Eleições EUA
Merval Pereira: Perna curta
A decisão das três redes de televisão abertas dos Estados Unidos - ABC, CBS e NBC - de tirar do ar o pronunciamento do presidente Donald Trump na Casa Branca acusando a apuração da eleição presidencial de fraudulenta sem apresentar a menor prova foi drástica, mas com certeza já havia sido combinada entre as redes para o caso de uma declaração estapafúrdia colocar em risco a credibilidade da eleição. Aconteceu quando o presidente já era um “pato manco”, como se define um político em fim de mandato.
A drástica decisão tem uma explicação: o presidente Trump estava colocando em risco a segurança nacional e a dos cidadãos, ao dizer que estava sendo roubado, incentivando protestos de seus eleitores. O temor de vandalismo que levou diversas cidades dos Estados Unidos a proteger suas lojas e casas com tapumes, inclusive Washington com a Casa Branca, numa triste imagem espalhada pelo mundo, motivou a atitude das redes de televisão, assumindo um papel delicado, o de censurar a palavra de um presidente da República em pronunciamento oficial na Casa Branca.
Há uma série de erros a partir daí, a começar pelo fato de que Trump não poderia usar a Casa Branca para fazer proselitismo político em meio à apuração da eleição. Foi uma atitude clara de pressão sobre os estados em que perdia, além de passar adiante boatos e rumores que ganham ares de verdade saindo da boca do presidente da República.
Trump mentiu, como sempre, no pronunciamento que provocou a decisão polêmica das redes de televisão. Mas sempre foi assim, e a imprensa nunca tomou uma decisão tão definitiva como essa. Eu prefiro uma posição mais razoável, como a CNN Internacional ou a Fox fizeram: deixá-lo mentir, e, em seguida, denunciar a mentira. Mentira tem perna curta.
Não cabe aos meios de comunicação censurar o presidente da República, por mais baixo e vulgar que ele seja. No caso em questão, seria impossível não transmitir, pois, embora desconfiassem qual seria sua posição, nem os jornalistas nem os políticos tinham certeza de quão longe ele iria.
Aqui no Brasil, pôde-se tomar a decisão de parar de acompanhar as falas do presidente Bolsonaro na porta do Palácio do Planalto pelas manhãs porque ele assumiu uma atitude de menosprezo pelo trabalho dos jornalistas, jogando-os contra seus seguidores mais fanáticos que ali compareciam para pedir favores ou simplesmente tirar uma foto com ele. Bolsonaro segregou os jornalistas em um curral, e incentivava seus seguidores a criticá-los, o que deixou de ser um acompanhamento da atividade do presidente para se transformar em um circo político contra o jornalismo independente. Além do mais, não eram pronunciamentos oficiais, mas conversas informais com seus seguidores.
Os EUA não têm tribunais regionais, nem um tribunal superior para lidar com as questões das campanhas eleitorais, e mais uma vez os fatos demonstram que é melhor tê-los. O que parecia um exagero de nosso sistema judicial mostrou-se muito útil, sobretudo em situações como a que a apuração da corrida presidencial nos Estados Unidos chegou.
Como não há um órgão centralizador para organizar os recursos eleitorais, cada estado terá que lidar de maneira diferente com os recursos de Donald Trump em seu próprio sistema judicial. E cada estado tem legislação diferente sobre a eleição e seus desdobramentos. Depois de 2000, alguns estados decidiram recontar os votos automaticamente se a diferença for de menos de 1%. Outros recontam se a diferença for de 0,5%. Outros só recontam se a Justiça mandar.
Os recursos são encaminhados à justiça de primeira instância, e alguns podem subir até a Suprema Corte, dependendo da situação. Por isso, ainda vai demorar alguns dias para Joe Biden ser anunciado oficialmente como presidente dos Estados Unidos. A pressão sobre Trump já está muito grande, por parte de assessores mais corajosos e de políticos republicanos.
Tentam convencê-lo de que o Partido Republicano teve uma eleição vitoriosa, podendo manter a maioria do Senado e aumentando o número de votos, tudo isso devido à sua liderança política. O próprio Trump recebeu mais votos que Barack Obama quando foi eleito, aumentando sua votação em relação a 2016.
Mas, em vez de sair como um grande líder político e preparar o partido para retomar o poder em 2024, Trump pode perder força política interna depois das atitudes e declarações irresponsáveis, que andaram incomodando no interior do partido Republicano, embora mantenha a força popular.
Marco Aurélio Nogueira: Uma vitória para resgatar a democracia
Se confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo
O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral. É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.
Hoje em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.
As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.
O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.
O personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente, mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no Facebook e no Instagram. É um poder de fogo não desprezível, que lança torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
Chega a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão mesquinha e reacionária.
Se confirmada, a vitória do democrata Joe Biden mudará o estado de espírito do mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as águas subirem e o vapor aumentar.
Os EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado. Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados eleitorais.
A judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo, reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo, no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018. A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal, implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de direitos e políticas sociais. Tudo contra o “sistema”, mas por dentro dele, usando-o contra a democracia.
O discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.
A derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade norte-americana. Será preciso acompanhar para ver como ela repercutirá no Partido Republicano e como será processada pela população. Perde a pessoa, não necessariamente o movimento por ele representado e por ele ativado. Também não é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo. Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do universo.
A presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”, manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um democrata pragmático e que seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira e levar o ministério de Relações Exteriores a corrigir o discurso e buscar um realinhamento. Poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou no País.
A vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser ótima para o Brasil.
Terá impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer, há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação. Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até 2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato em termos de articulação. Sem que se forme uma rede sólida de entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e socialdemocratas o processo político seguirá curso errático e tenderá a se inclinar em sentido não democrático.
Agora, é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.
Bolsonaro está obrigado a telefonar para Biden e lhe desejar sorte. O presidente brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.
Alon Feuerwerker: Vai e volta
A polarização nas eleições americanas é permanente, e facilitada por um fato singelo. Ali só dois partidos disputam o poder. É como se todas as eleições fossem um segundo turno. Há situações de candidatos independentes, e mesmo de certo partido lançar mais de um candidato. Mas são residuais, e vão para um segundo turno quando ninguém alcança metade mais um.
Joe Biden é um candidato dito moderado, apoiado por uma ampla aliança que vai do dito liberalismo progressista (ou progressismo liberal, conforme a vontade do freguês) a uma esquerda de raiz. Igualmente do outro lado. Donald Trump é apoiado por uma ampla gama que vai da direita que não se envergonha de si mesma a um conservadoriamo mais liberal (ou um liberalismo mais conservador).
A isso misturam-se recortes de classe, ideologia, gênero e raça. Além da condução errática e desastrosa da Covid, Trump poderá debitar suas dificuldades eleitorais à condução que deu na trágica morte de George Floyd. Acessoriamente, os resultados no Arizona certamente refletem seu tratamento desrespeitoso a John McCain. Tudo que vai, volta.
Descasamento
Enquanto estamos entretidos com o vai-não vai das eleições americanas, nossos problemas permanecem estacionados aguardando solução. Uma delas é alguém dizer concretamente, e de modo factível, como o governo vai cumprir o teto de gastos constitucional em 2021.
O buraco primário em 2020 ficará em mais ou menos dez vezes o previsto no orçamento federal, por causa dos gastos com a pandemia. Eles evitaram uma catástrofe econômica mas deixam um problema: como recolocar o gênio dentro da garrafa assim de repente?
Agora um estudo acrescenta algo novo. Por causa do descasamento entre o índice previsto de correção das despesas e a taxa real de inflação, só por causa disso, o governo precisará cortar uns 20 bilhões de reais do orçamento (leia). Que aliás aguarda a solução da pendenga entre o presidente da Câmara e o centrão.
Em matéria de tecnologia para rolar problemas com a barriga, as exóticas apurações da eleição nos Estados Unidos não dão nem para o começo se confrontadas com o know-how desenvolvido por aqui no quesito de deixar as coisas para depois.
Realidade brincalhona
A principal poêmica sobre as eleições de terça-feira nos Estados Unidos se dá em torno do voto antecipado e do voto pelo correio. Promete pano para manga e uma novela de vários capítulos. O número cresceu exponencialmente este ano por causa do medo da Covid-19.
Ali quem quis votar votou, de um jeito ou de outro. Já por aqui, o único jeito de dar o voto nas eleições municipais deste mês será ir à seção eleitoral e apertar os botões na maquininha. É muito mais seguro no aspecto eleitoral, um modelo a ser copiado, mas exigirá rigor nas medidas sanitárias.
Cada um com seu sistema e seus problemas. Ali, está a confusão a que todos assistimos. Aqui, corremos o risco de um maior absenteísmo, gente deixando de votar, com medo no SARS-CoV-2. As pesquisas mostram que pode ser quase metade do eleitorado.
Mas é melhor esperar para ver antes de concluir qualquer coisa apressadamente. A realidade costuma ser brincalhona com as conclusões muito antecipadas. Eleição após eleição, essa é uma verdade que sobrevive bem com o tempo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Demétrio Magnoli: Regra de ouro 'um eleitor, um voto' é estranha à democracia dos EUA
Adotar a fórmula clássica exigiria uma refundação tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil
Caos. Na noite fatídica, 3N, apurações congelaram à espera da contagem de votos enviados por correio em estados decisivos, enquanto Trump declarava vitória na guerra ainda incerta. República de bananas: o presidente contestava a apuração de milhões dessas cédulas, sugerindo a declaração de um vencedor antes da contagem de todos os votos.
Aritmética ocultista. Calculava-se, alta madrugada, as probabilidades de empate, dependentes da repartição dos delegados nos dissidentes Maine e em Nebraska, que fogem à regra do “vencedor leva tudo”. Mais uma vez, como há 20 anos, o sufrágio desviava-se rumo à tortuosa estrada vicinal dos tribunais. E, novamente, como em 2000 e 2016, erguia-se o espectro da cisão entre o voto popular e o Colégio Eleitoral.
Um eleitor, um voto. A regra de ouro das democracias é estranha à democracia americana. No seu lugar, inventou-se a regra do sufrágio estadual ponderado pelo sistema do Colégio Eleitoral. O republicano George W. Bush triunfou, em 2000, por 271 a 266, mesmo perdendo por meio milhão de votos. Trump venceu, em 2016, por 304 a 227, perdendo por quase três milhões de votos.
História. Os EUA nasceram, em 1776, como uma confederação das antigas colônias britânicas, transformando-se na atual federação com a Constituição de 1787. Os federalistas articularam um pacto entre as elites estaduais que assegurava a cada uma delas as autonomias de tributar, impor taxas alfandegárias e conservar o trabalho escravo. O artigo 2º da Constituição estabeleceu o Colégio Eleitoral, concedendo às assembleias estaduais a prerrogativa de escolher os delegados que elegem o presidente.
Nas décadas seguintes, universalizou-se a prática de selecionar os delegados pelo voto popular estadual e, em 1836, generalizou-se a regra do “vencedor leva tudo”.
Filosofia. A democracia é a vontade da maioria? Mais ou menos: democracia é a vontade majoritária temperada por instituições que protegem valores perenes e os direitos da minoria. O Colégio Eleitoral foi justificado como vacina contra o populismo, a tirania da maioria. O argumento corre paralelo ao outro, anacrônico e cada vez menos invocado, da preservação da autonomia estadual e das liberdades dos estados menos populosos. Há, porém, democracia quando o voto nacional majoritário pode ser ignorado seguidamente?
Reforma. Há duas décadas, desde o trauma da Flórida, crescem os clamores pela eliminação do Colégio Eleitoral. Um eleitor, um voto —a fórmula clássica exigiria uma refundação constitucional dos EUA tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil, entre 1865 e 1869, com as três emendas que aboliram a escravatura, definiram a cidadania e proclamaram o direito universal de voto. Um caminho alternativo, proposto por diversos estados, é a reforma do próprio Colégio Eleitoral pelo estabelecimento da distribuição proporcional de delegados. A via reformista seria uma ruptura com a tradição, mas cabe na moldura da Constituição.
Reforma impossível. A substituição da regra do “vencedor leva tudo” pela proporcionalidade converteria o Colégio Eleitoral num espelho levemente distorcido do voto popular. As mudanças demográficas dos EUA impulsionadas pela expansão das grandes cidades e pelo crescimento relativo da minoria latina tendem a inclinar fortemente o voto popular para o lado dos democratas. Nesse cenário, é difícil imaginar a possibilidade de triunfos republicanos num hipotético Colégio Eleitoral proporcional. Os estados republicanos não renunciarão à tradição de quase dois séculos.
Guerra civil. Os EUA têm apenas dois partidos que contam. O voto popular direto ou um simulacro dele, pelo Colégio Eleitoral proporcional, significariam a virtual eliminação da perspectiva de poder de um deles. Partido único? A nação desceria o abismo de uma nova guerra civil antes disso.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Míriam Leitão: Tempo suspenso e a democracia
O tempo parou nos Estados Unidos. O tempo parou no mundo. Por quase dois dias, intermináveis horas, os ponteiros marcando o número de votos dos candidatos ficaram congelados em 253 e 214, enquanto a apuração seguia em câmera lenta em cinco decisivos estados. Foi impossível não ser capturado por esse cipoal de regras estaduais, de tendências políticas de condados, do debate sobre os votos pelo correio ou presenciais. Toda eleição americana atrai atenção, esta parece ser uma decisão sobre o fim do mundo. A mais consequential eleição do nosso tempo, como definiu a revista “Economist”. O que a torna tão dramática atende pelo nome de Donald Trump.
Trump está disposto a ser até o fim um perigo para a democracia americana. Num discurso patético e criminoso, disse que a eleição está sendo roubada e que vai à Suprema Corte. Ele escalou a guerra jurídica, aumentou o tom das acusações de fraudes, sem qualquer evidência, continuou corroendo a credibilidade das instituições junto aos seus eleitores. Quanto mais o candidato democrata Joe Biden foi ampliando suas chances, mais Trump elevava sua reação, dando trabalho ao Twitter de ir retirando seus conteúdos com a explicação de que eles desinformavam sobre a eleição e o processo cívico. Quando alguém poderia imaginar uma rede social tendo que eliminar conteúdo de um presidente dos Estados Unidos por ele estar atacando o processo cívico de uma eleição?
As principais lideranças republicanas ficaram em silêncio. A má notícia é que não discordaram de Trump, a boa é que não fizeram coro com as suas alegações de fraude. O que é um sinal antecipado do que acontecerá quando ele sair da Casa Branca dentro de 75 dias. O poder que o aparato da presidência americana dá ao titular do salão oval é enorme, mas se esvai instantaneamente. Aos seus ex-ocupantes concede apenas influência e prestígio e na medida dos seus méritos.
O sistema do colégio eleitoral é obviamente disfuncional. As regras, criadas num tempo de representação limitada, teriam a virtude de impedir outsiders, segundo seus defensores. Desta forma, a democracia americana continuaria no seu movimento pendular entre os dois grandes partidos, blindado contra aventureiros. Ninguém mais pode dizer isso depois de Donald Trump, que despencou de um reality show de má qualidade direto para a Casa Branca. Nos últimos quatro anos atentou diariamente contra as bases da democracia americana, misturou os interesses e bens públicos com seus negócios privados, quebrou todas as regras de conduta que um chefe de Estado de país democrático deve seguir. Mentiu de maneira tão compulsiva e doentia que sua presidência não pode ser entendida pelos manuais de ciência política, mas sim pelos tratados de medicina ou por códigos penais.
Por isso, as falas de Joe Biden dão uma sensação de alívio. Elas são normais. Ontem, ele disse que o voto é sagrado, que todos precisam ser contados, que através do voto as pessoas expressam sua vontade. “É a vontade dos eleitores, e de ninguém mais, que escolhe o presidente dos Estados Unidos.” Biden é desprovido de carisma. Não tem o apelo magnético de um Barack Obama. Mas depois dessa tempestade de dissonâncias que tem sido a presidência Trump, seu tom monocórdico soa como uma harmonia.
Enquanto os votos eram contados numa lentidão enervante, o mundo teve que se informar sobre cada particularidade da geografia americana. Omaha, o condado de Nebraska dono de um voto, entrou no mapa da imprensa de vários países. Nevada parecia o centro do mundo na noite de quarta-feira, mas aí o estado decidiu suspender a contagem e ir dormir com os seus seis votos parados no ar. Na quinta de manhã, houve o “dilema no deserto”, segundo escreveu o “Financial Times”, na explicação sobre os 11 votos do Arizona que entraram e saíram da conta. No começo da tarde, Geórgia estava em todas as mentes. No fim do dia todas as calculadoras voltaram-se para o ponto inicial da República nascida das 13 colônias: Pensilvânia e seus 20 votos que teriam o poder de encerrar a longa agonia. Nunca a expressão “cada voto conta” fez tanto sentido. Foi assim que o planeta passou as horas paradas desta semana, enquanto se decidia o futuro da democracia.
Ruy Castro: Manual de trampolinagem
Carbono de Trump, Bolsonaro está atento às lições do mestre da trapaça política
Em 1983, o colunista Zózimo Barrozo do Amaral noticiou que o empresário americano Donald Trump e o libanês-brasileiro Naji Nahas estavam se associando numa empreitada. A firma ainda não tinha nome. Zózimo, conhecedor das vísceras da dupla e pela eufonia de seus nomes, sugeriu: "Trampolinagem". Você sabe: golpe, mentira, trapaça.
Era 1983, lembre-se. Seis anos depois, em 1989, os negócios de Naji Nahas quebraram a Bolsa de Valores do Rio. Ela nunca mais voltou a existir. E, agora, ao tentar ganhar uma eleição no grito, Donald Trump pode estar quebrando a espinha dos EUA.
Em Brasília, do banquinho onde se senta sobre as traseiras e saliva ao ouvir a voz do dono, Jair Bolsonaro acompanha, temeroso e extasiado, a eleição americana. Por um lado, o resultado das urnas o assusta --é uma amostra do que também pode esperá-lo por aqui, embora ele, precavido, esteja dedicando todo o seu primeiro mandato a fazer campanha com dinheiro público para assegurar um segundo mandato. Por outro, está recebendo uma aula de trampolinagem eleitoral, à base de coices na democracia.
Não é que Trump e Bolsonaro sejam contra a alternância do poder. Eles gostaram muito quando chegaram a ele pela via eleitoral e tiveram suas posses asseguradas pelos antecessores, com votos de boa sorte dos adversários que derrotaram. Só que, por seus atos no exercício do poder, não podem mais se dar ao luxo de largá-lo —para não serem processados por crimes contra as instituições, a inteligência e a vida.
Alguém ainda se lembra do papel carbono? Servia para se copiar um texto escrito à mão ou à máquina e, como só existia em função de um original, era usado uma vez e logo descartado, embolado e atirado à cesta. Bolsonaro é um reles carbono de Trump e, com o original em grave perigo, precisará copiar também as apostilas do pós-doc em trampolinagem que Trump está oferecendo.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Hélio Schwartsman: O que deu errado?
Trump driblou os caciques para ser indicado pelos republicanos à Presidência
Donald Trump não perdeu de lavada. O que isso diz sobre os EUA em particular e sobre o mundo em geral? Não faltavam motivos para votar contra o presidente americano. Para começo de conversa, ele é um mentiroso compulsivo que não tem o menor respeito por minorias nem pelas instituições, incluindo a própria democracia.
Como se não bastasse, sua gestão foi um fracasso frente à pandemia de Covid-19, tendo transformado os EUA num dos países mais mortíferos do planeta. A economia, que poderia ser uma razão plausível para votar em Trump, ia bem até a chegada do vírus, mas, desde então, entrou em forte recessão.
Em tempos normais, bastaria um desses fatores para arrasar qualquer tentativa de reeleição e afundar o partido que a patrocinasse. Mas não estamos em tempos normais nem lidando com um candidato normal. Trump foi um postulante competitivo, e o Partido Republicano não foi mal no pleito, sendo grandes as chances de conservar maioria no Senado e até de ampliar suas cadeiras na Câmara. Como é possível?
Uma das características da atual leva de líderes populistas é que eles parecem ter o dom de levar eleitores a desapegar-se de fatos e da ideia, tão central para a democracia, de punir governantes por maus resultados.
A pergunta relevante, então, é como um sujeito com as características de Trump, tão pouco afeitas à tradição do presidencialismo americano, conseguiu chegar à Casa Branca?
Cada país tem seu conjunto de salvaguardas para impedir que políticos muito controversos conquistem o poder. Em presidencialismos mais modernos, há o segundo turno. Deu errado no Brasil, mas funcionou na França.
Nos EUA, a função de "gatekeeper" cabe aos partidos políticos. O sistema falhou quando uma figura como Trump driblou os caciques e conseguiu a indicação dos republicanos para disputar a Presidência em 2016. Já há quem fale que ele pode voltar em 2024.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai enfrentar furacão de problemas quando voltar das férias
Eleições nos EUA e aqui permitem que governo ignore o furacão de problemas que virá
Faz semanas, Jair Bolsonaro está em férias do seu desgoverno. Quer dizer, não tem sido nem ao menos obrigado a deixar de tomar decisões sobre assuntos cruciais ou ignorá-los, que é o seu padrão habitual de conduta.
O mundo está distraído pela situação horrorosa dos Estados Unidos e os parlamentares brasileiros estão ocupados com eleições municipais e de conchavos para a escolha do comando do Congresso em 2021 e de novos ministros. Nas votações que ainda acontecem, deputados e senadores fazem mais ou menos o que querem.
A folga vai acabar. A distração maior pode passar, caso os Estados Unidos não entrem em convulsão. Daqui a dois domingos, no dia 15, acaba a eleição municipal na maior parte do país, embora restem algumas segundas rodadas.
Então, haverá problemas a resolver, como o Orçamento de 2021; como manter (ou não) o teto de gastos, o auxílio para os muitos pobres extras que a calamidade econômica e sanitária deixará, para nem falar de uma política racional de vacinação, se houver vacina (mais improvável ainda é que haja razão). Há mais, mas passemos, por ora.
Nesta semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), disse o seguinte: “Neste momento pós-pandemia, o que vai ficar: uma dívida muito alta, uma pressão muito grande, um desemprego batendo recorde, a inflação voltando com força, o Orçamento público uma incógnita para todos nós. A gente não sabe o que o governo quer, o que o governo vai propor”.
Certo ou não, é o que Maia pensa e ouve de economistas e empresários maiores e mais preocupados com a desordem do governo.
Enquanto isso, Bolsonaro viaja, como de costume. No interior de Alagoas, elogiou Fernando Collor, outra amizade presidencial que agrega ao seu círculo, depois de Michel Temer. Do que tratou nesse minicomício? De paranoias e mistificações. Diz que vai apoiar uma emenda constitucional para obrigar a impressão de votos nas eleições; insinua que há uma conspiração no mundo com o objetivo de roubar as terras do Brasil.
No mais tardar a partir de dezembro, e já será muito tarde, Bolsonaro teria de tomar decisões duras: auxílio emergencial ou renda básica; algum meio de manter o teto de gastos e ao mesmo tempo arrumar recursos para que o governo ainda funcione, o que vai exigir algum conflito com servidores, por exemplo.
Pode também deixar o teto de gastos cair, sem mais, e partir para a ignorância, com tumulto financeiro e ruína progressiva. Pode ainda simplesmente fazer o arrocho mais cru, apaziguar os ânimos nos mercados, não fazer mais nada e tentar manter a popularidade restante no gogó e no delírio, com votos de papel e outras sandices e conversas lunáticas. Como se vê, as alternativas não soam bem.
Supondo que saia das suas férias eternas e tome alguma decisão mínima de governo, teria ainda de lidar com “reformas”. Nos subterrâneos, a tributária está se tornando uma disputa cada vez mais amarga entre setores empresariais, por exemplo, e o governo não tem plano algum por ora a não ser o imposto morto-vivo, a CPMF, segundo seu próprio criador, Paulo Guedes.
A política internacional (eleição nos EUA) pode causar ainda mais problema, assim como a polícia nacional (acusação de roubança contra Flávio Bolsonaro). Por ruins que sejam, a curto prazo são questões menores perto daquelas que Bolsonaro precisará, em tese, enfrentar e que envolvem economia, gasto público, a fome de milhões e seu prestígio. Mesmo que fizer o melhor possível (hum), vai sair queimado.
César Felício: Turbulência em qualquer cenário
Eleição americana pode radicalizar o bolsonarismo
A próxima Presidência americana trará consequências para o bolsonarismo no Brasil, em qualquer cenário. A vitória de Bolsonaro em 2018 decorreu de vários fatores e um deles foi a ascensão da direita nos Estados Unidos, alavancada, sobretudo, pela habilidade no uso de redes sociais.
Até o momento em que essa coluna é escrita, não há certeza sobre quem estará na Casa Branca a partir de janeiro do próximo ano. Tenha o desfecho que tiver a contenda entre republicanos e democratas, Donald Trump pode ter cruzado uma linha vermelha, ao buscar o Judiciário para tentar se manter no poder.
Se reeleito em um pleito decidido na Suprema Corte, com intervenções judiciais não apenas em um Estado, como se deu na Flórida em 2000, durante a eleição presidencial de George W.Bush, o presidente atual tende a ser muito contestado nas ruas.
Terá um déficit de legitimidade insanável que pode desencadear uma radicalização, com reflexos no Brasil.
Caso seja derrotado, Trump planta a semente de uma possível candidatura presidencial em 2024 - ele estará legalmente habilitado a fazê-lo - e conduzirá um exército de apoiadores que passará a descrer do sistema eleitoral como solução política. As tribos de Trump e de Bolsonaro se confundem.
Um contingente grande dos influenciadores digitais mais duros do conservadorismo brasileiro está nos Estados Unidos. A começar do mais famoso deles, Olavo de Carvalho.
A extrema-direita brasileira rompeu o casulo graças a um movimento que veio de fora para dentro. Bolsonaro pessoalmente se empenhou em fazer um amálgama entre a política brasileira e a americana, tarefa da qual Eduardo Bolsonaro foi o principal operador.
Embaixador do Brasil nos Estados Unidos que foi sem nunca ter sido, patrono do primeiro congresso brasileiro do CPAC, o evento mais importante do conservadorismo americano, o deputado está aí para demonstrar quem é matriz e filial nesse processo. Não há dúvidas de que a disputa americana levou incerteza ao bolsonarismo sobre o que o destino lhes reserva na eleição brasileira de 2022.
“A esquerda é bem organizada em nível mundial. Por isso é importante acompanhar as eleições nos Estados Unidos. O que acontece lá pode ser repetir aqui”, escreveu no Twitter anteontem, apreensivo. Um aliado seu, Daniel Silveira (PSL-RJ), foi além, na mesma rede social. “Isso mostra o tamanho do perigo e o potencial do inimigo que enfrentamos. Aqui no Brasil não será diferente em 2022 para tentar retirar o presidente Bolsonaro do governo”.
Assim como Trump está fazendo nos Estados Unidos, se a coisa apertar, entrará no radar bolsonarista de pronto a contestação de resultados eleitorais, talvez por meio de uma judicialização.
Como indicou no Twitter outro aliado, o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), é de se esperar mais questionamentos ao sistema brasileiro de voto eletrônico, e o aumento de fabulações sobre possíveis fraudes na eleição que obrigou Bolsonaro a disputar segundo turno, há dois anos: “Se por lá fazem isso com cédulas, imagino o que acontecerá aqui em 2022. Afinal por aqui usamos a tecnologia, sabidamente manipulável, com um agravante, as máquinas não são auditáveis”.
Se Biden for o eleito, deve haver de início um grande movimento do presidente democrata em relação a posições mais centristas.
Como comentou o empresário e cientista político Jared Cohen, convidado a apresentar uma palestra ontem em evento do Banco Itaú, Biden será levado ao pragmatismo para impedir que a maioria republicana no Senado obstrua por completo sua administração. Ele não terá muitos caminhos para demarcar diferenças em relação a Trump, ao menos enquanto persistir essa situação.
Na opinião do historiador Niall Ferguson, palestrante no mesmo evento, será talvez a mais fraca presidência democrata em muito tempo, com condições limitadas para avançar em muitas das agendas que se comprometeu durante a eleição. Os especialistas americanos ouvidos ontem pelo Itaú não acreditam em guinadas significativas do governo americano em relação às prioridades nacionais: enfrentar a China na nova guerra fria que divide o mundo e controlar a pandemia, que, na opinião de Ferguson, poderá matar 500 mil pessoas nos Estados Unidos antes de ser vencida.
Jogar duro com o Brasil pode, portanto, ser uma alternativa interessante para atender a um eleitorado democrata mais radical. Bolsonaro mexe com dois símbolos caros a este contingente: a ameaça ambiental e o extremismo ideológico. Para Cohen, dois países no mundo entram em uma zona de risco de problemas na relação: Brasil e Arábia Saudita.
Como nem só de extremistas vive o governo Bolsonaro, é razoável supor que a ala militar e os aliados do centrão possam aumentar o protagonismo dentro do governo federal, encolhendo a ala ideológica, com quem travam permanente disputa por espaço.
São Paulo
A pesquisa de ontem do Datafolha posiciona o ex-governador paulista Márcio França (PSB) com chances concretas de chegar ao segundo turno. Não tanto pelo seu desempenho, mas pelo fato de Guilherme Boulos (Psol) ter parado de crescer e sobretudo por Celso Russomanno (Republicanos) cair em parafuso. A se confirmar um duelo entre Bruno Covas (PSDB) e França, a eleição em São Paulo teria uma particularidade não vista desde 1985: nenhum candidato de esquerda em primeiro ou segundo lugar. Embora filiado ao PSB, França é um político de centro. Centristas têm alguma dificuldade para chegarem ao segundo turno, mas vantagem quando cruzam esta barreira, por oferecerem atrativos aos dois polos.
O curioso é que Covas, ao contrário do que fez o governador João Doria há dois anos, ao buscar associação com Bolsonaro, também se coloca no centro. Caso haja este duelo, a eleição paulistana quebraria a tendência nacional de polarização. Ambos teriam que buscar tanto os eleitores de Boulos quanto os de Russomanno, o que embalhararia o segundo turno.
Carlos Melo: Qual a razão da força de Trump?
A força do mal-estar dos excluídos pela 4ª Revolução é que faz Trump ousar e contestar
Goste-se ou não, Donald Trump é um forte. Pois, posto à sabatina do manuais da política, fez tudo ao contrário do que se pode esperar de um presidente de um grande país: governou basicamente para seus eleitores; fragmentou ao invés de agregar; açulou o ódio racial, o hedonismo, a arrogância. Criou mais confusões do que concórdia, não deu caminhos de solução para os problemas; não apontou saídas para os impasses de uma sociedade perdida na transição entre a velha e a nova economias. E, ainda assim, Donald Trump chegou longe, a ponto de, desde o início da apuração, deixar analistas assustados com a hipótese de mais uma surpreendente vitória. Seu desempenho é melhor do que muita gente esperava.
Qual a razão dessa força de Donald Trump? Seu poder não brota de qualidades pessoais, certamente. Ela não reside no seu carisma duvidoso; na rudeza de seus gestos ou na estreiteza de sua sofisticação intelectual. No palco da grande política mundial, Trump não passa da categoria de canastrão incapaz de ombrear-se com grandes nomes da história – a comparação que tentou forjar com Abraham Lincoln soou risível. Seus atos e seu texto são limitados, voltados para o público do que os próprios americanos chamariam de soap opera, novelas e dramalhões de gosto duvidoso.
E, por tudo isso, mais uma vez a pergunta se faz necessária: qual a razão de sua força? Sua força brota do mal-estar da sociedade; no pouco-caso com que a economia tem tratado milhões de pessoas desalojadas do mundo do trabalho, inviabilizadas para a sociedade do consumo, apartadas dos salões chiques onde se reúnem ricos e intelectuais, despreocupados com o que fazer com toda a desigualdade. Donald Trump e seus genéricos mundo a fora surgem na incapacidade que a política e a democracia têm demonstrado em relação ao futuro.
É certo que Trump tampouco demonstrou saber o que fazer com tudo isso: objetivamente, não tem projeto. Mas, é fato que no seu estilo bruto e sem brilho tem sabido dialogar com essa multidão de esquecidos pela política e pela globalização dos ricos, vocalizando todo seu rancor e sua fúria. Trump fala a língua do desespero.
Há que se admitir que Barack Obama, com suas imensas qualidades – seu charme, elegância e humanismo –, foi incapaz de estabelecer conexão direta com essa população brutalizada pela vida, pela desigualdade, pela incompreensão de um liberalismo dogmático e pela presunção de políticos que acreditam poder passar ao largo do mal-estar do mundo moderno. É essa força que expressa o mal-estar da civilização contemporânea, que faz Trump ousar a contestar uma eleição possivelmente perdida, dentro das regras do jogo.
Esse poderá ser o grande desafio de Joe Biden, se triunfar o democrata: compreender os problemas de seu país – e por que não do mundo –, estabelecer vínculos com os rejeitados pela 4.ª Revolução.
✽Cientista Político, professor do Insper
Rubens Barbosa: Judicialização do processo
O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos
Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.
A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.
Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.
O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.
Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.
A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.
A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.
*Foi embaixador do Brasil nos EUA
Pedro Doria: O golpe de Trump e as redes
Nesta semana, um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado
É inevitável, nesta semana eleitoral americana, que nos debrucemos sobre a constatação de que mudou de vez a maneira como se portam as plataformas de redes sociais. Facebook, Instagram e Twitter agiram ativamente para conter a circulação e alertar os usuários a respeito das tentativas de inflamar a população e dos ataques frontais aos ritos democráticos pelo presidente americano, Donald Trump. A ação não surpreende — já haviam anunciado que fariam isso. A decisão é responsável. É também polêmica. Por um motivo muito simples: é uma decisão editorial. Uma decisão de editor.
A questão fundamental aqui é simples: o que é uma rede social? Melhor começar pelo que não é. Parece, mas não é a praça pública. Embora seja um ambiente no qual muitos de nós nos reunimos para conversar sobre o que é do interesse da sociedade ou mesmo nos informarmos, embora elas até pareçam com uma versão digital da praça pública, elas não são um bem coletivo. O problema não é nem que tenham dono, que sejam privadas. O problema é que seu controle é planetariamente concentrado nas mãos de poucos. O ideal é que tivéssemos muitas redes sociais e nenhuma fosse dominante, que todas fossem de donos distintos e que portanto seu impacto total fosse distribuído. Que a decisão de um destes donos não tivesse capacidade de estragos imensos na sociedade. Não é assim, infelizmente.
A praça pública é este ambiente coletivo que criamos, enquanto sociedade, no qual discutimos sobre o que é de nosso interesse conjunto. É onde, juntos, nos convencemos uns aos outros em diálogo constante para que possamos ir às urnas tirar conclusões. Mas a realidade é que este ambiente privado e com pouquíssimos donos, as redes sociais, é onde conversamos hoje sobre nossa política. Esta propriedade concentrada está diretamente ligada à ascensão de populistas autoritários e, em grande parte, isto ocorre porque o ambiente foi construído com inúmeros vícios. Um deles são os algoritmos que manipulam nossos cérebros para nos prender. Ficamos horas e horas perante estas telas. Outro é que estes mesmos algoritmos são susceptíveis a distribuir mais o que nos incita uns contra os outros. A reforçar tribalismo ao invés de união.
Muitos ativistas defendem que as redes não deveriam interferir manualmente para que notícias falsas circulem, para que líderes populistas possam atacar suas democracias. Afinal, se interferem nisto, podem interferir em qualquer coisa. É verdade. Podem mesmo. Mas interferência já existe. Edição já existe. É a dos algoritmos. A entrada ‘manual’, a decisão de entrar num post no qual Donald Trump incita sua militância a considerar fraude eleitoral a contagem de votos numa democracia não é apenas correta. É a medida responsável a se tomar.
Só que é uma medida que também redefine estas redes sociais. Elas não são meras plataformas, ambientes neutros nos quais conversas ocorrem. São veículos que definem o que pode e o que não pode ser dito nelas. Elas editam, como jornais e revistas. Assim como jornais e revistas, quando uma autoridade mente, elas informam a seus leitores — não usuários, leitores — que aquilo dito é mentira. E as redes como são muito poucas, sua propriedade é concentrada e têm escala planetária, oferecem às democracias um problema novo, muito grande e barbaramente complexo.
Isto tudo posto, é preciso reconhecer que houve avanço. Porque é importante não ter ilusão, esta semana o inimaginável ocorreu. Um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado. Não chegou perto de ter chances de dar certo. Em grande parte, porque as redes sociais atuaram como editoras. Corretamente. Que atuem com a mesma responsabilidade por aqui.