eleições 2022
Demétrio Magnoli: A vacinação como espetáculo
No lugar de imunizar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas
No Brasil, em média, vacinamos menos de 300 mil por dia. Sem escassez de imunizantes, seríamos capazes de vacinar perto de 2 milhões. Mas, mesmo agora, poderíamos vacinar facilmente 600 mil. A lentidão, que amplifica as mortes, não escandaliza quase ninguém. A indignação concentra-se na já lendária figura do fura-fila. É que, de fato, mais que vacinar, queremos colocar todo mundo no seu lugar numa hierarquia de prioridades. Na sociedade do espetáculo, passar julgamento moral vale mais que salvar vidas.
A cidade do Rio reservou um dia inteiro para cada grupo etário de um ano, dos 99 aos 80. Vacinas e enfermeiros despendem horas ociosas, diariamente, à espera do idoso "certo". Legal, isso: garante que o idoso de 89 anos não passe na frente do camarada mais velho, de 93, participante de um grupo de maior risco. São Paulo foi na mesma linha, economizando só um pouco do ridículo: reservou uma semana completa para a faixa dos 90 anos ou mais. Nas unidades de saúde, manhãs inteiras passaram na janela sem a presença de um único "vacinável". Bem planejado: assim, evitamos aglomerações.
A fila perfeita é, claro, imperfeita. Profissionais de saúde, nossos heróis, vêm primeiro. Daí que imunizamos psicoterapeutas de 60 anos que trabalham online antes de gente comum com mais de 80 anos. A parcimônia cumpre função não divulgada: vacinando bem devagar, escapamos do vexame de interromper a campanha por esgotamento das doses —e, portanto, o governo federal oculta seu atraso na aquisição de imunizantes. Por essa via, na sociedade do espetáculo, o negacionismo de direita estabelece uma aliança tácita com o humanismo de esquerda.
"Somos um país só!", gritou o Ministério da Saúde na deflagração da campanha da vacina, dizendo nas óbvias entrelinhas que o comando pertence ao governo federal (Bolsonaro), não ao governo paulista (Doria). Mas, num "país só", a estratégia de imunização em cenário de escassez priorizaria as regiões mais afetadas, que são também os berços de cepas mutantes do vírus. O Amazonas tem cerca de 510 mil habitantes com mais de 50 anos. Já poderíamos ter injetado a primeira dose em todos eles, sem deixar de vacinar os agentes de saúde da "linha de frente" e parcela dos idosos do país inteiro, se o slogan de Pazuello fosse mais que uma peça de propaganda política.
O governador de Nova York, Andrew Cuomo, não desconhece o efeito narcótico da fotografia da fila perfeita. Lá no começo, determinou a imunização exclusiva dos profissionais de saúde —e decretou multa de US$ 1 milhão para quem vacinasse algum fura-fila. Resultado: uma campanha em ritmo de tartaruga manca, em cenário de abundância de doses. Cuomo só mudou de ideia quando emergiram imagens de ampolas descartadas por vencimento de prazo, saltando do zero ao infinito para autorizar a vacinação de todos os idosos com mais de 65 anos. Na sociedade do espetáculo, é a foto errada, não a razão, que provoca correções de rumo.Quantos artigos destinados a envergonhar fura-filas já foram publicados na Folha? Compare o espaço preenchido por eles com aquele destinado a questionar a eficácia prática de nossos critérios de vacinação. O cotejo oferece uma janela para a paisagem banhada de sol da hipocrisia nacional.O julgamento moral, fundamento da cultura do cancelamento, está na moda. Apontar o dedo acusador para o fura-fila legal (a psicoterapeuta online) ou ilegal (o estudante de medicina que nunca entrou num hospital) confere prestígio social, uma almejada recompensa psicológica.
A eficácia da vacinação depende de sua abrangência demográfica, pois todos estaremos imunes se a ampla maioria for imunizada. Mas preferimos esquecer isso para tratar a vacinação como questão individual. Por meio desse truque, no lugar de vacinar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas.
Alberto Aggio: O fim da guerra e a antecipação da batalha por 2022
No início do mandato, movido pela euforia, Bolsonaro optou por uma “guerra de movimento” cujo objetivo era o estabelecimento de um regime iliberal autoritário. Confrontou o STF, o Congresso e um conjunto de instituições. Sem uma milícia realmente atuante nos padrões do fascismo, exagerou e teve que mudar de estratégia: adotou gradativamente a “guerra de posições”.
A mudança necessitava novos arranjos. Mas veio a pandemia e o cenário se complicou. Uma ruinosa gestão sanitária o impediu de ganhar posições significativas, vieram as fraturas no governo e a queda na popularidade. A derrota nas eleições municipais sinalizou que só havia uma saída: aprofundar suas relações com os partidos do Centrão para garantir uma blindagem contra o impeachment, mantendo ainda o discurso reacionário para assegurar suas bases originais.
A “guerra de posições” dá agora seus primeiros resultados positivos: a vitória nas eleições para as presidências da Câmara dos deputados e do Senado. Na Câmara, venceu com candidato próprio e no Senado com quem não o fustiga diretamente. Mas, o mais importante é que derrotou em campo aberto tanto Rodrigo Maia, ex-presidente da Casa, quanto João Doria Jr., governador de São Paulo, visto por Bolsonaro como seu principal antagonista na corrida presidencial de 2022.
Apesar de ir em sentido contrário à queda na popularidade denotada nas pesquisas, a vitória no Legislativo altera muita coisa. A “aliança” com o Centrão relativiza o discurso bolsonarista como a única voz do poder. Apesar de ensaios, a bolsonarização de políticos do Centrão não parece ter estofo para se manter. Mas a reviravolta dá claros poderes a um grupo político que vive de recursos e cargos. Para se blindar, Bolsonaro cede poder e sua metamorfose ganha nova figuração.
Tudo parece indicar que, com a conquista da Câmara e a neutralização do Senado, a guerra cede lugar à política, a uma política pragmática que pode ir do conluio dos negócios privados à retomada de um discurso da “tradição republicana brasileira” (Werneck Vianna) de elogio à modernização e ao moderantismo. A partir de agora, o poder terá que buscar o equilíbrio entre os atores que dão sustentação ao governo: o Centrão, com sua imensa diferenciação de personagens; os militares governistas, deslizando para uma posição coadjuvante; e o bolsonarismo raiz, em posição secundária. Não à toa projeta-se uma reorganização ministerial que poderá mudar inteiramente a cara do governo, embora não se saiba ainda o que irá prevalecer: se Bolsonaro será capaz de comandar o Centrão ou se o Centrão subordinará Bolsonaro ou mesmo o anulará.
Uma mirada mais ampla, que ultrapasse a conjuntura, poderia apresentar avaliações curiosas. Uma delas diz que Bolsonaro poderia ter estabelecido um “governo militar sem AI5” e que a “alternativa Centrão” salvou o país de um “ensaio fascista”. Assim, o Bolsonaro que deve se apresentar em 2022 carregará as ambiguidades das metamorfoses que sofreu e não tem como ser idêntico ao de 2018.
Desnecessário dizer que o cenário se alterou também para as forças que se mostravam contrarias a Bolsonaro. O comportamento divisionista do Democratas, especialmente na Câmara, quebrou a espinha dorsal do bloco oposicionista que deveria agregar MDB, PSDB além de parte da esquerda. A derrota acarreta duras repercussões às forças do campo democrático, ampliando suas dificuldades de coesão. O Senado escapou da debacle porque o candidato eleito mostrou-se distinto do bolsonarismo e maleabilidade suficiente para não confrontá-lo.
A resultante é de aprofundamento das divisões no interior do “centro político” e entre este e a esquerda, além das discrepâncias internas em cada força política, o que faz emergir um conjunto de novos atritos e dificuldades, tardando a que se encontre um novo rumo. Nesse cenário, se a sedução por um oposicionismo frouxo a Bolsonaro aumenta, a fórmula salvadora da “frente democrática” se mostra de difícil efetivação.
Num contexto de “democracia de audiência” e de aberta competição eleitoral, a ideia de frente democrática só tem sentido se for ressignificada. Sabendo que não partirá do PT – ele nunca aceitou a lógica e a composição das frentes contra o autoritarismo –, só terá lugar se o centro político conseguir formata-la em torno de uma candidatura competitiva que apresente propostas de superação da crise sanitária e econômica, e avance uma pauta concreta de reformas que reorganize o Estado, enfrentando a desigualdade social e recolocando o país numa perspectiva de cooperação mundial, recuperando sua vocação cosmopolita perdida nos últimos anos.
Caso contrário, restarão essas premissas como referencial às candidaturas de perfil democrático contra a de Bolsonaro, na expectativa de que o nosso sistema eleitoral de dois turnos seja terreno para uma competição eleitoral que não impeça a unidade em torno de uma proposta reformista em favor da reorganização política da Nação.
Vera Magalhães: Estranho no ninho
João Doria Jr. é candidato a presidente da República desde 2018, talvez antes. Quando decidiu adentrar a política, o hoje governador de São Paulo traçou uma rota rápida que o levaria, no curto intervalo de seis anos, ao Palácio do Planalto. Até aqui, os passos deram certo. Mas agora o campeonato será jogado numa outra liga, bem mais dura.
A primeira mostra de que o jogo é bruto veio nos primeiros meses após a eleição. Logo depois do Bolsodoria, o tucano passou a ser hostilizado pelo presidente, pelos filhos e pelo entorno radicalizado.
A razão é simples: o bolsonarismo só pensa na reeleição, e a ordem é aniquilar no nascedouro qualquer potencial adversário. Nesta quinta-feira, a milícia virtual do presidente, deputados federais à frente, começou a alvejar ninguém menos que a empresária Luiza Trajano, por ver nela uma potencial candidata, graças a sua campanha pela vacinação imediata de todos os brasileiros. O jogo é bruto.
Doria não é alguém conhecido exatamente pela calma nem por seguir os ritos da política, que incluem muito diálogo antes das ações. Na segunda-feira, foi anfitrião de um jantar que reuniu figurões tucanos, em que o cardápio servido foi a ideia de que ele assumisse o comando da sigla de entrada, sua candidatura presidencial como prato principal e uma nova tentativa de expulsar Aécio Neves de sobremesa.
Caiu como um tijolo no estômago de parte dos presentes, sobretudo nas bancadas de deputados e senadores, que ato contínuo decidiram manter Bruno Araújo na presidência da legenda e lançar o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, como alternativa a Doria internamente.
A surpresa foi que Leite topou o jogo e não ficou no muro, poleiro de predileção dos tucanos desde sempre. Surge, então, o estranho no ninho com que Doria não contava. Ao menos não agora.
Aliados do paulista dizem que o seu objetivo com o jantar da segunda-feira era instar o partido a adotar uma postura firme de oposição a Bolsonaro, e não antecipar a própria candidatura.
Será mesmo? Dados os porta-vozes da ideia (o ex-ministro Antonio Imbassahy e o deputado federal paulista Samuel Moreira, ambos ligadíssimos a ele), ninguém acredita que o script não tenha sido previamente organizado pelo meticuloso Doria.
O tiro saiu pela culatra, mas ainda assim é temerário apostar que ele vá deixar a sigla só porque apareceu um oponente. Doria sempre repete que é “filho das prévias”, numa alusão aos dois processos seletivos internos que venceu, mesmo sem ser versado nas liturgias da política partidária.
Leite, por sua vez, saiu de vez a campo. Além da frase de alta octanagem política que cunhou, ao afirmar que não misturou seu nome ao de Bolsonaro (um tiro no Bolsodoria), aceitou a convocação de deputados e senadores e vai rodar o país. Em entrevista que fizemos com ele ontem na CBN, assumiu a candidatura sem tergiversar e se disse preparado para os ataques que receberá (já está recebendo, corrigiu) dos gabinetes do ódio bolsonaristas.
Se os dois levarem adiante a disposição de se candidatar, o PSDB pode ter primárias pela primeira vez em sua história. Mesmo com guerras internas no passado, algumas com direito a dedo no olho, sempre prevaleceu um arranjo de cúpulas que evitou esse tipo de escolha.
Dada a deterioração programática e o desgaste político do PSDB desde que Aécio Neves enfiou o partido no pântano do JBS Gate, e desde que Geraldo Alckmin foi reduzido a nanico em 2018, uma disputa poderia oxigenar e dar algum rumo a uma sigla que virou coadjuvante apagada no cenário nacional.
Isso depende, no entanto, de que quem perder aceite a derrota, e de que a contenda não se dê em níveis bolsonarescos. É o que vamos começar a assistir a partir de já, porque essa campanha também já começou.
Roberto Freire: Huck deve decidir até o meio do ano sobre candidatura presidencial
O presidente nacional do Cidadania defende uma alternativa a Bolsonaro e ao PT em 2022
Alessandra Kormann, Brasil Independente
Em entrevista exclusiva ao Brasil Independente, Roberto Freire falou sobre as possibilidades atuais da candidatura de Luciano Huck à Presidência da República em 2022 pelo Cidadania, depois dos rachas em outros partidos nas eleições no Congresso Nacional.
Segundo o presidente nacional do Cidadania, a decisão de Huck deve ser tomada até o meio do ano para que se possa começar a trabalhar a pré-campanha. “Não cabe a gente pressionar, o tempo é dele. Ele é que sabe quando terá que decidir. Ele também está consciente de que não tem todo o tempo do mundo.”
Freire é um entusiasta da candidatura do apresentador da Globo. “O Cidadania imagina que Huck seja a melhor alternativa que nós tenhamos para derrotar Bolsonaro. E ao mesmo tempo não queremos o retorno do lulismo, isso não dá, é passado, o país tem que olhar para a frente.”
No caso de Huck não se candidatar, Freire ainda não sabe quem o seu partido deve apoiar. “Uma coisa eu digo: não será nenhum lulista e será uma candidatura de oposição clara e firme a Bolsonaro.”
Freire falou ainda sobre a possibilidade de filiação ao Cidadania de Rodrigo Maia e, para disputar o governo de São Paulo, de Geraldo Alckmin.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por telefone.
Como o senhor avalia o governo de Jair Messias Bolsonaro? Podemos esperar o Cidadania na oposição ao governo nos próximos dois anos e na eleição de 2022?
Claro. É um péssimo governo. O Cidadania inclusive está defendendo o impeachment. É um governo irresponsável, por todos os seus atos, o negacionismo, propostas antidemocráticas, desrespeito à Constituição. O que não faltam são crimes de responsabilidade, alguns crimes comuns no enfrentamento da pandemia, que demonstram um governo desastroso, o que torna imperioso um impeachment.
O Cidadania chegou a entrar com algum dos mais de 60 pedidos de impeachment contra Bolsonaro?
Não, porque não é momento disso. A gente está no momento de ter um pedido de impeachment aceito e tramitando no Congresso.
Agora com a eleição da nova Mesa Diretora, como o senhor avalia a possibilidade do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), pautar o impeachment?
Agora não tem nenhuma condição. Ninguém está propondo o impeachment para hoje ou amanhã, ainda não tem condições objetivas para isso. Falta mobilização, falta a maioria ampla da sociedade concordar com a tese de que é melhor encurtar esse mandato para que nos próximos dois anos o país tenha um outro governo, tal como a sociedade brasileira viu isso com Collor e com Dilma. No momento em que isso ocorrer no seio da sociedade, não tenha dúvida de que você terá mudanças também no Congresso Nacional.
O senhor acredita que, depois que a grande maioria do povo estiver vacinada e puder voltar para a rua, vai haver uma pressão popular e esse tipo de manifestação tende a ganhar corpo?
Acredito que sim, porque você vê hoje a sociedade brasileira se mobilizando para ter vacina. E está percebendo que a ação desidiosa e criminosa de Bolsonaro gera problemas, como o ritmo da vacinação, que é lento porque o governo não cuidou de ter vacina, de tornar o processo ágil e rápido.
Como o senhor avalia a importância de uma frente ampla para combater esse governo? O Cidadania vem participando do movimento “Janelas Pela Democracia” junto com PDT, PSB, Rede e PV. Pode estar se desenhando uma aliança em torno desses cinco partidos para 2022?
Não. A questão da luta contra o governo Bolsonaro não implica que em 2022 vai haver essa unidade. Se for possível, ótimo. Agora, num segundo turno, se houver uma disputa contra Bolsonaro, vai ter essa unidade sem nenhuma dúvida.
Mas para o primeiro turno o senhor não acredita que seja possível?
Para o primeiro turno, não se pode dizer. O que se pode afirmar é segundo turno. Para o primeiro, se você tivesse condições de unir todas essas forças, seria ótimo. Mas não adianta a gente falar, por exemplo, com o PT, que não consegue nem dialogar antes com seus aliados históricos, como o PSOL, e já lançou um candidato.
Como o senhor viu o lançamento da candidatura de Fernando Haddad, no caso de Lula não recuperar os seus direitos políticos?
Ele tem todo o direito de fazer o que quer. Agora, respondendo à sua pergunta anterior, ele não faz nenhuma questão disso [a formação de uma frente ampla]. O Cidadania não está muito preocupado com essa posição. Agora não tenha dúvida de que o PSOL está preocupadíssimo, provavelmente PDT, PSB, PC do B, que estavam todos na base do governo Lula e Dilma, embora Ciro tenha se afastado na última eleição em 2018. E continuam juntos na oposição a Bolsonaro. Nós estávamos numa articulação que foi desarranjada agora, com as atitudes do DEM, do PSDB, as suas divisões internas [na eleição no Congresso Nacional] criaram problema para uma aliança mais ao centro contra Bolsonaro.
Uma aliança possivelmente em torno do Luciano Huck como candidato? O senhor já demonstrou simpatia e entusiasmo com a candidatura do apresentador. Como estão essas conversas?
Não dá para dizer que Luciano Huck seria o candidato porque o PSDB está discutindo se terá Doria ou não. O Cidadania imagina que Huck seja a melhor alternativa que nós tenhamos para derrotar Bolsonaro. E ao mesmo tempo não queremos o retorno do lulismo, isso não dá, é passado, o país tem que olhar para a frente. Nós achamos que quem melhor pode representar essa alternativa é o Luciano Huck, pela sua capacidade, pela sua visão de mundo e da realidade brasileira, pelo seu entendimento concreto da nova economia e da necessidade de lutar contra a desigualdade na sociedade. Ele nos parece um excelente candidato, com chance de crescer e disputar a eleição.
Após todo o processo da eleição no Congresso, o racha no DEM, como o senhor vê hoje a possibilidade de o Luciano Huck disputar a eleição pelo Cidadania?
Não sei, é bom perguntar para ele [risos]. O que eu posso dizer da nossa parte é que a gente gostaria e trabalha para isso, para que ele se vincule ao Cidadania e com toda certeza criaremos as condições de ser uma ampla frente democrática. Não temos a ideia de que seremos sozinhos, temos que estar abertos. Mas estamos trabalhando muito para que ele faça essa opção pelo Cidadania.
O senhor conversou com ele recentemente?
Tenho conversado sim. Mas não há nenhuma decisão, e não cabe a gente pressionar, o tempo é dele. Ele é que sabe quando terá que decidir. Ele também está consciente de que não tem todo o tempo do mundo. Ele vai ter que tomar uma decisão num prazo razoável, até o meio do ano. Em meados de maio, junho, ele tem que já estar decidido.
Em qual espectro o senhor colocaria a candidatura de Luciano Huck?
Eu tenho uma compreensão de que esse referencial de direita e esquerda está passando por um momento em que não se tem nenhuma clareza do que isso significa. Você tem forças que se dizem de esquerda e que estão em posições bem reacionárias e atrasadas. E tem outras que se fala que são de direita e que estão sendo vanguarda nas mudanças que estão ocorrendo no mundo. Nós estamos em uma sociedade pós-industrial, pós-capitalista até. Então, nesse sentido está tudo muito misturado, e o que eu acho melhor dizer aonde Luciano se situa é isto: ele é um candidato progressista. Pronto. Não tem mais a direita e a esquerda tradicional do sistema capitalista. Isso acabou. Agora mesmo estava lendo que Cuba está abrindo mais de 200 setores da economia pra inciativa privada. Há quanto tempo a União Soviética foi derrotada historicamente? O que a China ensinou, depois da derrota da URSS, da queda do muro de Berlim? A China fez reformas e é hoje uma economia que está disputando no mundo a hegemonia com os Estados Unidos. Com desenvolvimento acelerado, melhoria na qualidade de vida, é um case pra se estudar. Quanto tempo Cuba perdeu até entender que o que existia já não tinha mais futuro? Então é um pouco o que está acontecendo com certas esquerdas, prisioneiras de um tempo que já não mais existe. Eu posso ainda dizer que sou de esquerda, historicamente, pelos meus valores. Agora, se eu falar isso, tem essa esquerda tradicional que vai dizer: “você não é mais de esquerda!”. E aí eu respondo que quem não é mais de esquerda é ele, que ficou perdido na história.
O senhor já foi comunista. Como vê as pessoas que chamam de comunista todo mundo de esquerda?
E há do outro lado aqueles para quem tudo que for de direita é fascista. Mas, para nós que militamos no comunismo, inclusive num tempo em que não era nada fácil ser comunista, ver os outros chamando de comunistas alguns que estiveram no governo e não mudaram nada a realidade brasileira, eu digo que é um deboche. Não estou dizendo que esses referenciais não têm importância, mas eles não estão encontrando na realidade algo concreto para que se saiba bem onde está a direita e a esquerda neste momento de transformação, de disrupção. Uma confusão muito evidente é a junção entre a esquerda mais tradicional com os mais radicais extremistas de direita na questão da globalização – ambos são contra.
Surgiu na semana passada a informação que o Cidadania poderia se fundir à Rede Sustentabilidade e ao PV para abrigar uma possível candidatura de Luciano Huck. A informação procede? Como estão as conversas?
Isso se deu muito em função desses desarranjos em alguns partidos, e aí veio a especulação de que Rodrigo Maia iria patrocinar alguma fusão. Nesse caso, lá atrás tentamos isso. Estava definido que a Rede e o Cidadania iríamos para a fusão, mas a Rede desistiu. Com o PV não avançamos muito, mas eu diria que há uma maior identidade, desde o PPS [antigo nome do Cidadania], com o PV. É uma ideia que sempre esteve nas nossas elucubrações e de alguns setores do PV, mas não tem nada de concreto neste momento. O que posso dizer da parte do Cidadania é que não temos nada a opor se porventura isso começar a se transformar em algo concreto, pelo contrário. Nós estamos abertos a esse diálogo e quem sabe pode ser uma coisa importante para o país.
Caso Huck não tope se candidatar, o Cidadania deve ir com quem? Ciro Gomes, Doria, Flávio Dino, algum nome do PT?
Não sei. Aí vamos ter que analisar. Uma coisa eu digo: não será com nenhum lulista e será uma candidatura de oposição clara e firme a Bolsonaro.
Como está hoje a sua relação com Ciro Gomes?
Não tenho nenhum problema com ele, nenhum obstáculo maior. Temos alguns desencontros de pontos de vista. O principal é que ele tem uma concepção muito nacionalista, como se as economias ainda pudessem estar prisioneiras das fronteiras dos Estados nacionais. Isso é uma tese política que pra nós do Cidadania é impeditiva para o Brasil buscar uma maior integração na economia globalizada, que pra nós é o futuro. O Brasil tem que saber como se integrar e não ter uma visão pra dentro, de proteção. Fala-se muito em soberania nacional, dentro dessa visão que o PDT tem, de defesa de algumas estatais como se fossem representantes da nossa soberania.
Então o senhor apoia a agenda de privatizações?
Eu vou contar uma história que resume tudo. Eu fui líder do governo de Itamar Franco na Câmara. E nós fomos o governo que fez as primeiras grandes privatizações no país, da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda e da Cosipa em Cubatão. Sou favorável às privatizações quando são justificáveis, não temos a questão da privatização ou estatização como princípios, mas sim como melhor eficácia da economia. Itamar Franco não era muito aberto a isso, depois foi convencido pela necessidade e fez. Alberto Goldman, já falecido, que foi do PCB como eu, era parte também do governo. Estávamos lá, eu líder e ele ministro [dos Transportes]. Então, em uma ocasião, quando nós defendíamos a privatização, Itamar brincou: “Não se fazem mais comunistas como antigamente”.
Como o senhor vê a agenda do Paulo Guedes, que inclui privatizações?
Ele não tem agenda, ele só fala em privatização e esse é um dos governos que menos privatizou, talvez com exceção de Lula, que criou muita estatal, até porque muitas delas eram facilitadoras de negociatas e corrupção. A única coisa que foi feita fora do governo Bolsonaro, algo que estava tramitando há tempo no Congresso, foi o marco regulatório do saneamento, um avanço importante. Que não é privatização, mas permite que possa haver privatizações. E a outra coisa que Paulo Guedes sabe fazer é falar de CPMF, pra ele tudo se resume a isso, e no resto é um blablablá. Ele fala bem, é um bom palestrante, agora como gestor é um desastre completo.
Mas com a eleição do Arthur Lira na Câmara e Rodrigo Pacheco no Senado, apoiados por Bolsonaro, existe a possibilidade de que eles consigam avançar com essa agenda liberal?
É o contrário. Esse centrão é estatizante, pois é nas estatais que estão os seus cargos. O centrão dificilmente vai pra privatização porque gosta, só vai se tiver um governo que faça. O centrão estava junto com o Lula estatizando. Isso é um discurso de Bolsonaro, como se o Congresso o tivesse impedido de governar. É o contrário. Ai do governo Bolsonaro se não fosse o Congresso, porque talvez nem auxílio emergencial nós tivéssemos. Esse governo é completamente incompetente. A reforma da Previdência só foi feita porque começou lá atrás, no governo Temer, e Rodrigo Maia foi o grande responsável por ela ter sido votada na Câmara dos Deputados, e no Senado Davi Alcolumbre ajudou também. Não tem nada a ver com Bolsonaro nem com Guedes, que é um incompetente.
Depois das traições na eleição para a presidência da Câmara, Rodrigo Maia pode estar de saída do DEM. Há possibilidade de ele ir para o Cidadania?
Eu conversei com ele depois da eleição, coloquei o Cidadania aberto para ele. Quem vai decidir é ele. Rodrigo Maia ainda deve demorar um tempo para decidir, não é uma coisa fácil. Quer dizer, eu não tenho nenhuma experiência nisso, nunca saí de partido. Eu era do PCB, mas como ele foi proibido na época da ditadura, aí fui pro MDB, sou fundador do MDB lá em Pernambuco. Continuei no PCB, depois mudamos pra PPS e agora Cidadania, são sucessores.
O senhor aceitaria disputar novamente uma eleição presidencial na cabeça de chapa ou como vice?
Não. É a nova geração que tem que assumir. O meu papel é articular essa nova candidatura Huck, como uma alternativa capaz de derrotar o bolsonarismo e evitar o retrocesso do retorno do lulismo.
Surgiu nas últimas semanas a informação de uma possível filiação do ex-governador Geraldo Alckmin ao Cidadania para disputar o governo de São Paulo. A informação procede? Alckmin seria bem-vindo ao Cidadania?
Muito bem-vindo. O Alckmin é uma das figuras que merece todo o nosso respeito. Foi excelente governador. Uma pena a eleição de 2018, que foi uma surpresa. Estávamos juntos e fomos derrotados. Não estou sabendo muito disso porque ainda não conversei com ele, não sei se isso corresponde a um interesse dele. Eu não sabia disso, estou surpreendido. Mas vou até procurar saber, pra mim é motivo de muita satisfação. Nem conversei com o partido, mas não tenho dúvida de que pode ser algo muito importante se ele realmente tiver ideia dessa possibilidade.
Depois do levantamento do sigilo das mensagens da Lava Jato pelo STF, aumentaram as possibilidades de os julgamentos de Lula por Sergio Moro serem anulados, restaurando os direitos políticos do ex-presidente. Como o senhor vê isso?
Eu acho um absurdo um país que não permite o uso de provas ilícitas estar discutindo isso no Supremo Tribunal Federal, quando há uma jurisprudência consolidada de que não cabe prova ilícita em nenhum momento de qualquer processo na Justiça brasileira. Isso evidentemente é vergonhoso.
O deputado estadual Fernando Cury, acusado de assediar a deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP), conseguiu suspender na Justiça o seu processo de expulsão do Cidadania. O conselho de ética do partido já opinou pela expulsão. O senhor defendeu que a questão fosse julgada pelo Diretório Nacional. Por quê? A permanência dele no Cidadania compromete a imagem do partido?
As pessoas imaginam que o partido político vai ter que fazer suas normas como se fosse um tribunal do Poder Judiciário. Não é. Nós temos que ter a ação política. Nós temos que garantir o direito à ampla defesa, e isso foi garantido a ele, agora a Justiça não pode determinar como vamos agir. Nós não vamos processar ninguém, nós podemos tomar a medida política que for indicada para que o partido tome. Eu não estou condenando ninguém, eu estou dizendo que não queremos conviver com um determinado militante, com um determinado parlamentar, com um determinado filiado. Isso é um direito do partido. O partido não tem a autonomia de dizer que não quer determinado filiado? Então entramos com recurso para suspender essa liminar que paralisou o processo, um processo político interno. Esperamos que seja derrubada essa liminar para que a gente possa decidir isso no Diretório Nacional, que é o órgão máximo do partido. O que ele fez é um fato com repercussão nacional e até internacional. Isso não é um tribunal, não é o Poder Judiciário, com primeira instância, segunda instância, tem a ver com a política, em função da repercussão. Se for alguém do Diretório Estadual, mas se o que ele praticou é de tal ordem que repercute nacionalmente, é o Diretório Nacional que tem que cuidar. A conduta dele não tem justificativa, é claramente um crime.
Eugênio Bucci: O capitão do mato como assessor de imprensa
Nos desplantes contra a imprensa e a sociedade há truculência ancestral e obtusidade imemorial
Dia desses, um jornalista experiente, dos maiores do Brasil, observou com precisão: a atitude de não dar nenhuma resposta às perguntas da imprensa vai se tornando padrão no governo federal. Resta aos jornalistas reportar o silêncio oficial: “O palácio decidiu não comentar”; “o ministério não deu retorno”; “consultamos a Presidência da República, mas não obtivemos resposta”.
A prática sistemática de ignorar as perguntas dos repórteres é mais um capítulo no bestiário que inclui numerosos insultos às redações jornalísticas e a seus profissionais. O governo, que já se notabilizou por ofender rotineiramente as empresas de comunicação e o ofício dos que se dedicam a informar o público, passa agora a adotar como política diuturna a arrogância do mutismo ostensivo e o desprezo contumaz pelo direito à informação. O quadro só piora.
É difícil encontrar precedentes para esse tipo de aberração. Nem mesmo Armando Falcão, ministro da Justiça de Ernesto Geisel, na ditadura militar, que recorria a evasivas como “nada a declarar” ou “sem comentários”, chegou a tanto. O que se estabelece agora, muito mais do que a esquisitice de um ministro dado a chiliques, é uma norma não escrita de indiferença governamental aos jornalistas e ao direito que cada cidadão tem de saber o que se passa dentro do Poder Executivo. É como se as autoridades nos dissessem a toda hora: “Vocês que se danem”.
No curso dos desplantes continuados contra a imprensa e contra a sociedade há traços de uma truculência ancestral – e de uma obtusidade imemorial. O presidente que aí está já deu mostras sucessivas de seus limites cognitivos, que o impedem de alcançar a complexidade das relações políticas mediadas por institutos como a liberdade de expressão e o direito à informação em sociedades modernas. O estilo deseducado, quando visto pela perspectiva do indivíduo em questão, é antes produto da estreiteza mental que de uma revolta genuína ou refletida. Nele o excesso de infâmia resulta da escassez de pensamento, o que o leva a se portar como um bárbaro dentro de seu próprio país.
Violência é a palavra-chave. Nas forças que levaram Jair Bolsonaro ao poder encontramos pistas que nos remetem à brutalidade que nos definiu como nação, numa linha contínua que atravessa toda a História do Brasil. O pacto autoritário que o elegeu e o sustenta tem no seu núcleo a presunção de que a opressão física a mando de interesses privados resolve os supostos desvios da vida pública. Nesse pacto a obediência tem mais valor do que a consciência e a liberdade. O chefe de Estado não é simplesmente um tipo amalucado de efeitos genocidas, não é apenas um falastrão xucro que chegou lá porque o eleitorado é volúvel e conservador – ele é a forma concreta do método pelo qual as camadas mais ricas e mais fortes esperam resolver seus impasses particulares a despeito do bem público.
Na constituição de caráter (ou de ausência de caráter) do atual presidente comparecem o capitão do mato, o jagunço, o matador de aluguel, o feitor de escravos, o capataz, bem como as novíssimas afetações das empresas de segurança privada e as milícias, as milícias, as milícias. Por meio dele, a polícia manietada se sobrepõe à política ilustrada. Ele entrou em cena como um prestador de serviços sujos a senhores que, em geral, preferem se refugiar em anonimatos ilustres e jamais o convidariam para jantar, ainda que o vejam como um agente útil, capaz de carpir a terra agreste para cair fora em seguida. O presidente está para as elites de hoje assim como o chicote, a chibata e os esquadrões da morte estavam para as elites de outros tempos. É uma ferramenta necessária, embora sabidamente infame.
O que não ocorre aos senhores, chafurdados em privilégios, é que às vezes o leão de chácara vira dono da boate – vide Pinochet. Não lhes ocorre que a política civilizada, no nosso tempo, é a única via de acesso ao futuro – vide Biden. Não há atalhos. Por não terem visto nada disso, e por acreditarem que o serviço sujo traz a “limpeza” classista, mantêm seu apoio indigno a um provocador que usurpa o próprio mandato. Não, a nossa tragédia não é a persistência do presidente da República. A nossa tragédia pior são aqueles que o sustentam por ação ou omissão.
E assim estamos. Quando esse governo achincalha a imprensa, como vem fazendo seguidamente, quer achincalhar a instituições da democracia e da vida civilizada. Sem descanso, trabalha para expelir da cena pública qualquer olhar que não seja subserviente. O governante que alimenta o projeto de um Estado como a extensão de um quartel rebaixado quer a sociedade como uma plateia de bajuladores.
Enquanto isso, vai fazer mais vítimas entre os que lhe deram esteio, pavimentando o caminho para seu idílio de intolerância e desfaçatez, no qual ele não terá de dar respostas, nunca, apenas ordens. Fora isso, vai seguir batendo na imprensa, vai continuar a chamá-la de “lixo”, sempre para deixar patente que, em matéria de cultura, de civilidade e de boas maneiras, a ele bastam o penteado descentrado e a gravata desconforme.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Ribamar Oliveira: Trajetória da dívida pública não foi tão ruim
É possível, em tese, retomar o auxílio emergencial sem criação de imposto
A União vive uma situação muito difícil na área fiscal, registrando déficits primários continuados desde 2014. Mas, mesmo com os elevados gastos realizados no combate à pandemia em 2020, a trajetória da dívida pública foi menos desfavorável do que as previsões do próprio governo e dos analistas do mercado.
Em outubro, por exemplo, o Tesouro Nacional projetava que a dívida bruta do setor público ficaria em 96% do Produto Interno Bruto (PIB), ao fim do ano. Ela terminou em 89,3% do PIB, de acordo com o Banco Central. Ou seja, 6,7 pontos percentuais abaixo da previsão. No início da pandemia, alguns analistas chegaram a prever que ela atingiria 100% do PIB.
Vários motivos explicam o desempenho menos desfavorável. O primeiro foi o resultado primário do setor público, que ficou abaixo das previsões. Em seu Relatório de Projeções da Dívida Pública, do terceiro quadrimestre, divulgado no fim de outubro, o Tesouro Nacional trabalhou com a previsão de que o déficit primário do setor público consolidado ficaria em 12,7% do PIB em 2020.
O déficit primário do ano passado ficou, no entanto, em 9,49% do PIB, segundo o Banco Central. Houve uma recuperação da receita tributária da União a partir de junho do ano passado, o que melhorou o resultado fiscal. Assim, o governo foi menos pressionado a fazer emissões de títulos para obter recursos para pagar as suas despesas, o que resultou em menor endividamento.
A Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade do Senado, deu duas outras explicações para o fenômeno, em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal, divulgado no mês passado. A menor queda da atividade econômica e uma aceleração da inflação no fim de 2020 foram os fatores que, conjuntamente, elevaram o PIB nominal, mostrou a IFI. A dívida pública é sempre comparada ao PIB, que mede o que foi produzido no país em determinado ano. Se o PIB aumenta mais do que o previsto, melhora a relação dívida/PIB. Foi o que ocorreu em 2020.
A IFI lembrou que, em novembro do ano passado, o IBGE divulgou os resultados definitivos das contas nacionais de 2018, observando que, em valores correntes, o PIB daquele ano foi revisado para R$ 7,004 trilhões. Com isso, a taxa de crescimento entre 2017 e 2018 passou de 4,6% para 6,4%. No início de dezembro, o IBGE divulgou as revisões das informações referentes a 2019 e à primeira metade de 2020.
O PIB de 2019 foi alterado de R$ 7,257 trilhões para R$ 7,407 trilhões, com o crescimento nominal de 2018 para 2019 passando de 5,3% para 5,8%.
O PIB nominal também aumentou porque a inflação acelerou no fim do ano passado. O IPCA passou de 0,89% em novembro para 1,35% em dezembro, a maior variação mensal desde fevereiro de 2003, observou a IFI. O IPCA encerrou o ano com alta de 4,52%, ou seja, 0,52 ponto acima do centro da meta de inflação.
A entidade do Senado explicou ainda que o deflator do PIB também aumentou, em relação à estimativa inicial. O deflator é uma medida de inflação mais ampla que o IPCA, pois reflete a variação de preços de todos os bens e serviços produzidos internamente. Os dois índices caminham na mesma direção, embora, como observou a IFI, o deflator do PIB costume evoluir acima do IPCA.
Com a economia caindo menos do que o previsto e com o deflator do PIB subindo mais do que se esperava, o valor nominal do PIB em 2020 também foi maior do que as projeções iniciais.
Em seu relatório de outubro, o Tesouro Nacional trabalhou com uma retração do PIB em 2020 de 5%, em termos reais. Em dezembro, já com todas as revisões feitas pelo IBGE, o Banco Central mudou sua projeção para o PIB e passou a considerar uma queda real de 4,4%. O dado oficial será divulgado pelo IBGE no início de março.
Depois de a dívida bruta do setor público (DBGG) atingir 96% do PIB em 2020, o Tesouro projetou, no relatório de outubro, que ela seguirá crescendo mais lentamente nos próximos anos, chegando a 100,8% do PIB em 2026, quando adquiriria uma trajetória decrescente. A Secretaria do Tesouro Nacional (STF) alterou a periodicidade do relatório, que passará a ser semestral, a partir deste ano. As projeções para 2021 e para o período de dez anos, com os novos parâmetros, só serão conhecidas em abril, com revisão em outubro.
Por conta dos gastos da União para preservar a população da pandemia, a dívida bruta aumentou 15 pontos percentuais do PIB no ano passado. É uma elevação muito expressiva, principalmente para um país emergente como o Brasil. Mas o fato é que a trajetória futura para a dívida pública bruta é muito melhor, hoje, do que a projeção feita em outubro pelo Tesouro.
Se o governo gastar R$ 20 bilhões com o novo auxílio emergencial de R$ 200, que seria concedido pelo prazo de três meses, para um número menor de pessoas do que no ano passado, a trajetória futura para a dívida ainda será melhor do que aquela traçada em outubro pelo Tesouro. Ou seja, é possível dar o auxílio sem a criação de um novo imposto.
O objetivo de um novo imposto é, claramente, o de melhorar a meta de resultado primário deste ano. O governo precisa avaliar se o custo de mudar a estratégia de ajuste fiscal - até agora focada no controle e redução das despesas - vale a pena. Trilhar o caminho do aumento da carga tributária para resolver a questão fiscal, como foi feito em passado recente, talvez seja um erro.
Mariliz Pereira Jorge: 2022 já começou
O que os possíveis adversários de Bolsonaro esperam para botar o bloco na rua?
Lula está certo ao lançar o nome de Fernando Haddad como pré-candidato do PT à Presidência. Mesmo que seja sem convicção. Ainda que seja apenas para se posicionar e deixar claro que frente ampla só se for com o PT na comissão de frente. Só não vê quem não quer: 2022 já começou.
É bom lembrar que Jair Bolsonaro começou sua campanha para 2018 anos antes, quando se desfiliou do PP e disse sonhar ser presidente. Em novembro de 2016, ao prestar depoimento num processo contra o então deputado Jean Wyllys por quebra de decoro, voltou a afirmar que seria candidato "quer gostem ou não".
Eleito e empossado, Bolsonaro se dedica com afinco a apenas duas atividades. Uma delas é tirar férias. Em plena pandemia, o presidente foi descansar no litoral paulista no fim do ano. Agora vai curtir o Carnaval em Santa Catarina, para pescar, quando o país chega a 235 mil mortes.
A outra prioridade é fazer campanha, desta vez para 2022. As pautas de "costumes" que o governo defende no Congresso, por exemplo, são na maioria das vezes apenas combustível para Jair animar sua torcida a fazer barulho. Gostem ou não, o presidente já está em vantagem. O que os possíveis candidatos à Presidência esperam para colocar o bloco na rua? Há quem diga que é muito cedo, que o normal seria esperar o ano eleitoral. O Brasil não é um país normal, não vivemos um momento normal, não temos uma democracia normal.
O eleitor quer saber quais são as alternativas, quem vai se juntar com quem, se tem frente ampla, qual alternativa à esquerda à intransigência de Lula de insistir em ser a única força com chances de segundo turno. O que pode parecer cedo, talvez seja necessário. Sem impeachment, ter o debate desde já coloca os presidenciáveis na mesma página. E nos traz um pouco de esperança de já pensar num possível cenário pós-Bolsonaro.
Hamilton Garcia: O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham
Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).
Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.
Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.
Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo – para não falar do ótimo.
O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.
Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi "salvo" pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.
Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a "nova" coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.
O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.
Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas "vítimas" de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.
A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe", que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico "exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.
Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.
Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.
Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu "novo" governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.
Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO).
Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam "se organizar as demais forças da nacionalidade"[ii].
À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.
De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.
Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])
[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.
[ii] Apud Carvalho, p. 120.
[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
Merval Pereira: E la nave va
Em novembro de 1993, a Polícia Federal encontrou na casa do diretor de relações institucionais da Odebrecht em Brasília, Ailton Reis, documentos que implicavam 350 políticos em esquema de corrupção na distribuição de verbas do Orçamento da União para empreiteiras.
O material acabou sendo neutralizado por erros banais cometidos pelo senador José Paulo Bisol, membro da CPI do Orçamento. Bisol trocou algumas siglas da Odebrecht, como DDPA, que significava “Dirigentes de Países”, por “Dirigentes Políticos de Áreas”. Foi desmoralizado. O escândalo se esvaneceu rapidamente dentro do Congresso.
Anos depois, em 2009, aconteceu a operação Castelo de Areia, contra a empreiteira Camargo Corrêa, que teve quatro diretores presos. Os documentos indicavam que a empresa usava doleiros e contas no exterior para pagar propina para autoridades públicas e políticos de sete partidos.
Em 2010, o advogado Márcio Thomaz Bastos conseguiu que o ministro do STJ Cesar Asfor Rocha, depois acusado por Palocci de ter recebido propina por essa sentença, anulasse toda a investigação, sob a alegação de que partira de uma fonte anônima. O ponto fora da curva aconteceu no chamado mensalão do PT, ocorrido em 2005, que levou à prisão empresários e políticos, condenados pela primeira vez pelo Supremo Tribunal Federal.
Em março de 2014 começou a Operação Lava-Jato, enterrada oficialmente no dia 4 deste mês, com a decisão do procurador-geral da República, Augusto Aras, de desmontar a força-tarefa que funcionava em Curitiba havia sete anos, a maior e mais exitosa operação de combate à corrupção no país, que retomou todos esses escândalos anteriores, colocou na cadeia empreiteiros e políticos, que desde sempre financiaram relações políticas corruptas. Inclusive o ex-presidente Lula, que agora luta na Justiça para anular suas condenações, da mesma maneira que historicamente foram anuladas todas as investigações sobre corrupção política no país.
No julgamento sobre o acesso da defesa de Lula às mensagens roubadas dos procuradores da Lava-Jato por hackers, o ministro Edson Fachin disse que o recurso não poderia ter sido enviado a Ricardo Lewandowski, pois ele, sim, é o ministro responsável. O Ministério Público classificou a manobra de “burla da relatoria”.
O voto da ministra Cármen Lúcia tem um sentido que transcende a disputa política, baseado numa simples questão: todos tiveram acesso a essas informações, então a defesa de Lula poderia ter também. O que não quer dizer, segundo a ministra, que sejam legais.
Acredito que o plenário decidirá pela ilegalidade delas, mas não terá importância, porque os diálogos já foram divulgados. Por isso, a defesa de Lula anunciou ontem que não os usará no julgamento da parcialidade do então juiz Moro. O objetivo já foi alcançado: dar visibilidade aos diálogos roubados, que não foram periciados, para influir na opinião pública e nos ministros do STF.
Fazem o que acusam Moro de ter feito, ao divulgar o diálogo entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula, que impediu a manobra de colocá-lo no Gabinete Civil, blindado da Justiça. Há até uma interpretação hilária de um dos diálogos, em que o procurador Dallagnol recebe nos Estados Unidos a informação da condenação de Lula. “Dallagnol na Disney enquanto aqui Lula é condenado”, brinca um dos procuradores. Dallagnol responde “Presente da CIA”.
Petistas alegam que ele está confessando que a prisão foi um presente da CIA, quando está claro que está gozando a mania de dizerem que os procuradores trabalham para CIA e que ir à Disney teria sido uma recompensa.
Há quem veja nos diálogos revelação de que o jornalismo profissional colaborou acriticamente com a Operação Lava-Jato. Mas e os que colaboram com o petismo para inocentar Lula de todas as acusações, seriam esses os verdadeiros jornalistas? O caso agora virou uma luta política de narrativas. Durante cinco anos, prevaleceu a da Lava-Jato. A reação do establishment político veio, como aconteceu na Itália das Mãos Limpas. Nada indica que seja o fim, como disse o ministro Edson Fachin.
#ficaimprensa
O Globo: Novo estudo comprova a 'boiada' de Salles na área ambiental
Pesquisadores compilaram 57 mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro em dispositivos legais que enfraqueceram regras de preservação
Rafael Garcia, O Globo
SÃO PAULO - Um grupo de pesquisadores que compilou despachos federais de regramento ambiental no Brasil encontrou durante o governo Bolsonaro 57 dispositivos legais que se encaixam nas categorias de “desregulação” e “flexibilização”, enfraquecendo regras de preservação. Mais da metade das medidas foi expedida após o ministro Ricardo Salles ter dito em reunião que pretendia “passar a boiada” das propostas do Executivo para o setor, enquanto a pandemia de Covid-19 concentrava a atenção da mídia.
A pesquisa, que retrata um quadro de degradação do arcabouço de proteção ambiental no país, foi liderado pelas ecólogas Mariana Vale e Rita Portela, da UFRJ. As cientistas usaram para o estudo informações do projeto de transparência de dados Política por Inteiro, que lê o Diário Oficial da União usando robôs.
O grupo se concentrou nos chamados atos “infralegais”, decisões do Executivo que não dependem de aval do Legistativo, de vários ministérios, mas que tivessem impacto ambiental. Também incluíram no estudo dados de desmatamento e aplicação de multas ambientais. O resultado do trabalho foi descrito em um artigo no periódico acadêmico Conservation Biology.
“Encontramos uma redução de 72% nas multas ambientais durante a pandemia, apesar de um aumento no desmatamento da Amazônia durante o período”, escrevem os pesquisadores. “Concluímos que a atual administração está se aproveitando da pandemia para intensificar um padrão de enfraquecimento da proteção ambiental no Brasil.”
Flexibilização controversa
Entre as medidas destacadas pelos pesquisadores durante o período da pandemia está a que libera atividade de mineração em áreas que ainda aguardam autorização final, publicada em junho de 2020. Outra norma, no mês seguinte, reclassificou 47 diferentes pesticidas como de categoria menos danosa, sem respaldo em literatura científica.
De setembro passado, os cientistas destacam a medida que facilita autorização para pesca industrial. “A autorização sai sem qualquer tipo de triagem ou avaliação dos pescadores e de suas práticas”, afirmam os cientistas.
O estudo também comparou a taxa relativa de multas por desmatamento na Amazônia, e a comparou com o ano anterior.
Quando a área de floresta derrubada atingiu quase 120 mil km² por mês em agosto de 2019, nos dois meses seguintes a quantidade de multas por esse tipo de crime na região oscilou entre 40 e 60 por mês. No auge da primeira onda da Covid-19, o desmatamento também foi alto, com quase 100 mil km² derrubados num mês, mas as multas ficaram abaixo de 10 por mês.
O estudo também analisou mudanças de pessoal no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
— Houve substituição de staff técnico em posições de chefia por staff não técnico, que foi marcada pela retirada de servidores com anos de experiência dentro das autarquias ambientais para serem substituídos, por exemplo, por policiais militares de carreira — afirma Erika Berenguer, ecóloga da Universidade de Oxford e coautora do estudo.
A reportagem encaminhou ao Ministério do Meio Ambiente uma cópia do estudo, mas não recebeu resposta até a conclusão desta edição.
Conrado Hübner Mendes: Centrão magistocrático se vende por menos
Para a violência bolsonarista, tempo é tudo; tempo a magistocracia sabe entregar
Para um Estado de Direito funcionar, não basta recrutar bacharéis que recitam leis e jargões, chamá-los de juízes e promotores, conferir-lhes garantias de independência e apertar o play. É recomendável saber quem são, de onde vêm, como pensam e por quanto se vendem. E deixar claro o que deles se espera ética e intelectualmente. E controlá-los.
Entre os obstáculos que emperram o Estado de Direito no Brasil, a hegemonia da magistocracia no sistema de justiça é dos mais ignorados. A magistocracia corresponde à fração de juízes e promotores que parasitam o interesse público e alimentam a corrupção institucional. Sua faceta rentista é só a mais visível.
A magistocracia rifa a legalidade e perde a dignidade, mas não perde a pecúnia. Vive e pratica o lema "crises econômicas são oportunidades, férias para vender, recessos para descansar e leis moralizadoras para retorcer". Se o teto salarial limita a remuneração, que a corporação enriqueça por meio de "verbas indenizatórias", mesmo que a distinção seja espúria.
Sabe-se que em torno de 35% da renda da magistocracia é composta por "extras", em geral isentos de impostos, e que algo próximo de 70% recebe acima do teto. Na pandemia, buscou ser vacinada primeiro. Como o trabalho remoto trouxe economia, aproveitou para quitar passivos acumulados com o dinheiro poupado. Procure saber que "passivos".
Em 2020, só com férias vendidas, o Judiciário gastou pelo menos R$ 423 milhões (revista Piauí). O "pelo menos" se deve à falta de transparência de alguns tribunais, como o TJ-RJ. O TJ-SP gastou R$ 116 milhões para "comprar" férias. O TJ-MG gastou R$ 326 milhões em auxílios.
Sobreviver no centrão magistocrático é mais fácil que no centrão partidário, pois não dependem de voto nem de eleitor. Precisam ter amigos na política, fazer permutas de legalidade e negociações de constitucionalidade. Centrão partidário e centrão magistocrático se ajudam.
Vejam Arthur Lira. Nessa semana, visitou o TJ de Alagoas. O mesmo tribunal que julga sérias acusações contra ele, de corrupção a violência doméstica. Seu presidente, Kléver Loureiro, investigado pelo CNJ, é defendido pela dupla de advogados de Lira. Kléver Júnior, que disputou a Prefeitura de Japaratinga, recebeu apoio público de Lira. "Demandas do Judiciário serão bem recebidas na Câmara", disse Lira, como noticiou site do próprio TJ.
Mas a magistocracia não é só rentista —é também autoritária e colaboracionista. Isso soa como hino militar nos ouvidos de Jair Bolsonaro. A acusação de crime tem pairado sobre si e sua família, e o risco de proteção judicial de liberdades constitucionais afronta seu governo. O processo de cooptação desse outro centrão está inconcluso, mas em disputa.
Augusto Aras tem feito sua parte. Para disfarçar seu passivo colaboracionista, depois de jogar o desastre de Manaus nas costas de prefeito e governador, abriu inquérito contra Pazuello e procedimento preliminar, que nem inquérito é, contra Bolsonaro. Iniciativas bem recortadas juridicamente para desconversar sobre os fatos e crimes mais graves e arquivar o mais rápido possível. Se a gratidão fosse a virtude de Jair, a vaga no STF já teria dono.
O cordão obstrucionista que a magistocracia armou para postergar ao infinito os casos criminais de Flávio Bolsonaro perpassa a gaveta de Gilmar Mendes no STF, algumas gavetas do STJ e do TJ-RJ.
No STF, três inquéritos afetam interesses imediatos de Bolsonaro: investigam bolsonaristas por fake news, atos pelo golpe militar encorajados por Bolsonaro, e intervenção do presidente na Polícia Federal.
São administrados como bombas de contenção, com resultados ainda incertos.
Também vêm do STF demoras úteis ao projeto bolsonarista, como proteção de indígenas e presidiários na pandemia, ou mesmo casos antigos que pisam na veia bolsonarista, como do tráfico de drogas, que dormita em gaveta esplêndida há seis anos, ou dos direitos de mulheres.
Para a violência bolsonarista, tempo é tudo. Tempo a magistocracia sabe entregar.Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
José Serra: Banco Central - Quando autonomia significa mais desigualdade
O Parlamento e o governo sabem que um dos legados da pandemia é o aumento da desigualdade social. Famílias sem acesso a recursos financeiros perdem renda e emprego, com seus filhos fora da escola, lutando pela sobrevivência. Além disso, não temos orçamento público aprovado nem planejamento financeiro para ajudar essa parcela significativa da população brasileira. É neste cenário que o presidente da Câmara resolveu pautar projeto que institui a independência política do Banco Central, o que tende a aumentar, mais ainda, essa desigualdade.
A proposta é moralmente perversa e deve ser rejeitada, pois a independência política de um Banco Central aumenta a já enorme barreira que separa ricos e pobres. Essa é a conclusão de pesquisadores do Banco Mundial em estudo publicado este ano a respeito do impacto da independência dos bancos centrais sobre a desigualdade:“Does Central Bank Independence Increase Inequality?”. Com sólida base teórica, os estudiosos do banco demonstraram a existência de correlação entre a independência do Banco Central e a desigualdade social. Chegaram a três conclusões de fácil compreensão.
Primeiro, a independência dos Bancos Centrais limita o alcance da política fiscal, o que limita a capacidade de um Governo para distribuir recursos. Segundo, incentiva a desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, beneficiando os investidores em bolsa, na medida em que infla os valores dos ativos negociados no mercado. Terceiro, promove indiretamente políticas que enfraquecem o poder de negociação dos trabalhadores, com o objetivo de conter pressões inflacionárias.
A autonomia política do Banco Central é uma pauta que inundou os países industrializados na década de 1970, ajudando a fomentar, na academia, a tese da superioridade da independência dos bancos centrais. Naquele período, muitas democracias aprovaram normas para conferir autonomia a suas autoridades monetárias, com o objetivo de tornar mais efetivo o controle das taxas de juros.
Depois da crise financeira de 2008, o cenário mudou bastante. Hoje os bancos centrais têm mandato que extrapola, de longe, aquele papel clássico de cinquenta anos atrás, em que as autoridades desses tinham, como única missão, executar a política monetária via definição da taxa básica de juros da economia.
Os bancos centrais modernos estão atuando na política monetária em coordenação com a política fiscal, injetando dinheiro para aquecer a economia. O projeto em discussão na Câmara dos Deputados chega a criar um mandato a mais para o nosso BC: promover crescimento e emprego. Esse novo arranjo institucional da política monetária é incompatível com o argumento da soberania política para o esse banco.
No cenário atual, a discussão sobre projetos para garantir independência política para o BC está completamente fora de hora. O Brasil vive uma pandemia das mais graves da história, com hospitais do SUS abarrotados de pessoas infectadas pelo coronavírus. Em algumas localidades, faltam balões de oxigênio para manter pessoas respirando. E o novo presidente da Câmara resolve mostrar serviço, tentando aprovar uma das reformas menos relevantes para o enfrentamento da crise.
Claramente estamos perdendo o foco ao discutir independência do Banco Central, justamente agora. A energia e o tempo do Congresso deveriam estar voltados para a aprovação, antes de mais nada, do orçamento, e discutir como viabilizar um socorro emergencial para as famílias que estão lutando pela sobrevivência. Nada é mais importante no momento.
Neste cenário, o Congresso deveria rejeitar qualquer proposta que possa promover maior desigualdade social. A pandemia já está atuando nessa direção, e o que temos que fazer no Parlamento é combater a desigualdade, como cabe a um poder autônomo da República.
*Jose Serra (PSDB-SP) é senador da República. Foi ministro da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), ministro das Relações Exteriores durante o governo de Michel Temer (2016-2017), governador de São Paulo e prefeito de São Paulo.