossa castanha e todos os outros recurso naturais? Essa formulação alucinada só servirá para aumentar o isolamento brasileiro. Sem o deus laranja da nossa diplomacia, com Bolsonaro atuando de forma estúpida num contexto externo delicado e caminhando para uma crise interna sem precedentes, o grande exorcismo ainda não atingiu o Brasil. O mundo ficou mais inteligível e racional, mas os espíritos secundários que baixaram por aqui ainda não permitem que nos livremos de seus delírios maníacos. Uma coisa nos anima: se foi possível em escala maior, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

O último pronunciamento de Bolsonaro nos indica o nível de insanidade a que chegou o governo brasileiro. Ele insinuou um conflito armado com os EUA ao dizer que vai usar a saliva, mas quando acabar restará a pólvora.

Uma forma de desestimulá-lo é informar-lhe que a pólvora foi descoberta pelos chineses – ele certamente vai duvidar desse instrumento, como duvida da vacina contra o coronavírus. Outra é apelar para sua generosidade. Os EUA acabam de sair de uma eleição difícil, combatem como nós uma pandemia, não é justo amedrontá-los com um conflito armado. Eles seriam jogados na máquina do tempo, sentiriam no contato com nossos equipamentos como se estivessem entrando de novo na 2.ª Guerra Mundial. Talvez valesse mais a pena fazer o general Mourão e alguns militares reformados que jogam vôlei no Posto 6, em Copacabana, invadir a Filadélfia e reverter o resultado eleitoral. Isso traria menos conflito e bom material para programas humorísticos mundo afora.

Na verdade, o governo Bolsonaro seria risível se não se tratasse de uma pandemia que mata tanta gente e de uma política ambiental que reduz as chances de vida no planeta. Por isso se tornou uma tragicomédia, cujo prazo de duração até 2022 é muito doloroso.

*Jornalista


Merval Pereira: Paciência histórica

Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos. Mas vivemos em tempos tão estranhos que a insistência do presidente Donald Trump em não reconhecer a derrota na eleição presidencial para Joe Biden está levando os americanos a uma situação nunca vista, a de temer um golpe para Trump continuar no poder.

A disputa não vai apenas pelo lado da Justiça, onde se decidem os embates político-eleitorais nos Estados Unidos, mas também no campo militar. A demissão do Secretário de Defesa Mark Esper, e a nomeação de assessores leais no Pentágono trouxeram para a cena política um temor que não combina com a tradição democrática americana, mas com a atuação política de Donald Trump, que não gosta dos limites que as instituições democráticas impõem ao presidente da República.

A demonstração de desapreço pela liturgia democrática não deve passar disso, uma arrogância sem resposta institucional favorável. Protagonista de memes nas redes sociais que o transformam em bobo da corte, não no rei que gostaria de ser, Trump vai se deteriorando pessoalmente, mas também a maior democracia do mundo sofre com seus arroubos.

O fato de o país continuar seu cotidiano sem grandes alterações pode ser uma demonstração, mais adiante, de que a democracia tem meios de neutralizar as bazófias de Trump sem torná-las uma ameaça real. Aqui no Brasil, à custa de crises e ameaças à democracia, conseguimos controlar o nosso Trump tupiniquim.

Bolsonaro ensaiou passos agigantados em direção a um golpe militar, fomentou um ambiente tensionado contra os outros poderes da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi obrigado a recuar. Não teve apoio dos militares, nem conseguiu uma mobilização popular que o pusesse em condições de desafiar as instituições.

Os inquéritos das “fake news” e sobre a tentativa de desmoralizar o Supremo e o Congresso para subjuga-los, acabaram acuando o nosso aprendiz de feiticeiro, e a prisão do famigerado Queiroz teve o dom de convencê-lo de que a cadeia era uma possibilidade real. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi alvo de um processo de impeachment que acabou bloqueado no Senado de maioria republicana. Aqui, Bolsonaro tem dezenas de pedidos de impeachment guardados na gaveta do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.

Já houve clima político para tal decisão drástica, agora já não há mais. Apoiado pelo Centrão, o presidente Bolsonaro já não precisa temer um processo político, mas parece inevitável que venha a ter problemas políticos-policiais em relação a seus filhos, já que o presidente da República não pode ser processado no cargo, a não ser por fatos que tenham a ver diretamente com seu mandato.

As “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos na Assembléia Legislativa do Rio, na Câmara de Vereadores e na Câmara dos Deputados estão sendo investigadas, e cada vez mais as apurações levam a desvendar uma armação financeira que fez da família Bolsonaro beneficiária de remunerações ilegais. Assim como Trump, cuja resistência maior em deixar a Casa Branca tem a ver com os problemas judiciais que vai enfrentar nos seus negócios particulares ao perder a imunidade presidencial, também Bolsonaro e os filhos têm contas a prestar com a Justiça.

Em meio a mais uma onda de protestos contra a postura de Bolsonaro diante da pandemia, que poderia resultar teoricamente em um processo de crime de responsabilidade, uma voz experiente se levanta para apoiar a cautela com que Rodrigo Maia vem tratando o assunto.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou como “um desastre” a comemoração de Bolsonaro após a interrupção dos testes da vacina que o Instituto Butantan está realizando com a CoronaVac chinesa. Mas receitou “paciência histórica” para aguentar Bolsonaro no governo por mais dois anos, e derrotá-lo nas urnas, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Correção
Ontem, cometi um erro na coluna pelo qual me penitencio. Bolsonaro era tenente, não major e, indo para reserva, virou Capitão. Já corrigi ontem mesmo na edição digital.


Míriam Leitão: Além da moeda instantânea

No dia da eleição americana, havia uma animação no Banco Central brasileiro. Nada a ver com o que se passava nos condados azuis e vermelhos. Era o primeiro dia de testes de um sistema de pagamentos que começou a ser arquitetado há cinco anos. Para o cliente, o pagamento instantâneo, chamado de PIX, pode parecer apenas uma comodidade, mas, segundo o diretor do BC João Manoel Pinho de Mello, ele levará a mais competição, menores custos e mais inclusão no sistema financeiro. A nova forma de pagar começa a operar na segunda-feira com a expectativa de mudar a relação que o brasileiro tem com o dinheiro. Se conseguir diminuir a concentração do nosso mercado bancário já terá provocado um efeito importante.

O objetivo do PIX, como todo mundo entendeu, é que o dinheiro e a informação trafeguem de forma imediata. Cerca de 10 segundos, em média, segundo o Banco Central. E sem custos para pessoas físicas. Os clientes que pagam taxas em transferências terão redução de despesas, os credores terão menos riscos porque saberão na hora que as dívidas foram quitadas.

— Imagine uma carga no porto que precisa de várias guias de pagamento para ser liberada, com diversos órgãos de governo. Esse processo pode levar dias. Com o pagamento instantâneo, será na hora. O dinheiro chega em uma ponta e a informação de quitação volta na outra. Isso vale para tudo, é ganho de produtividade na economia — explicou Pinho de Mello.

As mudanças microeconômicas no sistema financeiro vêm buscando há muitos anos o mesmo objetivo: spreads menores. No BC, eles garantem que os juros caíram muito e em algumas linhas já são compatíveis com níveis internacionais. Ainda não é o que todo tomador sente. Com mais participantes nesse mercado de transação financeira, pode haver, num segundo momento, um custo do crédito menor. Com mais gente oferecendo empréstimos, a aposta é que os juros possam cair.

Para o pequeno empreendedor, por exemplo, espera-se o incentivo ao chamado nanocrédito, pequenas e rápidas operações de financiamento. Como a transferência não tem custos ou um custo bem menor do que o atual nas transações entre firmas, um comerciante pode, por exemplo, adiantar a passagem de ônibus de um fornecedor que lhe venda produtos mais baratos e de melhor qualidade. Hoje, o preço do TED e do DOC inviabiliza a margem dessas operações menores. Esse é só um pequeno exemplo de como o pagamento instantâneo pode ter efeito na ponta da economia.

Os bancos perderão as receitas com o TED e o DOC. O Banco Central não tem uma conta fechada, mas estima que somente o TED de pessoas físicas chegue a R$ 500 milhões por ano. João Manoel acredita que eles não vão fazer o truque de sempre — elevar outra tarifa para compensar a perda. Acha que também terão uma forte redução de custos.

— O dinheiro ainda é o principal meio de pagamento do país, e isso custa muito para os bancos, em termos de transporte, logística, segurança. Quanto mais o pagamento eletrônico instantâneo for usado, menores serão os custos para os bancos — explicou.

Há um problema. Somente os 35 maiores bancos terão acesso à conta de liquidação financeira do Banco Central, onde as informações serão processadas. As menores instituições, como as fintechs e cooperativas de crédito, terão que pagar uma taxa para usar esse sistema através dos bancos maiores, e o receio é que eles imponham custos que inviabilizem a competição. João Manoel diz que o Banco Central estará atento para evitar esse risco:

— O grande banco é o chamado participante direto, que tem acesso ao sistema do Banco Central. É assim porque é caro acessar o BC e não faria sentido impor isso a todos. Mas o grande não pode ter preços diferentes para os clientes indiretos. O próprio BC vai fazer essa fiscalização para que haja competição entre eles.

A “guerra das chaves” que acontece hoje, ou seja, as campanhas publicitárias pelo cadastro dos clientes, tem explicação. O que está em jogo agora é conseguir os dados, para que os clientes sejam fidelizados depois. Outra aposta do BC é que essas informações deem mais segurança aos bancos, que poderão reduzir os juros.

Há outras modernizações sendo feitas. O Cadastro Positivo entrou em operação em fevereiro, e o Banco Central tem acelerado os testes e os estudos para que o chamado open banking — quando o cliente permite que várias instituições tenham acesso aos seus dados — entre em vigor em 2022. Essa é a agenda para os próximos anos no sistema financeiro e que pode fazer com que o custo do dinheiro caia de forma estrutural no Brasil.


Rogério F. Werneck: Bolsonaro sem Trump

Planalto sabe que a eleição de Biden tornará descaso com a Amazônia mais custoso

Ainda é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam, aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial ao controle eficaz da proliferação nuclear.

Em Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano durante a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.

Não há como subestimar as dificuldades que, tudo indica, o Planalto continuará a enfrentar para lidar com o desfecho da eleição americana. É mais do que sabido que, por anos, Bolsonaro viu em Trump o modelo a seguir, copiando-lhe inclusive a forma peculiar com que transformou o dia a dia do seu governo num interminável reality show, focado no acirramento da polarização política.

Ao macaquear Trump, Bolsonaro viu-se, com frequência, mais à vontade para insistir em posições indefensáveis que desavisadamente adotara. Sem ir mais longe, basta ter em conta quão mais difícil lhe teria sido se agarrar ao negacionismo e ao charlatanismo, diante do avassalador avanço da pandemia, se, nesse papel, não se percebesse em fantasioso dueto com Donald Trump.

A criação, por Biden, de uma força-tarefa de combate à Covid-19, que voltará a pautar a política de saúde pública americana por recomendações científicas, prenuncia que a postura obscurantista que Bolsonaro se permitiu adotar no enfrentamento da pandemia está fadada a se tornar cada vez mais isolada e desgastante.

O Planalto bem sabe, também, que a eleição de Biden tornará o desajuizado descaso do governo com a devastação da Amazônia bem mais custoso do que já vem sendo. Ao desgaste que essa postura irresponsável vem trazendo às relações do Brasil com a União Europeia, deverão se somar inevitáveis atritos com os EUA, fomentados por uma aliança tácita — à primeira vista estranha, por isso mesmo temível — da ala ambientalista do Partido Democrata com o poderoso lobby agrícola americano.

O que está em jogo é o promissor projeto de expansão das exportações brasileiras de produtos agropecuários. E, como já perceberam os segmentos mais lúcidos do agronegócio no país, para que possa fazer face às pressões conjuntas de Estados Unidos e Europa por políticas mais consequentes de preservação da Amazônia, o governo terá de dar demonstrações inequívocas de que sua postura mudou. E de que, na condução da política ambiental, já não haverá mais espaço para figuras como Ricardo Salles.

Com o Itamaraty sob a égide das pregações caricatas de Ernesto Araújo contra instituições multilaterais, o governo encontra-se completamente desequipado para lidar com a revitalização do multilateralismo que a eleição de Joe Biden promete. A defesa eficaz dos interesses brasileiros nas negociações que deverão ter lugar nessas instituições depende de um esforço abrangente de retripulação do Ministério das Relações Exteriores, que Bolsonaro dificilmente estará disposto a patrocinar.

Sem Trump, Bolsonaro se verá privado de uma caixa de ressonância importante para o discurso inconsequente e amalucado que se permitiu manter em ampla gama de questões. Terá menos espaço para demagogia e populismo. E estará bem menos à vontade para dar vazão a sua irrefreável fanfarronice mitômana. Mas não se iludam. Mesmo sem Trump, Bolsonaro não deixará de ser o que sempre foi.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Bernardo Mello Franco: Saliva e pólvora: razões para o descontrole de Bolsonaro

Na terça-feira, Jair Bolsonaro ameaçou trocar a saliva pela pólvora nas relações com os Estados Unidos. Já se passaram três dias e ele ainda não mandou a FAB bombardear a Estátua da Liberdade. A bravata só serviu para expor os militares ao ridículo. Os generais que se associaram ao capitão não podem nem reclamar.

Bolsonaro eleva o tom das sandices sempre que se vê em apuros. É uma tática conhecida. A cortina de fumaça ajuda a desviar a atenção e manter a tropa mobilizada. Na terça, não funcionou. Além de delirar com uma guerra impossível, o presidente marcou gol contra ao escancarar sua politicagem com a vacina. No mesmo dia, ele comemorou um suicídio, chamou os Brasil de “país de maricas” e disse que sua vida é “uma desgraça”.

O capitão tem motivos para exibir descontrole. Na semana passada, o Ministério Público do Rio denunciou o senador Flávio Bolsonaro por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A confissão de uma funcionária-fantasma agravou os problemas do Zero Um com a Justiça.

A derrota de Donald Trump também aumentou as aflições de Bolsonaro. Apesar de endossar a falsa versão de fraude, ele sabe que ficará mais isolado a partir de janeiro. A derrocada do ídolo abalou o sonho do segundo mandato. Em meio ao destampatório, ele admitiu o medo de repetir Mauricio Macri, que não conseguiu se reeleger na Argentina.

O presidente saboreou um aumento de popularidade na pandemia, mas terá meses difíceis pela frente. O governo ainda não sabe o que oferecer a milhões de famílias que deixarão de receber o auxílio emergencial. O ministro Paulo Guedes, que parece tão perdido quanto o chefe, agora se diz “bastante frustrado” e fala em risco de hiperinflação.

Como se não bastassem todos esses problemas, Bolsonaro adotou uma estratégia camicase nas eleições municipais. Não há pólvora nem corrente de WhatsApp que evitem o fiasco da maioria dos candidatos que ele escolheu apoiar. A depender do resultado das urnas, o capitão precisará de muita saliva para se explicar na segunda-feira.