eleições 2022
Eliane Cantanhêde: O preço da reeleição
Para Renda Brasil e Pró-Brasil, tem de atingir aposentados, Educação e Agricultura?
É curioso como o “novo” Renda Brasil repete a novela da “nova” CPMF. O presidente Jair Bolsonaro jura que os dois estão enterrados e não se fala mais nisso, mas, mais dia, menos dia, o ministro Paulo Guedes desenterra a CPMF e o relator do Orçamento no Congresso, senador Marcio Bittar, ressuscita o Renda Brasil, tenham lá que nome tenham as duas “novidades”. E fica tudo no ar. Ou seja: Bolsonaro confunde de propósito, para testar a opinião pública e jogar a responsabilidade no colo alheio.
Essas idas e vindas do presidente ilustram algo que está escancarado, à vista de todos: Bolsonaro parou de fingir que apoia seu Posto Ipiranga incondicionalmente, que encampou o liberalismo e que está governando o País para valer. Caiu a máscara e ele assume o seu verdadeiro eu e a sua candidatura (muito) antecipada à reeleição.
Há, assim, um embate sem solução entre política e economia, eleição e governança, populismo e pragmatismo, gastança e contas públicas, responsabilidade e inconsequência. O resultado é complexo, mas fácil de explicar pela aritmética: as contas precisam fechar. Para gerar despesas, é preciso providenciar receitas. Nunca é simples, mas fica muito mais complicado com pandemia e recessão.
É aí que a porca torce o rabo, porque Bolsonaro exige que o Ministério da Economia garanta despesas que ele considera fundamentais para sua popularidade, hoje, e sua reeleição, amanhã. E Guedes e a equipe esbarram em limitações práticas, técnicas e até políticas para arranjar receitas e sustentar a ambição política do chefe: dinheiro curto, teto de gastos, resistência de ministros e da sociedade.
As opções são questionáveis sob vários ângulos e duplamente prejudiciais às próprias pretensões de Bolsonaro. O cobertor é curto: para ganhar votos com o Renda Brasil, tem de perder com congelamento de pensões e aposentadorias? Para ganhar votos com o Pró-Brasil, tem de perder com cortes em áreas estratégicas como Educação, Cidadania e Agricultura? Para manter votos com isenção das igrejas evangélicas, tem de perder dos tantos que são contra?
Renda Brasil e Pró-Brasil são os carros-chefes da campanha de Bolsonaro. Um é dinheiro na veia do eleitor, mas a opinião pública deu um pulo e Bolsonaro ameaçou a equipe econômica de “cartão vermelho” diante da ideia de congelar por dois anos os reajustes da Previdência para financiar o programa. Tira daqui, põe dali, é soma zero para popularidade e voto.
Já o Pró-Brasil é obra, inauguração, viagem, chapéu de vaqueiro e criança no colo, particularmente no Nordeste, tão populoso quanto oposicionista. Mas, quando o Estadão informa que o dinheiro pode sair da Educação e da Agricultura, não é só a opinião pública que se espanta, são os próprios ministros.
O da Educação, Milton Ribeiro, até agora um fantasma que fala em zumbis, explica que ele não tem culpa se os antecessores – Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, de triste memória – deixaram sobras porque não sabiam o que fazer com o dinheiro. E a da Agricultura, Tereza Cristina, avisou ontem mesmo, no Live Talks A Retomada da Economia, do Estadão, em parceria com a Tendências Consultoria: “Eu sou pequenininha, sou quietinha, mas eu brigo duro”. Bolsonaro sabe disso.
E daí? Chama o Centrão! Se for um sucesso, os louros serão do presidente, como no auxílio emergencial. Se for um desastre, a culpa será do Congresso – e do Supremo, da mídia. Assim, Bolsonaro vai ajustando sua estratégia e as contas públicas para conquistar o voto dos pobres e manter o dos ricos. Com uma carta na manga após jogar fora o liberalismo e o combate à corrupção: Lula. Se algo de 2018 sobrevive para 2022, é: “ou eu ou o PT, o que vocês preferem?”
Merval Pereira: De volta ao passado
A certeza de que será decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a parcialidade de Sérgio Moro como juiz nos processos que condenaram o ex-presidente Lula é tamanha que ele ontem se lançou candidato à presidência da República em 2022. Colocou-se “à disposição do povo”. Desmentindo, assim, que o PT pudesse ter outro candidato, como insinuou recentemente.
O pronunciamento de ontem, e alguns movimentos anteriores, são sinais de que Lula tenta se reaproximar da esquerda, que já tem dois candidatos colocados: Ciro Gomes, pelo PDT; e Flavio Dino, do PCdoB. Há quem veja até possibilidade de Lula vir a repetir Cristina Kirchner, e apresentar-se como vice de uma chapa de esquerda. Difícil acreditar numa manobra dessas, pois tanto Ciro quanto Dino têm peso político próprio.
Quem aceitou ser vice de Lula foi Brizola e, depois da derrota para Fernando Henrique em 1998, nunca mais se aprumou na política. Moro, por sua vez, reluta em assumir uma candidatura que, pelas pesquisas recentes, é no momento a que mais competitiva se mostra diante do presidente Bolsonaro, fortalecido nos últimos meses depois que pagou o auxílio emergencial a milhões de brasileiros na pandemia.
Um programa social turbinado gerando os mesmos efeitos que Bolsonaro criticava quando o PT lançou o Bolsa-Família. Moro e os procuradores da Lava-Jato estão cercados de adversários pelos diversos lados do espectro político, dependendo de decisões judiciais para vislumbrar o futuro.
Dallagnol já deixou a coordenação da força-tarefa de Curitiba por questões de doença na família, mas mesmo assim deu-se um jeito de voltar a julgá-lo por uma acusação de que já foi liberado pelo próprio Conselho Nacional do Ministério Público. Nada deve acontecer além de uma advertência, que poderá ser questionada em recurso, mas a obstinação de seguir com o processo, mesmo depois que o ministro Celso de Mello suspendeu os procedimentos administrativos contra ele no CNMP, mostra que seus adversários não darão trégua enquanto não o neutralizarem politicamente.
Tendo o novo coordenador da Lava-Jato, o procurador Alessandro Oliveira, como âncora, os procuradores gravaram áudio defendendo a liberdade de expressão, que estaria ameaçada pela perseguição sofrida por Dallagnol. Com Sérgio Moro acontece a mesma coisa. A comprovação da parcialidade dele nos processos contra Lula seria, segundo a defesa de Lula, ter aceitado ir para o ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro.
Uma acusação frágil, pois só existem ilações, e não provas, de que Moro já pensava em ir para o governo antes de Bolsonaro ser eleito, e por isso teria condenado Lula. Bastaria saber que o ex-presidente só se tornou inelegível depois de ter sido condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal (TRF-4) para desmistificar essa acusação.
Agora, então, que Moro deixou o governo e tornou-se inimigo de Bolsonaro, o ataque persiste porque é preciso desmoralizar a Lava-Jato, e especialmente Moro, anulando suas condenações. Lula ser candidato é um efeito colateral que essas alianças circunstanciais provocam. Assim como Lula não se tornou ficha-suja devido a um complô que uniu todo o Judiciário com o objetivo de impedi-lo de se candidatar, mas simplesmente porque foi condenado em segunda instância, e também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O fato é que a Lava-Jato hoje une contra si o PT, o PSDB, Bolsonaro, o Centrão, empresários, e todos os que se beneficiam de sua desmoralização para continuarem impunes. Decretada a parcialidade de Moro contra Lula, todos os demais condenados na Lava-Jato pedirão revisão de seus processos. Voltaremos ao velho sistema político que preserva o status quo, tempos em que era hábito o STF não condenar nenhum político ou empresário famoso.
Eliane Cantanhêde: De retrocesso em retrocesso
Sem Lava Jato e com ‘fiscais do Messias’, logo chegaremos a 1980. Viva o Centrão!
Além da pandemia, que parece arrefecer, mas já matou mais de 125 mil brasileiros, o Brasil convive neste momento com ameaças a vários alvos bem definidos: Lava Jato, reforma administrativa, ministro Paulo Guedes e liberalismo do governo, vacinação em massa contra a covid-19 e preços de alimentos. Pairando sobre tudo isso, um mesmo fantasma que insiste em rondar o País: retrocesso.
O cerco à Lava Jato une a esquerda de Lula à direita de Bolsonaro, PGR, ministros do Supremo, cúpula e líderes do Congresso e parte da mídia, com tudo caminhando para um gran finale de efeitos explosivos: o julgamento sobre a suspeição do ex-ministro Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula, que passaria de réu a vítima e de preso a candidato.
O aperitivo foi quando a Segunda Turma do STF, por empate, que é pró-réu, anulou as condenações do Banestado e depois sustou ação penal contra o ministro do TCU Vital do Rêgo. A sobremesa, em cascata, será quando os advogados entrarem aos montes com recursos (que já devem estar prontos) pedindo “isonomia” para os seus presos e condenados.
“Se estava tudo tão errado assim na Lava Jato, vamos ter de soltar o Sérgio Cabral e devolver o dinheiro, mansões, lanchas, joias e diamantes do Sérgio Cabral?”, adverte um ministro do próprio Supremo, refletindo um temor que cresce na opinião pública na mesma rapidez com que caem os instrumentos e agentes da Lava Jato.
Já a reforma administrativa, que nove entre dez autoridades reconhecem como “fundamental”, mas só de boca para fora, está sem pai e sem mãe. O presidente Jair Bolsonaro, que trancou a proposta por dez meses, não quer e vai querer cada vez menos mexer com o funcionalismo – ou qualquer coisa que possa ameaçar sua reeleição em 2022. E Paulo Guedes e Rodrigo Maia, ambos fortemente a favor da reforma, romperam bem na hora decisiva.
Ex-Posto Ipiranga e ex-superministro, Guedes promete muito, entrega pouco, perdeu as graças do presidente, rompeu com a ala forte do governo e agora se mete numa briga juvenil com o homem-chave das reformas e do seu futuro no governo. E de um jeito ridículo. Proibir seus secretários de conversar com o presidente da Câmara?! Bem, Maia apresentou uma reforma da própria Câmara e foi cuidar da reforma tributária. Guedes que se vire. Com quem? Não se sabe.
E que tal ter na Presidência alguém que usa o cargo para fazer propaganda de um medicamento sem comprovação científica em nenhuma parte do mundo e para desestimular o uso obrigatório da vacina para livrar o País da maldição da covid-19? Por quê? Porque ele governa o Brasil misturando seus achismos com conselhos de terraplanistas que apostavam em no máximo 2.100 mortos. Já chegam a 125 mil, mas Bolsonaro continua firme com eles.
A última do presidente é apelar para o “patriotismo” dos donos de supermercados para segurar os preços. É evidente que a disparada dos preços já começou, em função de pandemia, dólar, estoques da China. E que o governo não tem ideia do que fazer. Além de apelar a empresários, talvez seja hora de orar. Milhões de pessoas sem emprego, com alta de preços de arroz, feijão e óleo… Boa coisa isso não dá.
Como alertou o colega José Fucs, é a volta aos anos 1980. A polícia (ou o Exército?) laçando bois no pasto, “fiscais do Messias” prendendo gerentes nos supermercados ao som do Hino Nacional. Nada com liberalismo, tudo com populismo e perfeitamente de acordo com cegueira ideológica, meio ambiente, Educação, saúde, política externa, cultura, inclusão, respeito à divergência, combate à corrupção e… censura quando se trata de Flávio Bolsonaro. De retrocesso em retrocesso, logo chegaremos a 1980. E viva o Centrão.
Valor: Parte do PSDB “namora” o presidente, diz FHC
Para o ex-presidente, atual chefe de Estado é forte politicamente, sabe se comunicar com a população e que tem chances reais de se reeleger em 2022
Por Cristiane Agostine, Valor Econômico
SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou ontem que um dos maiores problemas do PSDB para fazer oposição ao governo Jair Bolsonaro é que parte do partido “namora” o presidente. FHC disse que Bolsonaro é forte politicamente, sabe se comunicar com a população e que tem chances reais de se reeleger em 2022.
Fernando Henrique cobrou mudanças na forma de lideranças do partido se comunicarem com a população e defendeu a escolha de um nome tucano para liderar a oposição a Bolsonaro, com vistas à próxima eleição presidencial.
“Há um pressuposto que pode levar ao autoritarismo em nome da salvação nacional, de um projeto grandioso, em nome do bem-estar da maioria. Temos que fazer isso de forma democrática, antes que façam de forma não democrática. Há esse risco. Há risco real de que isso aconteça no Brasil. Bolsonaro é um sintoma disso aí”, disse FHC.
“[O presidente] É candidato. Bolsonaro pode ganhar a eleição de novo, dependendo da forma como atuemos. Se ficarmos só com as nossas ideias e só entre nós, ele ganha”, afirmou o ex-presidente, ao participar de um debate sobre “Brasil e o mundo pós pandemia”, promovido pelo PSDB e pelo Instituto Teotônio Vilela, do partido.
O ex-presidente afirmou que Bolsonaro sabe falar com o “homem comum”, explora o discurso da defesa da ordem, que é um desejo da população, e tem o domínio das redes sociais. “Ele [Bolsonaro] chegou lá porque ele é o homem comum. Ele estoura, fala bobagem de uma maneira rude. Isso toca a pessoas, que são a maioria, que é parecida com esse estilo”, disse o tucano. Para FHC, a população está com “raiva” dos políticos e isso abre espaço para a demagogia e o populismo de direita, que tende ao autoritarismo.
Fernando Henrique disse que o PSDB precisa ter identidade e construir um discurso de oposição ao governo. “Temos que ver como ser contra Bolsonaro”, disse. “Temos que ter uma posição. Isso depende de muito de quem vai falar em nosso nome. É fundamental. Quem vai falar e o que vai falar. Um problema é que parte do PSDB namora o Bolsonaro. Temos que falar em nome do interesse do Brasil contra o Bolsonaro. O enigma político é esse. Temos que unificar nossa linguagem nessa direção.”
Ao falar com lideranças nacionais do PSDB, FHC disse que o partido precisa de “pessoas que guiem e deem o caminho”. “Precisa de pontos de referência. A escolha de quem vai ser candidato é sempre importante. Quem fala orienta os demais”, afirmou, sem defender um nome para a eleição presidencial de 2022. O tucano disse ainda que o PSDB precisa “expressar o sentimento que não seja da classe dominante”. “Não precisa de muitas ideias, precisamos de pessoas capazes de simbolizar essas ideias. Ver quem é que tem essa capacidade”, afirmou. “Temos que unificar nosso discurso e ter consciência de que sozinhos não vamos chegar lá. O homem [Bolsonaro] é forte.”
Durante o debate, o senador Tasso Jereissati (CE) reforçou que o partido perdeu sua identidade. “Agora não somos nada porque não somos nem uma coisa nem outra. Dentro de nossos quadros existe uma salada de frutas muito grande. Uma mistura de muita gente completamente diferente e que não tem absolutamente nada a ver com nossos princípios”, disse. “Precisamos começar tudo de novo, se é que queremos sobreviver.”
Rosângela Bittar: Agora um voto, depois o outro
Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 2022
O País está a 80 dias das eleições municipais e a dois anos da eleição presidencial. E como eleição não é fetiche mas a única forma de acesso ao poder, não dá para resmungar dúvidas e dificuldades, a única saída é encará-las. Por mais que os eleitos na fornada de 2018 tenham decepcionado e deixado uma aura de desânimo no eleitorado, não se deve fugir do desafio. A excepcionalidade deste ano faz valer a pena, a realidade se impõe com seus agravantes. Entre eles, a evidência de que o pleito favorecerá reeleições, a começar pelos custos da campanha.
Quem está no cargo terá 45 dias a mais de exposição em propaganda oficial da sua administração, com dinheiro público. E um cardápio perfeito de proselitismo ilegal, incluindo as ações assistencialistas impostas pela pandemia. O financiamento próprio dos candidatos ricos é limitado, portanto seu trunfo será relativo. Outra peculiaridade:
menos de mil dos mais de cinco mil municípios têm campanha na televisão, os demais serão invadidos pelos sinais dos vizinhos. E a promessa de ampla campanha virtual exige verba considerável. Desvantagem para quem não está no cargo.
A abstenção eleitoral se acentuará pela pandemia. O adiamento da votação para 15 de novembro, porém, não teve o efeito esperado. Havia a previsão de que, em 45 dias para a frente, o País teria algum controle da doença. Expectativa frustrada. Não há sinais de que até lá será possível voltar às campanhas de rua, com aproximações, passeatas, abraços e apertos de mão. Nem se afastou, também, o risco de redução drástica do comparecimento às seções eleitorais.
Inexistem sinais de que em novembro o Brasil terá melhor diagnóstico para a covid-19, mais remédios e alguma vacina completando seu ciclo de testes. Ou que arrefeçam os riscos de contaminação. Os idosos reduzirão sua presença, seja por iniciativa própria ou por conselho dos parentes. Uma situação que afeta, bastante, a disputa em alguns municípios, caso de São Paulo, onde o eleitorado mais velho decide a disputa. A multa para quem não comparecer é irrisória, R$ 3,50. E mesmo assim, devido à pandemia, o Congresso deverá providenciar ampla anistia. Será suficiente o número de mesários dispostos a passar 12 horas expostos ao risco da contaminação frente a frente? Haja álcool em gel para 150 milhões de eleitores. O tempo da votação se prolongará, pelo uso do sistema antigo de identificação.
Os pequenos e médios municípios ainda devem apresentar alguma discussão sobre os problemas locais, especialmente da educação, da saúde, da segurança, como sempre ocorreu. Mas há o risco de a campanha municipal ser invadida pela indignação nacional que a epidemia causou.
Os temas federais, porém, estarão com certeza nas campanhas das grandes cidades: a recessão, o desemprego, a criação do novo imposto-Bolsonaro, o desprezo do presidente às mortes e à doença dos brasileiros, o obscurantismo do governo na ciência e nas artes, especialmente. Um arsenal temático que, em princípio, deve prevalecer no debate, pelo menos onde houver segundo turno. Apenas 100 dos 5550 municípios brasileiros.
Entre as incertezas que ainda cercam a eleição municipal estão suas conexões com a eleição presidencial de 2022.
O candidato a prefeito que perder a disputa, mas for bem votado, passará a ser candidato a deputado estadual ou federal, e estará, fatalmente, conforme o costume, com a cabeça na próxima disputa, a presidencial. Que tende a valorizar todo e qualquer apoio.
O mesmo ocorrerá com os vereadores, inclusive os eleitos, dispensados de deixar o mandato se desejarem dar um passo à frente. São todos importantes, mesmo perdendo. O que é uma provocação também para aos atuais deputados federais e estaduais, que terão concorrentes qualificados. Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 22.
Afonso Benites: Oposição fracassa na criação de frente de esquerda contra Bolsonaro na eleição de 2020
Hegemonia do PT e cláusula de barreira são alguns dos empecilhos para unificar partidos na disputa pelas principais prefeituras
“Não há unidade entre a esquerda. Cada um está cuidando da sua própria vida.” O diagnóstico feito pelo presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Carlos Siqueira, é uma síntese da frustrada tentativa de seis legendas de se integrarem e unificarem os discursos anti-Jair Bolsonaro nas eleições municipais deste ano. Há cerca de três meses, esse grupo que tem feito um trabalho quase uníssono no Congresso Nacional como oposição ao presidente intensificou as conversas para dividirem os palanques nas 92 maiores cidades brasileiras, que é onde há a possibilidade de haver segundo turno. Nacionalmente, as negociações foram encerradas há duas semanas. “Temos convergências de pensamentos, mas na hora da disputa eleitoral, encontramos dificuldade nessa unidade”, avalia a presidenta do PCdoB, Luciana Santos.
Entre as razões estão a falta de interesse do Partido dos Trabalhadores em abrir mão de sua hegemonia na oposição, disputas políticas internas em cada município e a preocupação dos partidos menores em ter uma base de sustentação para 2022, quando a cláusula de barreira, mecanismo que traça uma quantidade mínima de votos para continuar existindo como legenda, será elevada. As conversas estavam sendo feitas por dirigentes de PT, PSB, PDT, PCdoB, PSOL e REDE.
Estimulado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o principal antagonista de Jair Bolsonaro, o PT decidiu que precisa ter o máximo de candidaturas possíveis para poder se defender. “O PT precisa ter voz. Falar de seu legado, das experiências que já teve nas gestões municipais, se defender dos ataques”, diz a presidente da legenda, a deputada federal Gleisi Hoffmann. Nesta eleição, deverá lançar candidatos em 1.531 dos 5.570 municípios brasileiros. Juntas, essas cidades representam 60% da população nacional. Em 2016, último pleito municipal, foram 993 cabeças de chapa. “O grande problema do PT é a cultura hegemônica dele. O PT só pensa em seus candidatos”, reclamou o presidente do PDT, Carlos Lupi.
Entre as 26 capitais onde as prefeituras estarão em disputa, já há pré-candidaturas petistas encaminhadas em 23 delas. Há dúvidas sobre o pleito em São Luís, capital do Estado comandado por Flavio Dino (PCdoB). E em apenas duas capitais o partido concordou em se aliar a outros grupos: Belém com Edmilson Rodrigues (PSOL) e Porto Alegre com Manuela D'Ávila (PCdoB), que foi vice na chapa presidencial do partido em 2018.
Três casos locais servem para exemplificar as tentativas frustradas de união. Em Recife, os diretórios estadual e municipal da legenda decidiram se aliar com o PSB, que lançou a pré-candidatura de João Campos. Mas a direção nacional interveio e determinou que o nome deveria ser o de Marília Arraes, prima em segundo grau de Campos e que disputa com ele o legado familiar deixado pelos ex-governadores Miguel Arraes e Eduardo Campos. No Rio de Janeiro, os petistas estavam inclinados a se juntar à candidatura de Marcelo Freixo (PSOL). Quando este desistiu de disputar por não se sentir seguro com a almejada unidade da esquerda, três outras legendas seguiram unidas (REDE, PSB e PDT), mas o PT lançou Benedita da Silva, ainda sem apoio externo. E em São Paulo, os petistas lançaram Jilmar Tatto, apesar de parte da base defender o apoio a Guilherme Boulos (PSOL) ou a Orlando Silva (PCdoB). Em entrevista ao EL PAÍS nesta terça, Tatto avaliou como natural a escolha do partido e disse que o primeiro turno serve justamente para apresentar propostas, não impedindo união no teste das urnas final.
Nem mesmo em um dos casos “bem-sucedidos” de união citado por Gleisi, ela se concretizou com toda a esquerda. Em Porto Alegre, o PSOL anunciou a pré-candidatura de Fernanda Melchiona e o PDT, a de Juliana Brizola. A REDE ainda avalia qual dessas duas últimas apoiará. “Desde 2013 as forças de direita tentam fazer a desconstrução do PT, de preferência a anulação do partido. Numa frente, é mais difícil fazer a defesa individualizada”, diz Gleisi ao explicar o motivo pelo qual não deu sequência às conversas para a formação de uma frente de esquerda. Ela reclama diretamente do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, o chamando de golpe, e da prisão de Lula, que trata como uma detenção política.
“No fim, acaba sendo aquela velha máxima. Nos momentos decisivos para o país, o PT ficou sempre na contramão da história”, diz Siqueira, do PSB. Ele cita os posicionamentos contrários dos petistas à Constituinte de 1988, ao governo de integração promovido por Itamar Franco, em 1992, e à aprovação do Plano Real, em 1994. “Não cobramos nada do PT, gostaríamos que entendessem da gravidade do momento e unificasse a esquerda”, queixou-se Siqueira.
Sobre as críticas de que o PT prefere manter essa característica hegemônica a defender a bandeira de toda esquerda, Gleisi diz que as alianças encaminhadas nas duas capitais (Porto Alegre e Belém) demonstram que o partido estaria aberto ao diálogo. E cita ainda a necessidade de todas as legendas se reforçarem em 2020 para colher os frutos em 2022. “É a oportunidade de reafirmar a sua legenda, de proteger-se. Não é o nosso caso, mas têm partidos que podem sumir, caso não superem a cláusula de barreira”.
Na prática, esse mecanismo deverá reduzir a quantidade de partidos políticos porque: 1 - só terá acesso ao fundo partidário e ao tempo de TV as siglas que receberem 2% dos votos válidos nacionalmente para deputado federal em um terço das unidades da federação, sendo um mínimo de 1% em cada uma delas; ou 2 - tiverem elegido ao menos 11 deputados federais distribuídos em nove unidades. “Com a proibição das coligações para vereadores e a elevada cláusula de barreira é natural que os partidos tenham suas candidaturas para afirmar seu lugar político, sua identidade e a defender a sua sobrevivência”, avaliou a comunista Luciana Santos.
Repetição de 2018
Sem essa integração, há quem entenda que o PT insistirá na polarização contra bolsonaristas como uma antessala de 2022. E o resultado pode ser que, em duas ou três eleições seguidas, o cidadão acabe tendo de escolher mais por exclusão do que por adesão a determinada ideia ou plataforma política. “A polarização para o PT é muito boa. Bolsonaro e PT são um melhor amigo do outro do ponto de vista de manter o status quo”, diz o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Tanto o PT quanto Bolsonaro enxergam um no outro o inimigo capaz de aglutinar suas hostes”, acrescenta o cientista político Valdir Pucci, doutor pela Universidade de Brasília.
O porta-voz nacional da Rede, Pedro Ivo Batista, diz que o ideal era haver uma união entre os partidos progressista já em um primeiro turno. Mas, como as características de eleições municipais são distintas das nacionais, quando os temas macros ficam em evidência, dificilmente isso ocorrerá na grande maioria das cidades. “O Brasil nunca teve um governo neofascista como esse. O ideal era unir mais para poder evitar esse perigo de forças totalitárias. Corremos o risco de perdermos a eleição agora como perdemos em 2018”, disse Batista.
Presidente do PSOL, Juliano Medeiros, discorda da tese de que neste ano haverá uma prévia de 2022. Entende que servirá como um termômetro, indicará tendências. “O fortalecimento da oposição e um enfraquecimento eleitoral do bolsonarismo, por exemplo, não garantem a derrota da extrema direita em 2022, mas aponta um cenário mais favorável para as forças populares”, analisa. Dos seis dirigentes partidários consultados pela reportagem, apenas ele contemporizou a divisão na esquerda. Disse, por exemplo, que é papel do PT tentar manter sua hegemonia e das demais siglas progressistas de buscarem seus espaços, desde que se mantenha o diálogo respeitoso. Disse ainda que a ideia de frente ampla tem crescido aos poucos, já que não pode ser imposta de cima para baixo.
A expectativa entre os representantes desse campo político é que a frustrada unificação no primeiro turno seja possível ocorrer na segunda etapa da eleição. Resta saber o que ainda estará em disputa.
Rosângela Bittar: O artilheiro e seu canhão
Com um profissional no papel de formulador da tática, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão
O primeiro sinal para o início do espetáculo da sucessão soou como um alarme. E os adversários de Jair Bolsonaro na disputa à Presidência acordaram, embora tarde. Luciano Huck, que já teria decidido disputar, permanece indiferente ao tempo e não se anuncia. O que não lhe tira a vantagem de ser o candidato mais perto do povo, mas aprofunda sua desvantagem de distanciamento do mundo político. Desperdiça a campanha municipal como palanque ideal para uma aproximação necessária da máquina indispensável à disputa eleitoral.
Empenhado em tirar efeito das providências do Estado no combate à pandemia, João Doria está em situação oposta. Candidato mais próximo da máquina política, está sem condições, no momento, de mergulhar no burburinho municipal e misturar-se ao povo.
Ciro Gomes, sem mandato ou cargo que fixe sua imagem, e desgastado pela memória de embates anteriores, parece não ter um plano de recomeço. Talvez ainda intimidado pelo jogo petista que já voltou às mesas de bar: Lula poderá ser candidato? Fernando Haddad terá fôlego?
Sobre Sérgio Moro o que ressalta é a falta de iniciativa para transpor o paredão artificialmente erguido para que sua candidatura se viabilize. Falta-lhe de um tudo e, como para os demais, o tempo de construção é agora.
Um novelo que precisa ser urgentemente desfeito sob pena de a reeleição de Bolsonaro se consolidar muito cedo. O candidato no futuro que está no cargo presente pode abusar da oferta de benesses ao eleitorado e aos cabos eleitorais. Se acrescentar a estas vantagens a de não ter adversário, quando se sabe que terá, apenas adia-se a brecha da fraqueza.
Fortes candidatos a deputado federal, fundamentais na campanha presidencial, devem sair do quadro de perdedores das eleições municipais. O projeto em que vão se engajar precisa estar claro, no dia seguinte. Enquanto Bolsonaro for o único palanque presidencial na campanha municipal, sua vitória é presente de mão beijada.
Política é isto, correr atrás. Sem ritual, dispensando apresentação e até o próprio anúncio de sua nomeação, o experiente Ricardo Barros assumiu a liderança do governo com apenas um aviso aos navegantes. Mas é como se tivesse dito o que todos ouviram: “Coube-me, como professor, formar a aliança majoritária; basta me dizerem, no momento certo, para quê”. Com um profissional no papel de formulador da tática e da estratégia, retaguarda coberta, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão.
Colocou nas ruas uma campanha na clássica tradição brasileira. Para os pobres, demagogia. Dinheiro na veia da especulação, para os ricos. Daí, a questão. Até quando o assistencialismo continuará decidindo as eleições no Brasil? País, o nosso, que se projeta na fusão de imagens políticas da Venezuela, da Bolívia e da Argentina, para consolidar o pobre retrato eleitoral da maltratada SudAmerica.
O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prevê que assim será enquanto a desigualdade se mantiver brutal. E a indiferença da classe dominante recrudescer, por interesse eleitoral ou inação. “Ela (a classe dominante) não se abala.”
Não está fechado o espaço para um projeto alternativo ao assistencialismo, mas, como se sabe, não há partidos interessados em apresentá-lo. Não é impossível, também, que alguém, individualmente, vocalize um caminho novo, como admite o ex-presidente. “Mas é preciso que o povo acredite.”
A opinião pública sente-se traída. Bolsonaro conseguiu fazer crer que romperia com a era PT. Na primeira oportunidade, assumiu métodos e medidas que combatia.
Há, sim, uma expectativa de que ainda aparecerá alguém capaz de provar que a era Bolsonaro precisa ser encerrada. Se não, e a economia não atrapalhar, o populismo demagógico, mais uma vez, vestirá a faixa.
Leandro Colon: Sem pudor, Bolsonaro só pensa em 2022
Presidente movimenta peças para reeleição enquanto adversários buscam um rumo
A eleição presidencial de 2022 começou, as ruas já flertam com a reeleição de Jair Bolsonaro e alguém precisa contar para a oposição.
A agenda do impeachment, por ora, inexiste no Congresso, não vai prosperar no cenário atual. Tende a ser ineficaz insistir nela.
Não há sinais de que Bolsonaro corre risco até o fim de seu mandato por mais que razões possam ter (e não são poucas) para a abertura de um processo de afastamento.
Uma ação de impeachment precisa, além de ambiente político favorável, de um empurrão de fora que sustente a derrubada.
O Datafolha mostra que Bolsonaro está forte. Atingiu sua melhor avaliação no mandato, com 37% dos brasileiros considerando seu governo ótimo ou bom.
A curva de rejeição caiu de 44% para 34%. Para 47%, ele não tem culpa pelas 100 mil mortes causadas pela Covid-19 no país.
Alavancado pelo auxílio emergencial, que impediu 23,5 milhões de caírem na pobreza, o presidente está todo serelepe.
Semana passada foi para Belém inaugurar obras. Desembarca nesta segunda-feira (17) em Sergipe para cortar a faixa de uma usina termoelétrica. E faz troça com o teto de gastos públicos.
Bolsonaro joga para dentro também. Enlaçou-se com o probo centrão e namora o MDB do neoaliado Michel Temer. Réu por corrupção, o ex-presidente teve de pedir autorização da Justiça para chefiar a comitiva enviada ao Líbano.
Bolsonaro nem se constrangeu em indicar Ricardo Barros para liderar seu governo na Câmara. Deputado pelo PP-PR, Barros tem um prontuário extenso no ramo das investigações.
Com o fracasso na formação da Aliança pelo Brasil, Bolsonaro busca agora um partido para disputar a reeleição. Admite até deixar de lado as agruras com o PSL, a sigla especializada em laranjas que o elegeu presidente em 2018.
O presidente movimenta as peças sem pudor. Quando (e se) seus adversários encontrarem um rumo nos próximos dois anos, pode ser tarde demais.
Fernando Gabeira: A metamorfose do mito
Aparentemente, caminho de Bolsonaro é sem pedras. Congresso dá apoio em troca de cargos, eleitores gratos ao novo benfeitor
Se a frase não tivesse uma conotação tão negativa para ele e seus seguidores, diria que Bolsonaro saiu do armário. Melhor então dizer que mostrou sua face e, se quiserem imagem mais antiga, rasgou a fantasia.
Creio que um marco temporal da metamorfose foi a prisão de Fabrício Queiroz. Uma dose de criptonita na veia do mito de milhões de brasileiros que contavam com sua força para derrubar o velho regime e acabar com a corrupção.
Naquele manhã, Bolsonaro despertou não como o personagem de Kafka, sentindo-se uma barata. Percebeu que era apenas mais um animal na floresta de Brasília. Não era do mesmo tipo dos que se financiam com dinheiro de empresas. Mas sabia que seu esquema ficaria evidente para qualquer analista político, independentemente do grau de miopia.
Vários mandatos na família, pouco mais de uma centena de funcionários, uma boa parte fantasma, e estava resolvido o problema financeiro de campanha e melhoria de vida, capitalizando em negócios imobiliários. Era preciso reencontrar o Centrão, um grupo do qual nunca esteve distante. Seus partidos ao longo dos 28 anos de mandato sempre foram fisiológicos. E o Centrão não significa apenas garantia contra impeachment. Há ali toda uma sabedoria de como se dotar de uma pele de elefante para se escudar das críticas.
Bolsonaro sempre foi um combatente ideológico. Ele só adotou o tema da corrupção quando percebeu que essa era a grande fragilidade da esquerda. Nesse ponto, tentei até dizer a ele nas entrelinhas de uma entrevista, Bolsonaro não difere do movimento militar de 64. Eles falavam em combater a subversão e a corrupção. Mas terminaram apoiando Paulo Maluf, numa tentativa de derrotar Tancredo Neves. É um tipo de pensamento onde existem os nossos corruptos e os deles.
A investida contra Moro por não conseguir intervir na PF do Rio era destinada exatamente a evitar que sua família e amigo fossem incomodados. Não adiantou, Fabrício Queiroz foi incomodado no refúgio de Atibaia em junho.
Agora não há mais mistério. Bolsonaro abandona a fantasia e sabe que perde também uma fração de eleitores que acreditava em seu programa e consegue constatar que foi para o espaço. Somadas às perdas com o desastroso negacionismo diante do coronavírus, era preciso buscar outro norte, ou outro Nordeste para sobreviver. É uma fórmula consagrada pelas pesquisas de popularidade.
Um instrumento sempre denunciado pela direita como uma forma de compra de eleitores, o Bolsa Família ressurge como tábua de salvação. Por que não inventar um Bolsa Família para chamar de seu?
E lá se vai Bolsonaro com um chapéu fake de boiadeiro cavalgando seu novo destino. Aparentemente, um caminho sem pedras. O Congresso dando apoio em troca de cargos, eleitores agradecidos ao seu novo benfeitor. Mas há nuvens no horizonte. Onde conseguir dinheiro para financiar esse projeto de reeleição que, na aparência, é um projeto social? Pedaladas no Orçamento podem resultar em impeachment. Mas nem sempre.
Será preciso jogar fora duas importantes bandeiras: a racionalização da máquina e a venda de estatais improdutivas. Esta semana já foram para o espaço os responsáveis por elas no governo. Os pilotos saltaram do avião. Como supor que seja possível ratear cargos nas estatais e, simultaneamente, pedir que as forças políticas aceitem sua passagem para a iniciativa privada?
Um presidente apoiado no Centrão não será novidade. Bolsonaro não se interessa tanto pelo Líbano quanto pelas fórmulas do MDB de Temer para manter a fidelidade de deputados em caso de processo. A tendência será a de um governo como os outros, apoiado no toma lá dá cá, e estourando o teto de gastos para sobreviver politicamente.
O perigo não é só a bancarrota. A própria classe média pode de novo se enfurecer e surgir por aí um novo salvador para implodir o sistema e acabar com a corrupção. Conheço esse filme desde as últimas décadas do século passado. Collor, o caçador de marajás, fracassou; Lula, prometendo introduzir a ética na política, acabou se desvencilhando dela.
Não eximo ninguém de sua responsabilidade pessoal. Mas essa armadilha histórica da qual não conseguimos escapar merecia uma reflexão. Nossas elites são intrinsecamente desonestas ou também há algo errado com nosso sistema político?
A sucessão de salvadores da pátria não é um fenômeno qualquer. Com Bolsonaro, ela nos jogou nos perigosos limites da democracia.
Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, semelhanças inquietantes
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, claro, mas…
No início de maio um grupo de manifestantes ostensiva e fortemente armados irrompeu na Assembleia Legislativa de Michigan para protestar contra a quarentena decretada pela governadora democrata para deter o crescimento da pandemia. Donald Trump não demorou a disparar um tuíte em apoio aos manifestantes. O fato de o grupo de brutamontes (todos homens, todos brancos) estar portando rifles não pareceu digno de nota ao presidente americano. Jair Bolsonaro teria vibrado, a julgar pelo que disse na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que defendeu armar o povo para enfrentar prefeitos e governadores.
Em julho, a retórica incendiária do presidente americano inflamou-se ainda mais. Prefeitos democratas de cidades onde eram realizadas manifestações, em geral pacíficas, do movimento Black Lives Matter foram acusados de nada fazerem para evitar a “anarquia social”. Da retórica Trump passou à ação, enviando agentes policiais da União para reprimir os protestos, em decisão que pode configurar abuso do poder presidencial. Os agentes federais, camuflados como militares em guerra, têm agido com violência injustificável, enquanto Trump chama os manifestantes de “marginais”. Bolsonaro os teria chamado de “terroristas e maconheiros”. Ao menos foi o que disse a respeito de quem saiu às ruas no começo de junho para protestar contra o seu governo.
Atrás em todas as pesquisas de opinião, sem controle sobre a pandemia, Trump está na busca desesperada por uma narrativa que o mantenha no páreo para as eleições de novembro. Quer ser o candidato da lei e da ordem.
Parece uma reedição da estratégia de Richard Nixon, que se elegeu em 1968 prometendo pulso firme contra protestos de jovens universitários e negros. A semelhança, porém, é apenas aparente. Trump não busca mobilizar o conservadorismo tradicional. Sua aposta é a de um extremista, disposto a conflagrar o país e testar, ao máximo, os limites da institucionalidade. Mais do que o candidato da “lei e da ordem”, ele flerta com a ideia de ser o líder de um povo pronto a empunhar armas para defender a América contra “terríveis ameaças”.
A incitação de Trump à violência e a desfaçatez de suas teorias conspiratórias vêm se agravando. Ainda nas primárias republicanas para a eleição de 2016, ele disse que pagaria do próprio bolso a fiança de seus apoiadores que “descessem o cacete” em quem perturbasse os seus comícios. Na campanha para as eleições daquele ano, afirmou que se perdesse seria sinal de fraude, e se recusou a dizer se aceitaria o resultado. Em 2017 disse haver “gente boa” entre supremacistas brancos que brutalizaram manifestantes contrários. Em 2019 perguntou à multidão que o ouvia na Flórida como deveriam ser recebidos os imigrantes que tentassem cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos. Sorriso no rosto, escutou a resposta em coro: “Com tiros, com tiros”. No mesmo ano, acusado na Câmara por crimes de responsabilidade, brandiu a ameaça de uma guerra civil se o Congresso o impedisse de seguir na Presidência.
Com a aproximação das eleições de novembro, a retórica incendiária de Trump está chegando ao paroxismo: além de defender, semanas atrás, que a polícia atirasse em quem promovesse saques, desatou a repetir que há uma grande fraude em preparação, até mesmo com interferência de governos estrangeiros, nos votos que serão enviados pelo correio, uma prática antiga e segura em vários Estados americanos. Bolsonaro há muito propaga a lenda de ser a urna eletrônica um convite à manipulação dos resultados eleitorais.
Refletindo sobre o cenário político americano, Fareed Zakaria, em recente artigo no jornal The Washington Post, advertiu para o perigo que Trump hoje representa para a alternância pacífica de poder nos Estados Unidos. Zakaria tem razão em se preocupar: se o resultado for apertado, é provável que o presidente americano de tudo faça para “melar o jogo”. Felizmente, no Brasil existe segundo turno, inexiste o colégio eleitoral e não há contagem manual de votos.
Talvez mais preocupante seja o fato de que, mesmo com o eventual despejo de seu líder da Casa Branca, o trumpismo siga vivo ou mesmo se torne mais virulento. Não deve passar despercebida a desenvoltura crescente de grupos paramilitares imbuídos da missão de proteger a “verdadeira América”, onde os brancos mandam, os pretos obedecem e os imigrantes não entram. Mutatis mutandis, o mesmo “patriotismo” sectário, excludente e truculento se encontra nos bolsões mais radicais do bolsonarismo.
Estimulada pela retórica anti-imigrante de Trump, cresce a atuação de grupos de vigilantes que assumem funções de polícia de fronteira na divisa com o México. Atiçados pelo presidente, outros grupos de cidadãos armados se somam à intimidação e repressão contra os protestos antirracistas. Em nível local, não são raras as alianças implícitas entre esses grupos e forças policiais.
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, é claro, mas também semelhanças inquietantes.
*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Ricardo Noblat: Metade dos brasileiros decidiu passar o pano em Bolsonaro
Se todos são culpados, ninguém é
A julgar pelos resultados da nova pesquisa do Datafolha, a maioria dos brasileiros decidiu absolver Jair Bolsonaro dos seus pecados. Quase metade dos entrevistados nos últimos dias 11 e 12 disse acreditar que o presidente não tem culpa alguma pelo fato de o coronavírus ter matado mais de 100 mil pessoas no país.
Dos 52% que responderam que ele tem, sim, apenas 11% o veem como principal culpado, e 41% como um dos culpados, mas não o principal. Naturalmente, o maior percentual dos que passam o pano em Bolsonaro está os que consideram seu governo ótimo ou bom e que votaram nele no segundo turno da eleição de 2018.
A turma do andar de cima, que ganha mais de 10 salários mínimos por mês, aponta Bolsonaro como o principal ou um dos culpados pelas mortes. A do andar de baixo, que ganha até dois salários mínimos e que se beneficiou com o auxílio emergencial para combater a doença, acha justamente o contrário.
E não dá importância ao fato de que ele minimizou a pandemia chamando-a de gripezinha, boicotou as medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, defendeu a volta ao trabalho para salvar a economia, e recomendou o uso de uma droga que se revelou ineficaz para deter o vírus.
Mais de 3 milhões de brasileiros já foram infectados pelo Covid-19, segundo os registros oficiais, mas o número provavelmente é muito maior por causa da subnotificação. E daí? Exatos 49% dos entrevistados concordam com a afirmação genérica de que o Brasil não fez o suficiente para livrar-se do flagelo.
Essa é a melhor maneira de isentar de culpa Bolsonaro ou quem quer que seja. Se todos são culpados, ninguém é culpado. Passa-se o pano. E ainda existem os que dizem que o necessário para evitar tantas mortes foi feito (24%), e os que afirmam que as mortes não poderiam ter sido evitadas (22%). Vida que segue.
Em tempo: Bolsonaro só queria pagar aos brasileiros mais pobres um auxílio emergencial de 200 reais. Ao saber que o Congresso aprovaria um auxílio emergencial de 500 reais, antecipou-se e anunciou o auxílio de 600, que será pago só até setembro. Por ora, concorda em prorrogar o auxílio, mas no valor de 200 reais.
Julianna Sofia: Não acreditem em Bolsonaro
Teto de gastos não será óbice a seus planos de reeleição
Não acreditem em Jair Bolsonaro. Nas 72 horas que sucederam a revoada do ninho liberal de Paulo Guedes (Economia), o presidente fez, por duas vezes, juras de amor ao teto de gastos —regra que limita o aumento das despesas públicas. Entre uma e outra declarações, deu uma fraquejada: "A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?".
Empunhar a bandeira do liberalismo, do Estado mínimo, das privatizações e da austeridade fiscal sempre foi ato mimetizante de Bolsonaro frente a Guedes para seduzir os donos do PIB. Nunca convenceu, quanto mais agora, que começa a colher os frutos da popularidade depois de R$ 500 bilhões despejados em ações contra a nefasta pandemia. Não há de ser o teto o óbice a seus planos de reeleição, por certo.
Não acreditem em Paulo Guedes. O ministro anuncia a debandada de auxiliares e a investida de colegas fura-teto como forma de pressionar o Palácio do Planalto a renovar os votos pela responsabilidade fiscal e evitar a "zona sombria" do impeachment. Ora, o mesmo Paulo Guedes tentou, em vão, recente operação Mandrake para destinar recursos do Fundeb para o Renda Brasil (novo Bolsa Família) e, assim, burlar o teto.
O mesmo Guedes trabalha para abrir um crédito extraordinário de R$ 5 bilhões para financiar obras de infraestrutura e adoçar a boca dos fura-teto. A manobra livra o governo das amarras impostas pelo limite de gastos. Um pecadilho contábil.
Nem revoada, nem teto mal-escorado, nem reforma do Estado adiada abalam a fé na gestão bolsonarista nutrida pelo mercado, que entoa um "me engana, que eu gosto" e segue a operar lucros. Com tibieza, empresários reagem, e o baile continua.
O eleitorado, remediado pelo auxílio emergencial e pelo crédito barato bancado pela viúva, nada vê: seja escândalo das rachadinhas, seja 100 mil mortes, seja enlace ao caciquismo político. Garante a Bolsonaro avanço expressivo em sua aprovação, segundo o Datafolha. Ao melhor estilo "perdoa-me por me traíres".