Eleições EUA
Yascha Mounk: Modelos mais sofisticados ainda dão a Trump uma chance em cinco de vencer
Tendência geral é de que populistas conseguem se manter no poder, e vitória de Biden seria exceção
Muitos americanos estão olhando para o próprio país e sentindo vergonha. O que revela sobre os EUA alguém como Donald Trump não apenas ter vencido uma eleição presidencial como conservado o apoio de tantos, não obstante suas falhas evidentes?
Quando mais uma declaração cruel ou racista do presidente aparece no meu feed, sinto essa vergonha. Mas como cientista político que estuda a ascensão de populistas autoritários, sei que a atração exercida por Trump está mais perto de constituir a regra que a exceção.
Nos últimos anos, populistas conquistaram o cargo mais alto em democracias de várias partes do mundo, de Jair Bolsonaro no Brasil a Narendra Modi na Índia. A atração exercida pelos dois mostrou ser surpreendentemente resiliente.
Modi conquistou um segundo mandato por maioria inequívoca. Bolsonaro é visto nas pesquisas com grande chance de fazer o mesmo.
Em novembro, porém, os EUA podem se mostrar excepcionais: se as pesquisas de opinião se comprovarem acertadas, será a primeira grande democracia na memória recente a afastar um governante populista ao término de seu primeiro mandato.
Quando Trump foi eleito, muitos de seus adversários se deixaram levar pela fantasia de que ele deixaria o cargo muito antes do término de seu mandato. Talvez se cansasse de suas responsabilidades políticas.
Talvez fosse impichado. Seja qual fosse a forma de sua queda, uma centena de artigos nos garantiu que essa maluquice não poderia se prolongar por quatro anos.
Essa espécie de pensamento veleidoso é típica dos adversários dos populistas autoritários. Mas longe de terem probabilidade especial de perder o poder repentinamente ou antes do previsto, os presidentes e primeiros-ministros populistas se conservam no cargo em média pelo dobro do tempo que os não populistas: seis anos e meio, comparados a três no caso destes últimos.
Como Jordan Kyle e eu demonstramos, essa discrepância chama a atenção especialmente quando comparamos governos que se mantêm no poder há mais de dez anos. Um chefe de governo populista tem cinco vezes mais probabilidade de permanecer no cargo após uma década do que um não populista.
E encontramos poucos exemplos de populistas que perderam o poder após apenas um mandato. Os eleitores tendem a reconhecer seu erro apenas depois que os líderes populistas causaram danos graves às instituições democráticas.
Embora as sondagens coloquem Biden na dianteira, os modelos mais sofisticados ainda dão a Trump uma chance em cinco de vencer a eleição. Considerando o que está em jogo, essa chance está longe de ser tranquilizadora.
Para agravar as coisas, o contexto internacional também mostra que os poucos populistas que não são reeleitos para um segundo mandato tendem a conservar uma presença grande e prejudicial em seus países.
Silvio Berlusconi, por exemplo, tornou-se o premiê da Itália pela primeira vez em 1994. Perdeu a maioria governante em menos de um ano, mas não tardou a se recuperar, passando a dominar a política italiana pelas duas décadas seguintes.
Mesmo assim, a lição principal que tiro do contexto internacional é inspiradora. Depois de quatro anos durante os quais os EUA mostraram o que têm de pior, é muito possível que em breve os americanos contrariem a tendência global, afastando um governante populista na primeira oportunidade possível.
E se Trump de fato se tornar um presidente de um mandato só, uma nova administração pode ajudar a liderar a luta internacional contra as forças ascendentes do iliberalismo.
*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain
Eliane Cantanhêde: Zumbi internacional
Vitória de Biden rompe a dupla 'Deus' e 'mito' e joga o Brasil no isolamento e no limbo
Contagem regressiva para as eleições americanas, em 3 de novembro, com o presidente Donald Trump dando sinais de desespero, perdendo o rumo, aprofundando a arrogância, incapaz de tirar do centro da pauta o seu maior calcanhar de Aquiles: a pandemia. Mais do que as pesquisas, é o próprio Trump quem sinaliza ao mundo que caminha para uma derrota histórica na maior potência do planeta.
Isso deixa o Brasil, e diretamente o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e o chanceler Ernesto Araújo, numa enrascada. Em seu artigo mais chocante, ou delirante, intitulado “Trump e o Ocidente”, Araújo prega que o Ocidente está em perigo e depende de Deus. Em seguida, nomeia: “só Trump pode ainda salvar o Ocidente”. Trump é Deus. Logo, coitado do Ocidente, estará perdido sem Trump.
São visões confusas, que põem o Brasil numa situação difícil com a perspectiva de um governo democrata, com Joe Biden e Kamala Harris. Onde esconder os textos de Araújo? O boné “Trump 2020” do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro? A subserviência de Jair Bolsonaro a Trump?
Resta a eles orar para o “Deus” Trump conseguir um milagre e repetir 2016: perder no voto popular, mas vencer no colégio eleitoral. Não é o que as pesquisas indicam, pois Trump perde não só em Estados-pêndulos, que historicamente podem ir para um lado ou outro, mas até em bases republicanas. Eleição não se ganha ou perde de véspera e Trump surpreendeu em 2016, tem estratégia e truques diabólicos – inclusive massificar que Joe Biden, de 77 anos, está senil, desorientado. Logo, nunca é demais botar um pé atrás, mas tudo aponta a vitória democrata.
O momento decisivo foi quando Trump pegou a covid-19. A reeleição já estava difícil, com tendência clara pró-Biden, e Trump não soube transformar limão em limonada, humanizar sua imagem, captar alguma empatia e estancar os consistentes ataques a ele. De outro lado, tentar levar o debate para o seu estado de saúde e para seus eventuais trunfos, tirando do centro das atenções seu gravíssimo descaso na pandemia. Ele fez o oposto.
Trump dobrou a aposta na arrogância, com notícias médicas duvidosas, a retirada abrupta da máscara em público e a patética saidinha de carro para acenar aos militantes na porta do hospital. Que candidato resiste a erros tão grosseiros? Assim, ele jogou ainda mais o foco na sua grosseria, prepotência, ignorância e irresponsabilidade no combate ao vírus, que já matou perto de 215 mil americanos e tornou os EUA exemplo do que não se faz.
Esse é o eixo de um debate que desaba em princípios. De humanidade, compaixão, empatia, justiça e honestidade, que levam ao sentido oposto de Trump: a “Black Lives Matter”, combate à violência policial, um sistema de saúde inclusivo. Na política externa, multilateralismo, sustentabilidade, liderança com generosidade, firmeza sem confronto com a China. E um freio na arrancada da extrema direita internacional.
O desafio de Bolsonaro é o que fazer em caso de dar Biden. Com o decantado pragmatismo dos EUA, a previsão é de frieza nas relações diplomáticas, mas mantendo as negociações econômicas e comerciais e os programas de cooperação em diferentes setores – como ocorreu até com Dilma Rousseff. O risco é numa área específica: a bélica, militar. Biden vai aumentar o arsenal de Bolsonaro?
A maior perda para o Brasil será na área internacional. Ao se isolar da Europa, gerar desconfiança na China, jogar fora a natural liderança na América Latina, Bolsonaro apostou em “Deus” e “mito”. Sem esse “Deus”, o País pode virar uma ilha, sem credibilidade, parceiros e, portanto, investimentos. Para o ministro da Educação, jovens sem fé são “zumbis existenciais”. Sem Trump, Brasil pode ser um zumbi internacional.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Dorrit Harazim: O enterro de um mundo
O perigo, agora, é que Trump passou a declarar sua intenção de moldar as regras do poder democrático com vigor redobrado
O dique foi rompido na sexta-feira, formalmente. Nancy Pelosi, a presidente da Casa dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória da Casa Branca, encaminhou a criação de uma comissão bipartidária que terá 16 membros, com função decisória sobre eventual incapacidade de futuros presidentes. A proposta não tem chance nem tempo hábil para entrar em funcionamento ainda em 2020, mas ela acata a pergunta que ronda a Casa Branca desde a eleição de 2016: Donald Trump é, ou está, mentalmente são? O comportamento errático do 45º presidente às vésperas do pleito mais neurastênico do país, somado à incógnita quanto a seu real estado de saúde aditivado com medicamentos pesados, passou à emergência nacional.
Com uma agravante: a 25ª Emenda Constitucional que trata do tema não contém qualquer regra para uma eventual incapacitação simultânea também do vice-presidente. Considerando que Mike Pence, primeiro na linha sucessória, esteve e continua ao alcance do surto de Covid-19 que infesta a Casa Branca, a barafunda é grande. Segundo escreve Garrett Graff na última edição da revista “Politico”, o maior pesadelo a rondar Washington é, justamente, um Pence também afastado temporariamente pela Covid.
O histórico da Vice-Presidência na construção política dos Estados Unidos é cheio de sinuosidades. De início, o cargo nem sequer existia per se: os dois nomes mais votados para presidente simplesmente ocupavam o 1º e 2º cargos, mesmo quando filiados a partidos opostos. Imagine-se a confusão. Até meados do século XX, quando Dwight Eisenhower ficou hospitalizado por sete semanas em 1955 no auge da Guerra Fria, seu vice Richard Nixon não recebeu o aval do chefe para tomar as rédeas. Ele tampouco pôde exercitar qualquer poder quando “Ike” foi submetido a uma cirurgia estomacal, seguido de um derrame. O documento informal de quatro páginas que Eisenhower entregou em mãos e em segredo a Nixon, já no último quadrante do mandato, definindo as regras para o vice assumir, se necessário, só se tornaria publico décadas mais tarde.
Foi um arranjo extraconstitucional, sem registro nem processo formal, uma aberração para aqueles tempos nucleares. Ainda assim, nos anos seguintes, também John Kennedy e seu vice Lyndon Johnson trataram de eventual sucessão de maneira não formal, com base na confiança.
(No caso atual, o risco é inverso: a probabilidade de Trump confiar em alguém é nula. E de ele transferir o poder voluntariamente, mesmo que por um dia, é menor ainda. Só mesmo à revelia.)
Foi somente depois do assassinato de Kennedy, em 1963, que o Congresso emplacou a 25ª Emenda. Além de lidar com doença, morte ou incapacitação do chefe da nação, ela também criou o mecanismo de substituição do vice pelo presidente da Câmara, se necessário. Foi graças a essa emenda que o então deputado Gerald Ford entrou no lugar do vice defenestrado por Nixon, tornando-se, com a renúncia posterior do próprio Nixon, o primeiro mandatário americano que nunca fora eleito presidente nem vice.
O que inexiste até hoje, porém, é clareza na continuidade do poder em caso de acefalia dupla: a incapacitação simultânea do presidente e do vice. A vulnerabilidade à Covid e fragilidade geral do candidato democrata Joe Biden, de quase78 anos, é outro pesadelo institucional às vésperas da eleição.
“Ele não dura mais de dois meses no cargo”, vaticinou Trump num de seus rompantes mais desvairados da semana, acenando com o terror que se abaterá sobre o país quando a “comunista Kamala Harris” assumir o poder. Foi um ato falho, durou apenas um átimo, mas foi revelador do inferno mental no qual chafurda o presidente, ao aventar a hipótese de ser derrotado por Biden e dá-lo como morto dois meses depois.
Trump já havia cometido um primeiro ato falho dias antes, quando anunciou que estava infectado e a caminho do hospital: “Quero agradecer a todos pelo imenso apoio recebido…”. Foi a primeira vez em três anos e meio em que se dirigiu à nação inteira, não apenas a sua base. Mas o efeito benéfico de sua, até então, impensável vulnerabilidade logo se dissipou.
Até o 3 de novembro, Trump está condenado a desempenhar o papel que mantém seu eleitorado turbinado: o comandante que suplanta qualquer obstáculo, o homem de ação que se apresenta no balcão da Casa Branca sem temor nem máscara, um Mussolini americano, embora algo arfante. Essa imagem de audácia, destemor, masculinidade idealizada tem impacto crucial em seguidores que talvez sonham em também ser assim. Em ter a astúcia de também driblar o sistema e não pagar impostos.
Anand Giridharadas, autor do aclamado “Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World”, define Donald Trump como “um homem fraco que sempre almejou ser forte, mas cuja ideia de homem forte é de um fraco”. Ele cita Robert O’Neill, o atirador dos Navy Seals que matou o líder terrorista Osama Bin Laden em 2011, como exemplo perfeito desse terror masculino de parecer impotente — O’Neill postou uma foto sua sem máscara, num voo comercial recente, com a legenda “não sou maricas”.
Segundo Giridharadas, a era Trump só se tornou possível porque tantos eleitores abraçam esta força fake. O perigo, agora, é que o presidente passou a declarar abertamente sua intenção de moldar as regras do poder democrático com vigor redobrado. Alguém consegue imaginar mais quatro anos com Donald Trump na Casa Branca? Seria, simplesmente, o enterro de um mundo. Imunidade de rebanho.
Raul Jungmann: A armadilha de Tucídides
“O medo de ser superada por Atenas, levou Esparta à guerra”, afirmou o general e historiador ateniense Tucídides, que viveu entre os anos 460 e 400 a.c. Sua principal obra, “História da Guerra do Peloponeso”, tornou-se um clássico por sua preocupação com o exame cuidadoso dos fatos, o que não era costume à época.
Ele ainda foi precursor da imunização ao notar que os atenienses que caiam doentes numa pandemia, numa segunda rodada ficavam imunes. A armadilha de Tucídides pode ser usada na interpretação das causas das guerras, a exemplo da I Guerra Mundial, que opôs Inglaterra e França à ascensão vertiginosa da Alemanha, a Guerra do Paraguai ou, ainda, ao longo conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética, que só não desandou numa guerra, devido ao risco de destruição mútua, via confronto nuclear.
No presente, estamos assistindo a algo similar no confronto entre a China e os Estados Unidos, líder global crescentemente desafiado pelos chineses, nos campos bélico, econômico e tecnológico. Em “Destinados à Guerra”, Graham Wilson afirma que o que definirá a ordem mundial futura é se os EUA e China conseguirão evitar cair na armadilha de Tucídides.
Já Henry Kissinger, no último capítulo do seu livro “Ordem Global”, espera que as duas nações ainda possam cooperar entre si. No passado, nações conseguiram escapar de serem tragadas pelo confronto em situação semelhante, ao custo de ajustes compulsórios que exigiram extraordinária energia e liderança política, internamente e entre o desafiante e o desafiado.
Foi o caso de Portugal e Espanha no século XV. À época, o Império Espanhol ampliava seu poder e influência nas rotas de comércio do mundo, ameaçando a liderança portuguesa. A saída foi alcançada com a mediação papal e os líderes das duas nações cumprindo limites negociados, a exemplo da Bula Inter Coetera e o Tratado de Tordesilhas.
No quadro atual, a diplomacia brasileira deveria manter-se equidistante, buscando cooperar para evitar o choque que se prenuncia, maximizando ganhos para nossas posições e obtendo vantagens nas mesas de negociação.
Mas não. Aferra-se a uma dependência submissa à política externa dos EUA, causando prejuízos ao interesse nacional, obtendo quase nada em termos bilaterais e de comércio, em detrimento do nosso principal parceiro comercial, a China.
Nós nos tornamos reféns da armadilha de Tucídides deles.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Ricardo Noblat: No “debate da mosca”, a vice de Biden engole o vice de Trump
Pesquisa confere vitória a Kamala
A senadora Kamala Harris, a vice na chapa de Joe Biden, candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, é uma jiboia: pega sua presa, prende, aperta, se enrosca nela e a tritura até o último osso. Foi o que fez, ontem à noite, com Mike Pence, o vice de Donald Trump e candidato à reeleição.
Foi por uma diferença de sete pontos percentuais que Biden venceu Trump no primeiro debate entre os dois. O segundo e último debate será travado na próxima semana se Trump puder comparecer, uma vez que se recupera do vírus que o infectou. Pegar o vírus, segundo ele, foi “uma benção de Deus”.
Divulgada pela rede de televisão CNN no início desta madrugada, a primeira pesquisa sobre o debate entre Kamala e Pence apontou uma vitória da senadora pelo elástico placar de 59% contra 38% de Pence – diferença de 21 pontos percentuais. Se não foi um massacre, foi quase isso, e nada teve a ver com a mosca.
Por pouco mais de dois minutos, uma mosca, certamente de origem chinesa, passeou sobre os cabelos brancos de Pence que não passou recibo – por não tê-la visto ou porque fingiu não vê-la. Como os americanos têm mania de dar nome a tudo, certamente esse será conhecido no futuro como o “debate da mosca”.
Acima de tudo, foi um debate bem educado, à moda antiga, nada que lembrasse o quase não debate entre Trump e Biden marcado pela estupidez do presidente que interrompeu por mais de cem vezes, durante uma hora e meia, a fala do seu adversário, e a do mediador que tentava pôr ordem à discussão.
Pence jogou para os eleitores cativos de Trump. Kamala, para os eleitores ainda indecisos. Houve momentos, principalmente quando a Economia estava em cena, que Pence foi melhor. Mas no resto, Kamala dominou o debate. Ela é carismática, Pence não. Ela fala com a boca e o corpo, ele parece um robô programado.
A senadora teve o cuidado de não ser agressiva, pois entre os eleitores brancos são muitos os que acusam as mulheres negras de serem agressivas. Mas usou palavras duras para criticar Trump e seu vice. Acusou-os de racismo e de subestimar a pandemia que matou mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos.
E repetiu duas vezes, de olho na câmera, a frase que pode ter ficado na memória de muitos que assistiram ao debate:
– Eles sabiam o que estava acontecendo e não lhe contaram.
Bolsonaro detona a Lava Jato e Fux sai em socorro dela
Quem mandou acreditar no ex-capitão…
E agora que Jair Bolsonaro decretou o fim da Lava Jato, o que dirão os que votaram nele por acreditar que em seu governo a Lava Jato seguiria em frente, para o alto, e cada vez mais forte?
Opinião é direito de todo mundo, mas fato é fato. Bolsonaro se elegeu pegando carona na Lava Jato. Fez de Sérgio Moro, o líder da Lava Jato, seu ministro da Justiça (fato).
Até desentender-se com ele por tentar intervir na Polícia Federal, sempre falou bem da Lava Jato. Para ontem, finalmente, anunciar que acabou com a Lava Jato (fato).
Não lhe cabe acabar com a Lava Jato. Quem pode fazê-lo é a Procuradoria-Geral da República. Assim, o anúncio trai sua intenção de ver a Lava Jato no buraco, mas não passa disso.
A Procuradoria virou um puxadinho do Planalto (opinião, embora compartilhada por grande parte dos procuradores). Augusto Aras, seu chefe, quer extinguir a Lava Jato.
Por que Bolsonaro virou um inimigo da Lava Jato? Porque virou um inimigo de Moro e teme que ele possa atrapalhar sua reeleição (fato). Mas não só por isso. Tem mais.
Bolsonaro nasceu para a política dentro do Centrão, cresceu dentro do Centrão, trocou oito vezes de partidos, todos eles do Centrão, e chamou o Centrão para ajudá-lo a governar. São fatos.
É fato: o Centrão está repleto de deputados e senadores denunciados pela Lava Jato. Os que não foram, a detestam. Bolsonaro agrada o Centrão em troca de votos.
Quanto ao que afirmou, que não precisa da Lava Jato porque o seu é um governo sem corrupção, não é fato. É fake – no caso, para ver se diminui a insatisfação dos bolsonaristas órfãos de Moro.
Trump não teve o descaramento de proclamar nas últimas horas que contraiu o Covid-19 de tanto se expor a ele em defesa da saúde dos norte-americanos? Charlatanice pura!
Bolsonaro copia Trump. Mente sem receio. Falsifica fatos. Nega o impossível, porque aposta que sempre haverá uma parcela de público disposta a lhe dar crédito. E haverá, sim.
Sob nova administração, a do ministro Luiz Fux que sucedeu na presidência a Dias Toffoli, aliado de Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal decidiu dar mais um respiro à Lava Jato.
Doravante, caberá ao plenário, formado por 11 ministros, julgar as ações da Lava Jato, não mais à Segunda Turma composta por apenas cinco ministros. Em Fux, Moro sempre confiou.
Celso de Mello, o ministro que sai, faz parte da Segunda Turma, o endereço mais provável do novo ministro que chegará ali para votar como Bolsonaro quiser, e depois ir beber tubaína com ele.
Fux deu um chega pra lá em Bolsonaro, nos seus colegas Gilmar Mendes e Toffoli, padrinhos do ministro que Bolsonaro escolheu, e fixou limites ao aparelhamento do tribunal.
No final de maio último, Bolsonaro quis fechar o Supremo. Agora, quer dominá-lo.
Monica De Bolle: Trump e o vírus
O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições
Há uma semana estava eu escrevendo a coluna antes do primeiro debate entre Trump e Biden. Embora não soubesse que seria o show de deselegância, truculência, e falta de educação que foi, disse que o debate em si pouco mudaria o cenário eleitoral nos EUA por duas razões: muitos eleitores já estavam decididos e a eleição de fato já havia começado – em alguns Estados, é possível votar antes do dia 3 de novembro, assim como se pode enviar o voto por correio. No dia seguinte, quando a coluna foi publicada no jornal, fiz um post-mortem do debate no meu canal do YouTube. Mal sabia que tudo estava prestes a virar de ponta cabeça já que àquela altura – do pouco que se sabe sobre a linha do tempo – Trump já estava infectado. De lá para cá, soubemos que a Casa Branca se tornou um “covidário”, que no evento de nomeação da indicada para a Suprema Corte várias pessoas do círculo íntimo de Trump se infectaram, que o homem inabalável – imagem que adora projetar de si – passou três dias no hospital com o que parece ser um quadro mais grave de covid-19 do que os médicos estão dispostos a revelar.
Seguindo o script do reality show que já tem quase quatro anos de duração, Trump deu alta a si próprio no início da semana e voltou para a Casa Branca ainda no período contagioso e, nas palavras dos próprios médicos, não fora de perigo. Para projetar a imagem de homem forte que venceu o vírus, ainda que o vírus nele ainda esteja sabe-se lá fazendo o quê com o corpo frágil de um idoso com comorbidades, Trump desceu do helicóptero, subiu escadas, tirou a máscara. As imagens do vídeo capturaram com nitidez o esforço que fazia para respirar no momento em que removia a máscara e expunha fotógrafos e outros funcionários da Casa Branca às partículas virais que expelia. Por certo, seus apoiadores viram apenas a imagem intencionada, a do homem e seu vírus, do homem sem seu vírus como que por milagre. Qual o impacto desse teatro para as eleições? A resposta depende, em parte, do vírus.
Como bem sabem os especialistas, Trump ainda está no período crítico, aquele em que a doença pode se agravar a qualquer momento. Até o médico responsável por cuidar do presidente, o mesmo das ofuscações e das meias palavras para a imprensa, foi claro ao dizer que só estará mais tranquilo depois da próxima segunda-feira. Caso o quadro de Trump se agrave antes disso, a bravata terá sido em vão e a campanha do republicano estará definitivamente encerrada. Se for esse o desfecho, o mais provável é que Trump perca para o adversário democrata Joe Biden, sobretudo após as recentes falas sobre a doença e o vírus. Para quem não está acompanhando tão de perto, Trump disse que a covid-19 não é nada a temer – embora tenha matado mais de 210 mil pessoas nos EUA – e voltou a afirmar como fazia em março que a doença não passa de uma gripezinha. Para completar, disse que a população tem que aprender a conviver com o vírus, que a economia não pode parar, e que não é o momento de discutir pacotes de estímulo fiscal como fazia o Congresso antes de sua internação. Se for para dar mais recursos para a economia, enfatizou Trump, isso só ocorrerá depois das eleições.
Ainda que essas palavras o prejudiquem, há outra possibilidade. Recebendo os melhores tratamentos que a medicina de ponta pode oferecer, não é irrazoável que Trump se recupere. Nesse caso, a bravata terá valido a pena. A imagem do homem forte que combateu o vírus e venceu se implantará no imaginário norte-americano que ainda acredita na suposta excepcionalidade do país. A presunção de uma nação imbatível personificada por Trump poderá ameaçar seriamente as chances de Biden, ainda que o comportamento do presidente tenha sido condenável e que a gestão da epidemia tenha sido um desastre. Vejam: o imaginário americano não se move por sentimentalismos ou simpatias à la “facada de Bolsonaro”. O imaginário americano se move pela ideia de heroísmo e invencibilidade. É desse mito que Trump se alimenta para mesmerizar os suscetíveis, e não são poucos os suscetíveis.
O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições. Trata-se agora da interação entre o sistema imune possivelmente turbinado por medicamentos ainda em fase de ensaio clínico e as artimanhas insidiosas do Sars-CoV-2. A política, assim como a economia, jamais dependeu tanto da medicina.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University
Ruy Castro: Trump, a bomba humana
Não sejamos cínicos. O mundo não torceu pela recuperação dele
Milhões perderam seus empregos por causa do coronavírus. Donald Trump não. A pandemia não obrigou a Casa Branca a fechar as portas. Em consequência, Trump continuou batendo o ponto, recebendo o salário e contando com as benesses de seu cargo, inclusive a de ter sua vida salva.
Não sejamos cínicos. Foi com euforia que o mundo recebeu a notícia de que ele caíra vítima da doença que já afetou 35 milhões de pessoas e cuja gravidade sempre negou. Nada de condolências ou preces hipócritas pela sua recuperação. Multidões torceram para que ele passasse pelos mesmos horrores que nossos parentes e amigos, como o de ser entubado, e, quem sabe, se juntasse ao mais de um milhão de pessoas que o vírus levou. Entre outros motivos, para que alguém menos irresponsável tomasse as rédeas nos EUA e interrompesse o nefasto exemplo que Trump dá a governantes beócios.
Daí o encanto com que acompanhamos a batelada de remédios que os médicos bombearam no seu organismo por uma miríade de orifícios. Trump foi recheado com coquetéis de anticorpos sintéticos, antivirais, melatonina, zinco, aspirinas e antiácidos, associados a quilos de drogas heavy metal como dexametasona, remdesivir e REGN-COV 2, enquanto eles o mantinham respirando com jatos de oxigênio capazes de inflar o dirigível Hindenburg. Só não lhe deram cloroquina porque queriam salvá-lo, não matá-lo.
Com tudo isso, não admira que ele tenha levado apenas três dias para ressuscitar, voltar ao trabalho e jogar fora a máscara. O problema agora é: quem vai proteger a Casa Branca da bomba humana que Trump se tornou, despejando perdigotos por onde passa e atingindo colegas, burocratas, seguranças, faxineiros e até os pobres correspondentes?
Trump declarou que se sente melhor hoje do que "há 20 anos". Mentira. Há 20 anos ele estava apalpando mocinhas em público. Agora já não lhe serve de nada fazer isso.
*Ruy Castro é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
‘Economia tem taxas medíocres de investimento’, diz Nelson Tavares Filho
Provável vitória dos democratas nas eleições norte-americanas, ausência de uma política ambiental e investimentos baseados em aumento da dívida pelo governo Bolsonaro são fatores que podem influenciar a economia do país, levando a uma alta da inflação e dos juros
O economista Nelson Tavares Filho, especialista em planejamento estratégico, é enfático ao projetar um cenário preocupante no Brasil. “A economia brasileira vem apresentando taxas medíocres de investimento, 1,35% do PIB”, alerta, em artigo que publicou na 23ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.
Clique aqui e acesse a 23ª edição da revista Política Democrática Online!
Todos os conteúdos da publicação têm acesso gratuito no site da FAP. De acordo com o economista, o problema ocorre porque os gastos correntes inadiáveis veem ocupando o espaço no orçamento. “Inúmeras estatais estão dependendo do orçamento público para pagar suas folhas salariais, sem contrapartida de ofertar um bom serviço público. Mas fechar uma estatal hoje significa subtrair ‘poder’ de um congressista. A base formada pelo governo Bolsonaro irá dificultar muito o ajuste necessário ao Estado brasileiro”, afirma.
Segundo o especialista, um detalhe importante poderá favorecer a apresentação de taxas de crescimento positivas em 2021. “O efeito estatístico causado pela diminuição do PIB em 2020. Outra questão que poderá influir no crescimento é o auxílio a ser pago a camadas mais pobres da população. 65% do crescimento é ocasionado pelos gastos familiares, e este auxílio aumenta o poder de compra dessa população integralmente, pois não possuem condições de poupar”, analisa.
Pelo valor estimado para o PIB (US$ 6,5 trilhões) e do “PIB per capita” (US$ 28 mil) no Brasil, conforme analisa o autor, é fácil deduzir que a empresa aguarda desenvolvimento significativo no longo prazo. “No cenário de curto prazo, com as variáveis mencionadas, o crescimento ocorrerá mais por efeito estatístico e/ou desrespeitando normas e leis que constituem base para um crescimento de longo prazo”, escreve ele.
O economista destaca que não são dois cenários excludentes. “Mas a prevalecer no curto prazo crescimento nas condições explicitadas, mais difícil será a realização do cenário de longo prazo traçado pela empresa”, afirma ele.
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Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem acrescentado pauta própria e muito sensível ao eleitor de direita do país, de acordo com o historiador e professor professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Marcos Sorrilha Pinheiro. “A ênfase na lei e na ordem, sua plataforma preferida na tentativa de alertar a população do país contra os efeitos da campanha de Biden, de maior aproximação com as minorias étnicas”, explica ele, em artigo que publicou na 23ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.
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Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com Pinheiro, dos temas centrais que norteiam a escolha do próximo presidente, cinco despontam com particular importância: pauta étnica, economia, relações com a China, coronavírus e questão climática.
Biden, na avaliação do historiador, parece ter dois pontos seguros a seu favor, ao passo que Trump luta para consolidar seu posicionamento em ao menos dois deles também. Apenas a China está em aberto. “Ambos os candidatos coincidem em que a China é um problema para a América”, analisa o professor da Unesp.
Neste exato momento, segundo Pinheiro, a corrida eleitoral ganha contornos de indecisão. “Após três meses de muitos tumultos em torno da figura de Donald Trump – causados pela derrubada do PIB, pelas mortes causadas pela Covid-19 e pelas manifestações antirracistas –, em que uma vitória esmagadora de Biden parecia se desenhar, o atual presidente se recuperou nas pesquisas, aumentando sua vantagem em Estados ameaçados, como o Texas, e aproximando-se de seu opositor em dois campos de batalha: Flórida e Pensilvânia”, escreve o autor do artigo.
De certa maneira, avalia o professor da Unesp, a economia começa a dar sinais de recuperação e isso pode ser bom para Trump. “Além disso, o aumento das tensões em torno das manifestações étnicas é uma carta que ele mobiliza com frequência, tentando plantar o medo, vendendo a imagem de Biden como se fora a marionete da ala radical do partido, atrelada àqueles movimentos”, diz, para continuar: “Por outro lado, o candidato democrata sai-se bem em temas que são tidos como muito importantes entre os eleitores independentes – a questão climática e a crise do coronavírus – com as quais, estimam, Biden saberá lidar com mais competência”.
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Dorrit Harazim: Tudo suspenso no ar
Com 74 anos e sobrepeso, Trump foi traído pelo vírus que há sete meses teima em negar
Deve ter sido difícil para a Casa Branca, à 1h11 da madrugada da sexta, 2 de outubro, divulgar o que sobrava da agenda de Donald Trump para o resto do dia. Reformatada às pressas pela notícia-bomba de que o presidente testara positivo para o coronavírus, a única atividade mantida foi o seu telefonema de apoio a idosos vulneráveis ao coronavírus. Ironia crudelíssima. Trump poderia ter dado o telefonema a si mesmo.
Com 74 anos de idade e sobrepeso (110 kg), colesterol alto, adepto da hidroxicloroquina, uma internação hospitalar de 2019 jamais explicada e ostentação de relatórios médicos que sempre davam a impressão de ter sido escritos pelo próprio paciente, Trump acabou traído pelo vírus que há sete meses teima em negar. Fosse ele apenas uma fraude de bilionário-ostentação, o problema seria pessoal. Dado o cargo que ocupa, o real estado de saúde do 45º presidente americano é de interesse nacional máximo e consequência global instantânea. Sobretudo quando são dois os vírus em colisão na Casa Branca: o corona e a desinformação sistemática usada pelo governante. Ambos podem se revelar mortais — o primeiro, para a vida humana; o segundo, para a vida democrática.
O resultado positivo do teste de Trump demonstra de forma inequívoca sua incapacidade de proteger a nação que o elegeu — a curva de 208 mil mortos e 7,2 milhões de infectados continua subindo — e de proteger-se de si mesmo.
Nos míseros 30 dias que faltam até a eleição de 3 de novembro — ominoso teste para o atual curso democrático dos EUA —, incertezas, medo e déficit de confiança deverão chegar a extremos. Como fica o funcionamento do país com as lideranças dos três poderes e do mais alto escalão do governo tendo tido contato de primeiro grau (sem máscara nem distanciamento) com Trump ou alguém próximo a ele? Diante do que se sabe sobre a chance de falsos negativos em testes sorológicos, todos deveriam permanecer quarentenados por 14 dias. Dificilmente conseguirão.
De uma hora para outra, a pandemia se tornou real. E, de uma hora para outra, a paciente contagem de falsidades e mentiras criadas pelo presidente — já são mais de 20 mil — deixou de ser vista como trabalho inútil do “Washington Post”. Ela explica a abissal falta de confiança na Casa Branca neste momento crítico. De sintomas inicialmente “leves”, pulou-se em algumas poucas horas à hospitalização do presidente. Como dar crédito a qualquer declaração oficial, seja do chefe da nação, de seu vice , chefe de gabinete, médico, porta-voz, estafe? Sem falar que, excetuando um tuíte madrugal do paciente, não só o país, como as lideranças do Congresso permaneceram sem informação oficial por mais de dez horas.
Sequer se sabe, ao certo, desde quando Trump está efetivamente infectado.
Pela narrativa inicial, ele se contaminou na quarta-feira, ao longo de vários périplos eleitorais — aéreos e terrestres — com sua assessora mais próxima, Hope Hicks, então já sintomática. Trump foi testado na quinta à noite. Contudo é bastante incomum para um paciente de Covid-19 receber resultado positivo já no primeiro dia após ser exposto ao vírus. É mais provável que ele tenha cumprido sua rotina da semana já infectado, mas sem sabê-lo, sempre sem máscara ou distanciamento. Vale registrar que, momentos antes do início do debate-embate de terça-feira, um dos médicos pediu aos convidados republicanos que usassem as máscaras cirúrgicas azuis recebidas. Era uma das regras obrigatórias do evento. Foi ignorada, inclusive pela primeira-dama, que dois dias mais tarde também testaria positivo.
Não foi a única regra atropelada naquele debate ímpar. Trump apostara todas as fichas no seu estilo betoneira. Imaginou triturar o adversário morno, deixando-o confuso e expondo suas fraquezas. Apropriou-se quanto pode dos 90 minutos regulamentares, invadiu o território do mediador, confiou no seu impacto macho tonitruante, insultou, interrompeu. Era mais do que uma questão de estilo, foi sua estratégia. Apesar da fragilidade de Joe Biden, porém, deu tudo mais ou menos errado — a começar pelos 3,8 milhões de dólares arrecadados pela campanha democrata nos primeiros 60 minutos do bate-boca.
Em 2016, durante seu treino com um sparring de debates antes do primeiro confronto mano a mano com Hillary Clinton, Trump foi informado do vazamento da explosiva gravação na qual ele se gabava de conseguir o que quisesse de qualquer mulher — “elas deixam você fazer tudo …agarrá-las pela xoxota… tudo”. Eram tempos mais inocentes, ainda se pensava que a revelação faria naufragar a ambição presidencial daquele meteoro alaranjado. Mas Trump venceu, cimentando sua certeza de impunidade, imunidade e invencibilidade eternas.
De repente, se vê atingido pela impensável possibilidade de derrota eleitoral. Precisaria reverter a tríade de fracassos nesta reta final da campanha — pandemia à solta, economia incerta, consequências legais de suas finanças fraudulentas caso volte a ser cidadão comum. Mas tempo e saúde para incendiar a eleição estão minguando.
“As regras são para os bobos, e eu sou esperto”, gostava de proclamar o presidente para alegria de seus seguidores. Não neste caso. Em linguagem que lhe cairia bem, “perdeu, mané”. A pandemia foi mais esperta.
Raul Jungmann: Qual o projeto nacional para a Amazônia?
No primeiro debate nacional com o Presidente Trump, o candidato democrata Joe Biden disse que amealharia 20 bilhões de dólares para em conjunto com outros países “resolver” (sic) o problema do desmatamento da Amazônia. Falou bobagem, naquele que foi um dos piores debates televisivos já vistos.
A soberania do Brasil sobre o seu território é intocável, inegociável e não está em discussão ou aberta a quaisquer negociações. Desde o início do fim do neo-colonialismo, após a 1ª guerra mundial, o direito internacional não admite o mandato de outros países sobre nações e territórios soberanos – caso do Brasil.
Já após a II Grande Guerra, alguns temas e questões ganharam status de direito internacional positivo, como é o caso do fundo dos oceanos, espaço, o Ártico e Antártida, refugiados e direitos humanos, em graus variados de extensão e adimplência.
Mesmo o direito internacional que sustenta a imposição da paz e/ou a estabilidade das nações pela ONU, não incide sobre a tutela do território das nações em conflito ou em guerra civil. Entretanto, é inequívoco, o direito internacional tem evoluído, sobretudo numa era de globalização acelerada, para a mitigação, compartilhamento e/ou responsabilização da soberania das nações, em temas como, por exemplo, o direito das gentes e o meio ambiente.
Em especial nesse último caso, e no que toca as mudanças climáticas, a internacionalização do direito e as responsabilidades comuns, ainda que assimétricas, têm sido progressivas e inexoráveis.
A forma que temos de harmonizar essa tendência global com a nossa soberania é assumirmos, integralmente, nossa responsabilidade pela preservação da Amazônia, que é impossível de ser assegurada sem um projeto de desenvolvimento sustentável integral. O que é o mesmo que dizer, sem desenvolvimento sustentável não há como preservar a Amazônia.
A questão de fundo é que, entre nós, não há consenso sobre que projeto, que desenvolvimento sustentável será esse. O que existe são projetos em disputa, sem que haja uma estratégia nacional, um rumo definido para a região. Enquanto não definirmos o que queremos para a Amazônia, é preciso e urgente conter e reprimir a sua devastação.
Toda ajuda e apoio externos, desde que por nós definidos em razão dos nossos interesses e soberania, devem ser bem-vindos. Igualmente, é inequívoco que a exploração desenfreada de reservas indígenas e/ou ambientais e o desmatamento em curso desservem à nossa soberania e aos interesses do Brasil.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
César Felício: Relações carnais
Eleição nos EUA mexe no jogo político brasileiro
Se alguma evidência ainda precisava ser apresentada para comprovar a extrema importância da eleição americana no processo político brasileira, essa necessidade desapareceu com o debate da última terça-feira entre Joe Biden e Donald Trump.
Sem ser provocado, Biden de moto próprio afirmou que faria uma proposta para o Brasil na área ambiental, que mais soa a um ultimato. Ou Bolsonaro aceita US$ 20 bilhões de ajuda para preservar a Floresta Amazônica, ou arcará com consequências econômicas.
Foi um aceno de Biden à ala mais radical do Partido Democrata, que precisa ser compensada de alguma maneira por todos os gestos centristas já feitos pelo candidato. Mas sinalizou para um isolamento maior do governo brasileiro no futuro. Será o fim das relações carnais entre Brasil e Estados Unidos, como o próprio Bolsonaro deixou claro ao refutar no dia seguinte a proposta de “plata o plomo” feita pelo democrata. Afora Rússia e China, o Brasil foi o único país mencionado no debate.
A reeleição de Trump empoderaria o bolsonarismo não pelo que as relações com os Estados Unidos poderiam proporcionar ao país do ponto de vista comercial, econômico. Há uma sintonia política que não passa por isso, e motiva o Brasil a se submeter a uma equação desigual, em que o alinhamento brasileiro claramente não tem retribuição.
Por Trump, o Brasil aceita condições menos favorecidas no comércio de etanol e o chanceler se abala até Roraima para servir de escada a um gesto político do secretário de Estado.
A similaridade entre Trump e Bolsonaro é assustadora, como ficou nítido no debate. Trump demonstrou na lancinante hora e meia de refrega com Biden que não titubeia em deixar no ar o risco de uma ruptura institucional, caso não consiga permanecer no poder. Também exaltou as forças armadas e policiais. Militarizou a pandemia, ao dizer que vai acionar a tropa para distribuir doses da vacina contra Covid-19.
Bateu e rebateu na tecla do anticomunismo. Agrediu a imprensa. Recusou-se a condenar a extrema-direita. Responsabilizou os governadores por dois males que afligem os Estados Unidos: a desaceleração da economia, supostamente produto de um fechamento exagerado de atividades por conta da pandemia e a escalada da insegurança,
Para completar, colocou em dúvida a qualidade do sistema de votação no seu país e flertou com o negacionismo sanitário, ao relativizar a importância do uso de equipamentos individuais de proteção, como a máscara.
Torna-se difícil citar pelo menos uma diferença entre ambos. Talvez seja possível dizer que o discurso religioso, tão preponderante na retórica bolsonarista, não marcou a fala de Trump na noite da terça-feira. Não houve as citações de João, capítulo 8, versículo 32.
Bolsonaro converteu-se, de certo modo, em uma franquia de Trump. Um dos arquitetos da vitória republicana em 2016, Steve Bannon, também foi um conselheiro na eleição do presidente brasileiro dois anos depois.
Grandes influenciadores bolsonaristas nas redes sociais fazem parte do ramo endinheirado da colônia brasileira no país, que atua nos setores financeiro e imobiliário. Estes brasileiros estão profundamente vinculados a estrategistas da direita radical americana. Olavo de Carvalho, de longe o principal agitador cultural, não tem este tipo de ligação, mas de seu bunker no sul dos Estados Unidos recebe a influência da direita americana e dá lógica e coerência interna para todo o discurso extremista brasileiro.
É para os Estados Unidos que correm os bolsonaristas que, por um motivo ou por outro, estão preocupados com a reação da Justiça brasileira às suas demasias. Não à toa Bolsonaro quis nomear um operador político- seu próprio filho, Eduardo- para ser embaixador no País. Ficou óbvio que o que guia o bilateralismo americano não é comércio e economia. É ideologia.
Há uma mesma faixa. Trump e Bolsonaro estão na mesma frequência modulada. O possível descarrilamento nos Estados Unidos da estrada da direita radical abre perspectivas perturbadoras para políticos como o brasileiro.
A eleição paulistana, como mostra a pesquisa da XP/Ipespe divulgada com exclusividade pelo Valor, mostra que Celso Russomanno nunca teve uma chance tão boa de chegar ao segundo turno como agora. Está colado ao presidente Jair Bolsonaro, que conta com 28% de aprovação na cidade, e se beneficia do recall das eleições passadas, que o situam acima do patamar de 20%. Precisamente 24% no XP/Ipespe. O desafio é o que acontece depois. A posição de Russomanno para disputar o segundo turno é ruim.
Bruno Covas tem 21% na pesquisa. Se enfrentar o tucano no segundo turno, como tudo no momento indica, será difícil para Russomanno herdar os votos da esquerda. Boulos, Tatto, Orlando Silva,, Vera Lúcia e Marina Helou no momento somam 15%. Covas consegue 37% na simulação de segundo turno. O voto do centrista Marcio França, por ora, parece estar dividido, mas pende mais para o candidato bolsonarista. Russomanno obtém 35% no embate direto contra Covas. A soma do seu caudal com os 6% de Arthur do Val, Matarazzo, Levy Fidelix e Joice Hasselman e Felipe Sabará, todos matizes de direita, agrega 30%.
Russomanno só consegue vantagem clara se enfrentar Boulos no segundo turno, porque aí é possível restabelecer o vigorosíssimo discurso antiesquerdista. Seria a repetição do cenário do segundo turno carioca em 2016, em que Crivella teve a sorte de chegar ao segundo turno contra o único candidato que conseguia sobrepujar.
Um levantamento no mês de setembro com a análise de 31,5 milhões de posts no Twitter e no Facebook, feito pela consultoria ponto Map, indica que o debate nas redes está longe da zona de conforto bolsonarista.
A saúde lidera as menções, com 17% de participação. Menos debatida, a Economia deu um salto de 5% para 9% das menções. E não se fala mais tanto de auxílio emergencial, mas de desemprego, inflação dos alimentos e perda de renda.
Bolsonaro não tem porque se envolver profundamente em uma eleição que corre o risco de perder. É bom Russomanno torcer para Boulos.