Eleições EUA

El País: Senado absolve Trump em seu segundo ‘impeachment’

O ex-presidente é liberado da acusação de incitamento à insurreição após o ataque ao Capitólio. Democratas, com 57 votos a favor da condenação e 43 contra, não alcançam a maioria de dois terços

Amanda Mars, El País

O Senado absolveu neste sábado Donald Trump da acusação de incitação à insurreição pelo ataque ao Capitólio que uma turba de seus seguidores realizou em 6 de janeiro para boicotar a confirmação da vitória eleitoral de Joe Biden. 57 dos 100 membros da Câmara Alta (os 50 democratas e sete republicanos) votaram no veredito de culpado, mas não chegaram os 67 (dois terços) necessários à condenação. 43 republicanos votaram contra. Nunca um julgamento por impeachment havia causado tanto respaldo entre os membros do partido do acusado. Esse processo deixa a figura de Trump condenado pela história e exibe a fratura que ele criou no Partido Republicano.

Alguns republicanos absolveram Trump apenas no sentido constitucional do impeachment, mas culpando o ex-presidente pelo ataque. O exemplo mais claro dessa dualidade foi Mitch McConnell, líder dos conservadores na Câmara Alta. Depois de votar “inocente”, ele tomou a palavra para denunciar a “escandalosa” falta de respeito da performance de Trump naquele dia fatídico e disse: “Não há dúvida de que o presidente é praticamente e moralmente responsável pelos acontecimentos daquele dia”.

Os Estados Unidos concluíram o impeachment mais incomum dos quatro experimentados até agora, no qual os senadores atuaram como jurados e também como testemunhas e, em grande parte, como vítimas. Essa mesma sala onde o caso foi julgado foi, por sua vez, o objeto do cerco daquele dia, palco do crime. O julgamento deixou o país ainda chocado com o assalto ocorrido há pouco mais de um mês e que deixou o mundo sem palavras e o orgulho americano ferido. Trump se tornou o primeiro presidente a passar por um procedimento como esse duas vezes e o primeiro a fazê-lo fora da Casa Branca.

O julgamento pelo segundo impeachment a Donald Trump chegou neste sábado a sua reta final com mudanças imprevistas de roteiro. A declaração pública de uma congressista republicana na noite de sexta-feira, prejudicial ao ex-presidente, mudou o esquema da acusação democrata, que pediu para que ela testemunhasse, o que iria atrasar o desenlace. Por fim, aceitaram incluir seu comunicado como prova e evitar o depoimento.

As partes passaram então a apresentar suas argumentações finais no Senado e o voto sobre o veredicto era esperado ao longo do dia. “Trump deve ser condenado pela segurança de nosso povo e de nossa democracia”, enfatizou o democrata Jamie Raskin, líder dos chamados gestores do processo de impedimento, o grupo de congressistas da Câmara de Representantes que atuou como promotores no julgamento do Senado. Os republicanos argumentam que o impeachment não faz sentido, além da responsabilidade de Trump no ataque, pois é um mecanismo concebido para presidentes e ele já não está na Casa Branca. A acusação frisa, entretanto, que é preciso levá-lo adiante para evitar que chegue a qualquer cargo no futuro, e alerta que deixar seu comportamento impune deixa um precedente perigoso para qualquer Governo.

O julgamento, que começou na terça-feira, abordou minuciosamente o ataque violento de 6 de janeiro e as palavras de estímulo com as quais Trump encorajou a horda no mesmo dia, mas o quarto impeachment na história dos Estados Unidos julga seu presidente por algo mais que seu papel nesse momento, o julga por ter torpedeado a transição pacífica do poder e por tentar destruir a vontade que os norte-americanos expressaram nas urnas nas eleições presidenciais de 3 de novembro. Durante meses, o republicano agitou o boato de fraude, desmentido pela Justiça, pressionou os legisladores para que não reconhecessem Biden e encorajou a mobilização civil. No dia em que o Congresso deveria certificar a vitória do democrata, após um discurso em que lhes disse para “lutar como o demônio”, a violência explodiu. Cinco pessoas morreram. “Trump nos traiu deliberadamente”, frisou o congressista David Cicilline, outro dos promotores.

Os democratas acentuaram seu comportamento enquanto ocorria o ataque para tentar demonstrar que Trump sabia o que suas falas haviam provocado e as mantinha. Ou seja, que não é válido o principal argumento da defesa, que as palavras do republicano não significaram um chamado literal à violência e a cometer crimes, e sim fazem parte de uma “retórica política habitual” protegida pela Primeira Emenda da Constituição, que consagra a liberdade de expressão. Este é o ângulo do julgamento que ferveu na noite de sexta-feira e que provocou a viagem de ida e volta sobre a citação das testemunhas.

Na sexta-feira, Jaime Herrera Beutler, que é uma das republicanas que votaram a favor do impeachment na Câmara de Representantes (fase inicial do procedimento), confirmou à imprensa por escrito que o líder republicano dessa Câmara, Kevin McCarthy, lhe contou uma conversa entre ele e Trump durante o ataque, em 6 de janeiro, em que o mandatário havia tomado o partido dos vândalos. Segundo a congressista, McCarthy lhe disse que ligou para Trump para pedir-lhe que encorajasse seus seguidores a deter a insurreição e obteve como resposta: “Bom, parece que estão mais irritados com a eleição do que você”. O ex-presidente estava na época furioso com os colegas de partido que não o apoiavam nos boatos sobre uma fraude eleitoral e pretendiam levar adiante a certificação de Biden.

Em que momento Trump soube do ataque e como reagiu a ele são os elementos que também estiveram no centro da sessão do julgamento na tarde de sexta-feira, já que, para a acusação, constituem provas contundentes da possível conivência do à época presidente dos Estados Unidos com os atacantes do Congresso.

Com o assunto sobre a mesa, Raskin pediu neste sábado a oportunidade de chamar Herrera Beutler para depor. O Senado aprovou com uma maioria de 55 a 45, já que cinco senadores republicanos se uniram aos 50 democratas nessa questão. São os quatro críticos a Trump e que deveriam votar para condená-lo (Susan Collins, Mitt Romney, Lisa Murkowski e Ben Sasse) e um dos aliados do ex-presidente, Linsey Graham. Horas depois, entretanto, chegaram a um acordo para evitá-lo.

Sem número para uma condenação

O veredito de culpa se antevia difícil. Ele precisa do apoio de 67 dos 100 senadores, que exercem de júri, o que significa que 17 republicanos deveriam se unir aos democratas para condenar o ex-presidente. Duas votações preliminares, sobre aspectos prévios, indicaram que as contas não batiam. O líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, comunicou aos seus colegas de partido na manhã de sábado que votaria a exoneração no que definiu como “muito parelha”. McConnell havia responsabilizado Trump pelo ataque, mas no voto final argumentou que o magnata já não é presidente e, se cometeu um crime, pode ser processado na Justiça comum. “A Constituição deixa perfeitamente claro que a conduta criminosa de um presidente pode ser perseguida quando abandonar o cargo”, disse em sua carta.


El País: O segundo impeachment de Trump - Os argumentos do julgamento de um ex-presidente no Senado

O processo que começa na terça-feira na Câmara Alta se centrará em uma experiência que os senadores viveram de perto: a invasão do Capitólio, que os democratas acusam Trump de ter incitado

Pablo Guimon, El País

Muita coisa foi excepcional na presidência de Donald Trump, mas talvez nada tenha sido tanto quanto o fato de que, já fora da Casa Branca, se tornará nesta terça-feira o primeiro presidente da história a ser julgado duas vezes no Senado por “delitos e falhas graves”. Um mês depois da invasão do Capitólio por uma multidão de seguidores dele, no mesmo plenário onde aqueles amotinados fizeram sua exibição de força, os membros da Câmara Alta assumirão o papel de jurados, aos quais caberá decidir se o agora ex-presidente “incitou à violência contra o Estado”, como defende o artigo do impeachment aprovado pela Câmara de Representantes (deputados).

O julgamento do primeiro impeachment de Trump, que em 5 de fevereiro de 2020 foi absolvido das duas acusações apresentadas (abuso de poder e obstrução do Congresso), baseou-se em provas obtidas ao longo de vários meses de investigação da Câmara Baixa a respeito de um telefonema do presidente a seu homólogo ucraniano, assim como reuniões privadas posteriores. Em contraste com aquela investigação longa e complicada, o segundo impeachment se baseia quase completamente numa experiência que muitos dos senadores-jurados viveram bem de perto. “Incitada pelo presidente, uma multidão irrompeu no Capitólio, feriu o pessoal das forças de segurança, ameaçou a membros do Congresso e o vice-presidente, interferiu no dever constitucional solene da sessão conjunta [das duas câmaras do Congresso] de certificar o resultado eleitoral e realizou atos violentos, letais, destrutivos e sediciosos”, diz o texto do impeachment.

Os congressistas democratas, assim como alguns republicanos, acreditam que Trump incitou à insurreição e deve pagar por isso, se não com a destituição de um cargo que já não ocupa mais, pelo menos com o estigma da solene reprimenda e, dependendo de uma votação posterior após o eventual veredicto de culpa, com a proibição de voltar a disputar a presidência. Em 13 de janeiro, a Câmara de Representantes aprovou o segundo impeachment de Trump pela acusação única de “incitação à insurreição”. Em 25 de janeiro, remeteu a imputação à Câmara Alta, o que ativa a segunda parte do processo: o julgamento no Senado, que começa nesta terça-feira.

A peça acusatória enviada pela Câmara de Representantes ao Senado constrói seu argumento em um texto breve (82 linhas). Primeiro, menciona que, “nos meses prévios” à invasão, o presidente “repetidamente fez afirmações falsas assegurando que os resultados das eleições foram produto de uma fraude generalizada e não deveriam ser aceitos pelo povo norte-americano nem certificados pelas autoridades”. Em segundo lugar, argumenta que Trump “deliberadamente realizou declarações que estimularam a ―e previsivelmente resultaram na― ação iminente e ilegal no Capitólio”. Por último, os congressistas recordam que Trump efetuou ações concretas para tentar reverter sua derrota. Mencionam expressamente o telefonema ao secretário de Estado da Geórgia no qual pedia que encontrasse os votos suficientes para proclamá-lo vencedor.

Assim, os fatos a serem julgados no Senado se centrarão em boa medida na tarde de 6 de janeiro, mas abrangerão também os 77 dias anteriores, desde que o presidente Donald Trump perdeu a reeleição por uma margem de mais de sete milhões de votos populares e 74 delegados no Colégio Eleitoral. Trump não admitiu sua derrota e passou os dois meses seguintes difundindo teorias conspiratórias sobre fraude eleitoral. Entre 3 de novembro, dia das eleições, e em 6 de janeiro, data em que seus seguidores atacaram o Capitólio, o ainda presidente e sua equipe interpuseram 62 ações perante os tribunais para tratar de invalidar o voto nos Estados onde perdeu. Fracassaram todos os casos, menos um, em que um tribunal da Pensilvânia aceitou reduzir para três dias o prazo dado aos votantes para corrigir erros formais em seus votos ―algo sem repercussão alguma no resultado final.

Em 6 de janeiro ocorreu em Washington uma manifestação com o lema “Detenhamos o roubo”. Trump convidou os manifestantes ―muitos deles armados― a se reunirem em frente à Casa Branca e, sobre um palanque, lhes dedicou um discurso de quase duas horas no qual os incitou a marchar até o Capitólio, prometendo que ele mesmo iria junto. As palavras de Trump naquele final de manhã serão cruciais no julgamento. “Vamos ter alguém aqui dentro [da Casa Branca] que não deveria estar aqui, e nosso país será destruído”, disse-lhes. “Vocês precisam lutar como o demônio, se não lutarem como o demônio não terão mais um país”; “nunca recuperarão o país sendo fracos”; “não vamos engolir mais, deteremos o roubo”; “vamos partir pela avenida Pennsilvanya e vamos ao Capitólio”.

Parte da multidão encarou essa arenga de maneira literal e, assim que o discurso terminou, começou a se dirigir à sede do Congresso. Venceu a resistência da pouco preparada polícia do Capitólio e invadiu o edifício. Uma vez lá dentro, alguns se dedicaram a vandalizar e a tirar selfies, outros procuraram o vice-presidente, Mike Pence, e membros destacados do Congresso, todos eles citados pelo presidente, para tentar convencê-los a declarar Trump como ganhador numa eleição que ele perdeu. Cinco pessoas morreram, inclusive um agente da polícia do Capitólio, golpeado com um extintor.

Além do ocorrido no interior do Capitólio, provavelmente virá à tona no julgamento o que acontecia ao mesmo tempo na outra ponta da avenida Pennsilvanya. Na Casa Branca, o presidente Trump via tudo ao vivo pela televisão, sem fazer nada para deter o ataque. Acusam-no de rejeitar os apelos de mobilizar a Guarda Nacional. Finalmente, enquanto os invasores estavam no edifício, ele divulgou um vídeo em que insistia nas acusações de fraude eleitoral e dizia aos assaltantes: “Amo vocês, mas é hora de irem embora”. Tudo isso leva os chamados gestores do impeachment, os membros da Câmara Baixa designados para atuarem como promotoria no julgamento do Senado, a concluir que Trump é “responsável de maneira singular” pelos fatos de 6 de janeiro. Assim estabelecem em seu memorando para o julgamento, que conclui: “Se provocar uma revolta insurrecional contra a sessão conjunta do Congresso após perder uma eleição não é uma transgressão merecedora do impeachment, é difícil imaginar o que poderia ser”.

A defesa, centrada na forma

A defesa de Trump no julgamento prevê centrar-se em boa medida nas “objeções procedimentais”. Argumentará, conforme antecipou um dos advogados à Reuters, que um ex-presidente não pode enfrentar um julgamento de impeachment após deixar o cargo. “Planejamos ganhar o processo graças a um punhado de objeções procedimentais”, disse à Reuters o advogado Bruce Castor, que considera o julgamento “inconstitucional”. A linha de defesa se ajusta ao parecer expresso pelos senadores republicanos, que esmagadoramente consideram que a Câmara Alta carece de competências para julgar Trump após deixar a presidência. Para que seja declarado culpado, seria necessária uma maioria qualificada de 67 dos 100 votos da Câmara. Esta se encontra dividida em 50/50, de modo que seriam necessários os votos de 17 senadores republicanos para condenar Trump.


Rubens Barbosa: Notas sobre a carta de Bolsonaro a Biden

Importante entender as entrelinhas. Não vai ser fácil o diálogo entre os dois governos

A carta do presidente Bolsonaro enviada a Joe Biden por ocasião da posse como presidente dos EUA, na forma, parecia ter sido escrita pelo velho Itamaraty ao descrever a relação entre os dois países. Os comentários sobre os valores compartilhados, as coincidências e os avanços recentes refletem as posições do atual Itamaraty durante o governo Trump e estão longe de poder ser associadas ao governo Biden, a menos que o texto indique uma bem-vinda correção de rumos na política externa brasileira… Importante é entender o que está nas entrelinhas da correspondência presidencial.

Uma primeira observação esclarecedora diz respeito à referência de que o atual governo “corrigiu os equívocos de governos brasileiros anteriores, que afastaram o Brasil dos EUA, contrariando o sentimento de nossa população e os nossos interesses comuns”. Como embaixador em Washington nos governos FHC e Lula (1999-2004), devo dizer que recebi diretamente dos dois presidentes instruções precisas para manter e ampliar as relações bilaterais, o que foi feito com resultados muito concretos para o Brasil durante os cinco anos em que lá permaneci. O posterior predomínio de considerações partidárias a partir de certo momento no governo Lula e no governo Dilma realmente afetou o relacionamento entre os dois países, como tive ocasião de prever e registrar em meu relatório final de gestão. A normalidade e o tratamento construtivo na relação entre os dois países foram retomados em seguida, com o governo Michel Temer.

A afirmativa de que “os empresários de nossos dois países têm interesse em um abrangente acordo de livre-comércio” exagera a vontade empresarial quanto a esse acordo amplo (como se vê pela relutância em avançar as negociações com a Coreia do Sul em decorrência da baixa competitividade brasileira), bem assim quanto à disposição do governo de Washington, que não tem nem mandato do Congresso, nem interesse em abrir negociações com o Brasil.

Nas organizações econômicas internacionais, a carta diz que “o Brasil está pronto para continuar cooperando com os EUA para a reforma da governança internacional. Isso se aplica, por exemplo, à OMC, onde queremos destravar as negociações e evitar as distorções de economias que não seguem as regras de mercado”. Essa ação proposta por Trump, e que deverá ser mantida por Biden, visa a atingir a China, não considerada pelos EUA como economia de mercado. Apoiada pelo Brasil até aqui, com base na coincidência com as políticas de Trump, vai continuar agora à luz da dependência do suprimento de vacinas e insumos chineses para combater a pandemia? O governo brasileiro vai mudar sua percepção negativa sobre o multilateralismo e seus efeitos maléficos sobre as nações e passar a apoiar a nova linha do governo Biden?

Resta saber se a afirmação de que “necessitamos também continuar lado a lado enfrentando as graves ameaças com que hoje se deparam a democracia e a liberdade em todo o mundo e que se tornam mais prementes no mundo pós-covid” será suficiente para justificar, apesar de tudo, convite ao Brasil para participar da grande conferência sobre democracia que Biden convocará neste ano.

O aspecto mais importante da correspondência se refere à “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. Em relação ao Acordo de Paris, “nota que o Brasil demonstrou seu compromisso com a apresentação de suas novas metas nacionais” e que, “para o êxito do combate à mudança do clima, será fundamental aprofundar o diálogo e aumentar a cooperação na área energética, visto ter o Brasil sido escolhido país líder para o diálogo de alto nível da ONU sobre Transição Energética”. A relevância desse trecho reside no fato de o Brasil ter dado o roteiro às demandas do governo Biden para que sejam apresentados resultados concretos na preservação da Amazônia (combate ao desmatamento, queimadas, garimpo ilegal e proteção das comunidade indígenas), conforme previsto pelo recém-firmado Diálogo Ambiental; para cobranças no aprofundamento das metas nacionais sobre redução de emissão de gases de efeito estufa, pois, contrariando o compromisso de 2015, ao invés de ampliar as metas, o governo promete emitir mais CO2 até 2030 e as condicionou a recursos externos, o que acarretou a exclusão do Brasil da Cúpula de Ambição Climática sobre mudança de clima; ao aceitar participar do Diálogo sobre Transição Energética, o Brasil será cobrado a apresentar propostas ambiciosas em políticas climáticas

O Congresso americano, com o novo governo, começou a rever o sistema geral de preferências para países em desenvolvimento, em que se prevê a exclusão de países que não implementarem políticas relacionadas às leis ambientais nacionais ou compromissos internacionais. Caso o Brasil seja excluído, empresas nacionais deixarão de exportar com tarifa zero mais de US$ 2,2 bilhões. Será mantida a decisão de o Brasil acompanhar os EUA e aprovar os princípios da política de rede limpa (clean network) para excluir empresas chinesas da concorrência para a instalação da plataforma 5G?

Não vai ser fácil o diálogo entre os dois governos.

*Presidente do IRICE


O Estado de S. Paulo: Biden assina retorno dos EUA ao Acordo de Paris e à OMS

Novo presidente americano assina 17 ações executivas, agindo rápido para desmantelar o legado de seu antecessor, Donald Trump

O novo presidente americano, Joe Biden, assinou 17 ordens executivas nesta quarta-feira, 20, que incluem o retorno dos Estados Unidos ao  Acordo de Paris de 2015e à Organização Mundial da Saúde (OMS). Em primeira aparição no Salão Oval, o democrata disse que estava assinando ações "ousadas". "Não há tempo para começar como hoje", disse Biden, completando que essas ações visam cumprir suas promessas ao povo americano.

Ao assinar as 17 ações executivas durante suas primeiras horas no cargo, Biden torna-se o mais rápido a desmantelar o legado de um  antecessor do que qualquer outro presidente da história moderna. As medidas incluem memorandos, ordens executivas e diretivas para as agências, dando os primeiros passos para lidar com a pandemia do coronavírus e desfazer algumas das políticas que foram a marca do governo Donald Trump

A volta ao Acordo de Paris, compromisso anunciado antes da posse por Biden, está entre os decretos já assinados pelo presidente. "Vamos combater as mudanças climáticas de uma forma que não tínhamos tentado até agora", disse a jornalistas.

Mais cedo, o presidente da FrançaEmmanuel Macron comemorou a volta dos Estados Unidos ao acordo global que busca conter aquecimento.

O retorno à Organização Mundial da Saúde (OMS) também foi consolidado pelo presidente americano nesta quarta, 20. Sob o comando de Trump, o país deixou a OMS em meio à pandemia do novo coronavírus, com acusações de que a China exercia pressão sobre a agência. Uma das primeiras ordens de Biden, também uma medida na contramão de Trump, foi a obrigatoriedade do uso de máscara em todos os prédios federais.

O presidente ordenou também que as agências federais interrompam toda a formulação de regras até que seu governo tenha tempo para revisar as regulamentações propostas. O chefe de gabinete da Casa Branca, Ron Klain, anunciou a medida em um memorando aos chefes de departamentos executivos e agências na tarde de quarta-feira. A ordem de congelamento regulatório é ato importante nas transições presidenciais, permitindo que o novo governo analise as ações pendentes de seus antecessores.

Compromisso anterior, Biden revogou licença para o polêmico oleoduto Keystone XL, projeto há muito tempo debatido. O Keystone XL, de 2.574 km, tinha como objetivo transportar petróleo bruto do Canadá para o Estado americano do Nebraska, onde se conectaria a uma rede existente para entregar o petróleo a refinarias no Golfo do México. 


Biden pede união em discurso de posse: 'A democracia prevaleceu'; leia a íntegra

Presidente fez seu primeiro discurso a frente do cargo durante a cerimônia de posse, realizada nesta quarta-feira, 20, no Capitólio

Em seu primeiro discurso como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden pediu união durante a cerimônia de posse realizada nesta quarta-feira, 20, no Capitólio, em Washington. O presidente afirmou que "a democracia prevaleceu" em sua vitória contra Donald Trump nas eleições do ano passado, e prometeu ser o presidente de todos os americanos, independente de terem votado nele ou no opositor.

"Vivemos a nação que queremos ser e podemos ser", disse Biden, que agradeceu a presença de integrantes de ambos os partidos na cerimônia de posse, entre eles os ex-presidentes democratas Barack Obama e Bill Clinton, o ex-presidente republicano George W. Bush, e o ex-vice presidente, Mike Pence. "Sei da resiliência da nossa Constituição e da força de nossa nação".

Biden reconheceu que o país atravessa um momento conturbado politicamente, mencionando a pandemia do novo coronavírus e seus prejuízos econômicos. "Poucas pessoas em nossa história viveram momentos mais difíceis do que o que estamos vivendo neste momento", disse. O presidente também citou problemas políticos, como o supremacismo branco e o terrorismo doméstico, desafios que prometeu "vencer". 

"Precisamos de mais do que palavras, precisamos de uma das coisas mais difíceis de uma democracia: a união". E completou: "Peço que todos os americanos façam o mesmo comigo nesta causa: unidos para combater os inimigos que temos, a raiva, ressentimento, extremismo, ilegalidade, violência, doenças, desemprego. Juntos, podemos fazer coisas grandes e consertar erros". PARA ENTENDERBiden venceu nos EUA. O que muda no mundo? Análises exclusivas respondemDecisões do presidente dos EUA sobre economia, política externa, imigração, meio ambiente e mesmo comportamento afetam a sua vida. Banco de análises traz projeções de quem mais entende sobre os efeitos do futuro governo Biden

Em seu apelo por união, Biden fez também uma defesa da boa política, afirmando que ela não precisa ser um "incêndio que destrói tudo a sua frente".  

"Tanta discórdia não precisa levar a guerras. Precisamos rejeitar a cultura onde fatos são manipulados e inventados. Caros americanos, temos de ser diferentes. Os EUA têm de ser melhor do que isso. E creio que EUA são muito melhor do que isso", afirma.

Em parte do discurso que direcionou "aos que nos ouvem além de nossas fronteiras", Biden afirmou que os Estados Unidos vão retomar o protagonismo no cenário internacional. "Vamos liderar não só pelo exemplo da nossa força, mas pela força do nosso exemplo", disse o presidente.

De acordo com Biden, durante sua gestão, os EUA serão um parceiro forte e confiável e voltará a participar das negociações internacionais, em claro sinal de que irá reverter a política isolacionista adotada pelo seu antecessor, Donald Trump.

O presidente também ressaltou o fato de estar junto de Kamala Harris, a primeira vice-presidente negra da história, exaltando o local onde Martin Luther King fez seu famoso discurso de 1963 em defesa dos direitos dos negros.

Por fim, o presidente listou os grandes desafios que sua gestão terá pela frente, como a pandemia do coronavírus, as mudanças climáticas e o próprio papel dos Estados Unidos. "Há muito a ser feito. E uma certeza: prometo a vocês, nós seremos julgados por como vamos lidar com essa crise da nossa era".

Leia a íntegra do discurso: 

Chefe de Justiça Roberts, Vice-presidente Harris, Presidente da Câmara Pelosi, Líder do Senado Schumer, McConnell, vice-presidente Pence, meus distintos convidados e meus companheiros americanos, este é o dia dos Estados Unidos.

Este é o dia da democracia. Um dia de história e esperança de renovação e resolução através de um cadinho para todos os tempos. Os EUA foram testados de novo e estão à altura do desafio. Hoje, celebramos o triunfo não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia. O povo, a vontade do povo, foi ouvido e a vontade do povo foi atendida.

Aprendemos novamente que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. A esta hora, meus amigos, a democracia prevaleceu.

A partir de agora, neste solo sagrado, onde apenas alguns dias atrás, a violência procurou abalar os próprios alicerces do Capitólio, nos reunimos como uma nação, sob Deus, indivisível para realizar a transferência pacífica de poder, como fizemos por mais de dois séculos.

Ao olharmos para a frente em nosso jeito exclusivamente americano: inquietos, ousados, otimistas e voltados para a nação que podemos e devemos ser.

Agradeço aos meus antecessores de ambos os partidos a sua presença aqui hoje. Agradeço do fundo do meu coração. E eu sei, eu conheço a resiliência de nossa Constituição e a força de nossa nação. Assim como o Presidente Carter, com quem falei ontem à noite, que não pode estar conosco hoje, mas a quem saudamos por sua vida inteira de serviço.

Acabei de fazer o juramento sagrado. Cada um desses patriotas o tomou. O juramento, feito pela primeira vez por George Washington. Mas a história americana não depende de nenhum de nós, não de alguns de nós, mas de todos nós, de nós, as pessoas que buscam uma união mais perfeita.

Esta é uma grande nação. Somos boas pessoas. E ao longo dos séculos, através de tempestades e conflitos, na paz e na guerra, chegamos tão longe. Mas ainda temos muito a percorrer. Seguiremos em frente com velocidade e urgência, pois temos muito a fazer neste inverno de perigos e possibilidades significativas, muito a reparar, muito a restaurar, muito a curar, muito a construir e muito a ganhar.

Poucas pessoas na história de nossa nação foram mais desafiadas ou acharam uma época mais desafiadora ou difícil do que a que estamos agora. Um vírus que ocorre uma vez em um século e que silenciosamente espreita o país. Custou tantas vidas em um ano quanto os Estados Unidos perderam em toda a Segunda Guerra Mundial. Milhões de empregos foram perdidos. Centenas de milhares de empresas fechadas. Um grito por justiça racial, há cerca de quatrocentos anos em andamento, nos emociona. O sonho de justiça para todos não será mais adiado.

O grito de sobrevivência vem do próprio planeta, um grito que não pode ser mais desesperado ou mais claro. E agora um aumento do extremismo político, supremacia branca, terrorismo doméstico que devemos enfrentar e iremos derrotar. Superar esses desafios, restaurar a alma e garantir o futuro da América exige muito mais do que palavras. Requer o mais elusivo de todas as coisas em uma democracia: unidade, unidade.

Em outro janeiro, no dia de Ano Novo em 1863, Abraham Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação. Quando ele colocou a caneta no papel, o presidente disse, e eu cito, “se meu nome entrar para a história, será por causa deste ato. E toda a minha alma está nisso.”

Minha alma inteira estava nisso hoje. Neste dia de janeiro, toda a minha alma está nisso: Trazer os Estados Unidos juntos, unindo nosso povo, unindo nossa nação. E peço a todos os americanos que se juntem a mim nessa causa.

Nos unindo para lutar contra os inimigos que enfrentamos: a raiva, o ressentimento, o ódio, o extremismo, a ilegalidade, a violência, a doença, o desemprego e a desesperança. Com unidade, podemos fazer grandes coisas, coisas importantes. Podemos corrigir os erros. Podemos colocar pessoas para trabalhar em bons empregos. Podemos ensinar nossos filhos em escolas seguras. Podemos superar o vírus mortal. Podemos recompensar, recompensar o trabalho e reconstruir a classe média e tornar o sistema de saúde seguro para todos. Podemos oferecer justiça racial e fazer dos Estados Unidos mais uma vez a principal força do bem no mundo.

Sei que falar de unidade pode soar para alguns como uma fantasia tola hoje em dia. Sei que as forças que nos dividem são profundas e reais, mas também sei que não são novas. Nossa história tem sido uma luta constante entre o ideal americano de que todos somos criados iguais e a dura e horrível realidade de que o racismo, o nativismo, o medo e a demonização há muito nos separaram. A batalha é perene e a vitória nunca está garantida.

Durante a guerra civil, a Grande Depressão, a guerra mundial, o 11 de setembro, através de lutas, sacrifícios e contratempos, nossos melhores anjos sempre prevaleceram. Em cada um desses momentos, muitos de nós, muitos de nós nos reunimos para levar todos nós adiante. E podemos fazer isso agora. História, fé e razão mostram o caminho, o caminho da unidade. Podemos nos ver não como adversários, mas como vizinhos. Podemos tratar uns aos outros com dignidade e respeito. Podemos unir forças, parar a gritaria e baixar a temperatura. Pois sem unidade não há paz, apenas amargura e fúria. Nenhum progresso, apenas uma indignação exaustiva. Nenhuma nação, apenas um estado de caos.

Este é nosso momento histórico de crise e desafio. E a unidade é o caminho a seguir. E devemos conhecer este momento como Estados Unidos da América. Se fizermos isso, garanto que não iremos falhar. Nunca, jamais, jamais falhamos na América quando agimos juntos.

E então hoje neste momento neste lugar, vamos começar do zero, todos nós. Vamos começar a ouvir uns aos outros novamente. Ouça um ao outro, veja um ao outro, mostre respeito um pelo outro. A política não precisa ser um fogo violento, destruindo tudo em seu caminho. Cada desacordo não precisa ser causa de guerra total. E devemos rejeitar a cultura na qual os próprios fatos são manipulados e até fabricados.

Meus companheiros americanos. Temos que ser diferentes disso. Os Estados Unidos tem de ser melhor do que isso. E eu acredito que é muito melhor do que isso. Basta olhar em volta. Aqui estamos, à sombra da cúpula do Capitólio, como foi mencionado antes, concluída durante a Guerra Civil, quando a própria união estava literalmente na balança. Ainda assim, nós resistimos, nós prevalecemos.

Aqui estamos olhando para o grande mall onde o Dr. King falou de seu sonho. Aqui estamos nós, onde há 108 anos, em outra posse, milhares de manifestantes tentaram bloquear a marcha de mulheres corajosas pelo direito de voto. E hoje comemoramos o juramento da primeira mulher na história dos Estados Unidos eleita para um cargo nacional: a vice-presidente Kamala Harris. Não me diga que as coisas não podem mudar.

Aqui estamos do outro lado do Potomac, do Cemitério de Arlington, onde os heróis que deram a última medida completa de devoção descansam em paz eterna. E aqui estamos nós, poucos dias depois que uma turba violenta pensou que poderia usar a violência para silenciar a vontade do povo, para parar o trabalho de nossa democracia, para nos tirar deste solo sagrado.

Seremos um parceiro forte e confiável para paz, progresso e segurança. Olha, todos vocês sabem, nós passamos por muito nesta nação. E meu primeiro ato como presidente, gostaria de pedir a você que se junte a mim em um momento de oração silenciosa para lembrar todos aqueles que perdemos no ano passado para a pandemia. Aqueles quatrocentos mil compatriotas americanos, mães, pais, maridos, esposas, filhos, filhas, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Iremos honrá-los tornando-nos o povo e a nação que sabemos que podemos e devemos ser. Por isso, peço a vocês, vamos fazer uma oração silenciosa por aqueles que perderam suas vidas, aqueles que ficaram para trás e por nosso país.

Amém.

Gente, este é um momento de teste. Enfrentamos um ataque à nossa democracia e à verdade, um vírus violento, crescente desigualdade, a picada do racismo sistêmico, um clima em crise, o papel da América no mundo. Qualquer um desses será o suficiente para nos desafiar profundamente. Mas o fato é que enfrentamos todos de uma vez, apresentando a esta nação uma das responsabilidades mais graves que já tivemos. Agora vamos ser testados. Nós vamos intensificar? Todos nós? É hora de ousadia, pois há muito o que fazer. E isso é certo, eu prometo a você, seremos julgados, você e eu, pela forma como resolveremos essas crises em cascata de nossa era.

Estaremos à altura da ocasião, é a questão. Vamos dominar esta hora rara e difícil? Será que vamos cumprir nossas obrigações e passar adiante um mundo novo e melhor para nossos filhos? Eu acredito que devemos. Tenho certeza que você também. Eu acredito que sim. E quando o fizermos, escreveremos o próximo grande capítulo da história dos Estados Unidos da América. A história americana. Uma história que pode soar como uma música que significa muito para mim. É chamado American Anthem. Tem um versículo que se destaca, pelo menos para mim, e é assim:

O trabalho e as orações de um século nos trouxeram até hoje.

Qual será o nosso legado? O que nossos filhos dirão?

Deixe-me saber em meu coração quando meus dias acabarem.

América, América, dei o meu melhor para vocês.

Vamos adicionar. Vamos adicionar nosso próprio trabalho e orações ao desenrolar da história de nossa grande nação. Se fizermos isso, quando nossos dias chegarem ao fim, nossos filhos e os filhos de nossos filhos dirão de nós: Eles deram o seu melhor, cumpriram seu dever, curaram uma terra devastada.

Meus compatriotas, eu encerro o dia em que comecei, com um juramento sagrado diante de Deus e de todos vocês. Dou minha palavra, sempre serei sincero com você. Vou defender a Constituição. Vou defender nossa democracia. Defenderei a América e darei tudo, tudo de vocês. Manter tudo o que eu faço a seu serviço, pensando não no poder, mas nas possibilidades, não no interesse pessoal, mas no bem público. E juntos escreveremos uma história americana de esperança, não de medo. De unidade, não de divisão. De luz, não escuridão. Uma história de decência e dignidade, amor e cura, grandeza e bondade. Que esta seja a história que nos guia. A história que nos inspira e a história que conta os tempos que ainda virão e que atendemos ao chamado da história. Nós conhecemos o momento. Democracia e esperança, verdade e justiça não morreram sob nossa supervisão, mas prosperaram. Que a América garantiu a liberdade em casa e permaneceu mais uma vez como um farol para o mundo. Isso é o que devemos aos nossos antepassados, uns aos outros e às gerações seguintes.

Assim, com propósito e determinação, nos voltamos para as tarefas de nosso tempo. Sustentados pela fé, movidos pela convicção, devotados uns aos outros e ao país que amamos de todo o coração. Que Deus abençoe a América e que Deus proteja nossas tropas. Obrigado, América.

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Míriam Leitão: Primeiros e difíceis trabalhos de Biden

Não há mal que sempre dure. O governo Trump acaba e hoje começa a administração Joseph Biden e Kamala Harris. Não será um tempo fácil. Os Estados Unidos chegam a impensáveis 400 mil mortos por coronavírus e a recessão ceifa empregos. Biden terá que tomar decisões urgentes contra a pandemia. Por ordens executivas ele vai revogar políticas de Trump, principalmente na área externa. Tentará aprovar o pacote de US$ 1,9 trilhão de socorro aos trabalhadores e à economia e, como disse ontem Janet Yellen, a nova secretária do Tesouro, a mudança climática será assunto central na administração.

O economista José Alexandre Scheinkman, professor de Columbia, e professor emérito de Princeton, descreve o quadro em que o novo presidente assumirá:— Biden está em situação complicada. A pandemia está acelerando, e os números previstos para os próximos meses são muito ruins. É difícil mudar a trajetória a curto prazo. O desemprego está com um número alto. Ele tem maioria apertada na Câmara e no Senado, e uma fração não desprezível da população está convencida, por fake news, evidentemente, de que Trump ganhou a eleição.

Em compensação, Scheinkman se diz muito impressionado com a qualidade da equipe que Biden escolheu em áreas fundamentais como economia e ciência:

— Janet Yellen é uma economista com merecida e ótima reputação, e todo mundo concorda que a conduta dela no Fed foi excelente. Para o Conselho de Assessores Econômicos, escolheu minha ex-colega de Princeton Cecilia Rouse, que respeito muito. É muito melhor do que qualquer dos conselheiros de Trump. Ele escolheu como assessor científico Eric Lander, que liderou nada menos que o Human Genome Project, extraordinariamente competente. E elevou o cargo ao nível de ministro. Depois de um governo que não acreditava em ciência, ele nomeou um cientista de primeiríssima linha.

Biden começa assim com uma mudança radical de atitude, mas seu primeiro trabalho, segundo Scheinkman, será “apagar incêndios”.

— Mudança climática é um desses incêndios. Evidentemente, os Estados Unidos voltarão ao Acordo de Paris. Trump tomou várias decisões nos últimos dias que se forem implementadas vão acelerar a crise climática. Biden terá de rever. Mas o mais imediato é reduzir a mortalidade da pandemia. E ele terá que negociar seu pacote, que ainda é apenas uma intenção e será alterado no Congresso. Sobre a economia, há um relativo otimismo de que a vacinação permitirá a volta — diz Scheinkman.

O professor diz que a crise de 2008, que Obama enfrentou ao assumir, destruiu o sistema financeiro, e a economia teve dificuldades. Não havia dinheiro, não havia empréstimos, nem investimentos. Agora, é diferente:

— Esta tem um aspecto que a gente não entende. A demanda pode voltar, mas os pequenos negócios podem ter desaparecido. Aqui em Nova York, todos gostam de café, mas alguns podem ter fechado. Muitos donos de loja desistiram do negócio.

Scheinkman diz que a vacinação é um grande desafio, porque há mais vacina produzida e entregue ao governo central do que as que estão sendo aplicadas pelos estados. Há um problema federal e outro estadual. Ele foi vacinado na segunda-feira, em Nova York:

— O processo ficou muito lento aqui, mas Cuomo (Andrew Cuomo, governador de Nova York) fez alterações. Uma delas é a de incluir professores de todas as redes, inclusive universitários, e pessoas de mais de 65 anos.

O mundo mudará radicalmente hoje, porque a direção da principal potência do mundo será outra, a partir do meio-dia. O Brasil sente nos últimos dias o peso da estúpida opção pelo isolamento. É uma das maiores nações do mundo, em extensão e em PIB, mas o presidente, seus assessores internacionais e seu ministro das Relações Exteriores são adeptos de teorias da conspiração. Ernesto Araújo chegou a dizer “que seja um país pária”. Ontem, o país não conseguia receber as vacinas da Índia, tinha dificuldades de diálogo com a China, e Bolsonaro viu o fim do governo do seu idolatrado Donald Trump. É um crime fazer isso com o Brasil, que sempre teve uma competente diplomacia. No caso dos Estados Unidos, a política externa de Bolsonaro cometeu o erro mais primário, o de confundir país com governo. Criou relações com Trump, que era transitório, em vez de ser com os Estados Unidos, hoje sob nova direção.


Celso Lafer: Consequências do trumpismo

Dante inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os traidores

A tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados Unidos.

A República americana continuadamente teve como uma das características da sua identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis” sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições periódicas.

O que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza, num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça, descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se aos que obstam ou buscam impedir o due course dos seus procedimentos.

Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.

A ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário, que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.

O desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou. Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.

Trump dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”, direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua sanha destrutiva.

Trump cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças, nas palavras de Bobbio.

A virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum. Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do inferno onde penam os falsários e os traidores.

A força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.

O trumpismo mina o softpower gravitacional da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos. Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um semear de ventos para tempestades políticas futuras.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Sérgio Amaral: O que restará do trumpismo?

Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente

Em 3 de novembro, Donald Trump perdeu a eleição para a Presidência dos Estados Unidos e os republicanos foram vencidos na Câmara dos Representantes. Na Geórgia, mais recentemente, os democratas conquistaram a maioria no Senado. As vitórias eleitorais dos democratas propiciam a Joe Biden uma base sólida para a execução de um ambicioso programa de governo, tanto no plano interno quanto no internacional.

No dia 6 de janeiro, Trump sofreu uma segunda derrota, desta vez em seu próprio partido, pela decisão de algumas de suas principais lideranças, como o vice, Mike Pence, e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em aprovar a certificação dos delegados eleitos para o Colégio Eleitoral, como é legal e de praxe, ao contrário do que pretendia o presidente.

A ocupação do Capitólio, ostensivamente incentivada por Trump e membros de sua família, provocou o repúdio da opinião pública, por representar um atentado ao maior símbolo da democracia americana. E, como se não bastasse, mídias sociais decidiram suspender o acesso do presidente a suas plataformas, sob a alegação de incentivo à violência. Ainda que os motivos possam ser louváveis, não deixa de ser insólito que uma empresa privada possa censurar o presidente de um Estado.

Trump deixa a Casa Branca abatido e desmoralizado. As próximas pesquisas de opinião poderão estimar quantos na sociedade, e especialmente em seu próprio partido, deixaram de apoiá-lo. Diante desse cenário incerto e turbulento, resta saber o que ocorrerá com Partido Republicano e com o trumpismo no novo capítulo político que se inicia com a posse de Biden.

Lideranças republicanas já vinham manifestando seu incômodo com o casamento de conveniência entre o seu partido e o presidente. Martin Wolf, respeitado colunista do “Financial Times”, já havia condenado, de modo incisivo, o que chamou de pacto faustiano entre a plutocracia de Wall Street e Trump, pelo qual o Partido Republicano cede sua estrutura política ao presidente em troca das isenções na reforma tributária.

A temporada da luta interna no Partido Republicano está aberta. Alguns dos principais apoiadores de Trump já se transformaram em seus algozes. O que restará do trumpismo, até há pouco percebido como a principal força conservadora para a eleição de 2024? Ao longo de todo o mandato, a aprovação de Trump oscilou entre 37% e 42% do eleitorado.

Como manter esse capital político sem a caneta de presidente e sem os comícios que organizava quase todos os meses, em diferentes regiões do país? Alguns parlamentares republicanos que até há pouco se vangloriavam da proximidade com o presidente e buscavam tirar proveito eleitoral de sua transformação em “representantes da classe operária” agora se dissociam de Trump em público.

Qual o impacto das derrotas de Trump sobre os seus os seguidores pelo mundo? É bom ter presente que o trumpismo não se limita às maquinações de um líder carismático, por vezes desequilibrado, para ganhar as eleições, como fez em 2016. Na verdade, desde o início de seu ingresso na política, o presidente republicano se apresentou como o porta-voz de um movimento mundial, o populismo nacionalista, contra a globalização e o “globalismo”, em defesa da hegemonia americana (“America First”), que amealhou adeptos em várias partes do mundo, especialmente na Europa e inclusive no Brasil.

Hoje parece anedótico, mas foi real o projeto patrocinado por Steve Bannon, o guru de Trump, ao deixar a Casa Branca, para fundar uma escola de quadros, num convento medieval na pequena Trisulti, no centro da Itália, com o objetivo de formar os cruzados do século XXI. Professores chegaram a ser selecionados, entre os quais alguns brasileiros.

Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente. Se é verdade que o Brexit venceu, também é certo que as hesitações britânicas em relação à União Europeia são históricas. O Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha avançaram, mas hoje parecem estacionados ou mesmo em refluxo. Na Áustria, Holanda e Itália, diferentes modalidades de populismo também recuam, diante da percepção de que movimentos sociais podem eleger ou ajudar a eleger candidatos, mas enfrentam sérios desafios para governar diante da ausência de uma estrutura partidária. Hungria e Polônia parecem ser a exceção que confirma a regra.

E o Brasil? Bolsonaro e Trump apresentam semelhanças notáveis. O carisma, a capacidade de comunicação, a competente utilização das mídias sociais, a aversão aos partidos e à imprensa. Certas condições em ambos os países também registram coincidências, como a persistência do racismo estrutural e da desigualdade. Nos dois casos, o compromisso com a democracia mostrou-se enraizado nas forças da sociedade, nas instituições e no estamento militar.

Um dos equívocos da recente campanha de Trump foi o de buscar repetir os temas e as táticas eleitorais de 2016, sem levar em conta uma das máximas da política: a história não se repete, o que na primeira vez é drama, um enredo sério, na segunda vez é uma farsa, como foi efetivamente a campanha republicana em 2020.

Em nossos dias, as mídias sociais estão sob suspeição, a mentira cansou e a radicalização é percebida como destruição, sem nada construir. No Brasil, as eleições do ano passado, ainda que municipais, emitiram alguns sinais para 2022, ao priorizar a reeleição de administradores experimentados, trazer de volta a centralidade dos partidos políticos, em detrimento das mídias sociais, a moderação nos debates e a objetividade das propostas.

*Sergio Amaral, ex-professor de ciência política na Universidade de Brasília, foi embaixador em Washington


Alon Feuerwerker: E o interesse nacional?

O debate público sofre quando é inteiramente capturado pela fratura política, e daí a independência do pensamento entra em bloqueio. Uma consequência é o efeito-manada, as pessoas são arrastadas pela turba e frequentemente acabam indo contra o próprio interesse.

Acontece agora, no episódio do cartão vermelho das big techs para Donald Trump.

Alguns até pararam para pensar “o que eu ganho se as big techs, sob a batuta - ou com medo - da Casa Branca e do Capitólio, tiverem o poder de eliminar qualquer um do espaço de formação da opinião pública?”. Entretanto são poucos os sinceramente preocupados. A esmagadora maioria do campo antitrumpista, lá e aqui, vibrou.

Mas e nós? Se o Brasil fosse um jogador potente na corrida global da alta tecnologia, ainda vá lá. Poderíamos ser sócios minoritários da inédita concentração de poder pelos monopólios tecnológicos sediados nos Estados Unidos.

Porém neste jogo nós temos força apenas relativa. Interessa ao Brasil que decisões de tamanha gravidade sejam tomadas sem que ninguém mais no mundo, além da Casa Branca e do Capitólio, possa influir?

Trump não foi apenas banido das redes. Sites e aplicativos ligados ao campo político que ele representa passaram a ser excluídos do acesso ao hardware indispensável às operações. E a gravidade da coisa foi tanta que levou líderes como Angela Merkel, insuspeita de simpatia ao trumpismo, a demonstrar insatisfação.

Um ponto de quem apoia o banimento é as redes sociais serem propriedade de empresas privadas, podendo portanto decidir o que vão, ou não, deixar postar. Mas se as empresas devem ter essa liberdade, junto deve vir a responsabilidade pelo conteúdo que elas permitem veicular em suas plataformas.

Além do mais, elas operam em regime de monopólio. Não cabe aqui o argumento do livre-mercado.

As big techs querem ser tratadas estritamente como empresas de telecomunicações e tecnologia? Então o jogo será outro. A companhia telefônica não pode ser responsabilizada pelos que dizemos ao telefone, ou escrevemos nas mensagens de texto. Em compensação, tampouco pode cortar a linha do assinante por discordar do que ele diz ou escreve.

Só o Estado, por meio da Justiça, deve ter tal poder. Exatamente pelo fato de Estado e a Justiça não serem propriedade privada. Pelo menos na teoria.

Talvez seja ilusão pedir que este debate aconteça aqui no Brasil em torno de princípios e convicções, num tempo em que eliminar o adversário é a única regra válida do jogo político, um jogo aliás no qual ambos os lados se pretendem gladiadores em defesa da liberdade. Seria cômico se não fosse trágico.

Então que pelo menos não sejamos inteiramente submissos como nação a um poder que nos escapa.

Somos um país grande, com território, população e recursos econômicos suficientes para pretender um bom grau de autonomia nacional e projeção global. Mas este episódio exibe qual é talvez nosso principal obstáculo: a absoluta incapacidade de enxergar por cima das momentâneas disputas políticas e entender onde está o interesse nacional.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado originalmente na revista Veja 2.721, de 20/01/2021


Fernando Schüler: As big techs assumiram a curadoria. Civilização ou distopia?

Ideia da liberdade de expressão nasceu do ceticismo moderno; quem detém a verdade e quem são seus juízes?

Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa ágora digital. Ainda do projeto Gwan, que conheci nos anos 1990, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro Gótico. A ideia era forjar música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000.A ideia era ótima. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial". Era isso que embalava a turma nas madrugadas frias de Barcelona, naquele sótão empoeirado e forrado de computadores.Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal.

As redes funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e as regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí diálogo e aproximação dos divergentes.

O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.

Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinalizam os desligamentos recentes. Eles envolvem um claro juízo político e vão muito além da punição que precisa ser feita, dentro da lei, para quem promove violência, morte, suicídio, ódio racial ou religioso e afins, seja de que lado político for.

As redes agiram assim porque podem. São empresas privadas, suas regras, vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e "bom senso" e que cortar estas e não aquelas contas seria sempre o melhor para a civilização e para democracia.

Não sei por que (talvez seja a idade), tornei-me cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a "verdade" e a infalibilidade de seus juízes.

É o sentido da frase desconfiada da chanceler Angela Merkel, dizendo "problemático" o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um "bem fundamental", a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas.

É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. A longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo.

Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século 17. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, "os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo".

Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.

A ideia das ágoras universais vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.

A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no zigue-zague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas nem o seu direito de pensar com a própria cabeça.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Roberto DaMatta: O combate de Trump contra a igualdade

Eis um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu gosto as regras e estão acima da lei

A eleição é um evento de formidável significado político nas democracias. O ritual eleitoral livre e individualizado equivale à morte paradoxalmente programada de um rei. Ele renova o sistema político e acaba com o exclusivismo dos arranjos de familismos e abala os ardis de classe, dando sentido a associações voluntárias que ajudam a enfrentar problemas. Somente na democracia há uma entrega do poder político ao julgamento do povo. 

Tal paradoxo torna-se ainda mais poderoso num planeta permeado por redes digitais – uma jamais vista capacidade de livre expressão, o que facilita tanto a verdade quanto a intriga e a mentira. O fato inegável, contudo, é que a eleição livre é a melhor vacina contra os golpes cujo primeiro ato é eliminá-la. 

A dúvida de quem vai ser o mandatário por meio eleitoral é a prova viva do valor da igualdade inibidora do execrável “você sabe com quem está falando?”, porque a competição eleitoral suspende e separa indivíduos de cargos, revelando que estes são fixos, mas pessoas e contextos – eis o centro do surto trumpista e de todos os autoritarismos – passam.

As estruturas eleitorais neutralizam hierarquias e exigem igualdade. No fundo, elas equilibram esses dois polos descompassados, mas acasalados da vida social. Elas substituem um obrigatório “sabe com quem está falando?” por um realista “quem você pensa que é?”, numa transição verdadeiramente revolucionária quando se vai do personalismo patriarcal para a impessoalidade de um igualitarismo universalista – esse marco da vida moderna.

A eleição, diz um ativista amigo e querido, não é o emplastro de Brás Cubas, mas renova a esperança de liberdade, igualdade e justiça. 

Não foi, pois, por acaso que o inusitado, criminoso e brutal ataque ao Parlamento americano, uma agressão insuflada pelo próprio presidente Trump, tenha sido iniciado explicitamente no processo eleitoral. 

Ironicamente, foi o mecanismo eleitoral singularmente americano com as suas duas etapas – voto universal centralizador e de massa; e voto num colégio eleitoral federativo e qualitativo –, desenhado para inibir populismos, que, nesta eleição, trouxe à cena o antidemocratismo violento e, no limite, fascista, de Donald Trump. Foi justo na segunda etapa eleitoral que a narrativa de fraude ganhou credibilidade. 

Daí, encarnou-se a encrenca de Trump contra a realidade das contagens dos votos numa rejeição surrealista de números e do igualitarismo competitivo. Encrenca surrealista, típica da má-fé que tão bem conhecemos. Um “morde e assopra” que tipifica a nossa vida pública e permite escolher não escolhendo tanto a democracia quanto o autoritarismo; tanto o salvador da pátria quanto a lei, conforme tenho reiterado na minha obra. 

Eis um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu gosto as regras e estão acima da lei. Tal é justamente o caso de Donald Trump com a diferença de que, nos Estados Unidos, uma profunda tradição do “governo da lei” reafirmou que não há ninguém acima de qualquer suspeita.

Sobretudo quando se trata de um presidente contraditório, mentiroso e insuflador de insurreição. A força do domínio da lei surgiu abertamente quando o Senado reafirmou que, nas democracias, os juramentos não são feitos a pessoas, mas ao país e à Constituição.

Trump foi derrotado pela igualdade, essa discreta dama imprescindível às democracias. A despeito dos seus fanáticos seguidores, ele foi vencido pelo princípio de que, quanto maior o privilégio do cargo, mais o seu ocupante é um devedor permanente da honestidade e da transparência. 

O que nos leva a um assunto inibido quando se trata de discutir o lugar de uma superpotência num mundo globalizado. Refiro-me à capacidade de o presidente dos Estados Unidos poder emitir moeda, construir muros, afetar a economia mundial e – valha-nos, Deus! – de ter o poder pouquíssimo discutido, mas absurdo de, num apertar de botões, destruir o mundo! 

Nesse contexto, vale discutir se as regras de governabilidade que anularam, com justiça, o poder dos reis e dos papas, seriam ainda adequadas a presidentes e líderes de países dotados de artefatos nucleares. Lembro que, até a metade do século passado, imperadores, reis, ditadores e tiranos tinham poderes sem dúvida absolutos sobre seus povos, mas não tinham a capacidade de – como Deus ou algum maluco, a Oeste ou Leste, onipotente – destruir o planeta! 

Para terminar com essa crônica um tanto bíblica, temo que, quando a vacina for libertada das sabotagens burocráticas, todos estaremos doentes ou mortos pela tal “gripezinha”.

*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e democracia’


Oliver Stuenkel: Como o fim da Guerra Fria contribuiu para a polarização dos EUA

Colapso da União Soviética eliminou a ameaça existencial que ajudava a estabilizar a política norte-americana

Quando ficou sabendo da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, meu pai ficou extasiado. Correu pela casa gritando “Caiu o Muro!”, como se seu time de futebol tivesse vencido o campeonato. Horas depois, toda a família estava na estrada em direção a Berlim, onde dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram para saudar cidadãos da Alemanha Oriental, que entravam na parte Ocidental de Berlim pela primeira vez. Sem compreender o significado geopolítico daquele episódio na época, me impressionei com meu pai abraçando pessoas desconhecidas, todo o mundo aos prantos.

Como a vasta maioria da sociedade norte-americana, meu pai, um berlinense que passou a adolescência nos Estados Unidos, viu no colapso da União Soviética um triunfo histórico dos EUA. Ele fazia questão de que minhas irmãs e eu cursássemos parte do Ensino Médio em uma escola nos Estados Unidos. À primeira vista, a década de 1990 lhe dava razão: foi um período marcado por um boom econômico nos EUA e muita confiança de um país que se via, pela primeira vez na história, sem rival no planeta.

Em retrospectiva, porém, ficou claro: o colapso da União Soviética plantou na sociedade norte-americana a semente da polarização destrutiva, hoje uma marca registrada da política contemporânea dos EUA. Os debates políticos nos Estados Unidos durante a Guerra Fria não foram sempre civilizados evidentemente. A carreira do senador Joseph McCarthy, um charlatão famoso nos anos 1950 por liderar o combate a supostos comunistas infiltradosno Governo norte-americano, é prova disso. Durante expressiva parte desse período histórico, porém, havia consenso na população americana de que, diante da ameaça soviética, haveria limites aos ataques a oponentes na política doméstica. Afinal, a disputa contra a URSS gerava uma espécie de acordo nacional, que unia todos os atores políticos nos EUA, independentemente de suas convicções ideológicas.

Livre de preocupações sobre a sobrevivência do país, o tom na política norte-americana nos anos 1990 mudou para pior. Carente do grande projeto nacional de derrotar o comunismo, a política começou a priorizar intrigas que apequenaram a elite política dos EUA. Liderado pelo deputado republicano Newt Gingrich em 1999, o processo de impeachment de Bill Clinton —do qual seria absolvido pelo Senado depois—indicava uma abordagem de vale-tudo e a demonização dos opositores. Duas décadas mais tarde, a fragilidade da democracia americana revelou-se ainda mais flagrante quando seguidores pró-Trump invadiram o Capitólio para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Como escreve Janan Ganesh, “o fim da Guerra Fria foi uma vitória da qual os Estados Unidos nunca se recuperaram.”

A última vez em que um candidato à presidência dos EUA ganhou mais de 400 votos no Colégio Eleitoral foi em 1988, quando George Bush pai, piloto da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, com longa experiência de política externa, venceu na vasta maioria dos Estados norte-americanos. Não se trata de uma coincidência. Desde então, todas as eleições presidenciais revelam um país profundamente dividido, com ambos os lados acusando o outro de inimigo da pátria, cuja vitória representaria o fim da república. Não surpreende, tampouco, que mais presidentes tenham sofrido processos de impeachment desde o fim do confronto ideológico com os soviéticos do que nos primeiros dois séculos da república estadunidense.

Nesse contexto, a ascensão da China e a emergência de uma guerra fria entre os EUA e esse país asiático teriam o potencial de ajudar a sociedade americana a superar suas profundas divisões, que hoje representam ameaça à estabilidade política do país? À primeira vista, parece que não —afinal, apesar do seu sistema político formalmente parecido com o da União Soviética, qualquer um que pousa no aeroporto de Pequim ou Xangai logo percebe que a sociedade chinesa é profundamente capitalista e pelo menos tão materialista e individualista quanto a dos Estados Unidos. Enquanto na Guerra Fria (1947-1991) havia pouca interação econômica entre os EUA e a União Soviética, hoje, milhares de empregos norte-americanos dependem da China, dificultando um confronto como o proposto por Donald Trump nos últimos quatro anos. Um vasto número de estudantes chineses, muitos deles filhos da elite política da China, assegura a sobrevivência das universidades norte-americanas. Além disso, diferentemente da União Soviética, a China não tem planos de exportar seu modelo político ou econômico. Transformar o regime comunista chinês em bicho-papão com o fim de unificar os EUA não seria nada fácil.

Por outro lado, tudo indica que Trump é apenas sintoma de um novo consenso anti-China em Washington, reflexo de uma sociedade cada vez mais preocupada com o deslocamento de poder para o gigante asiático. O bloqueio de aplicativos chineses pelo Governo dos EUA e a disputa pela supremacia digital entre as duas potências, simbolizada pela atuação do Governo norte-americano contra a empresa chinesa Huawei, representam somente o começo de um novo sistema internacional marcado por esferas de influência de natureza tecnológica, dividindo o mundo em países que ou usam tecnologia americana ou preferem a chinesa. Parece provável que líderes políticos nos EUA tentarão aproveitar esse novo cenário para incitar o nacionalismo que ajudou a estabilizar o debate político durante a Guerra Fria.

Um estrategista da equipe de transição do Governo Biden me disse recentemente que a postura de Trump em relação à China era “talvez o único ponto de convergência que temos [com os Republicanos]”. Só o tempo dirá se esse entendimento será suficiente para ter início uma reaproximação entre Democratas e Republicanos de forma a superar a hiperpolarização que se apoderou da política norte-americana.

*Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel