eleições 2022
Andrea Jubé: A lição de Patos para a sucessão em 2022
Centro-direita larga fragmentado para 2022
Os ingredientes da eleição para prefeito de uma cidade média no sertão paraibano alçaram-na ao patamar de microcosmo político do país, na visão de alguns cientistas políticos.
Projetando-se o cenário local para o plano nacional, em um criativo exercício de análise política, o resultado da eleição em Patos, na Paraíba, colocaria em xeque o sucesso de uma eventual chapa encabeçada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2022.
Uma premissa somente autorizada, ressalte-se, no contexto da recuperação da política tradicional como principal resultado do primeiro turno das eleições municipais.
Com 108 mil habitantes, o terceiro reduto de poder mais cobiçado da Paraíba - depois de João Pessoa e Campina Grande - foi palco de uma eleição acirrada, polarizada entre um “outsider” e um representante da “velha política”.
De um lado, concorreu o Juiz Ramonilson Alves, postulante do Patriota, que se aposentou para ingressar na política; na outra ponta, o ex-prefeito Nabor Wanderley, candidato do Republicanos.
Chamado de “Moro da Paraíba”, o Juiz Ramonilson encabeçou a chapa, com o DEM na vaga de vice. Nos discursos, afirmava que a solução para a cidade passava pelo combate intensificado à corrupção e pelo fim do monopólio político local.
Seu adversário era um legítimo representante da política tradicional, encabeçando uma coligação formada por Republicanos, PP, PSD, PSL, Rede e Cidadania. Nabor governou a cidade duas vezes, de 2005 a 2012.
Nabor respondeu a denúncias de corrupção, muitas delas julgadas por Ramonilson. No horário eleitoral e em entrevistas, acusou o ex-magistrado de persegui-lo há muitos anos, desde sempre com finalidades eleitorais.
Ao fim de um embate acalorado, Nabor alcançou 51% dos votos, contra 41% do Juiz Ramonilson. Um resultado local que refletiu o quadro verificado no plano nacional, considerado o placar das capitais e principais cidades brasileiras: a vitória da política tradicional sobre a “nova política”, da qual Jair Bolsonaro foi o expoente em 2018.
“A eleição municipal restaurou o sistema político, o “outsider” perdeu valor no mercado político e o centro institucional saiu consagrado”, disse à coluna o cientista político Nelson Rojas de Carvalho, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Para ele, este resultado reduz as chances de “players” de fora da política cotados para a sucessão presidencial, como Sergio Moro e Luciano Huck.
O pesquisador aponta a derrota da “nova política” neste pleito, mas, não a do presidente Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Isso porque a eleição municipal não tem determinantes nacionais, mas, sim, consequências no plano nacional.
“A eleição municipal tem uma dinâmica local que gera efeitos nacionais”, argumenta o autor de “E no início eram as bases - Geografia política do voto e comportamento legislativo no Brasil”.
Ele aponta dois efeitos principais do pleito municipal no âmbito nacional: uma configuração mais sólida do quadro sucessório, e a composição de forças no Congresso Nacional na próxima legislatura.
O primeiro efeito do pleito municipal na sucessão presidencial, na visão de Nelson Rojas, é a fragmentação das forças de centro-direita, que tendem a avançar separadamente após o resultado deste ano.
Para o pesquisador, o desempenho do DEM, principalmente nas capitais, levará o partido a lançar candidatura própria em 2022. “O partido não aceitará ser vice do PSDB de novo”.
Um dos nomes colocados é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Correm por fora o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
No primeiro turno, o DEM reelegeu Rafael Greca, em Curitiba; Gean Loureiro, em Florianópolis; elegeu Bruno Reis em Salvador; e avança rumo à vitória de Eduardo Paes, que deverá governar o Rio de Janeiro pela terceira vez.
De igual forma, se o PSDB reeleger o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, não terá por que renunciar à cabeça de chapa na disputa presidencial em 2022. O nome mais provável é o do governador João Doria, embora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também seja cotado para a empreitada.
Mas se Covas for à lona, abatido pelo ativista Guilherme Boulos (PSOL), “o PSDB se perde”, e ficará difícil encabeçar a chapa, diz Nelson. Em especial, após o desempenho de Geraldo Alckmin em 2018, que obteve 4,7% dos votos válidos.
No espectro da esquerda, o pesquisador vê Ciro Gomes (PDT), ou um candidato apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais competitivos numa conjuntura de crise econômica, em um paralelo com a Argentina, onde a derrocada levou à vitória de Alberto Fernández.
“Se a economia chegar em 2022 em um diapasão tolerável”, as chances aumentam para a centro-direita”, diz o professor, que foi colunista convidado do Valor.
O segundo reflexo das eleições municipais na conjuntura nacional, segundo Nelson Rojas, vai se consumar na eleição dos deputados federais e senadores para a legislatura de 2023-2026.
Ele afirma que a nova correlação de forças que emerge da eleição municipal vai se refletir na composição do novo Congresso, e os partidos que elegeram mais prefeitos serão hegemônicos no Legislativo. As seis siglas que mais conquistaram ou preservaram prefeituras foram MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL, todos representantes do centro político.
Nelson discorda da interpretação de que o primeiro turno das eleições municipais foi um “plebiscito” sobre o governo Bolsonaro. Ele acha equivocado atribuir o mau desempenho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), ao apoio de Bolsonaro. O presidente perdeu, na sua visão, ao não conseguir organizar o seu partido, e com ele, ocupar espaço no pleito municipal.
Vera Magalhães: João Alberto e as urnas
Casos de grande comoção às vésperas de pleitos podem influenciar o voto
Casos como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, por espancamento seguido de asfixia numa loja do Carrefour em Porto Alegre, ocorrido na última quinta-feira, quando acontecem próximos de eleições, costumam ter o condão de virar tema das campanhas e mobilizar setores do eleitorado.
O exemplo recente mais rumoroso vem dos Estados Unidos e tem muitos pontos de contato com o caso João Alberto: foi o assassinato de George Floyd por asfixia por policiais em Minneapolis, em maio. Lá como aqui, a ação dos assassinos foi filmada. A frase repetida por Floyd, “I can’t breath”, que significa “Eu não posso respirar”, virou mote de manifestações que cobriram o país.
O movimento Black Lives Matter, ou Vidas Pretas Importam, surgido anos antes, ganhou dimensão nacional e deu força a grupos locais, que tiveram grande engajamento nas eleições presidenciais e peso real na vitória de Joe Biden sobre Donald Trump em Estados como a Geórgia.
No Brasil, os casos mais conhecidos de comoção nacional às vésperas de pleitos são a greve da siderúrgica CSN em Volta Redonda, em 1988, e o massacre do Carandiru, em 1992, em que 111 presos foram chacinados pela Polícia Militar para conter uma rebelião.
No primeiro, operários da Companhia Siderúrgica Nacional, ainda estatal, entraram em greve por reajuste salarial e redução de jornada e tomaram a planta de Volta Redonda (RJ). Quatro dias depois do início da greve, em 9 de novembro, o Exército e a PM invadiram a empresa e três grevistas foram assassinados.
As eleições municipais nas capitais ocorreram no dia 13 e, em São Paulo, venceu Luiza Erundina, feito inédito do PT numa capital. As pesquisas até as vésperas apontavam vitória tranquila de Paulo Maluf, e cientistas políticos e historiadores veem grande peso de Volta Redonda na virada.
Quatro anos depois, o massacre do Carandiru ocorreu na noite de 2 e outubro, a sexta-feira anterior à eleição. Ali, no entanto, a tragédia não teve influência no pleito, porque a Secretaria de Segurança Pública abafou os dados. Paulo Maluf venceu e o candidato do governador Luiz Antonio Fleury Filho, Aloysio Nunes Ferreira, ficou em terceiro lugar.
E agora, como o caso João Alberto vai ecoar nas urnas? Em Porto Alegre, onde ocorreu o assassinato, Manuela D’Ávila (PC do B) enfrenta uma eleição dura, em que foi, ao longo de toda a campanha, alvo de ataques ferozes dos adversários e agora aparece nas pesquisas em desvantagem em relação a Sebastião Melo (MDB). Ela se engajou de imediato nos protestos pela morte de João Alberto.
Em São Paulo também pode haver influência do crime. Foi aqui que ocorreu o maior protesto depois do assassinato, com o quebra-quebra numa loja do Carrefour nos Jardins. Guilherme Boulos não participou. O candidato do PSOL tem lutado na campanha contra a pecha de “radical”. As urnas mostraram que candidaturas em defesa de direitos civis, equidade e diversidade encontraram um eleitor disposto a investir nessas agendas, antes tachadas pejorativamente de “politicamente corretas” ou “identitárias”.
A sanha com que Jair Bolsonaro oprimiu minorias, ou mesmo maiorias sem representatividade política, provocou reação oposta dois anos depois de sua eleição. No caso João Alberto, o presidente só se manifestou 24 horas depois, para negar racismo no ocorrido e sem mencionar o nome da vítima nem se solidarizar com sua família.
Os próximos dias vão mostrar se o caso João Alberto vai virar tema central da campanha ou se os protestos vão perder fôlego. E o que terá mais peso: o voto de protesto contra a recorrência de fatos como esse ou a reação maior de parte da sociedade ao que ela chama de “vandalismo” que ao assassinato em si?
Alon Feuerwerker: As dúvidas sobre o frentismo em 2022
Confirmou-se que o primeiro turno das eleições municipais trouxe a capilarização dos partidos da base do governo, e que por isso tinham, e aproveitaram melhor, o acesso ao orçamento federal. Viu-se também um certo movimento de continuidade, natural e esperado em meio a uma pandemia. Notou-se ainda a resiliência da esquerda, fenômeno facilmente detectável na manutenção dos votos para vereador e na votação significativa nos grandes centros.
O debate agora é sobre o que o resultado de 2020 projeta para 2022. Com os necessários cuidados, pois não há transposições mecânicas. E falta muito tempo político. Feitas as ressalvas, a dúvida que fica é sobre os possíveis blocos e alinhamentos. E para esse debate é útil a observação do que vai se dar no segundo turno, daqui a uma semana. Pois ficará claro o estágio atual da disposição dos diversos atores para alianças e formação de coalizões. Informação essencial para definir a tática.
Já está explícito, por exemplo, que mesmo as frações mais resistentes a alianças e frentismos na esquerda estão dispostas a votar em qualquer candidato não bolsonarista para derrotar o bolsonarismo. A opção do presidente da República por manter o discurso e a prática alinhados ao que podemos chamar de núcleo ideológico facilita um agrupamento quase automático de forças contrárias quando só há duas opções.
Mas, atenção, desde que o adversário seja palatável aos que em 2018 votaram Bolsonaro ou se abstiveram, e agora procuram outro caminho.
E se em 2022 o presidente for ao segundo turno contra alguém da esquerda? Neste momento, não é excessivo supor que ele deverá arrastar de volta pelo menos uma parte dos arrependidos. Ou será que não? Duas das disputas neste segundo turno são um termômetro para tirar a dúvida. Vitória (ES), onde a o PT está no segundo turno, e Belém, onde o adversário do candidato bolsonarista é do PSOL.
Em Fortaleza, o cirismo parece ter formado com facilidade a frente antibolsonarista. Veremos o resultado na urna. Mas, e em Vitória e Belém, o autonomeado centrismo ficará de que lado?
De todo modo, 2022 projeta forte pulverização de candidaturas majoritárias, pelos menos das forças com pouco acesso a orçamentos públicos. Porque o voto majoritário é uma ferramenta preciosa para puxar o voto proporcional, e não custa lembrar sempre que daqui a dois anos a cláusula de desempenho na votação para a Câmara dos Deputados estará colocada alguns centímetros acima do que em 2018.
E a votação para deputado federal, além de definir se o partido fica na Série A ou cai para a B, acaba também definindo quanto a legenda terá de espaço no horário eleitoral e verba do fundo eleitoral em 2024 e 2026. Não é pouca coisa em jogo.
Portanto, é ilusão imaginar alianças muito amplas na largada. Cada um precisará caminhar com suas próprias pernas. Talvez haja alguma convergência entre MDB, PSDB e Democratas, notam-se ensaios. E entre as legendas do chamado centrão, estrito senso, e talvez em torno do presidente da República. O que dependerá, obviamente, da popularidade de Jair Bolsonaro quando chegar a hora de tomar as decisões.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Claudio Couto: Os resultados das eleições municipais atrapalham os planos de Bolsonaro para 2022? Sim
Perdeu a oportunidade de criar rede de apoio político e larga em desvantagem
Jair Bolsonaro tentou tomar de assalto o partido pelo qual se elegeu, o PSL, em vez de com ele construir boa relação —o que teria sido útil, considerando que a sigla teve a maior fatia do fundo eleitoral neste ano. Fracassou em seu intento, e a organização seguiu sob controle de seu velho cacique, Luciano Bivar. Depois, ensaiou construir seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil. Novamente fracassou e, ao notar que não teria como viabilizá-lo em tempo para as eleições municipais, desistiu.
Com isso, Bolsonaro não teve um partido para chamar de seu durante as disputas locais, perdendo a oportunidade que seus antecessores —FHC e Lula— aproveitaram muito bem: fazer crescer sua agremiação pelo país, enraizando-se e criando uma rede de apoio político crucial para as eleições proporcionais vindouras (Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas), mas também para a Presidência da República. Só por isso (obra exclusivamente sua), já sai derrotado das eleições de 2020.
Agora, especula-se que o presidente —eleito por vociferar contra a “velha política”— possa se filiar a um dos partidos do centrão —a quintessência do que ela significa. O mais cogitado é o PP. É aquele que Bolsonaro integrou por mais tempo, a despeito das muitas mudanças de nome, desde que deixou de ser a Arena da ditadura militar e de ter vertebralidade política, tornando-se um mero partido de adesão: esses que apoiam qualquer governo, desde que bem recompensados, sem dar maior importância a ideologias ou programas.
Os partidos do centrão foram os que mais cresceram nesta eleição: PP, PSD, PL, Avante, Patriota, Podemos, PSC, Republicanos, Solidariedade —todos aumentaram o seu número de prefeituras. Até o ex-bolsonarista PSL cresceu. Apenas o jeffersoniano PTB e o MDB, dentre as agremiações de adesão, declinaram —embora este último permaneça o maior em número de governos locais. Hoje estão todos, com parcial exceção do MDB, na base formal do presidente no Congresso. Fosse de fato um governo de coalizão, talvez pudessem caminhar com Bolsonaro até 2022. Contudo, não é o caso.
Ademais, como diz a sabedoria política, o centrão ninguém compra, só aluga. Assim, se o governo seguir errático, improdutivo e perder popularidade país afora da mesma forma como tem ocorrido em grandes cidades, os partidos de adesão se atrelarão a outra candidatura, com maiores chances de ganhos. Ela pode ser de algum partido da centro-direita ou direita tradicional (não bolsonarista) que chegue bem em 2022.
Quem se saiu bem nestas eleições foi o DEM —que não é centrão, ou não teria ficado por mais de 12 anos firme na oposição aos governos petistas. O ex-PFL não só cresceu como ganhou cidades importantes: Salvador e, virtualmente, Rio de Janeiro. Ademais, terá livre de mandato, podendo percorrer o país a partir de janeiro, um dos prefeitos mais populares e jovens do Brasil: Antônio Carlos Magalhães Neto. Considerando-se ainda o contraponto que Rodrigo Maia tem feito ao bolsonarismo no Congresso, há espaço para ocupar o campo da direita com maior moderação e alienar o atual presidente.
Claro que o candidato também pode ser um outsider, como Luciano Huck, embora estas eleições estejam mostrando que o tempo de aventureiros e neófitos parece ter ficado em 2016 e 2018. O astro da TV talvez perca o lugar para um político mais experimentado nas hostes da direita —e esse provavelmente não será Jair Bolsonaro.
*Claudio Couto, professor de ciência política na FGV-Eaesp e coordenador e produtor do canal do YouTube e podcast ‘Fora da Política Não há Salvação
O Estado de S. Paulo: 'Vou apoiar qualquer coisa contra Bolsonaro em 2022', diz Felipe Neto
Youtuber afirma ainda que indiciamento do qual foi alvo é uma ‘tentativa de silenciamento por parte da extrema-direita'
Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo
RIO - Indiciado pela Polícia Civil do Rio por supostamente divulgar material impróprio para menores, o youtuber Felipe Neto afirmou que, em 2022, pretende ir “para a luta como nunca antes na vida”. O objetivo, disse, é impedir uma reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Para ele, o “Brasil precisa derrotar o bolsonarismo como os Estados Unidos derrotaram o trumpismo”, após a vitória do democrata Joe Biden.
O youtuber atribuiu seu indiciamento por corrupção de menores a “pressões” que, segundo ele, passou a sofrer após se declarar como opositor do governo federal. “Vou apoiar qualquer coisa que chegue ao segundo turno contra o Bolsonaro”, declarou Neto ao Estadão. “Seja (Luciano) Huck, (Fernando) Haddad, Lula, Marina (Silva), Ciro (Gomes), (João) Doria ou Tiririca.”
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Aos 32 anos, Neto tem 40 milhões de assinantes em seu canal no YouTube e 11 milhões de seguidores no Twitter. Fez um editorial e um vídeo para o New York Times no qual critica Bolsonaro e entrou na lista da revista Time como uma das personalidades do ano (juntamente com o presidente brasileiro) em 2020.
O sr. é considerado a principal voz da oposição ao presidente Jair Bolsonaro no mundo digital. Por isso, tem sido alvo de ataques de grupos bolsonaristas. Acha que seu indiciamento é parte desse processo de pressão?
Sem sombra de dúvidas. Todo jurista que analisou tecnicamente o indiciamento ficou em estado de choque. Juízes, advogados criminais, procuradores. É só qualquer um procurar pela internet para ver a reação. Eu fui acusado de “corromper menores” por um delegado que não mostrou qualquer menor corrompido como prova de sua investigação. O caso do indiciamento é uma tentativa nefasta de silenciamento por parte de fundamentalistas da extrema-direita. Eles só querem que as pessoas espalhem que fui indiciado, mesmo sabendo que não dará em nada na Justiça.
O Ministério Público do Rio devolveu o procedimento, com o indiciamento, à Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática para “diligências”.
Recebi essa informação com enorme satisfação, pois o promotor não aderiu à precipitação do delegado, ao contrário, determinou que fizesse as investigações que não fez, e inclusive, em sua manifestação, chamou a atenção para o fato de que ainda irá apurar para analisar se há crime ou não. Estou absolutamente tranquilo e confiante que o Ministério Publico vá compreender que esse indiciamento é um absurdo.
O senhor se arrepende de ter se tornado uma voz de oposição ao governo?
Não, apenas não queria ter ficado tão isolado. Realmente acreditei que, em algum momento, outros comunicadores com o meu tamanho de influência, ou maiores que eu, fossem se engajar na mesma intensidade. Isso não aconteceu.
Teme ser vítima de algum tipo de violência?
Tenho um forte sistema de segurança implementado para mim e minha família.
Como avalia as fake news a seu respeito?
Todas as pautas de pseudomoralidade são cortinas de fumaça. A extrema-direita está sempre levantando teorias da conspiração e elegendo inimigos que vão contra a “moral e os bons costumes”. Sem isso, eles não conseguem formar base. Na época da Hillary (Clinton, candidata democrata à Casa Branca, derrotada por Donald Trump em 2016), do que a acusaram? Pedofilia. Nas eleições do Biden, do que o acusaram? Pedofilia. Do que me acusaram? Pedofilia. É sempre a mesma ladainha, as mesmas teorias conspiratórias contra os opositores, transformando-nos em demônios para pessoas influenciáveis.
Uma articulação está sendo costurada pelo apresentador Luciano Huck, o ex-ministro Sérgio Moro, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, o governador João Doria, entre outros, como um caminho para derrotar Jair Bolsonaro em 2022. Apoiaria esse movimento?
Não. Porém, vou apoiar qualquer coisa que chegue ao segundo turno contra Bolsonaro. Seja Huck, Haddad, Lula, Marina, Ciro, Doria, Tiririca.
A esquerda é sempre acusada de não se unir. Foi apontada, inclusive, como parte da ascensão do bolsonarismo. Concorda com essa análise?
Temos que colocar o PT e o PDT em um cercadinho e falar: “Vocês só saem daí quando acordarem para a realidade”. A desunião da esquerda não foi a grande causa da ascensão do bolsonarismo, mas sem dúvida contribuiu significativamente. Basta olharmos o que aconteceu no Rio de Janeiro (nas eleições municipais) para entendermos o quanto a situação está problemática. PT, PDT e PSOL lançaram candidaturas próprias. Conclusão? (O atual prefeito Marcelo) Crivella foi para o segundo turno com 21% dos votos (contra Eduardo Paes, que teve 37%) e ninguém chegou nem a ameaçar o pastor bolsonarista.
Por que resolveu se envolver na campanha de São Paulo? Não acha que a atitude de não querer falar com Bruno Covas ajuda a agravar a polarização que critica no caso do Rio?
Bruno Covas fez parte de todo o movimento BolsoDoria (aliança informal de Bolsonaro com Doria nas eleições de 2018, contra a esquerda). Bruno Covas tirou selfie com um sorriso de orelha a orelha ao lado do Bolsonaro. Bruno Covas tem como vice um sujeito que compõe a bancada religiosa, que foi acusado de violência doméstica e é investigado como possível envolvido na máfia das creches. Não dialogo com esse tipo de político.
Como avalia os resultados das eleições municipais?
Foi uma derrota contundente do bolsonarismo. As eleições serviram como termômetro da insatisfação do povo brasileiro com essa extrema-direita doentia e autoritária.
Qual será o seu papel e o impacto da sua posição política nas eleições presidenciais de 2022?
Não consigo dimensionar, mas eu vou para a luta como nunca antes na minha vida. O Brasil precisa derrotar o bolsonarismo como os Estados Unidos derrotaram o trumpismo.
Na sua opinião, qual será o impacto do governo de Joe Biden no governo de Jair Bolsonaro?
A credibilidade internacional do Bolsonaro é zero. Ele é visto como um bobalhão que nunca sabe o que está falando. Somente um sujeito com Q.I. de batata faria uma ameaça brasileira de pólvora aos EUA, tanto que não obteve sequer uma resposta. A questão agora é como o Biden vai lidar com esse presidente bobalhão que comanda o País que controla a Amazônia. Não tenho conhecimento suficiente para fazer essa previsão.
César Felício: Esteios da governabilidade
Partidos que crescem não vão disputar Presidência
As eleições municipais registraram crescimento dos seguintes partidos na malha de prefeituras espalhada pelo país: PP (de 495 para 682), PSD (de 537 para 650), DEM (de 266 para 459), PL (de 294 para 345) e Republicanos (de 103 para 208). Estes cinco partidos somaram 1.695 conquistas em 2016. Foram 2.344 agora, ou 38% a mais.
Em comum, estes partidos têm a característica de estarem vocacionados para as eleições de caráter local e parlamentar. Não são legendas para disputar a Presidência, salvo às vezes fornecendo o nome para vice em alguma chapa, como fez o PP em 2018 e o DEM em 2010, acompanhando os candidatos tucanos. O PP não lança candidato próprio à Presidência desde 1994, quando ainda se chamava PPR. o DEM não o faz desde 1989, ocasião em que era o PFL. PSD, PL e Republicanos jamais o fizeram. São, portanto, coadjuvantes, e não protagonistas do jogo presidencial.
Os partidos que tradicionalmente são atores da eleição maior tiveram encolhimento de malha. O MDB (candidaturas próprias em 1989,1994 e 2018) caiu de 1.035 para 773. O PSDB minguou de 785 para 512. O PDT deslizou de 331 para 311. O PSB despencou de 403 para 250. E o PT saiu de 254 para 179. Somados, recuaram de 2.808 para 2.025, queda de 28%. A conta pode mudar um pouco com o segundo turno, mas nada que altere o eixo da Terra.
Sem legenda, Bolsonaro não fixou em lugar algum o bolsonarismo. Esta foi uma eleição em que o coração governista ficou de fora, salvo uma ou outra incursão desastrada do presidente por alguma eleição local.
O resultado da eleição tomado pelo atacado, ou seja, pela soma da quantidade de prefeituras conquistadas pelas grandes siglas, mostra uma diminuição da polarização e do efeito nacional sobre as eleições locais, que já não era lá muito grande.
Mesmo sendo bastante tênue, a polarização nacional ainda assim se refletia na competição pelas prefeituras. PT e PSDB viveram ciclos de crescimento nas bases municipais enquanto monopolizavam as eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Agora não há mais o corte entre bolsonarismo e antibolsonarismo. Nem como efeito da eleição de 2018, nem como projeção do que pode ser a escolha para o Legislativo e a presidencial em 2022.
Essa desideologização do pleito de 2022, em linhas gerais, indica uma tendência importante de PP, PSD, DEM, PL e Republicanos terem bancadas muito grandes depois da eleição que acontecerá dentro de dois anos. Passarão com louvor pelo teste da cláusula de barreira e darão cartas no próximo governo.
É no sentido de facilitar a governabilidade e o de darem alguma musculatura a quem tem pouca que estes cinco partidos serão muito disputados para alianças na próxima eleição presidencial.
PP e Republicanos já indicaram de forma claríssima a possibilidade de apoio a uma candidatura presidencial de Bolsonaro. É comentada a hipótese do presidente se filiar a um desses dois partidos.
A adesão ao bolsonarismo é muito menor em relação ao DEM e PSD. O DEM herdará o governo de São Paulo caso o tucano João Doria dispute a Presidência, o que não é pouco. O presidente da sigla, ACM Neto, sequer coloca à mesa um nome próprio para negociar alianças de 2022, o que é sugestivo. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, coloca alguns, para valorizar o passe, e daí citou em entrevista à “Folha” os senadores Antonio Anastasia e Otto Alencar.
Os partidos que mais amealharam prefeituras podem dar ossatura para Bolsonaro e Doria na eleição presidencial de 2022, mas obviamente não lhes fornecem os votos para se elegerem. A dinâmica presidencial é outra. Permitem antever apenas, no caso de vitória de um ou de outro, base parlamentar relativamente tranquila para governar.
Pode-se perguntar onde está o MDB nesta análise. O MDB é um esteio da governabilidade que esmaece. Tinha 1.194 prefeitos depois das eleições de 2008, às vésperas de fechar a parceria Dilma/Temer vencedora de duas presidenciais. Era 35% maior do que hoje. O MDB hoje é mais uma entre as legendas que se candidatam a fiel de balança.
O jogo da esquerda é disputado nas grandes cidades. Guilherme Boulos mudou de patamar na política nacional, ainda que perca a eleição paulistana, como é provável. O PT não poderá olhar mais o Psol com a condescendência de um irmão mais velho, como faz hoje. Se José Sarto ganhar em Fortaleza, o PDT e Ciro Gomes se preservam do vexame das apostas erradas no Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo.
O duelo entre Marília Arraes (PT) e João Campos (PSB) pela Prefeitura do Recife terá consequências na eleição presidencial de 2022. A vitória de Marília tende a ameaçar a hegemonia do PSB no governo de Pernambuco e deste modo situar a sigla de modo definitivo no antipetismo. Pode ser uma boa notícia para Ciro.
Ganhando ou perdendo em Porto Alegre, Manuela d’Ávila será uma estrela a brilhar com força no PCdoB, partido condenado a morrer pela cláusula de barreira. É provável que o PCdoB, com o governador do Maranhão Flávio Dino à frente, procure uma incorporação branca a alguma sigla de esquerda ou centro-esquerda mais capacitada a sobreviver. PT parece o caminho mais natural, mas de nenhum modo é a única saída que resta.
E Luciano Huck? O apresentador de TV e candidato a ser um presidenciável pouco ou nada tem a ver com as eleições municipais. Sua possível candidatura dependerá do fracasso de outros atores. Huck se viabiliza caso tudo ou quase tudo dê errado para Doria e Bolsonaro. Vencida esta peneira, ele procurará os esteios da governabilidade já mencionados.
Bruno Boghossian: Bolsonaro completa um ano sem partido e coleciona incertezas
Convites para filiação refletem fragilidades, desconfiança e projeto personalista
Um feirão partidário se abriu para Jair Bolsonaro depois de seu papelão no primeiro turno das eleições municipais. Líderes de siglas do centrão enxergaram um presidente enfraquecido pela falta de estrutura política e fizeram convites de filiação ao chefe do Planalto.
Até agora, os acenos partiram de legendas que passaram a compor o núcleo da nova base de Bolsonaro no Congresso: o PP do senador Ciro Nogueira, o PL do ex-deputado Valdemar Costa Neto e o Republicanos, que atualmente hospeda dois dos três filhos políticos do presidente.
O caminho escolhido por Bolsonaro deve fazer pouca diferença por enquanto, assim como não foi determinante sua passagem pelo partido de aluguel que serviu de veículo para a candidatura de 2018. Ainda que seja alvo de assédio de algumas siglas, seu projeto de poder é individual.
O presidente vive num vazio partidário há um ano, quando perdeu uma disputa pelo controle do PSL e decidiu deixar a sigla. Usou o peso de sua popularidade e agitou militantes fiéis, mas fracassou na missão de coletar assinaturas para criar a própria legenda —num país em que até burocratas inexpressivos chegam lá.
Bolsonaro precisará de uma legenda para tentar a reeleição em 2022. As siglas de seus amigos do centrão parecem sedutoras porque contam com uma máquina consolidada e uma fatia razoável do fundo de financiamento de campanhas. A decisão seria óbvia, mas a relação de desconfiança entre os dois lados pode inviabilizar um acordo.
Aliados aconselham o presidente a repetir a busca por um partido pequeno. A justificativa é a dificuldade que Bolsonaro (já driblado pela cúpula do ex-nanico PSL) teria em quedas de braço com caciques experimentados das siglas maiores.
As incertezas sobre o destino do presidente reforçam algumas de suas características mais marcantes: a inabilidade política, a inconsistência ideológica e o personalismo. Mesmo que encontre uma casa nova para os próximos anos, suas alianças permanecerão instáveis.
Sergio Leo: A diplomacia de Bolsonaro mira eleitor de 2022
O que o presidente faz em política externa tem como propósito animar dentro do país seus eleitores fiéis e lhes dar um discurso para a próxima eleição presidencial
É um exercício interessante buscar o nome de Jair Bolsonaro no site Cablegate.org, que reúne um pacote de quase 260 mil telegramas diplomáticos do Departamento do Estado americano, vazados há uma década pelo site Wikileaks, de Julian Assange. Nesses telegramas, parte deles divulgados por um consórcio de jornais do qual fez parte EL PAÍS, há informações sobre as desconfianças e esperanças de Washington em relação à figuras de proa do então governo petista. Há também detalhes de lobbies, como o da venda (frustrada) de jatos para a Força Aérea Brasileira. O vazamento revelou, ainda, as personagens de interesse dos Estados Unidos no Brasil, e o número de vezes em que aparece o nome de Bolsonaro ilustra a importância que a diplomacia americana dava ao então deputado: zero.
Bolsonaro, na época, militava no baixo clero do Congresso, com pautas corporativas em favor de militares e policiais, ou servindo a lobbies, como o de subsídios a setores industriais que lhe inspiraram um dos raros projetos aprovados na Câmara. Transitava fora dos radares da embaixada americana, apesar de suas declarações, polêmicas e sem relevância para diplomatas estrangeiros. Já seu ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, inspirou telegramas relatando a oposição do militar à criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O telegrama da embaixada americana em Brasília considerava legítimas as razões para criação da reserva e concordava com o general em apenas um ponto: sem infraestrutura e apoio do Estado, a criação da reserva não daria condições adequadas de sobrevivência aos indígenas beneficiados.
Eleito presidente, Bolsonaro parece manter a alienação sobre política externa que marcou seu mandato parlamentar. Sua demora em reconhecer a vitória do presidente eleito nos Estados Unidos, Joe Biden, não obedece a um projeto claro para a relação diplomática entre Brasil com os EUA, e sim a interesses de política interna. Manifestações de Bolsonaro, nesse campo, são calibradas para manter sua legião de apoiadores nas redes sociais, apreciadores de teorias conspiratórias, cuja marca, neste mês foi uma intensa atividade no debate sobre as eleições americanas, sintonizadas com o material divulgado por apoiadores de Trump.
Essa é a chave para compreender os gestos do Presidente da República na diplomacia: o que faz ou deixa de fazer em política externa tem, como propósito, animar, dentro do país, seus eleitores fiéis e lhes dar discurso para o debate eleitoral que pretende travar em 2022.
Desafios do Brasil na geopolítica? Estratégia para lidar com a Influência dos grandes atores globais na América Latina? Resposta às grandes causas civilizatórias no plano internacional? Tudo isso é tratado pelo presidente como um tormento que lhe rouba o tempo, e frustra o desejo de confraternizar tomando caldo e cana na rua e comendo pastel.
O Presidente da República não se encarrega de planejar, coordenar ou conduzir a política externa; limita-se a aprovar ou barrar iniciativas isoladas de seus subordinados com base em avaliações superficiais de fundo ideológico. Como boa parte das políticas do governo Bolsonaro, a única marca que une seus gestos para a comunidade internacional é a do improviso, inspirado pelo calor do momento, ou pelos conselhos de assessores próximos, também movidos pela guerra ideológica que empolga os militantes nas redes sociais.
“Minha vida aqui é uma desgraça problema o tempo todo; não tenho paz para absolutamente nada”, desabafou Bolsonaro, para surpresa dos próprios assessores, na terça-feira, 10, no mesmo dia em que ameaçou reagir com “pólvora” às possíveis pressões do presidente eleito Joe Biden, para proteção da Amazônia. Não se sabe que tipo de paz esperava o candidato Jair Bolsonaro ao concorrer para a Presidência da República de um país com uma das piores distribuições de renda da América Latina, sérios problemas de custos para fazer negócios, engolfado em recessão, com uma dívida interna crescente e um sistema partidário fragmentado (do qual se beneficiou).
A diplomacia com sabor de cana e pastelzinho fez mais uma aparição nesta terça, 17, no discurso de abertura de Bolsonaro na Reunião dos BRICS, grupo que reúne a Rússia e os grandes emergentes China, Brasil e África do Sul. Bolsonaro abriu seu pronunciamento na defensiva, jurando esforços para conservar a Amazônia e logo mudou de tom, avisando que, em breve, anunciará nomes de países que criticam o Brasil mas importam madeira ilegal – insistindo na troca de acusações como resposta às preocupações internacionais com a falta de convicção do governo brasileiro em relação aos compromissos do país na área ambiental.
No discurso do BRICS, misturou defesa do nacionalismo anti-globalista defendido por Trump e pelo chanceler Ernesto Araújo com reivindicações tradicionais multilateralistas do Itamaraty, como a ação conjunta dos Brics e o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Na falta de um Presidente interessado em se aprofundar no assunto e capaz de dar coerência à atuação diplomática do governo, com um ministro de Relações Exteriores que defende para o Brasil a condição de “pária internacional”, hoje cabe às diversas instâncias do governo o esforço de retardar a caminhada do país rumo à irrelevância na tomada de decisões internacionais.
Discretamente, em fevereiro, por exemplo, o ministério da Agricultura conseguiu fechar um inédito acordo com a Argentina, de redução de burocracia no comércio bilateral, que poderá abrir caminho, especialmente, a vendas de frutas, troca de material genético em pecuária e abertura de mercados alternativos no país vizinho para produtos como leite destinado à alimentação animal. Questões mais importantes de interesse comum, que exigiriam instâncias superiores à área técnica, como um acordo para certificação de animais livre de febre aftosa ficaram em suspenso, porém, à espera de melhores condições diplomáticas, enquanto o presidente brasileiro, em suas poucas manifestações sobre a Argentina, hostiliza o mandatário argentino, Alberto Fernandez, cuja eleição lamentou publicamente.
A aproximação discreta com a Argentina, na área comercial, é uma rara iniciativa com resultados concretos no entorno sul-americano, onde mudanças políticas trazem ao Brasil consequências econômicas, de segurança e sociais, com repercussões nas correntes migratórias, nas oportunidades de negócio, no combate à criminalidade e na segurança de comunidades de brasileiros no exterior. As atitudes de Bolsonaro e seu chanceler, porém, apagam o esforço feito pelo Brasil no passado para se credenciar como mediador nas questões internacionais, movido por critérios técnicos e diplomáticos.
Na posse do novo presidente da Bolívia, de quem ainda importamos gás para a indústria paulista e onde estudam dezenas de milhares de brasileiros, o Brasil esteve representado burocraticamente, pelo embaixador brasileiro em La Paz; na recente convulsão política no Peru, limitou-se a uma nota breve, em que indicou satisfação com a previsão de novas eleições em 2021 e saudou o anúncio do novo governo – que cairia, sob protestos populares, quatro dias depois. Ao servir de palco para uma visita de fins eleitorais de um enviado de Trump à fronteira da Venezuela, em setembro, o Brasil aprofundou sua desmoralização como ator relevante nas negociações para resolver a crise política no país.
A situação da Venezuela, aliás, deve ser um dos assuntos de uma das primeiras iniciativas anunciadas pelo futuro governo Joe Biden, uma “cúpula pela democracia” vista com desconfiança no Palácio do Planalto, com potencial para tornar-se um constrangimento para Bolsonaro.
O governo Joseph Biden, nos Estados Unidos, em algum momento, terá de ser reconhecido em Brasília. Já é, de fato, um dos principais desafios para a política externa sem cabeça do governo bolsonarista. Foi magro, quando não claramente negativo, o saldo da subordinação da diplomacia brasileira aos interesses de Washington, em iniciativas nas Nações Unidas e em outras instâncias multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, no qual Trump preteriu a candidatura brasileira a uma vice-presidência em favor de um nome indicado por Honduras.
Quando os produtores de aço no Brasil, no ano passado, discutiam a retirada das cotas que limitam as exportações àquele país, foram surpreendidos por Trump com a decisão de uma sobretaxa até mesmo em produtos siderúrgicos usados como matéria-prima nas aciarias americanas; a pedido de Bolsonaro, evitou-se a sobretaxa, apenas para o governo se ver surpreendido, em 2020, com a reivindicação - atendida – para que o Brasil deixasse de vender toda a cota prevista aos EUA, deixando lugar para produtores locais em regiões americanas de interesse eleitoral para Trump.
O raro gesto positivo em matéria de comércio bilateral foi obtido já em clima de campanha de Trump à reeleição: um acordo de facilitação de comércio, que empresários dos dois países e ambos os governos começaram a discutir em meados de 2019 e se apressaram a fechar em meados do ano. Foi saudado como “ambicioso” por empresários brasileiros, por trazer avanços concretos em matéria de transparência, autorização para uso de documentos eletrônicos, desburocratização nas fronteiras e segurança no comércio de bens perecíveis. Mas deixou de fora os principais obstáculos à venda de mercadorias brasileiras no mercado americano, as chamadas barreiras técnicas e fitossanitárias, que demandam visitas de especialistas e adaptações nem sempre possíveis nos processos de produção dos exportadores no Brasil.
Muitos dos avanços saudados pelos empresários brasileiros dizem respeito a facilidades para importar, e não exportar, produtos, com a redução do chamado custo Brasil e a aplicação, aqui, de práticas já adotadas nos EUA. É um benefício da internacionalização do qual os antigobalistas do bolsonarismo nem suspeitam: acordos internacionais servem para confrontar pressões de lobbies corporativos e adotar medidas que aproximam o país das melhores práticas de nações desenvolvidas. Os verdadeiros ganhos do acordo com os EUA dependerão, porém, de medidas ainda a serem tomadas pelos governos, de Biden (com envio de missões técnicas, por exemplo), e de Bolsonaro (com aprovação do acordo no Congresso, tarefa em que a anomia da diplomacia bolsonarista falhou miseravelmente no caso do Chile, com acordo aprovado desde 2018, mas paralisado, à espera, até hoje, do aval dos parlamentares brasileiros).
Biden, às voltas com problemas prementes, como a prioridade ao combate à pandemia, as expectativas de respostas de política interna ao racismo sistêmico nos EUA e a disputa mundial de influência com a China, que inclui restrições a equipamentos chineses na tecnologia 5G de transmissão de dados, tende a evitar confronto direto com o Brasil, mesmo em sua anunciada prioridade para o combate ao aquecimento global. Entrevistas recentes do ex-presidente Barack Obama, que teve Biden como vice-presidente e conselheiro em temas internacionais, mostram disposição dos democratas em tratar o Brasil com alguma deferência, embora o começo não tenha sido promissor, com a reação irritada de Bolsonaro à oferta de uma linha R$ 20 bilhões para ajudar na proteção da Amazônia e evitar “consequências econômicas significativas”.
Até agora, Bolsonaro cuida da relação com o novo governo nos EUA na base do improviso que marca sua anti-diplomacia. Só no segundo fim de semana de novembro, segundo a Folha de S. Paulo, Araújo pediu aos auxiliares cenários para lidar com uma eventual eleição de Biden. Segundo um experimentado funcionário do Departamento de Estado, a falta de iniciativa brasileira prejudica o Brasil, em um momento no qual Biden define seus primeiros passos no governo e anuncia iniciativas e os indicados do novo governo quase diariamente, para não deixar vácuo no noticiário que seja aproveitado por um Trump inconformado com a derrota.
Entrando ou não no radar da administração Biden em seus primeiros dias, Bolsonaro já tem marcado, para abril, um teste de seu relacionamento com a nova política dos EUA para o continente: nesse mês, na Flórida, o governo americano hospeda a Cúpula das Américas, com todos os países do continente e, possivelmente, Cuba e Venezuela. Bolsonaro e seu chanceler terão a oportunidade de testar sua tese sobre o Brasil como pária internacional. Até agora, caminham a passos largos nessa direção, e Biden é um dos poucos chefes de Estado capazes de desviá-los do caminho. Mas, para isso, terão de mudar radicalmente o hábito de responder às preocupações com o meio ambiente empurrando as culpas para os outros, ou para esdrúxulas teorias conspiratórias.
Sergio Leo é jornalista e escritor, especialista em relações internacionais
Míriam Leitão: Um país assim complicado
Tudo é sempre um pouco mais complicado quando se trata de política brasileira. Os partidos nem sempre são o que parecem, o centrão é de direita, o DEM veio do PFL, que veio do PDS, que nasceu na Arena, partido da ditadura, mas isso não quer dizer que seus líderes concordem com a defesa que Bolsonaro faz da mesma ditadura. O PSD é de Gilberto Kassab, político que se adapta a qualquer governo, mas o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, a maior vitória do partido, é crítico do presidente, principalmente da política de combate à pandemia.
A política brasileira é toda matizada, confirmando a lendária afirmação de que o Brasil não é para principiantes. O novelo das tendências políticas é tal que para entender é preciso puxar fio por fio.
O DEM tem maiores ambições, segundo aviso do seu presidente, ACM Neto, dado na entrevista publicada ontem pelo “Valor”. Quer ter um candidato ou estar na chapa da próxima disputa presidencial. Ele se fortaleceu neste primeiro turno. Aumentou o número de prefeituras e foi o que mais fez prefeito de capital logo na primeira rodada, entre elas, Salvador, onde o eleito Bruno Reis teve o maior percentual de votos e sucede a duas administrações de ACM Neto. Por que esse capital eleitoral seria posto a serviço de um presidente sem lealdades e com posições extremistas? Não seria neto de quem é se fizesse essa opção.
Na primeira República, os partidos eram estaduais. Tem horas que parece que esse DNA está ainda presente nas agremiações. O mesmo partido tem alianças diferentes dependendo da unidade da federação. Cada caso tem uma história à parte. Cada estado tem uma história toda particular de alianças, heranças e tendências.
O Acre tem uma história de extremos. Foi o primeiro estado em que o PT foi para um segundo turno, com Jorge Viana, em 1990. Depois de ser prefeito de Rio Branco, ele chegou ao governo do estado com a bandeira ambiental. Ficou dois mandatos. Veio o governo Binho Marques, que não quis concorrer à reeleição, apesar de 64% de aprovação. Em seguida, veio o criticado governo de Tião Viana. O PT teve cinco mandatos no governo estadual e quatro na prefeitura, chegou a eleger três senadores e a maioria da bancada federal. Nesta eleição, não conseguiu eleger um único vereador na capital.
Em 2018, o Acre deu a maior vitória a Bolsonaro, 82,77% dos votos. Elegeu o senador Márcio Bittar (MDB), um radical antiambiental. Junto com Flavio Bolsonaro (Republicanos) propôs o fim de qualquer reserva legal. Nesta eleição, Rio Branco levou para o segundo turno o pecuarista Tião Bocalom (PP), do mesmo partido do governador, que por sua vez apoiou a atual prefeita Socorro Neri (PSB), que está no segundo turno. Apesar da vitória acachapante em 2018 e da guinada conservadora permanecer em alta, a popularidade do presidente caiu no Acre. O único candidato que assumiu a defesa de Bolsonaro foi Ruy Duarte (MDB), que ficou em quarto lugar. O socioambientalismo sobrevive no Vale do Acre, onde nasceu, com destaque para a reeleição do prefeito de Xapuri.
O Espírito Santo teve vários governos de esquerda ou centro-esquerda, deu vitória de 63,19% a Bolsonaro em 2018. Hoje, a taxa de aprovação do presidente é de apenas 28%. O segundo turno em Vitória será disputado entre João Coser (PT), e Delegado Lorenzo Pazolini (Republicanos). Apesar do partido de Pazolini, quem teve o apoio de Bolsonaro lá foi o Capitão Assumção, um dos líderes do motim da Polícia Militar.
Qualquer estado que se olhe tem particularidades e nuances inesperadas. No Rio, o PSOL amargou um 6º lugar na disputa para a prefeitura, mas fez o vereador mais votado, Tarcísio Motta, e uma bancada de sete vereadores, tão grande quanto a do DEM e a do Republicanos que disputam o segundo turno. Em São Paulo, PT e PSDB fizeram a maior bancada, ambos com oito vereadores. Mas o PT ficou em 6º na disputa pela prefeitura. O PSOL, que foi para o 2º turno, fez a segunda maior, empatado com o DEM, que nem candidato majoritário teve.
O mesmo centrão que esteve nos governos de Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer está hoje com Bolsonaro, mas pode não estar. Segundo a definição de um político experiente: “O centrão troca de camisa quando sente o cheiro de mudança. Num dia era ‘presidenta’ Dilma, no outro votava pelo impeachment.” A política é assim complicada no Brasil.
Merval Pereira: Já foi dada a largada
O resultado da eleição municipal, nem bem terminou o primeiro turno, já tem consequência na retórica partidária. O PP, que elegeu mais prefeitos dentro do Centrão, quer levar Bolsonaro a filiar-se a ele, garantindo o protagonismo do processo eleitoral até 2022. O PSD, outro partido do grupo que teve bons resultados municipais, ao contrário, já avisou que pode ter candidato próprio na eleição presidencial.
São dois pontos de vistas distintos dentro de um mesmo grupo político, no momento no governo. Esses movimentos estão preocupando a ala ideológica do bolsonarismo, que teme perder o controle da situação para o Centrão, o que efetivamente já está acontecendo.
A relação entre PP, PSD, MDB e DEM é antiga, elegeu Rodrigo Maia presidente da Câmara. A diferença entre os dois grupos é muito menor do que entre o Centrão e Bolsonaro. Bolsonaro é outra turma, é da extrema direita. O centrão se adapta a qualquer governo. Trabalhou com Lula, Dilma, FH. Não é um partido ideológico, é pragmático e quer estar no poder. À medida em que a coisa for caminhando, acho que tem mais chance de o centrão se alinhar ao DEM e ao MDB do que seguir com Bolsonaro até a eleição.
Inclusive porque Bolsonaro hoje é mais dependente de Centrão do que o Centrão de Bolsonaro. Bolsonaro não tem o que fazer, porque não tem apoio organizado no Congresso, como o PT, que tinha base, e a esquerda ao lado, e mesmo assim perdeu. Bolsonaro não tem ninguém. Enquanto puder ficar do lado governo, tirando vantagens de nomeações e ministérios, o Centrão vai aproveitar, estará no lugar certo no momento certo se Bolsonaro for bem sucedido.
Se o vento mudar, lá estará o Centrão na oposição. Restará a Bolsonaro “romper” com o Centrão, voltando a seu discurso de crítica de “velha política”, mas agora sem credibilidade. É uma situação incômoda para Bolsonaro, muito cômoda para o centrão. O DEM está há muito tempo ajudando Luciano Huck. Maia e ACM Neto têm reuniões frequentes com ele. Tudo se encaminha para o lançamento de uma candidatura própria do Luciano Huck, com o DEM apoiando. Roberto Freire, o presidente do Cidadania, também está muito próximo de Huck, e há a possibilidade de uma aliança com de centro-esquerda, com a direita embarcando. Ou simplesmente uma chapa de centro-direita, com o apoio de diversos partidos.
Teríamos, então, dois candidatos ao centro. O governador João Dória tem um partido forte como o PSDB, teve vitória arrasadora em São Paulo, com a eleição de prefeitos e vereadores pelo interior do Estado, e tem Bruno Covas favorito na cidade de São Paulo. O PSDB perdeu 30 por cento das prefeituras, mas continua sendo o quarto partido que mais elegeu prefeitos.
Rodrigo Maia já disse que Moro é de extrema-direita e não quer conversa com ele. Mas Doria quer, e pode perfeitamente lançar uma chapa forte com Moro. Provavelmente, ficarão pelo menos esses dois grupos de centro-direita, com a dificuldade de alianças no primeiro turno. No outro lado, Bolsonaro e ainda várias esquerdas.
Se Lula abrir mão de ter o PT como protagonista, as outras legendas de esquerda terão mais chances. É interessante, Lula é autoritário, não deixa ninguém crescer do lado dele, não quer fazer acordo com ninguém, mas continua sendo a grande figura da esquerda brasileira. Ao mesmo tempo, se abandonar Lula, o PT é um partido em decadência, e o PSOL é o PT do início.
Lula perdeu três vezes antes de chegar à presidência, porque liderava um PT mais radical. Até chegar ao ponto de o PSOL ter capacidade de negociar, fazer acordos, vai demorar muito. Nascido de uma dissidência do próprio PT contra a corrupção no mensalão, o PSOL está a caminho de predominar na esquerda brasileira, sem a pecha de “clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”, como definiu o ex-presidente americano Barack Obama em seu novo livro, o mesmo que um dia disse que Lula era “o cara”.
Fernando Schüler: O recado das urnas
Ganha força o espectro de um centro político que pode se mover a meia distância da esquerda e do bolsonarismo
O ministro Luiz Eduardo Ramos disse que os aliados do governo venceram as eleições. Mencionou o crescimento de prefeituras do DEM, PP e PSD, bem como o encolhimento do PT e concluiu: a turma que segue as “pautas e ideias” de Bolsonaro ganhou o jogo.
Há vários problemas aí. O primeiro é saber exatamente quais são as pautas e ideias do governo. Por vezes o suporte do governo, e em particular do presidente, à sua própria agenda de reformas se parece com o apoio de Bolsonaro ao prefeito Crivella: “Se não quiser não vota, tranquilo”.
É verdade que os partidos tradicionais foram vencedores. A Folha identificou uma tendência significativa de deslocamento à direita dos novos prefeitos. Há muitos significados nisso. Um deles diz simplesmente que esta foi uma eleição de baixa propensão a risco. É a tese levantada pelo professor Carlos Pereira: diante da pandemia e do espectro da morte, o eleitor tende a recuar da lógica do confronto e se afastar das “saídas polares”.
Há uma explicação mais pragmática: DEM, PP e PSD trabalharam forte e foram os partidos que mais cresceram com o troca-troca partidário entre as eleições. Só o DEM passou de 272 para 456 prefeitos, já antes das eleições, basicamente puxados por governadores eleitos pelo partido, em 2018. O resultado obtido agora é em boa medida uma consequência disso.
O ponto é que a interpretação dada pelo ministro Ramos põe um detalhe para baixo do tapete: o bolsonarismo virtualmente não apareceu nessas eleições. É evidente que há candidatos identificados com Bolsonaro, alguns com relativo sucesso. Nas 18 capitais com segundo turno há no mínimo cinco com candidaturas claramente identificadas com o presidente e seu estilo. Mas, cá entre nós, frente ao que vimos há dois anos, é muito pouco.
O próprio bolsonarismo reconhece isso. Filipe Martins, assessor internacional de Bolsonaro e geralmente visto como ideólogo do grupo, pediu “autocrítica” aos conservadores e conclamou a turma a “recuperar os ideais e bandeiras de 2018”.
Vai aí o problema. O que a eleição revela é que os tais princípios de 2018 talvez não tenham lá grande profundidade. O conservadorismo de Bolsonaro nunca produziu muita coisa, no governo, e o que se anunciava como sua agenda no Congresso (escola sem partido, redução da maioridade penal, liberação do porte de armas) nunca andou.
No Brasil recente, se confundiu conservadorismo com palavras de ordem do tradicionalismo de costumes (não raro misturado com religião). Vem daí o completo desinteresse de Bolsonaro em criar a Aliança pelo Brasil e sua acomodação junto aos partidos do centrão.
O mesmo vale para a agenda econômica. Paulo Guedes pode ser um histórico do liberalismo brasileiro e de algum modo ainda funciona como fiador da pauta de reformas junto ao mercado, mas vamos convir: terminamos o ano com menos consenso sobre reforma tributária do que parecíamos ter antes da pandemia; a reforma administrativa, além de tímida, se arrasta, e as privatizações, dois anos depois, quando muito prosseguem como um “ideal” do governo.
Em meio a este quadro, Bolsonaro resolveu improvisar. Bem a seu estilo, mencionou alguns candidatos, em suas lives, fez escolhas erradas, desconsiderou aliados políticos no Congresso e colheu um resultado melancólico.
O que estas eleições fizeram foi acender uma luz amarela no Planalto. A avaliação positiva de Bolsonaro caiu entre 15% e 20% desde o início da campanha, a agenda de reformas está parada e não há sinal sobre o que o governo fará com o auxílio emergencial a partir de janeiro.
Talvez o governo se dê conta disso e comece a trabalhar com algum senso de urgência no Congresso. O recado das urnas parece claro: ganha força o espectro de um centro político que, sabendo capturar a agenda reformista, pode começar a se mover por conta própria e produzir uma alternativa para 2022, distante simultaneamente da esquerda e do bolsonarismo.
Para Bolsonaro, que depende da lógica da polarização para sobreviver, este é o principal recado que surge das urnas.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
William Waack: A onda acabou
Jair Bolsonaro é, agora, a perfeita expressão do ‘sistema’
A causa do fracasso eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições municipais é simples de ser resumida. Ele interpretou de maneira equivocada a onda disruptiva que o levou ao Palácio do Planalto em 2018. Achou que tinha sido o criador desse fenômeno político quando, na verdade, apenas surfava a onda.
O fato é que essa onda, depois de arrebentar o alvo primordial (as forças políticas ao redor do PT), se espraiou, perdeu sentido e direção, dividiu-se entre seus vários componentes antagônicos. Esvaziou-se, com Bolsonaro achando que apenas falando, apenas no gogó, manteria o ímpeto de uma onda dessas – um fenômeno político raro.
Na verdade, a principal lição oferecida a Bolsonaro pelas eleições do último domingo é a do primado da organização, capilaridade e peso das agremiações partidárias no horizonte político mais extenso. Pode-se adjetivar como se quiser o conjunto de partidos que elegeu o maior número de prefeitos e vereadores ou colocá-los onde se preferir no espectro político. O denominador comum entre eles é a existência de estruturas profissionais voltadas para a política.
É exatamente o que Bolsonaro desprezou logo que assumiu. Trata-se de um dos aspectos mais relevantes para ilustrar o fato de o presidente eleito com 57 milhões de votos há apenas dois anos ter um desempenho tão pífio como cabo eleitoral. Todo dirigente populista, não importa a coloração política, cuida de criar um movimento para chamar de seu – com seus emblemas, palavras de ordem (ou “narrativa”), mitos e, sobretudo, uma estrutura razoavelmente hierárquica e definida, com sede e endereço.
Embora tivesse à disposição da noite para o dia um grande número de deputados federais e seus correspondentes recursos públicos, o surfista da onda política atuou para implodir o partido pelo qual se elegeu e não conseguiu colocar de pé nada parecido a uma agremiação consolidada com um mínimo de coesão. É bem provável que Bolsonaro tenha sido vítima do mito que criou para si mesmo (e dá provas quase diárias de acreditar nisso piamente): a de ter sido escolhido por Deus e beneficiado por um milagre (sobreviver à facada) para conduzir o povo do Brasil.
Com tal ajuda “de cima”, é só esperar as coisas acontecerem. Ocorre que mesmo os homens tornados mitos por desígnio divino precisam, como dizem os alemães, do “Wasserträger”, aquele que vai trazer a água. E isto não se consegue apenas com redes sociais. Foi outro aspecto interessante das eleições de domingo: a demonstração dos limites de atuação das ferramentas digitais, que adquiriram relevância permanente como instrumentos de mobilização, sem serem capazes por si só de garantir predominância na luta política.
Passada a onda disruptiva (alívio para alguns, desperdício de oportunidade histórica para outros), o que se pode prever para as próximas eleições, em relação às quais Bolsonaro sacrificou qualquer outro plano? Se ele foi capaz, em 2018, de vencer o “establishment” e o jeito convencional de fazer política, ainda por cima dispondo de menos recursos que seus adversários “tradicionais”, em 2022 Bolsonaro só tem chances dentro do que ele mesmo chamou de “sistema”.
Do qual, ironicamente, o “outsider” acabou se tornando uma perfeita expressão: vivendo para o próximo ciclo frenético de manchetes, sem um plano ou estratégia de longo prazo, cuidando em primeiro lugar de seus interesses familiares e paroquiais, cultivando popularidade com programas assistenciais e preocupado acima de tudo em ficar onde está. É onde a onda nos deixou.