eleições 2022

Rogério Werneck: Populismo explícito

Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, equipe econômica terá de lidar com o risco de uma guinada populista inequívoca

Não é de hoje que o País anda sobressaltado com a possibilidade de Bolsonaro rasgar a fantasia e abandonar de vez seu suposto compromisso com uma agenda de política econômica liberal. 

Em janeiro, houve a tentativa de demissão do presidente do Banco do Brasil, por ter anunciado redução no quadro de funcionários da instituição. A escalada mais recente, da demissão do presidente da Petrobrás, por insensibilidade pelos interesses dos caminhoneiros, configurou episódio bem mais grave. 

Como interpretar a súbita disposição de Bolsonaro de se mostrar tão mais truculento no problemático cabo de guerra que, há tempos, vem travando com Paulo Guedes e sua equipe? Em que medida tudo isso levanta incerteza sobre a condução da política econômica no País?

Não há como se agarrar ao autoengano. O episódio deixa mais do que clara a extensão do esgarçamento na complexa relação de Bolsonaro com seu ministro. É inegável que houve constrangedora perda de face de Paulo Guedes e sério comprometimento de sua credibilidade. E, sobretudo, de sua capacidade de articulação, tanto dentro do governo como com o Congresso.

A demissão caiu como uma ducha de água fria no ambiente de negócios no País. Trouxe desestímulo a investimentos relacionados a privatizações e concessões, em que Guedes vinha fazendo muita fé. Um clima de desalento que se fará sentir tanto no timing como no vigor da tão aguardada retomada da economia. Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, a economia terá de lidar agora com o risco cada vez mais palpável de uma guinada populista inequívoca.

O que terá feito Bolsonaro, de repente, partir para tamanha truculência, botando em risco sua relação com Guedes? Em se tratando de quem é, não se pode descartar, claro, a possibilidade de que tenha sido só mais uma decisão desajuizada da qual o presidente já esteja arrependido, mas, como sempre, incapaz de recuar.

Na verdade, o movimento parece ter tido motivação mais fundamentada. Por difícil que seja tentar racionalizar o comportamento de Jair Bolsonaro, vale a pena especular sobre o que o terá movido. A resposta mais óbvia tem a ver com sua crescente apreensão com a provável evolução de sua popularidade nos 19 meses de travessia que ainda tem pela frente, até a eleição presidencial de outubro de 2022.

Na esteira do recrudescimento da pandemia, do surgimento de novas cepas do vírus e da ineficácia das ações do governo na Saúde, o País parece fadado a continuar enredado no combate à covid-19 por muitos meses mais. O que deverá retardar a recuperação da economia para o segundo semestre, na melhor das hipóteses.

Sobram sinais de crescente indignação da população com o deplorável avanço da vacinação. Impactado pelas cenas macabras de Manaus, Bolsonaro, afinal, se deu conta de como o agravamento da pandemia, antes da vacinação, poderá lhe ser desastroso.

Ao continuar se gabando em público de jamais se ter equivocado quanto à pandemia – “não errei nenhuma” –, o presidente parece, de fato, alucinado. Mas a verdade é que Bolsonaro não cospe para cima nem rasga dinheiro. É perfeitamente capaz de perceber as reais proporções das barbaridades que se permitiu cometer diante do avanço da pandemia e teme, a cada dia, quão oneroso tudo isso ainda lhe poderá ser. Não sabe por quanto tempo poderá continuar a confiar no Centrão para se esquivar da conta que acabará lhe sendo apresentada.

Além dessa espada sobre sua cabeça, o que o presidente agora entrevê são muitos meses mais de pandemia e uma recuperação cada vez mais tardia e menos convincente da economia, fadada a deixar a taxa de desemprego ainda assustadoramente alta no seu último ano de mandato. 

Não chega a ser surpreendente que, alarmado com essa perspectiva, Bolsonaro tenha decidido, afinal, “entrar (para valer) na política econômica”. Já não esconde de ninguém que quer conduzir a seu modo sua difícil travessia até as eleições. “Se tiver de errar, quero pagar pelos meus erros.”

O que mais estará disposto a fazer, se sua queda de popularidade persistir?

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-RIO


Vinicius Torres Freire: Entenda a recaída do Brasil e por que os EUA afetam dólar e juros por aqui

Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre, mas convém olhar para os EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil

Em um país distante do Norte da Terra, que baniu o Ogro Laranja e vai distribuir poções medicinais para seu povo inteiro até maio, há um negócio em que os mercadores de dinheiro do mundo prestam a maior atenção. É a taxa de juros dos títulos de 10 anos do governo dos Estados Unidos.

Grosso modo, é o custo de o governo americano tomar empréstimos por dez anos. Define o custo do crédito para outros negócios, desde comprar casa no Texas a emprestar para o governo do Brasil. Pelo menos desde 25 de fevereiro, a alta dos juros de longo prazo americanos tumultua a finança mundial, em particular nos países “emergentes”.

O Brasil, um país submergente nas profundas dos infernos, padece em especial do remelexo americano. A gente precisa prestar atenção nisso. “Estruturalmente, a questão americana é a mais relevante, é central”, como diz em termos sóbrios Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV, professor de economia da UFRJ.

A alta da taxa de juros nos EUA é motivo da alta do dólar pelo mundo. A economia americana se recupera com rapidez. Vai receber US$ 1,9 trilhão de impulso de gasto do governo (35% mais que o PIB brasileiro anual). Conta ainda com o estímulo do Banco Central deles, o Fed, que continua comprando mais de US$ 100 bilhões por mês em títulos públicos e privados. Para resumir uma conversa enrolada, na prática isso significa que o Fed reduz as taxas de juros pagas por governo, empresas e mesmo indivíduos: o Fed subsidia, banca, parte da conta dos juros. Até maio, a população americana deve estar vacinada. Parte da dinheirama do mundo corre, pois, para os EUA.

Considerada ainda a volta a alguma normalidade sanitária no segundo semestre, a economia americana tende a acelerar. Haveria perspectiva de volta da inflação e, assim, de alta das taxas de juros de curto prazo, se diz.

Jerome Powell, o presidente do Fed, disse nesta quinta-feira que não, sem convencer “o mercado”. Não seria neste ano que estariam satisfeitas condições para alta de juros: mercado de trabalho recuperado, inflação a 2% e expectativas de inflação que fiquem por aí, ou algo mais, por alguns anos.

O efeito mais imediato dos EUA por aqui é a alta do dólar e dos juros brasileiros de prazo mais longo. Mas dólar mais caro por mais tempo sedimenta expectativas de inflação mais alta. Além do mais, houve aumento grande do preço de commodities (petróleo, grãos) e pressão em preços de bens de consumo por causa dos auxílios emergenciais. O IPCA deve ficar na casa dos 6% entre abril e setembro. A renda do trabalho está sendo carcomida.

A fim de deter essa inflação, o BC brasileiro deve elevar a taxa de juros básica (Selic), ora em 2%, a partir de 17 de março, embora ainda exista controvérsia sobre a persistência dessa carestia. Para Castelar, a Selic tem de ir a 5,5% no final do ano. Para os economistas do Itaú, a 5%. Pela opinião visível no custo do dinheiro na praça financeira brasileira, para algo entre 5,5% e 6%.

Seria uma paulada. Um aperto na atividade econômica. Um aumento no custo de financiamento da dívida pública já enorme, custo extra que ficará notável em 2022. Vai para o vinagre a ideia de que poderíamos ficar com juros reais perto de zero até bem entrado o ano que vem.

morticínio crescente e o semiparadão também não estavam nas contas econômicas. As restrições oficiais e voluntárias a movimento e comércios não serão tão grandes como no início de 2020. Mas devem ter efeito por pelo menos até abril. É menos crescimento, se algum, até meados do ano. O PIB paulista caiu em janeiro, primeira baixa ante mês anterior desde abril de 2020 (no indicador PIB+30 do Seade). O indicador Cielo de vendas no varejo se recuperou bem até outubro, quando estava em queda de 7,7% ante igual mês do ano anterior. Em janeiro, estava em baixa de 12,6%.

O mundo de novembro de 2020, que deu um alento ao PIB do final do ano, se esfumaçou. Fevereiro foi fraco, março será pior. Sim, Jair Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre. Mas convém prestar atenção nos EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil.


Reinaldo Azevedo: No banquete de Bolsonaro, somos 210 milhões de leitões no espeto

 Parte do STF ajudou a pavimentar o caminho para a terra dos mortos. E agora? Como enfrentar a necropolítica?

Na terça (2), houve recorde de mortes por Covid-19 no país, já superado por outros. Jair Bolsonaro estava num almoço festivo no Alvorada com políticos mineiros. Peça de resistência do cardápio: brasileiro no espeto. Estávamos lá na forma de um leitão esturricado. Somos a carne barata do capitão tresloucado, cercado de generais por todos os lados.

Nesta quinta, com um novo marco de cadáveres, ele conclamou os brasileiros a cair na vida para entrar na morte. "Chega de mimimi", exortou. Afirmou que, na Bíblia, a expressão "não temas" aparece 365 vezes. Teve de consultar um papel. Não conseguiria reter na memória tanta informação. Disse o troço olhando estranhamente para o lado, como se fizesse o download de algo que não era deste mundo.

Vamos a uma indagação que fez história: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" É um dos tuítes golpistas que o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, dirigiu ao STF no dia 3 de abril de 2018. Mais de 260 mil mortes depois, será que ele tem a resposta?

A intimidação tinha como alvos os ministros do STF. Queria que endossassem o voto de Edson Fachin, relator do HC de Lula, que mantinha o ex-presidente na cadeia contra a Constituição e contra o Código de Processo Penal. O resultado saiu ao gosto da caserna. Fachin não soltou nem Lula nem um pio. Três anos depois, o jacobino tardio anuncia que a democracia está sendo ameaçada por militarismo, intimidação aos Poderes, depreciação do voto, ataques à liberdade de imprensa, armamentismo, recusa antecipada ao resultado das eleições e, claro!, corrupção.

Os seis primeiros itens servem apenas para lavar o sétimo. O paladino do moralismo em que jaz a moral continua a fazer a defesa incondicional da Lava Jato e de seus métodos criminosos. Em offs nada sutis, o ministro tem especulado que a suspeição de Sergio Moro —e, pois, a anulação da condenação de Lula no caso do tríplex— pode ter um efeito cascata, atingindo outros casos. A sugestão implícita é clara e indecente: mantenha-se a sentença insustentável para salvar o sistema.

Fachin é o emblema de um tempo em que o Supremo, por sua maioria, faltou miseravelmente ao país, permitindo que o Estado de Direito se esboroasse no grau zero da legalidade, fragmentando-se em solipsismos de suposta vocação redentora, com o alegado propósito de excluir malfeitores da vida pública. Bolsonaro e os milicos souberam percorrer a trilha que unia a destruição do devido processo legal à terra dos, em breve, 300 mil mortos.

O tribunal que ajudou a promover —por sua maioria, não por unanimidade— a razia na política se queda inerme e perplexo diante da devastação produzida pelo presidente da República e por alguns de seus ministros. No que lhe tem sido dado arbitrar, é verdade, tem feito a coisa certa em relação à Covid-19. Ocorre que há pouca margem de manobra.

Como esquecer? Políticos se tornaram réus, alguns defenestrados da vida pública, porque a corte acolheu denúncias segundo as quais doações então legais a campanhas eram formas veladas de corrupção, bastando para tanto as delações premiadas arrancadas no cárcere por procuradores dispostos a fazer com que seus reféns "mijassem sangue". Mistificação, demagogia e truculência abriam a picada para os cemitérios.

O delírio punitivista em que se perdeu o Judiciário, em especial o STF —e Fachin continua caudatário desse desastre—, não protege, como se vê, os brasileiros da sanha homicida do Poder Executivo; de sua incompetência; da negação do saber científico; da distribuição de drogas sabidamente ineficazes no combate à Covid-19; da negligência no trato com as vacinas; da, para ser sintético, necropolítica.

O impeachment de Bolsonaro não está no horizonte. Pergunto-me: o que mais pode fazer o Estado legal, de que o STF é a expressão maior e o intérprete final, para impedir que o presidente da República trate 210 milhões de brasileiros como leitões no espeto?


Alberto Aggio: O debate em torno do populismo volta à cena

Os ziguezagues de Bolsonaro no comando do governo federal, dentre eles seus desconexos movimentos justificadamente interpretados como mais um retorno a políticas de caráter estatizante, evidenciados recentemente na desastrada intervenção na Petrobrás, recolocaram um velho debate no centro da conjuntura: a suposição de um “retorno ao populismo” que por sua vez contestaria as até então declaradas inclinações pelo liberalismo como a principal orientação da política econômica governamental. De repente, tudo virou de pernas para o ar e as acusações de populismo a Bolsonaro passaram a ser vocalizadas insistentemente e se combinaram com estapafúrdias similitudes com o comunismo e o fascismo — tudo junto e misturado! Num ambiente como esse, as discrepâncias entre conceitos são chocantes, o que torna imprescindível, pelo menos brevemente, revisitar a temática do populismo a partir de uma perspectiva mais crítica e esclarecedora.

Sir Isaiah Berlin, retratado por Gemma Levine

O populismo não é um conceito simples como vem aparecendo na verborragia que tal debate ensejou. Ele é reconhecidamente um conceito problemático por sua ambiguidade, imprecisão, vagueza, generalização, elasticidade, subjetividade etc. Para início de conversa, trata-se de um neologismo que visou descrever as iniciativas de “ida ao povo” por parte de opositores a regimes autocráticos que se sustentavam em sociedades fechadas ou pouco dinâmicas. A historiografia registra o nascimento do conceito na tradução para inglês (populism) do movimento narodnik na Rússia do final do século XIX. A ele se consagra a pré-história do conceito, no mesmo momento, aliás, que o termo seria utilizado para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no interland norte-americano. Depois da Rússia, como escreveu José Aricó, a América Latina tornou-se a “grande pátria do populismo”.[1] Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser utilizado por historiadores e cientistas sociais como a denominação de um período da sua história.

Em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, Isaiah Berlin chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo.[2] Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em riste, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência tivesse se dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar disso, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais, no jornalismo ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.

O populismo é, portanto, um constructo e sua elaboração teórica resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democráticas que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identificação.

O CONTEXTO HISTÓRICO DO POPULISMO LATINO-AMERICANO

Correlato aos acontecimentos mundiais, o populismo emergiu, na América Latina, num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas. É, portanto, um conceito construído para descrever e compreender um contexto de transição histórica, de crise e redefinição das relações entre Estado e sociedade. Enquanto governos ou regimes, o chamado populismo assumiu, em termos gerais, a perspectiva de construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O que se qualifica de populismo latino-americano atuou, portanto, no sentido de promover a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente.

Joan Domingo Perón, um dos símbolos do populismo juntamente com Lázaro Cárdenas (México) e Getúlio Vargas (Brasil)

No essencial, o populismo latino-americano do século XX interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo foi concebido e difundido como uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.

Desde o pós-guerra, no século passado, uma marca pejorativa acompanha o populismo. Ele seria o “outro” repugnante, uma manifestação aberrante e anormal, uma síndrome, um espectro ou mesmo uma recorrente “tentação” que acompanha os atores políticos latino-americanos como via para alcançar e se manter no poder. Desde o final do século XX, cristalizou-se a ideia de que as sociedades latino-americanas necessitariam de uma ruptura histórica antipopulista necessária para “implantar” ou mesmo fazer avançar o capitalismo. Numa abordagem mais ordinária, o terreno dessa aguardada “ruptura” estabeleceria recorrentemente a contraposição entre liberalismo e estatismo, independentemente de quais sejam as questões em tela no debate público.

O POPULISMO, ENTRE UM SÉCULO E OUTRO

Do final do século XX para as duas primeiras décadas do século XXI constata-se uma deriva do populismo que dilui o conceito ou a teoria explicativa que ele significou no passado, reduzindo-o apenas a um termo utilizado de maneira instrumental como identificador de uma política sempre qualificada como negativa. Assim, se instaura na opinião pública e entre os analistas da política contemporânea uma indiferenciação que se baseia quase que exclusivamente nos comportamentos políticos de líderes que são chamados, sem muito rigor, de populistas. Essa indiferenciação induz a que líderes políticos sejam caracterizados como populistas independentemente da identificação, semelhança ou mesmo proximidade entre eles. Assim, líderes políticos como Berlusconi, Lula, Chávez/Maduro, Trump, Beppe Grillo, Macron, Matteo Salvini ou Renzi, Orbán, Bolsonaro, Obama, todos eles, foram ou são, em alguns momentos ou por diferenciados comentadores, qualificados como populistas. Se o populismo do século XX foi acusado de uma polissemia insuperável, o populismo do novo milênio não fica atrás.

Silvio Berlusconi e Matteo Salvini (Reprodução: Alberto Pizzoli/AFP/Acervo)

Independentemente de ser entendido como um fenômeno de direita ou esquerda, o que a maior parte dos analistas observa é que, nesse início de milênio, vive-se uma espécie de “revanche do populismo”, quer como resultado imprevisto da luta contra os regimes autoritários na América Latina quer como resultado de uma crise profunda não apenas das democracias consolidadas, na Europa, como também do welfare state, sua base de sustentação — os EUA de Trump se mostrou um caso particular, embora significativo. Outro elemento a ser considerado são os desajustes da globalização que acabaram por gerar uma reação nacionalista que assumiu, em muitos países, formas extremistas, quase todas elas caracterizadas como populistas. O populismo haveria ressurgido como uma força regressiva no político, com seus rastros de afronta aos direitos humanos, repressão a opositores, perseguição a juízes e ataques à imprensa e às instituições. Em países nos quais a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência da sociedade e das instituições políticas tem sido maior, contrapondo-se a esse tipo de movimento extremista que, em termos mais apropriados, não deveria ser qualificado como populismo.

De uma foram ou de outra, buscando isolar o populismo enquanto um fenômeno consonante com o nosso tempo, inúmeras interpretações têm sido formuladas procurando, invariavelmente, encetar o populismo na chamada “crise da democracia”.[3] E, nesse plano, a questão passa a ser pensada a partir da essencialidade da construção da estrutura de poder nas sociedades contemporâneas.

A interpretação mais virtuosa por sua densidade teórica é reconhecidamente a de Ernesto Laclau.[4] Entusiasmado com os chamados governos de esquerda que se espalharam por diversos países latino-americanos no início do milênio, Laclau não hesitou em construir uma potente analogia. Sem rodeios, afirmou: “há um fantasma que assombra a América Latina, esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx sugere claramente que Laclau pensava em reservar ao “populismo atual” um lugar semelhante ao que Marx imaginou para o comunismo na Europa dos idos de 1848. O cenário de crise da democracia ou de vigência de uma pós-democracia seria o terreno propício para isso.

Laclau e Chantal Mouffe

Para Laclau, o populismo do século XXI expressaria uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos. A razão populista e a razão política, como afirmou E. Laclau, seriam idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. O termo populista, nesta leitura, seria aplicável a qualquer orientação ou movimento político “antissistema”, o que faz emergir a tese de que contra um “populismo de direita” caberia a construção de um “populismo de esquerda”. Supõe-se, nesse caso, que o populismo seja capaz de estabelecer a passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. A identificação, à esquerda, com o bolivarianismo seria direta e imediata; à direita, o iliberalismo de Viktor Orbán obviamente não estaria distanciado daquele objetivo.

Em qualquer dos casos, a contraposição à modernidade é explícita porque se mostra avessa ao indivíduo em sua expressão autônoma, submetido a um desígnio abstrato advindo do “povo-Nação” ou a um regresso anacrônico à noção de “pátria”. Nenhum traço ou sinal de uma “modernidade alternativa”, entendida como democrática, progressista e emancipadora. Contraposta à modernidade a perspectiva analítica laclauliana poderia se confundir com algo que Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, sintetizou magnificamente: o populismo seria então, justificadamente, “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”. Estaria aí seu maior equívoco e o seu insuperável limite.

Como afirmou Margaret Somers, “conceitos são palavras em seus contextos”,[5] o que talvez explique as razões para que, nos dias que correm, seja difícil compartilhar uma crítica ao populismo, tal a aceitação e a ligeireza com que ele é utilizado, sejam quais forem as intenções de seus vocalizadores. Mais produtivo seria se buscássemos construir um debate público em que pudéssemos identificar processos e atores políticos pelo que realmente são. Certamente oxigenaria o já infestado ambiente de degradação em que vivemos.

Notas:

[1] ARICÓ, José. La cola del diablo. Caracas: Nueva Sociedad, 1988.

[2] Citado em ALLOCK, J. B. “Populism, a brief biography”, Sociology, 1971, p. 385, apud MACKINNON, M. M.; PETRONE, M. A. (orgs.) Populismo y neopopulismo en América Latina. Buenos Aires: Eudeba, 1988, p. 11.

[3] PANIZZA, Francisco (compilador). El populismo como espejo de la democracia. Buenos Aires: Fonde de Cultura Económica, 2009.

[4] LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.

[5] SOMERS, Margaret. “Que hay de político o cultural en la cultura política y en la esfera pública?”, Zona Abierta, 77/78, 1996/97, p. 31-94.

(Esse texto é uma publicação conjunta e simultânea com a revista eletrônica Estado da Arte, vinculada ao jornal O Estado de São Paulo).


Alessandro Vieira: Auxílio emergencial - A guerra de narrativas que mata

O Congresso constrói soluções urgentes para o país, como o restabelecimento do auxílio emergencial - essa obra do parlamento em parceria com o Executivo que, em plena pandemia, reduziu a taxa de pobreza do nosso país a níveis históricos. Como é de conhecimento público, fui diagnosticado com covid-19, o que não permitirá, por alguns dias, que eu participe presencialmente das negociações em curso no Senado Federal. Claro que nada disso me impedirá, com a ajuda de minha equipe, de ser parte dessa solução tão importante para o país.

Mesmo à distância, estou defendendo os interesses de quem mais precisa, sem abrir mão da responsabilidade e do rigor técnico.

De cara, reconheço e elogio o esforço do colega senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Emergencial e do líder do Governo, senador Fernando Bezerra (MDB-PE). Porém, mesmo avançando muito, ainda temos problemas relevantes, o que é natural dada a complexidade do tema. Para piorar, vozes externas não têm contribuído com o debate.Leia mais

O ministro Paulo Guedes, por exemplo, nos convida a dar “sinais” para o mercado de respeito à responsabilidade fiscal. Está correto na tese. Não percebe o ministro, porém, que ele mesmo manda “sinais” trocados ao incentivar uma visão catastrófica sobre os impactos da retomada do auxílio emergencial. Da mesma forma, ao insistir em vincular a retomada do auxílio à PEC Emergencial, coisas absolutamente distintas.

Como já demonstraram técnicos relevantes, a exemplo de Felipe Salto, do IFI, da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, não cabe essa vinculação. Se o objetivo desta mistura é pressionar o Congresso, com todo respeito, a tática é tola e com efeitos limitados às já conhecidas guerras de narrativa.

Precisamos urgentemente do auxílio, como precisamos das vacinas, hoje entregues a conta gotas enquanto os hospitais superlotam. E não existe nenhuma divergência sobre essas necessidades.
Já os demais pontos da PEC são medidas de ajuste fiscal que precisam tramitar com celeridade, assim como as reformas estruturantes, mas sem o caráter de calamidade.

Por isso persisto no pedido de “fatiamento”, na linha de emendas minhas e do senador José Serra. Assim teremos a aprovação imediata das cláusulas de calamidade para retomada do auxílio e faremos a remessa das cláusulas de protocolo fiscal para calendário especial na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o que será regrado pelo presidente Pacheco. Registre-se que sugeri duas semanas para essa tramitação especial.

Essa decisão, desde que bem comunicada e com lealdade por parte dos negociadores, será recebida sem sobressaltos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pode firmar calendário estreito, com compromisso de todos pelo não uso de estratégias protelatórias, como aliás fizemos na PEC da Previdência.

O sinal de que o Brasil precisa é o de respeito às vítimas e suas famílias, não de eterno cortejo a especuladores ou a adeptos da narrativa fratricida do nós contra eles.

Já passou da hora do Congresso Nacional demonstrar o alinhamento com as pautas populares e se debruçar no que milhões de brasileiros realmente precisam: o retorno do auxílio e uma vacinação rápida e para todas. Separando as matérias conseguiremos, sem mais atrasos, devolver aos brasileiros a esperança de dias melhores e o mínimo de dignidade que eles merecem.

Cada dia que passa é mais um dia de fome na casa de milhões de brasileiros. E, quem tem fome, tem pressa. Para isso, peço a ajuda e o apoio de cada cidadão brasileiro, esteja onde estiver.

*Alessandro Vieira (SE) é líder do Cidadania.


Zeina Latif: Credibilidade que se esvai

Não deveria ser surpresa a dificuldade do governo Bolsonaro com políticas econômicas de cunho liberal. Além do histórico antirreformas como parlamentar, já na campanha eleitoral seu discurso conflitava com o de Paulo Guedes, que tinha lá suas inconsistências. Como esquecer a inexequível promessa de receita de trilhões com a venda de ativos estatais?

O “piloto automático” no Brasil é o intervencionismo estatal e a expansão de gastos públicos. Romper esse padrão demanda um mínimo de convicção do presidente e, certamente, muita capacidade política.

Depois dos avanços no breve governo Temer, seria importante Bolsonaro ao menos preservar o compromisso com a disciplina fiscal. E não só pelas consequências de curto prazo — já temos assistido aos efeitos do descontrole fiscal no mercado financeiro e no ambiente econômico. É preciso uma sequência de governos responsáveis para consolidar valores da sociedade e boas práticas na gestão pública, de modo afastar desvios perigosos de rota, como o do governo Dilma. Além disso, o compromisso depende de reformas estruturais para conter despesas obrigatórias, o que abriria caminho para melhorar a qualidade do gasto público e, em um futuro ainda distante, reduzir a carga tributária, muito mais elevada do que de outros emergentes.

As despesas obrigatórias comprometem quase a totalidade do orçamento da União e crescem automaticamente — por conta de indexações (como a correção de benefícios previdenciários ao salário mínimo), vinculações e gastos mínimos (como na educação), regras do funcionalismo (ajustes de salários e progressões na carreira) e o próprio envelhecimento da população.

A pandemia agravou o problema fiscal e a falta de perspectivas de superação da crise de saúde alimenta a pressão por aumento de gastos. Para que as novas gerações não sejam prejudicadas ainda mais — crianças e jovens mais pobres já são muito penalizados com a falta de educação e empregos —, é crucial conter o aumento da dívida pública.

A disciplina fiscal não significa fechar os olhos aos vulneráveis. Afinal, os mais pobres não podem arcar com as consequências da temerária gestão saúde agravada pelas atitudes do presidente estimulando o descuido de cidadãos. Tampouco se trata de forçar um ajuste rápido das contas públicas — nem seria possível com regras que regem o orçamento público. A ideia é buscar medidas compensatórias ao socorro aos vulneráveis, mesmo que com efeitos apenas no médio-longo prazo. O importante é mudar o cenário atual de crescimento a perder de vista da dívida pública.

Flexibilizar a regra do teto para retomar o auxílio emergencial sem contrapartidas sólidas será um grande equívoco e é um risco concreto que a PEC Emergencial oferece. Há ameaças de todos os lados. O próprio líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, admitiu, em entrevista à Folha, o risco de outras medidas criadas na crise pegarem carona no projeto.

Enquanto isso as contrapartidas encolhem. A crise atual deveria elevar a barra de exigências, mas o que ocorre é o contrário. O projeto atual preserva, em boa medida, o funcionalismo, diferentemente da proposta original do Executivo, de dezembro de 2019.

A PEC Emergencial apresenta regras demais e instrumentos de menos para o efetivo corte de despesas. A ideia de estabelecer uma trajetória para o endividamento público, por lei complementar, poderá reduzir a força da regra do teto, que, de tantos furos, poderá ter o mesmo fim da “regra de ouro” — descumprida seguidamente, sem maiores consequências.

Além disso, poderá atrapalhar a condução da política monetária pelo Banco Central. Os gatilhos para medidas de ajuste quando as despesas sujeitas ao teto atingirem 95% da despesa total poderão se mostrar inócuos na prática.

O cenário mais provável é que a atual gestão contribua quase nada para o ajuste fiscal, deixando a batata quente para o próximo governo. Além disso, pela proposta, nada impediria novos decretos de calamidade pública adiante, inclusive em 2022, abrindo espaço para mais gastos.

Muitos parlamentares defendem aprovar a liberação de recursos agora e deixar a votação das contrapartidas para depois. A depender do conteúdo final, de tão tímidas as contrapartidas, o fatiamento da PEC não faria grande diferença.

A reação negativa dos mercados poderá constranger Executivo e Congresso. O fato é que os anúncios do governo perdem credibilidade a olhos nus.


Bernardo Mello Franco: O levante dos governadores

Depois de atirar contra o Congresso, o Judiciário e a imprensa, Jair Bolsonaro voltou a culpar os governadores pelo descontrole da pandemia. No domingo, o presidente atiçou sua matilha virtual com números distorcidos. O ministro Fábio Faria completou o serviço. Tuitou que os estados tiveram “tempo e dinheiro sobrando” para conter a tragédia.

As contas do capitão estavam turbinadas. Ele somou repasses obrigatórios, verbas do Fundeb e até royalties do petróleo destinados aos estados. Num dos truques de ilusionismo, Bolsonaro disse aos eleitores que o Espírito Santo recebeu R$ 16,1 bilhões de Brasília. Os repasses extraordinários não passaram de 10% disso, esclareceu o governador Renato Casagrande.

Além de não entregar as vacinas prometidas, a União deixou de financiar cerca de nove mil leitos de UTI desde dezembro, segundo os secretários de Saúde. O dinheiro sumiu no momento em que os hospitais voltaram a lotar. No fim de semana, a ministra Rosa Weber ordenou a liberação dos repasses a três estados. Ainda é pouco para desarmar a sabotagem em escala nacional.

A provocação de Bolsonaro é tosca, mas aumentou a pressão sobre os governadores. Ontem dois deles se deixaram envolver num bate-boca rasteiro. Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, acusou Ronaldo Caiado, de Goiás, de ter “problemas psiquiátricos”. Ouviu de volta que “só pensa em negociatas”. Ambos são aliados do Planalto.

A estratégia de dividir para conquistar ajudou Bolsonaro a vestir a faixa. Ao exagerar na dose, ele arrisca enfrentar um levante inédito. Diante de uma oposição inerte, os governadores começaram a ensaiar uma união para enquadrar o Planalto.

Na segunda, 19 deles acusaram o presidente de fabricar “informação distorcida” para “atacar governos locais”. Entre os signatários da carta, estão três bolsonaristas. O texto foi redigido pelo gaúcho Eduardo Leite, que votou no capitão e agora diz que ele “despreza a sua gente”.


Vera Magalhães: Tribunal da História é já

O que mais se ouve diante da sucessão de imagens e notícias que atestam nossa calamidade é: “Que horror!”. Sim, um horror. Mas que tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.

Sem Jair Bolsonaro, nunca teríamos Eduardo Pazuello como o ministro da Saúde mais longevo de um ano de pandemia desenfreada.

Sem Jair Bolsonaro, já teríamos superado a idade da pedra da pandemia e não veríamos boçais repetirem o presidente em que se espelham e colocarem em dúvida a necessidade básica de usar uma máscara.

Sem Jair Bolsonaro, governadores não ficariam com medinho de adotar medidas mais que urgentes, na verdade atrasadas, para conter internações e mortes, pois não teriam hordas de arruaceiros atrás de si propagando absurdos.

Se é tão óbvia a responsabilidade do presidente da República, por que seguimos bovinamente repetindo “que horror”, em várias esferas da vida nacional, e nada acontece a ele?

Graças a pensamentos como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem os crimes cometidos pelo capitão são colocados na conta dos “exageros retóricos” ou de “comportamentos pessoais condenáveis”, e qualquer medida de contenção prescrita na Constituição é descabida no momento.

Para Pacheco, a História tratará de apontar as responsabilidades pelos crimes da pandemia. Enquanto isso, a missão do Congresso, segundo ele, é garantir que o auxílio emergencial seja aprovado logo e que as vacinas cheguem em profusão aos braços dos brasileiros.

Se a omissão ao menos levasse a esses objetivos, vá lá. A História trataria de julgar também os parlamentares.

Mas não! A negociação do auxílio está emperrada na absoluta ausência de projeto, que deveria ter sido pensado ainda na virada do ano, para garantir o mínimo de compensação fiscal a que Paulo Guedes tenta se apegar.

Não só não existe essa engenharia, como também nada garante que o pagamento de R$ 250 por quatro meses passará no Congresso sem majoração de prazo e valor. O que levará Guedes, Pacheco e companhia de volta à estaca zero e postergará em dias ou semanas o pagamento.

Da mesma maneira, a tal “planilha” que o imperdoável Pazuello apresentou a Pacheco, Arthur Lira e companhia no domingo não passa de mais um papel de pão sem validade. O Ministério da Saúde não tem como garantir as quantidades de vacinas que tem prometido. Não com os acordos que assinou até aqui, preto no branco.

Existem protocolos de intenções com vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa, e não existe nem sinal de compra daquela única já aprovada em definitivo pela agência, a da Pfizer! Um atestado simples da mais completa incompetência e falência do Plano Nacional de Imunização.

Mas, ainda assim, os órgãos de controle, o Ministério Público, o Congresso e parte da sociedade seguem num misto de pensamento mágico de que tudo vai se resolver, negação da gravidade e ilusão de que seja possível levar uma “vida normal”.

Diante de tal cenário, o ministro da Economia, para justificar seu apego a um cargo de que já foi destituído na prática pelo presidente, pede que lhe apontem se está indo no caminho errado, porque assim ele sairá. É embaraçoso que o responsável pela Economia, no momento de maior solavanco na vida econômica do país, não tenha GPS.

Ainda falta mais de um ano para as eleições, e os que podem agir agora, porque têm mandato e atribuição legal para tal, seguem fingindo que não é com eles.

Enquanto não se exigir de Bolsonaro que pare de sabotar as medidas de distanciamento e o plano de imunização, sob pena de pagar com o que lhe é mais caro, a cadeira, o Brasil seguirá com o nefasto título de pior país do mundo hoje no enfrentamento à pandemia.

Uma música de protesto de um tempo igualmente macabro da vida brasileira dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperar o tal tribunal da História significa assumir e aceitar que pessoas continuarão morrendo aos milhares. E, assim, ser cúmplice de Bolsonaro.


Cristiano Romero: 'O Brasil é administrado por um software'

Vinculação de receitas foi instituída na hiperinflação

Durou poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.

As vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade social estava reprimida.

A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.

Se por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós, independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos, acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.

A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.

É evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos da ativa e aposentados.

O texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.

A vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.

Nota do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso", que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.

O que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos de Estados e municípios.

"O Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à rigidez orçamentária que nos governa.

A primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à corrupção.

No interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?

Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.


Fernando Exman: Agenda da retomada deixada para depois

Relação federativa enfrenta novas dificuldades

Na primeira quinzena de 2021, talvez ainda comovidos com as festividades de fim de ano e o novo ciclo que se iniciava, alguns governadores demonstravam relativo otimismo em relação ao primeiro semestre.

O programa nacional de imunização contra a covid-19 acabava de ser apresentado pelo Ministério da Saúde, após pressão do Judiciário e intensos embates entre o Executivo, governadores e prefeitos. Havia a esperança de que seria realizada, a curto prazo, uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares para a discussão não só de como rapidamente imunizar a população, mas do reaquecimento da economia.

Embora hoje essa ideia pareça tão distante quanto a imunização total da população brasileira, à época a expectativa era até justificável. Ainda se acreditava na possibilidade de confirmação da tal recuperação em formato de “V”, tão prometida pelas autoridades federais e que depois foi sendo substituído no discurso oficial para algo como “o símbolo da Nike”. Ou seja, uma retomada menos vigorosa, após o fundo do poço ter sido atingido. Ainda se aguarda a concretização desse rebote.

A rápida recriação do auxílio emergencial era vista, pelos governadores, como um pressuposto para que melhores perspectivas surgissem no horizonte. Isso sem contar o fato de que a economia local e a arrecadação de Estados e municípios também dependeriam da manutenção do poder de compra da população. Os governadores estavam confiantes que não haveria muitas dificuldades para o repasse de novas parcelas de R$ 300 para as contas das famílias mais miseráveis do país.

Na sequência, seria natural que governo federal, governadores e prefeitos debatessem em conjunto formas de melhor direcionar o investimento público. Não só as verbas discricionárias dos ministérios, mas também os recursos sob os cuidados dos Estados e municípios, de modo a otimizar esforços, gerar empregos e rapidamente melhorar a imagem do Brasil entre os investidores estrangeiros. Constaria da pauta, ainda, formas de destravar concessões e parcerias-público-privadas (PPPs) - iniciativas que não representariam riscos ao teto de gastos e, ao mesmo tempo, colocariam novamente as engrenagens da economia para se mover nas mais diversas regiões do país.

Era o plano. E o gatilho que gerava esse sentimento entre os governadores era justamente a apresentação do aguardado programa nacional de imunização. Não é de surpreender, portanto, que esse planejamento inicial não se confirmou.

O conflito entre o presidente da República e os governadores voltou à pauta extrapolando os limites antes delineados por Bolsonaro. Seus ataques não se direcionam mais apenas aos governadores que poderiam lhe representar algum risco direto nas eleições de 2022, como João Doria ou Wilson Witzel. Passaram a ser horizontalizados. Colocaram todos os governadores, de partidos aliados inclusive, na linha de tiro.

Primeiro o presidente enviou ao Legislativo um projeto de lei complementar propondo mudanças no cálculo do ICMS sobre combustíveis, uma das fontes de arrecadação dos Estados. O objetivo é dar mais estabilidade aos preços, facilitando principalmente a vida dos caminhoneiros, categoria alinhada a Bolsonaro.

A equipe econômica argumenta que o projeto não gera necessariamente perdas aos Estados e ao Distrito Federal, pois estes manteriam autonomia para fixar alíquotas e garantir os atuais patamares de arrecadação. Por outro lado, o simples ato de apresentar a proposição já gerou um ônus político aos governadores, que irão se ver obrigados a explicar aos eleitores por que o governo federal estaria sozinho na busca para reduzir os preços dos combustíveis. O projeto tenta ressuscitar uma ideia que já foi bombardeada duas vezes no Congresso e acabou não prosperando, mas para o presidente o que interesse mesmo é um álibi a apresentar durante a campanha à reeleição.

Mais deselegante foi a recente postagem de Bolsonaro detalhando repasses federais para cada Estado, entre elas transferências obrigatórias. A publicação incluiu valores para a saúde, a suspensão ou a renegociação de dívidas, até o auxílio emergencial cujo valor foi elevado após pressão dos congressistas. Novamente os governadores ficaram politicamente expostos, mas desta vez o interesse deles se uniu a um movimento já em andamento em Brasília.

Entre a linha de tiro e os alvos do presidente, posicionou-se o Congresso. Bolsonaro ajudou a acelerar as articulações entre os governadores e a nova cúpula do Legislativo, que vem intensificando os esforços para que deputados e senadores tenham cada vez mais poder sobre o manejo das verbas orçamentárias. O que os parlamentares querem acabar é justamente com a personificação das benesses resultantes da execução do Orçamento-Geral da União na figura do chefe do Poder Executivo. Bolsonaro pode acabar facilitando a vida dos defensores da ideia.

Essa aliança tática pode gerar ainda outros constrangimentos a Bolsonaro. Deputados e senadores insistem, por exemplo, no estabelecimento de prazos para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar as vacinas, na liberação da compra dos imunizantes pela iniciativa privada e podem aliviar a situação dos Estados e dos municípios na PEC emergencial.

O governo precisará de apoio para que o programa nacional de imunização, o plano gerido pelo Ministério da Saúde, seja o único instrumento de imunização da sociedade. As discussões sobre “lockdown”, que Bolsonaro tenta evitar, necessariamente passarão por eles.

Prefeitos e empresários pressionam o Congresso para que isso seja flexibilizado. Laboratórios estão sendo procurados para que importem ou produzam de forma autônoma as vacinas o mais rápido possível, inclusive unidades veterinárias que poderiam rapidamente ser adaptadas. Os gestores estaduais também se preparam para os debates que a pandemia fomentará em 2022 e com certeza cobrarão a falta de resposta à agenda de retomada.


Conrado Hübner Mendes: Manifesto alarmista

Para desbolsonarizar o futuro, nada é mais arriscado que o compasso de espera

Há presidentes que governam por decreto. Outros, por iniciativa legislativa, emendas constitucionais, tudo isso combinado e mais um pouco. Jair Bolsonaro governa por crimes comuns e de responsabilidade, na ação e na omissão. Sua insubordinação performática à lei, ao decoro e à civilidade sempre foi tratada como caricata. Na Presidência, rotinizou a agressão à liberdade, à vida e à soberania. Durante a pandemia, a técnica se fez mortífera em massa.

Diante da ameaça que se materializa, para começar, em 260 mil mortes (em parte evitáveis), o alarmismo resta como única postura realista e racional frente aos fatos. Em nome da honestidade, o alarmismo torna-se demanda ética e chamado pragmático de sobrevivência.

O alarmismo pode vir para o bem e para o mal. Pode ofuscar o problema, explodir pontes, produzir pânico, ruído e ação ineficaz. Soar o alarme quando o perigo não existe cobra seu preço. Na história, soar o alarme cinicamente contra os inimigos imaginários levou a golpes, intervenções militares, fúrias redentoras e lavajatistas ou a recusas da vacina chinesa.

A vocação antialarmista, quando fatos desaconselham, também tem custo. Alertava-se, por exemplo, contra os alarmistas dos anos 30. Quando Churchill fez discurso assustado diante da anexação da Áustria, em 1938, um conservador de cachimbo tranquilizou os espíritos: “Ele gosta de sacudir a espada, mas você tem que tratá-lo com um grão de sal”.

O pacto antialarmista vigente, sem nenhum grão de sal, neutralizou a possibilidade de entender o Brasil de hoje e imaginar o Brasil que se avizinha. A esse pacto já se reagiu com mais de 70 pedidos de impeachment, representações criminais, ações judiciais, denúncias internacionais, furos jornalísticos, gritos incrédulos pelos hospitais do país.

Para contar essa história com o devido senso de urgência, esboço aqui um manifesto alarmista. Não é contribuição à literatura distópica, mas crônica realista em pelo menos seis postulados.

1) “O negacionismo mata, a complacência anestesia.” Na enciclopédia do negacionismo brasileiro, não há risco à democracia, nem ameaça sanitária, aquecimento climático, racismo, homofobia, corrupção e violência policial. O ilusionismo sequestra as emoções primárias e espalha violência.

2) “Bolsonaro se fez inimputável, infalível e irresponsável. Só não é inacreditável.” Bolsonaro não está errando e avisou o que faria. Já estava no seu prontuário, na ficha corrida, nos registros parlamentares e na biografia.

3) “A Constituição está sendo revogada.” A campanha de liquidação de ativos constitucionais esvazia seus compromissos civilizatórios sem mudar seu texto.

4) “Instituições de Estado se rendem, em parte, às tentações colaboracionistas e às investidas de cooptação e captura.” Não é só Judiciário e Parlamento. A politização de instituições de Estado atravessa o Ministério Público, a advocacia de Estado, as profissões militares e um grande edifício de instituições de controle dentro do Executivo e políticas públicas.

5) “O mantra ilusionista ‘povo armado não será escravizado’ pavimenta a república das milícias, não a segurança, muito menos a liberdade.” Armamento e degradação ambiental são as linhas vermelhas de Bolsonaro, pelas quais irá às últimas consequências.

6) “Democracia não é máquina de contar quem tem mais votos.” Vamos aprendendo na marra o que a filosofia política e a história já tentaram ensinar: não bastam eleições para se ter democracia nem uma turba qualquer para se ter povo. Tampouco precisa de golpe para se implantar ditadura.

O que vem pela frente será pior. Politicamente, pior que os últimos 30 anos e pior que os últimos dois anos. Do ponto de vista sanitário, 2021 será pior que 2020. Climaticamente, a devastação ambiental contribui para um futuro mais grave que qualquer outro momento da era industrial. As consequências sociais e econômicas cabe a nós imaginar.

Não há vacina para imunização instantânea contra um ethos bolsonarista que sofre mutações e se multiplica. Mas há remédio e terapia para tentarmos desbolsonarizar o futuro. Nada é mais arriscado que o compasso de espera, como se o jogo fosse o mesmo de antes, nos termos de antes.

*Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP, é doutor em Direito e Ciência Política e Embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Vinicius Torres Freire: Remendo medíocre evita a explosão de fome e dívida no governo Bolsonaro

Para salvar Bolsonaro, PEC do auxílio e dos gastos empurra problema com a barriga

Nestes dias, o país discute como vai sobreviver a Jair Bolsonaro, ao morticínio, a fomes e a intervenções econômicas que podem danar até o crescimento medíocre previsto para 2021. Além do mais, o Brasil passa por uma guerra civil federativa, de estados e cidades em conflito com o governo federal.

Esse tumulto fúnebre tira de vez a atenção de um assunto sempre difícil ou francamente chato, mas essencial: as possíveis mudanças no gasto e na dívida do governo previstas pela proposta de emenda à Constituição (PEC) 186, a que também vai regulamentar a nova rodada de auxílio emergencial.

A PEC 186 na prática vai servir para empurrar com a barriga a mesmíssima situação em que estão as contas do governo. Isto é, se emenda não for ainda mais amputada ou lipoaspirada quando for a votação. Impede alguma explosão e sururu radical na finança (alta de dólar e juros em caso de rachaduras no “teto”), mas basicamente não muda a situação. Logo, apenas adia a discussão fundamental do que o país vai fazer de teto, gasto, dívida, investimento em produção e civilização, debate impossível até que voltemos a ter um governo e política civil.

Aprovada como estava até terça-feira (2), a PEC deve permitir que o “teto” de gastos federal resista pelo menos até o início do mandato do próximo presidente. A despesa de investimento em obras (como estradas ou hospitais), ciência ou saúde ficará no mesmo nível arrochado de agora, no máximo, na mais otimista das hipóteses.

Sem entrar em tecnicalidades, a despesa obrigatória será contida em até 95% da despesa total (como prevê a PEC) por meio da contenção do gasto com servidores públicos, no grosso. Na prática, tal despesa não poderá crescer mais do que a inflação em 2022 e 2023 (além do crescimento vegetativo, como promoções automáticas etc.) e, depois desses anos, nem isso. É o que indicam contas feitas com base em dados da Instituição Fiscal Independente, de acompanhamento de contas públicas, ligada ao Senado, dirigida por Felipe Salto

A PEC prevê também aumento de impostos, na prática. Isto é, define que devem ser canceladas certas renúncias de receitas (reduções de impostos para certas empresas ou indivíduos). Mas há tantas exceções que será impossível reduzir essa renúncia em cerca de 0,25% do PIB a cada um dos próximos oito anos, como se deduz da PEC (não vai se chegar nem a 40% disso). Por exemplo, a PEC permite acabar com a dedução de saúde e educação privadas no IR, mas isso deve cair também. Logo, difícil que saia alguma receita daí.

Na previsão da IFI, a receita do governo até 2030 fica abaixo da média dos anos Dilma 1 em pelo menos 1% do PIB. A arrecadação (como proporção do PIB) aumentaria mais apenas em caso de crescimento acelerado da economia com ênfase em setores mais formais e que pagam mais impostos. Esse milagre de crescimento dependeria de um dilúvio de investimento privado, o que não está no horizonte até pelo menos 2022.

A PEC em tese prevê uma mudança no modo de lidar com as contas públicas. Diz lá que uma lei complementar vai estipular algum limite para a dívida pública e quais os meios de controlá-la (com metas de contenção de gastos ou outras). Pode dar em reviravolta, em revolução fiscal ou em nada, virando letra morta, o que no caso talvez não seja má ideia.

A PEC não tem “contrapartidas” para o gasto com o novo auxílio emergencial. Isso tudo era conversa mole e pano passado para Paulo Guedes e turma. A PEC não resolve nada. É um remendão para a coisa não explodir até 2022.