eleições 2022
Correio Braziliense: PGR vai recorrer após Fachin anular condenações de Lula
Assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral informou que o recurso será preparado pela subprocuradora-geral Lindôra Maria de Araújo, braço-direito do procurador-geral Augusto Aras e responsável pelos processos da Lava Jato no STF
A Procuradoria-Geral da República (PGR) informou nesta segunda-feira (8/3) que vai recorrer da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), de anular as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Relator da Lava-Jato na Corte, o ministro atendeu a um pedido da defesa do petista e retirou os casos da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, onde atuava o ex-juiz Sérgio Moro. No entendimento de Fachin, os processos não deveriam tramitar no Paraná.
Além das decisões de Moro, que condenou Lula no caso do triplex do Guarujá, Fachin também anulou os atos proferidos pela juíza Gabriela Hardt, responsável pela sentença no caso do sítio de Atibaia. O despacho do ministro, porém, deixa margem para que, em Brasília, o novo juiz titular do caso valide todos os atos praticados pela 13ª Vara.
A assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral informou que o recurso será preparado pela subprocuradora-geral Lindôra Maria de Araújo, braço-direito do procurador-geral Augusto Aras e responsável pelos processos da Lava Jato no STF.O órgão não deu detalhes sobre quais pontos da decisão serão contestados. Já a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal do Paraná, que apresentou as denúncias, não se manifestou.
O atual coordenador da Operação Lava Jato no Paraná, Alessandro Oliveira, disse que não irá comentar a decisão de Fachin. Questionado sobre o impacto da decisão, Oliveira disse avaliar como "grande", mas que ainda seria preciso estudar a decisão. Procurado por telefone, o ex-coordenador da Força-Tarefa, Deltan Dallagnol, não se manifestou até o momento.
Além da Justiça Federal no Paraná, as sentenças foram confirmadas na segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A ação penal do triplex foi também validada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em janeiro de 2018.
Em abril daquele ano, Lula foi preso, graças ao entendimento de então do STF que permitia o início da pena logo após condenações em segunda instância. Foi solto em novembro de 2019, quando o Supremo reviu a jurisprudência sobre o tema.
Folha de S. Paulo: Bolsonaro diz que brasileiro não quer Lula em 2022 e que Fachin tem 'ligação' com o PT
O presidente defendeu ainda que o plenário do STF reverta a decisão de anular as condenações do petista
Ricardo Della Coletta, Folha de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse nesta segunda-feira (8) que "não estranha" a decisão do ministro Edson Fachin que anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque o magistrado "sempre teve uma forte ligação com o PT".
"O ministro Fachin sempre teve uma forte ligação com o PT, então não nos estranha uma decisão nesse sentido. Obviamente é uma decisão monocrática, mas vai ter quer passar pela turma, não sei, ou plenário para que tenha a devida eficácia", disse Bolsonaro na chegada do Palácio da Alvorada.
As declarações foram transmitidas pela rede CNN Brasil.
Nesta segunda, Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), concedeu habeas corpus para declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar quatro processos que envolvem Lula —o do triplex, o do sítio de Atibaia, o de compra de um terreno para o Instituto Lula e o de doações para o mesmo instituto.O ex-presidente está, portanto, com os direitos políticos recuperados e pode se candidatar a presidente em 2022.
Fachin foi indicado para o Supremo pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Na mesma entrevista improvisada, Bolsonaro disse acreditar que o povo brasileiro não quer Lula candidato no ano que vem.
"As bandalheiras que esse governo [do PT] fez estão claras perante toda a sociedade. Você pode até supor a questão do sítio em Atibaia, do apartamento, mas tem coisa dentro do BNDES que o desvio chegou na casa de meio trilhão de reais, com obras fora do Brasil", afirmou.
"Os roubos, desvios na Petrobras foram enormes, na ordem de R$ 2 bilhões que o pessoal na delação premiada devolveu. Então foi uma administração realmente catastrófica do PT no governo".
"Eu acredito que o povo brasileiro não queira sequer ter um candidato como esse em 2022, muito menos pensar numa possível eleição dele", disse.
Ele também destacou que a Bolsa caiu com a notícia e o dólar registrou alta.
"Todos nós sofremos com uma decisão como essa daí", declarou. Bolsonaro defendeu que o plenário do tribunal reverta a decisão de Fachin.
O Globo: Em oito pontos, entenda o conteúdo e impactos da decisão de Fachin que anulou condenações de Lula
Em resposta a recurso da defesa do ex-presidente, que questionava competência de Moro para julgar casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, ministro do STF declarou nulidade em processos
Bernardo Mello, O Globo
RIO - Após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, que anulou condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Lava-Jato, nesta segunda-feira, O GLOBO preparou oito perguntas (e respostas) para esclarecer os fundamentos e os impactos deste novo desdobramento jurídico envolvendo o petista. Com a decisão de Fachin, temas como a elegibilidade de Lula e a validade de outras decisões proferidas pelo então juiz Sergio Moro tendem a ser reanalisadas.
1 - O que foi decidido?
Em resposta a um recurso da defesa de Lula, que questionava a competência da Justiça Federal de Curitiba para avaliar casos envolvendo o ex-presidente, Fachin acatou o argumento de que não houve conexão direta entre desvios na Petrobras e o pagamento de supostas vantagens indevidas a Lula por parte da OAS nos processos referentes ao tríplex do Guarujá e ao sítio de Atibaia.
Em outras palavras, Fachin firmou entendimento de que decisões proferidas por Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba referentes ao tríplex do Guarujá e ao sítio de Atibaia devem perder a validade, por não se tratar do foro adequado.
"Na estrutura delituosa delimitada pelo Ministério Público Federal, ao paciente são atribuídas condutas condizentes com a figura central do grupo criminoso organizado, com ampla atuação nos diversos órgãos pelos quais se espalharam a prática de ilicitudes, sendo a Petrobras S/A apenas um deles, conforme já demonstrado em excerto colacionado da exordial acusatória", escreveu Fachin.
Em julho 2017, ao negar um recurso da defesa de Lula, o então juiz Sergio Moro já havia escrito que "este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente".
Embora não tenha sido citado na decisão de Fachin, o trecho escrito por Moro se refere à mesma tese conexão direta avaliada pelo ministro do STF.
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2 - Qual foi o argumento usado pela defesa de Lula?
Os advogados do ex-presidente Lula citaram, em sua petição, um entendimento construído inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em questão de ordem de setembro de 2015, “segundo o qual a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba seria competente apenas para o julgamento dos fatos que vitimaram a Petrobras S/A, sendo imperativa a observância, em relação aos demais, às regras de distribuição da competência jurisdicional previstas no ordenamento jurídica”, conforme relatou Fachin em sua decisão.PUBLICIDADE
No documento, Fachin cita outros casos que passaram pela Segunda Turma do STF, da qual o ministro faz parte, como uma ação que julgava pagamento de propina pela Odebrecht na obra da Refinaria Abreu e Lima, analisada em abril de 2018, e a investigação referente a vantagens indevidas envolvendo a Transpetro durante a presidência de Sergio Machado, analisada em setembro do ano passado.
Nesses casos, os ministros do STF adotaram o entendimento firmado em 2015 e redistribuíram casos originalmente a cargo da 13ª Vara Federal de Curitiba, por avaliarem que o pagamento das vantagens ilícitas não tinham conexão direta com desvios na Petrobras.
3 - Por que só agora Fachin decidiu?
Porque o pedido de habeas corpus foi feito pela defesa de Lula em novembro de 2020, segundo informa Fachin logo no início de sua decisão. O ministro também explica que esta impetração foi “pela vez primeira assim apresentada” pelos advogados do ex-presidente. Fachin ainda faz a ressalva que o pedido se refere a situações similares julgadas pelo STF em período recente, nos quais ele mesmo “restou vencido”.
O ministro também afirmou, na decisão, que usou o recesso judiciário de dezembro de 2020 a janeiro deste ano para analisar o pedido da defesa de Lula, “cotejando a linha evolutiva de seus contornos nesses últimos anos”.PUBLICIDADE
Antes do recesso, Fachin havia chegado a remeter o habeas corpus para análise pelo plenário do STF. Os advogados, no entanto, contra-argumentaram nos embargos de declaração que havia uma “tese jurídica já uniformizada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal” -- isto é, a necessidade de ser comprovada a conexão direta entre desvios na Petrobras e supostos pagamentos de propina através de empreiteiras --, “razão pela qual a resolução da questão demandaria tão somente a verificação da sua incidência ao caso concreto”, sem caber nova análise por parte da Corte.
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4 - Em que pé ficam os processos contra Lula?
Fachin determinou a nulidade “apenas dos atos decisórios” tomados nos processos envolvendo Lula, isto é, o recebimento das denúncias e o julgamento propriamente dito. Em sua decisão, o ministro do STF escreve que “o juízo competente (deve) decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios” -- isto é, a Justiça Federal do Distrito Federal, novo foro competente para os casos, terá que decidir se confirmará a validade de outros atos no processo, incluindo os depoimentos tomados por Moro em Curitiba.
Segundo juristas, é possível que o inquérito seja convalidado até sua etapa final, com a manutenção de todos os procedimentos de obtenção de provas, apenas deixando a necessidade, por exemplo, de que os interrogatórios sejam refeitos. Para cada ato processual que o novo juiz do caso decida não convalidar, é necessário apresentar uma justificativa.PUBLICIDADE
5 - Lula volta a ser ficha limpa?
Sim. Como os processos em que Lula havia sido condenado em segunda instância foram anulados, o ex-presidente volta a ter sua elegibilidade permitida pela Lei da Ficha Limpa, que impede a participação eleitoral apenas de condenados por órgão colegiado (com mais de um juiz).
No entanto, caso uma nova denúncia seja apresentada contra o ex-presidente e julgada em primeira instância, e depois confirmada em segunda instância, antes do período de registro de candidaturas das eleições de 2022, Lula pode ficar inelegível novamente.
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6 - O que acontece com a acusação de parcialidade do Moro?
Em sua decisão, Fachin determinou a “perda de objeto” dos recursos que buscavam a anulação de casos julgados pelo ex-juiz Sergio Moro com base em acusações de parcialidade, suscitadas principalmente após a divulgação de diálogos no Telegram atribuídos a Moro e a procuradores da Lava-Jato no Paraná.
Portanto, o processo de suspeição de Moro movido pela defesa de Lula -- que começou a ser julgado em 2018 e poderia retornar à análise da Segunda Turma do STF ainda neste ano - deixa de existir.
7 - Cabe recurso à decisão de Fachin?
A Procuradoria-Geral da República já afirmou que vai recorrer da decisão. Esse recurso pode pedir ao próprio Fachin que modifique seu entendimento ou solicitar que o tema seja levado para julgamento dos demais ministros, seja na Segunda Turma do STF ou no plenário.PUBLICIDADE
8 - A decisão afeta outros casos da Lava-Jato?
É possível que sim. Na semana passada, Fachin já havia decidido em outra ação, com base em razões semelhantes às levantadas pela defesa de Lula, que a 13ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência para analisar ilícitos envolvendo a Transpetro.
A tendência é que outros casos com teor semelhante investigados pela Lava-Jato de Curitiba, que não envolvem diretamente desvios da Petrobras, sejam levados à Corte.
O Estado de S. Paulo: Fachin anula todas as condenações de Lula na Lava Jato e torna ex-presidente elegível
Relator da Operação no Supremo incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento de quatro ações contra o petista e determinou a remessa dos autos dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal, que vai decidir 'acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios'
Pepita Ortega, Paulo Roberto Netto e Fausto Macedo, O Estado de S. Paulo
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento das quatro ações da Operação Lava Jato contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – triplex do Guarujá, sítio de Atibaia e sede do Instituto Lula e doações da Odebrecht – , anulando todas as decisões daquele juízo nos respectivos casos, desde o recebimento das denúncias até as condenações – o que torna o petista elegível e apto a disputar as eleições presidenciais de 2022.
O relator da operação no Supremo determinou a remessa dos autos dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal, que vai decidir ‘acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios’.
Em razão do entendimento, o ministro ainda declarou a perda de objeto de dez habeas corpus e quatro reclamações apresentadas à corte pela defesa do petista. Entre tais recursos está o habeas corpus em que os advogados de Lula alegavam a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro.
Documento
Em decisão de 46 páginas, o ministro Edson Fachin apontou que, na ação penal do tríplex, o único ponto de ‘intersecção entre os fatos narrados’ na denúncia contra Lula e a competência de Curitiba foi o pertencimento do grupo OAS ao cartel de empreiteiras que atuava de forma ilícita nas contratações da Petrobrás.
“Não cuida a exordial acusatória de atribuir ao paciente uma relação de causa e efeito entre a sua atuação como Presidente da República e determinada contratação realizada pelo Grupo OAS com a Petrobras S/A, em decorrência da qual se tenha acertado o pagamento da vantagem indevida”, anotou Fachin.
Ao estender a decisão para as outras três ações penais – sítio de Atibaia, terreno do Instituto Lula e doações da Odebrecht – o ministro afirmou que existem as mesmas problemáticas.
“Em todos os casos, as denúncias foram estruturadas da mesma forma daquela ofertada nos autos da Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, ou seja, atribuindo-lhe o papel de figura central do grupo criminoso organizado, com ampla atuação nos diversos órgãos pelos quais se espalharam a prática de ilicitudes, sendo a Petrobras S/A apenas um deles”, registrou o ministro.
Em nota divulgada junto da decisão, Fachin ainda destacou que nas ações penais envolvendo Lula, assim como em outros processos julgados pelo Plenário e pela Segunda Turma, ‘verificou-se que os supostos atos ilícitos não envolviam diretamente apenas a Petrobras, mas, ainda outros órgãos da administração pública’. Nessa linha, o ministro frisou que ‘especificamente em relação a outros agentes políticos que o Ministério Público acusou de adotar um modus operandi semelhante ao que teria sido adotado pelo ex-presidente, a Segunda Turma tem deslocado o feito para a Justiça Federal do Distrito Federal’.
“As regras de competência, ao concretizarem o princípio do juiz natural, servem para garantir a imparcialidade da atuação jurisdicional: respostas análogas a casos análogos. Com as recentes decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não há como sustentar que apenas o caso do ora paciente deva ter a jurisdição prestada pela 13ª Vara
Federal de Curitiba. No contexto da macrocorrupção política, tão importante quanto ser imparcial é ser apartidário”, registrou o ministro em sua decisão.
Documento
- A NOTA DE FACHIN PDF
O texto divulgado pelo gabinete do ministro do STF diz ainda que a questão da competência já havia sido suscitada pela defesa de Lula em outros momentos, mas que é a ‘primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal.
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Jan Martínez Ahrens e Carla Jiménez, El País
Luiz Inácio Lula da Silva vive um momento de energia em estado puro. Tem 75 anos, superou o câncer, o coronavírus e a prisão, e diz se sentir “com 30 anos.” Aparece na entrevista feita por Zoom em uma camisa de mangas e se posiciona de pé diante da câmera do computador. Parece estar à vontade; é sexta-feira, no último dia 5, e fala da sua casa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde vive com Rosângela Silva, a Janja, socióloga por quem se apaixonou quando estava preso em Curitiba. Às suas costas aparecem alguns poucos livros de capa mole e uma bandeira vermelha, de mesa, que exibe a sigla do PT e que, por causa de uma estranha corrente de ar, parece se movimentar em uníssono com Lula, como num comício, quando ele entra em ebulição. Algo que ocorre com frequência ao longo da entrevista.
É um fenômeno que vai crescendo. Primeiro Lula tira os óculos (quadrados e ostensivamente grandes), depois acelera o ritmo da resposta e, à medida que os minutos passam, dá rédea solta ao tigre político que habita nele. Fala, ri e ruge; agita os braços, bate na mesa. Lula ―e esta é uma das chaves da sua extraordinária capacidade de atração― transita de forma incessante pelos muitos Lulas que ele já foi. Ao longo de uma hora e meia de conversa, se sucedem, numa tela que fica cada vez menor, o homem que um dia foi pobre e que sabe se dirigir a outros interlocutores pobres, o torneiro mecânico simpático, o sindicalista que enfrentou a ditadura militar, o candidato dos grandes comícios e até o presidente (2003-2011) que deu ao Brasil anos de grandeza. Mas também o homem que foi preso e se revolta contra sua condenação, o político cassado que busca limpar seu nome. Lula passou 580 dias preso por corrupção e lavagem de dinheiro. E já recebeu outra sentença por crimes semelhantes no sítio de Atibaia. Esse rochedo o esmaga, e contra ele volta agora todas as suas energias.
“Aprendi com uma mãe analfabeta que não podemos viver ressentidos, que devemos ser firmes e acreditar que a vida pode melhorar. Tenho muito otimismo”, diz, em um dos raros momentos em que fica quieto (e a bandeirinha também). É só um instante. Depois continuará disparando para todos os lados, pisando fundo no acelerador de um motor que nunca se esgota e que fez dele uma lenda, tão querida quanto odiada, da esquerda latino-americana. Seu otimismo o deixa seguro de que o PT tem chances de voltar ao poder, seja com ele ou outro nome. Neste domingo, uma pesquisa publicada no jornal O Estado de S. Paulo reforçou sua ambição. Levantamento do Ipecmostra que 50% dos entrevistados votariam nele outra vez em 2022, contra 28% de presidente Jair Bolsonaro ―e 31% de Sergio Moro. Pela enésima vez, ele volta ao centro do debate político.
Pergunta. Como tem levado o confinamento, alguém inquieto como o senhor. Estaria na rua?
Resposta. Me sinto mal ficando em casa. Não me contento em ficar definhando. Vai te matando dentro. Apesar de estar namorando e apaixonado, preciso sair para a rua, respirar liberdade, falar com o povo. Toda vez que sinto falta de ar, não é o coronavírus, é a necessidade de falar com o povo, aprender com eles. Nasci em porta de fábrica. Por ora vou me cuidar e respeitar a ciência. Quando tomar a vacina e for autorizado eu saio.
P. O Brasil, diferente de outros países da região, está no pior momento da pandemia. A quantidade de mortes é terrível e a vacinação é lenta. Como vê a situação do Brasil, como ex-presidente e cidadão?
R. O Brasil vive um acidente de percurso da nossa democracia e da nossa civilidade por conta do presidente Bolsonaro. Ele tem demonstrado não ter nenhuma preocupação com a seriedade, seja para tratar a covid, a economia, a educação ou a sua relação internacional. O Brasil sempre foi o país que não tinha problemas com país nenhum no mundo. O vírus é uma coisa da natureza. Enfrentar o vírus é da responsabilidade das políticas públicas dos governantes no mundo. Aqui no Brasil, o presidente desrespeita a ciência, receita remédio, não tem solidariedade, nem respeito pela vida. Se o Brasil vivesse um momento de democracia efetivamente, o Bolsonaro já tinha sofrido o impeachment. Deixamos de comprar vacina quando poderia, vacinar quando deveria, e ele continua fazendo campanha contra o isolamento. É quase um genocida no tratamento da pandemia. O Brasil não merece isso.
P. Contudo, Bolsonaro continua com 30% de apoio popular e ainda num momento de economia ruim. Como se explica?
R. No mundo inteiro, você sempre tem entre 15% e 20% da sociedade que não querem votar, não gosta de política. Aquela parte da sociedade ultraconservadora, que defende pena de morte, que as pessoas tenham armas ao invés de empregos e livros, que defende a violência, são contra negros, mulheres, LGBTs, quilombolas, sindicatos. Essa gente existe. Muitos ex-militares aposentados, milicianos da guarda privada, gente que depende do Bolsonaro. O fato dele ter esse apoio significa que tem 70% que não concordam. E são esses 70% que vão garantir a democracia. Que na hora da decisão, vão se manifestar.
P. Mas, neste momento, não há uma oposição forte no país. Os últimos resultados eleitorais do seu partido PT foram ruins. Não falta uma nova liderança? O que falta para que o PT recupere força?
R. Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força [na urna]. Eu lembro que quando o [partido espanhol] Podemos [junto com grupos à esquerda do PSOE] ganhou as eleições da prefeitura [de Madri], muita gente falou que o PSOE tinha acabado. Quem governa a Espanha hoje é o PSOE. O PT continua sendo o maior partido do Brasil, a força política mais organizada do país. O PT tem sido vítima de uma campanha de destruição enorme, com [a operação] Lava Jato. A minha inocência está provada e a culpabilidade do Ministério Público, do [Sérgio] Moro e da Polícia Federal está mais do que provada. Em 2016, na minha defesa, a gente já dizia tudo que está sendo publicado agora, os documentos oficiais liberados pela Suprema Corte. Houve um conluio para evitar que o Lula pudesse voltar à presidência do Brasil. Mentiu uma parte da Justiça, uma parte do Ministério Público, da Polícia Federal. Envolveram muita gente numa mentira, reforçada pelos meios de comunicação. Agora que sabem a verdade, como vão dizer para a sociedade que, durante 5 anos, condenaram uma pessoa inocente?
P. Se conseguir vencer a batalha judicial, se apresentaria como candidato?
R. Eu necessariamente não preciso ser candidato a presidente, porque eu já fui. Estou com 75 anos, com muita saúde, mas descobri que o [Joe] Biden é mais velho do que eu e governa os EUA. Quando eu chegar em 2022, eu vou estar apenas com 77 anos, um jovem. Se chegar na época e os partidos de esquerda entenderem que eu posso representá-los, eu não tenho problema. Mas o PT tem outras opções, tem o Fernando Haddad, outros governadores. E a esquerda também tem: Flávio Dino, o [Guilherme] Boulos... Na hora que tiver que decidir, vamos ver quem tem mais condições de ganhar. A única possibilidade que eu tenho de ser, porque eu não disputarei com ninguém, é se as pessoas entenderem que eu sou o melhor nome. Se não, me contentarei em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso. Pedi ao Fernando Haddad começar a lutar pelo Brasil, porque ele tem um passaporte diplomático de 47 milhões de votos conquistados em 2018, ele não pode ficar parado em casa. Tem que ir pra rua conversar sobre educação, emprego, sobre salário, custo de vida. E sobre coronavírus, precisamos exigir todo dia que esse país consiga comprar as vacinas para que o povo possa ter tranquilidade em viver dignamente.
P. O senhor tem dialogado com lideranças da esquerda e da direita sobre a eleição?
R. Você sabe que eu não tenho problema em conversar com ninguém. Às vezes eu vejo a imprensa ficar impressionada porque os conservadores ganharam a Câmara. Eles nunca perderam. Na Constituinte, em 1988, o Centrão percebeu que a gente estava crescendo e fazendo coisas demais, eles se reorganizaram e fizeram mais que nós. Toda vez que tem algo importante para votar, se constrói a maioria. A direita sempre foi maioria, a esquerda nunca. Acontece que a democracia é boa por conta disso. Não parecia que o Podemos era inimigo do PSOE na Espanha? E não se juntaram para governar? O [ultradireita] AfD não está junto com a Merkel? A política é boa por conta disso. Você vai construindo aquilo em que você acredita que é bom e aí a realidade te empurra para algo que não esperava.
P. E com Ciro Gomes?
R. Não tenho problema com Ciro Gomes. Gosto dele de graça, como disse outras vezes. Mas ele está equivocado e precisa compreender. Ele resolveu engrossar o discurso antipetista achando que vai ganhar votos da direita. Não vai. Isso que é grave. Não adianta falar mal do PT e da esquerda achando que vai ganhar voto do Doria. Se continuar discurso xenófobo contra o PT ele vai perder gente da base dele. Se teve 12% na última eleição ele pode cair. E eu acho que o Ciro Gomes é importante para o Brasil. Mas ele precisa acertar na política. Ele pode não ter no PT o maior aliado porque o PT não o apoiou. Mas ele não pode considerar PT inimigo.
P. Hoje o Bolsonaro está alinhado ao Congresso reformista, com a agenda de teto de gastos. Não é pouco tempo para acreditar que o PT pode mudar a mentalidade no Brasil?
R. O PT pode e deve. Todo o combate ao coronavírus, ele se dá mais corretamente nos países onde o Estado tem políticas públicas de saúde. Aqui no Brasil, o SUS foi atacado pela elite brasileira desde que foi criado em 1988. Agora com o coronavírus, todo mundo começa a reconhecer que se não fosse o SUS o Brasil estaria muito pior. Por que é o sistema público de saúde invejável. E do qual eles cortaram muito dinheiro e que salva milhões de pessoas neste país. É o profissional do SUS, a estrutura do SUS que tem salvo o Brasil, que faz com que não esteja pior do que está.
P. Quando o senhor governou a China começava a investir muito, um momento favorável.
R. Quero desfazer esse equívoco que às vezes vocês cometem. “Ah porque teve um boom de commodities” [nos anos do PT]. Boom de commodities tem hoje. O problema é saber onde você vai gastar o dinheiro no país, aonde é que o pobre vai entrar na economia. Nós fizemos uma inclusão bancária de 76 milhões de pessoas, levamos energia de graça na casa de 15 milhões de pessoas, cisternas. Viajei muito pelo mundo, vendia a capacidade intelectual e produtiva do Brasil.
P. Mas agora nosso endividamento está perigoso.
R. O Brasil é muito grande e pode voltar a ser. Tenho a impressão de que o povo vai começar a perceber o que aconteceu no Brasil. Obrigatoriamente vai ter que comparar o que era no governo do PT e o que é o Brasil no governo do Bolsonaro, e dos outros.
P. Falando agora de Estados Unidos, eles tinham o presidente Donald Trump, muito parecido com o Bolsonaro. Seu último ato foi fomentar a invasão do Capitólio. Acredita que pode acontecer algo parecido se Bolsonaro perder as eleições?
R. Eu acho que o Bolsonaro vai perder as eleições, e a vitória será para alguém progressista, espero que seja para o PT. Acho que ele está armando o povo. Quem quer comprar arma, não é o trabalhador. O metalúrgico, o químico, o professor. As pessoas querem comprar comida, emprego. O Bolsonaro está vendendo armas para quem? Para uma elite, agrícola, ex-policiais, milicianos que lhe dão segurança, para a turma que matou Marielle. Se o PT voltar a ganhar as eleições, a gente vai desarmar o povo e recuperar o humanismo da sociedade brasileira, deixar esse ódio de lado. Só tem um remédio para este país: fortalecer a democracia. Tenho clareza absoluta que a gente pode ganhar outra vez. Aqui no Brasil o que parece impossível hoje vai ser possível amanhã. Este país é poderoso. O que ele tem é uma elite perversa, que acha que tudo é para ela. Precisamos de uma sociedade solidária, em que o humanismo prevaleça sobre a chamada inteligência artificial. Não quero virar algoritmo. Não quero que a sociedade vote num Trump ou num troglodita como o Bolsonaro nunca mais. As pessoas precisam votar em homens que pensam o bem.
P. Ou mulheres, não presidente? Não só homens.
R. Se tem uma pessoa que apostou na conquista das mulheres é este seu amigo aqui. No PF tivemos uma presidente mulher, 50% do meu partido são mulheres.
P. E tem uma mulher despontando como potencial candidata, cogitada até pelo PT, que é a empresária Luiza Trajano, nome inclusive de fora da política. Como o senhor a vê?
R. Conheço e adoro a Luiza Trajano como mulher, pessoa humana e empresária. Acontece que o mundo da política é insano, não é uma coisa fácil. Uma coisa é dirigir uma coisa sua, uma rede, uma fábrica. Outra é um Estado, um país, em que você presta conta para empresa, sindicato, Parlamento. Não tem curso universitário para preparar político. A política é difícil, é tomada de posição e não é ciência exata sempre. Você tem que decidir de que lado você está sempre, para quem quer fazer o bem. Atender uma [parte] e ferir a outra. Toda vez que se nega a política o que acontece é um Bolsonaro.
P. Em que se diferencia o Lula que assumiu o poder em 2003 e o Lula de agora? Qual experiência lhe trouxe a prisão?
R. O Lula de hoje não é diferente do Lula de 2002. Sou mais experiente, um pouco mais velho, mas continuo com a mesma vontade e a mesma certeza que é possível mudar o Brasil. Sonhava em possível construir um bloco econômico forte na América do Sul. Hoje, com a União Europeia, não dá pra você ficar negociando sozinho. Vamos ser francos, [meu tempo] foi o melhor momento da América Latina desde Colombo. Acho que o continente precisa se convencer que não pode continuar no século XXI sendo a parte do mundo que tem mais desemprego, mais miséria e mais violência. Sou a prova que o Brasil foi convidado para quase todas as reuniões do G-8, e virou protagonista internacional e é isso que os americanos não querem. Não querem competição. Por exemplo, não é assimilável que o Trump queira invadir a Venezuela e que países europeus reconhecerem o [Juan] Guaidó como presidente. Como reconhecer um impostor, alguém que não concorreu à presidência? A Europa é que desapareceu da política. Tudo é comissão. Tem comissão daquilo, de meio ambiente, tudo burocrata. Os governantes são eleitos e desaparecem. É preciso que a política volte a assumir o seu papel, tomar grandes decisões.
P. Mas o que mudou pessoalmente, com a prisão? Poucos políticos viveram isso. O que isso mudou do ponto de vista pessoal?
R. Se eu dissesse que eu não tenho mágoa de algumas pessoas eu estaria mentindo. Mas nunca na minha vida trabalhei com meus rancores. Quando a gente tem ódio a gente dorme mal, faz digestão mal. Como eu sempre tive consciência do que estava acontecendo comigo, eu nunca tive dúvida. Quando eu estava detido na Polícia Federal, houve uma tentativa de que eu fosse libertado e viesse para casa e utilizasse tornozeleira. O que eu disse? ‘Eu não troco minha dignidade pela minha liberdade’. Eles procuravam um motivo para me prender. Preciso agora deixar de ser refém, que a Suprema corte vote e decida. Só quero um julgamento honesto, eu não vou mais xingar o Moro, nem o Ministério Público. Todo político que rouba se esconde, submerge. E eles pela primeira vez enfrentaram um político que não tem medo deles porque sou inocente. É preciso saber quando o Supremo vai tomar a decisão porque ao me colocar como inocente eles vão ter que dizer que os outros mentiram, que a rede Globo mentiu, que a imprensa toda mentiu. Será o dia do perdão. Fico imaginando o dia em que o William Bonner abrirá o Jornal Nacional dizendo: “Boa Noite, hoje nós queremos pedir desculpas para o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque acreditamos nas mentiras do Dallagnol e do Moro”.
P. É utopia, né, presidente?
R. Você acha impossível, mas eu acho que vai acontecer. Eles pediram desculpas porque não cobriram as [manifestações pelas] eleições diretas depois de 30 anos. Os americanos admitiram que interferiram no golpe [de 1964] depois de 50 anos. Não sei se vou estar vivo mas mesmo que eu estiver no túmulo eu levantarei por alguns segundos de alegria por que finalmente a verdade aconteceu.
P. Deixaria um dia a política?
R. Não, não penso. A política está no meu DNA, é uma célula no meu corpo. Quando somente essa célula parar de produzir e eu morrer é que eu pararei de fazer política. Não tem saída para humanidade fora da política, para a democracia, para o crescimento econômico e a distribuição de riqueza. Tudo depende da política. Em 1978 eu dizia: “Eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política.” Hoje eu digo, eu gosto de política e toda sociedade deveria gostar.
El País: Amazonas caminha para terceira onda de covid-19, com avanço de variantes
Estado tem o dobro da média nacional de mortalidade para cada 100.000 habitantes, mas flexibilizou a quarentena e reabriu lojas e restaurantes. Caso de Manaus representa ameaça para todo o Brasil, alertam pesquisadores, que recomendam fechamento imediato das atividades
Após a covid-19 provocar cenas de terror em Manaus ―com a falta de oxigênio e de leitos nos hospitais no auge da segunda onda da pandemia―, a capital do Amazonas caminha para uma terceira onda de infecções pelo novo coronavírus e para a estabilização do número de mortes em um platô alto, o que deve ocorrer a partir de março e se manter durante todo o ano. O alerta é do grupo de pesquisadores que reúne especialistas em várias áreas (como matemática, estatística, infectologia, imunologia e biologia) responsável pelo estudo publicado em agosto de 2020 na revista Nature Medicine que previu a segunda onda em Manaus quatro meses antes dela acontecer.
O alerta aponta para um cenário de reinfecção constante e de uma média de 50.000 infectados simultâneos, chegando ao pico de 75.000 no mês de junho. “Isso é preocupante porque tende a propiciar o surgimento de uma nova variante resistente às vacinas já conquistadas, dentro de seis meses a um ano. Essa situação é gravíssima”, afirma o biólogo Lucas Ferrante, doutorando pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e um dos pesquisadores que assinam o estudo.
A pesquisa prevê ainda que, caso nada seja feito, o Amazonas viverá um pico da pandemia até 2023. A recomendação do grupo de estudiosos é que o Estado adote um lockdown imediato, diminuindo a circulação de pessoas em 90% por um período de 20 a 30 dias, em paralelo à vacinação de ao menos 70% da população nos próximos três a quatro meses. “É a melhor estratégia do ponto de vista econômico e epidemiológico. Todas as autoridades no Amazonas já foram avisadas, mas preferem a prática de uma necropolítica. Eles sabem das consequências, mas usam a desculpa de conciliar os interesses da economia, sendo que a própria economia sofre com esse abre e fecha. Estamos prevendo mais dois fechamentos este ano. A gente precisa de um lockdown federal”, defende o biólogo.
Apesar dos avisos dos pesquisadores e ainda que o governador Wilson Lima afirme que o Estado segue na fase vermelha (o que representa o alto risco de contaminações), o horário de funcionamento dos serviços essenciais e não essenciais no Amazonas foi ampliado nesta sexta-feira, 5 de março. Lojas, que antes abriam das 9h às 15h, agora podem ficar abertas até às 17h, de segunda a sábado. Flutuantes registrados como restaurantes podem funcionar das 9h às 16h, de segunda a sexta. Supermercados e padarias ganharam uma hora a mais de funcionamento. E o toque de recolher foi encurtado em duas horas, sendo agora das 21h às 6h.
Já a campanha de conscientização do Governo estadual afirma que a responsabilidade em não provocar aglomerações é da população, mas não é difícil encontrar lojas e shopping cheios no Estado. O Amazonas ostenta a triste liderança do ranking de mortalidade no Brasil, com o dobro da média nacional de mortes para cada 100.000 habitantes. O índice de mortes pela covid-19 para cada 100.000 habitantes no Estado é de 270, enquanto a média nacional é de 125.
Os pesquisadores afirmam ainda que a constatação de que ter sido infectado por outras variantes do coronavírus não garante imunidade à cepa P.1 torna a população de Manaus refém de um ciclo constante de reinfecções, segundo Lucas Ferrante, o que faz com que a cidade “coloque em xeque os esforços mundiais para conter a pandemia.” A pesquisa a respeito desse quadro está em fase de revisão para publicação científica nas próximas semanas. “Não foi a P.1 que causou a segunda onda, mas a segunda onda ocasionou a P.1. Desde outubro os casos já vinham aumentando. Nós alertamos que o Amazonas encerraria o ano de 2020 com 6.000 óbitos, o que foi concretizado com 6.500 mortes, demonstrando que o modelo que utilizamos é eficiente”, explica o biólogo. Atualmente o Estado contabiliza 18 linhagens do SARS-CoV-2.
Negacionismo e banalização das mortes
O epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Amazônia) Jesem Orellana levou uma denúncia contra as autoridades sanitárias brasileiras de crime contra a humanidade na 46ª audiência da Comissão Internacional de Direitos Humanos. “Faremos a denúncia também nas Nações Unidas já que no Brasil ninguém faz nada e impera a impunidade. Só resta recorrer a organismos internacionais”, afirmou o pesquisador, que também previu a segunda onda em Manaus e vem alertando publicamente sobre as consequências trágicas da gestão da pandemia no Amazonas. O Estado atingiu 11.229 mortes pela covid-19 nesta sexta-feira, sendo que a metade delas ocorreu somente em 2021. “A partir de janeiro, a P.1 tem predominância nas novas contaminações”, afirma o biólogo Lucas Ferrante. Há semanas a taxa de ocupação de leitos de UTIs se mantém superior a 80%.
Para o sociólogo Marcelo Seráfico, professor doutor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), as trágicas duas ondas no Amazonas evidenciaram a naturalização da tragédia na sociedade brasileira. “Nos planos federal, estadual e municipal temos um alinhamento fino com o negacionismo, que tem contribuído decisivamente para estimular a população a condutas que são absolutamente nocivas a ela mesma”, afirma.
Outros agravantes no enfrentamento da pandemia são a pobreza e a perspectiva de piora da economia. “A vulnerabilidade econômica faz com que a população, ao invés de reivindicar políticas econômicas e sociais que seriam adequadas, se mobilize para fazer o inverso: pedir o fim do isolamento, o não uso do lockdown como estratégia de contenção da doença. Há um problema lógico de definição de prioridade: é difícil desenvolver atividade econômica estando morto”, opina. Mais da metade da população de Manaus vive em habitações precárias, os chamados aglomerados subnormais, como são classificadas as favelas, invasões, palafitas e loteamentos, segundo dados do IBGE de 2020. É também a cidade onde o trabalho informal está acima de 50%.
Mesmo sendo o primeiro Estado brasileiro a sentir o impacto da pandemia durante a primeira onda, em um colapso hospitalar e funerário em abril de 2020, centenas de pessoas foram às ruas para protestar contra o fechamento do comércio em dezembro. Pressionado, o Governo estadual recuou das restrições. Duas semanas depois, o Estado vivenciou a tragédia com pessoas morrendo por falta de oxigênio e voltou a implementar uma quarentena. Desde meados de fevereiro, porém, o comércio e a indústria voltaram a funcionar, apenas com horário reduzido e observação do toque de recolher.
Informações desencontradas
Em comum, as duas ondas da pandemia no Amazonas tiveram uma enxurrada de informações desencontradas ou falsas sobre os tratamentos adequados contra a doença. No início de janeiro, três dias antes do colapso com a falta de oxigênio em Manaus, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) defendeu o “tratamento precoce” para minimizar a pandemia de covid-19 no Estado. Na ocasião, em entrevista à CNN, o prefeito de Manaus, David Almeida, concordou com a afirmação do ministro e recomendou que a população procurasse as unidades básicas aos primeiros sintomas para “iniciar o tratamento de forma precoce” e “profilático”.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) ressaltaram, entretanto, que não há comprovações de que exista um tratamento precoce ou preventivo eficiente contra a doença e, assim, o ministro recuou da recomendação dias depois. Já em relação à hidroxicloquina, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a OMS concluiu que o medicamento não funciona no tratamento contra o novo coronavírus e alertou ainda que seu uso pode causar efeitos adversos.
Mas ainda que a principal autoridade da Saúde brasileira tenha recuado na defesa do “tratamento precoce”, a hidroxicloquina e outros medicamentos sem comprovada eficácia no combate ao coronavírus continuam a ser defendidos por profissionais respeitados no Amazonas. É o caso do geriatra e reitor da Fundação Universidade Aberta da Terceira Idade do Amazonas (FUnATI/AM), Euler Ribeiro, favorável ao tratamento à base de ivermectina, azitromicina e vitamina D associada ao zinco, além de cloroquina. Na avaliação dele, o tratamento foi “politizado”, o que fez com que sua eficácia fosse colocado em xeque. “Eu já tratei 111 idosos, alguns com comorbidade e nenhum morreu. Nenhum. Eu sou favorável ao uso, fui secretário de saúde no Estado durante sete anos e sei da eficácia do medicamento, principalmente no caso de malária (cloroquina), que eu receito há 30, 40 anos. Nunca vi alteração cardiológica. Eu adoto esse protocolo e uso, associado a corticoides e anticoagulantes”, defende o geriatra.
Por outro lado, ele faz coro em defesa do isolamento social e a vacinação ―isso sim, um consenso na comunidade científica. “Não estamos livres, tem que prevenir, fechar comércio, se isolar. Precisamos vacinar 70% da população para conter isso. Como tem pouca vacina, ainda estamos à mercê. Entre a economia e a vida, fico com a vida”, diz Ribeiro, que recebeu a primeira dose do imunizante.
Convencer a população a tomar a vacina é mais um desafio em meio à tempestade que atinge o Amazonas. A aposentada Raimunda Ferreira Gamboa, de 67 anos, recebeu a primeira dose do imunizante, mas narra a dificuldade em convencer amigos e vizinhos. Ela, que contraiu a doença em novembro, passou 28 dias internada no Hospital e Pronto Socorro Delphina Aziz (o maior em quantidade de leitos e referência para a covid-19 em Manaus). “Depois do que eu passei, quero mesmo é me vacinar. Infelizmente, nem todos pensam assim: minha vizinha, que perdeu a irmã para a covid recentemente já disse que não quer saber de vacina.”
Elio Gaspari: Flávio Bolsonaro desconsiderou Tancredo
Senador descumpriu uma norma, explicitada por Neves em 1963: “É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada”
Flávio Bolsonaro comprou uma casa de R$ 5,9 milhões, com R$ 3,1 milhões financiados pelo Banco de Brasília, cujo maior acionista é o governo do Distrito Federal. Com uma renda familiar declarada de R$ 37 mil mensais brutos, deverá aguentar uma mensalidade de R$ 18 mil. Poderá viver sem pedir auxílio emergencial.
O doutor ganhou fama de empreendedor com uma casa de chocolates da Kopenhagen e, em 16 anos, fez 20 transações imobiliárias, muitas delas quitando parte dos pagamentos em dinheiro vivo. Filho do capitão Jair Bolsonaro, elegeu-se deputado estadual no Rio em 2002, aos 21 anos, e senador em 2018.
Flávio Bolsonaro descumpriu uma norma, explicitada por Tancredo Neves em 1963:
“É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada.”
Era pura sabedoria. Lula deu-se mal porque usufruiu o sítio de Atibaia e discutiu a compra de um apartamento no Guarujá. Juscelino Kubitschek foi muito mais longe, adquirindo um apartamento na avenida Vieira Souto.
Na “nova política” dos Bolsonaro, faltam os pilares da cultura histórica de Tancredo. Nela, abunda aquilo que o presidente americano Joe Biden acaba de chamar de “pensamento de Neandertal”. Rachadinhas podem ser coisas da Idade da Pedra.
A repórter Malu Gaspar mostrou que na “nova política” acontecem também golpes da modernidade, como a utilização de informações vindas do coração do governo para se ganhar um dinheirinho fácil no mundo do papelório.
Às 17h15m de quinta-feira, dia 18 de fevereiro, terminou uma reunião no Palácio do Planalto. Delas participaram o presidente Bolsonaro e, por ordem alfabética, os ministros Augusto Heleno, Bento Albuquerque, Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Paulo Guedes e Tarcísio Freitas. Nela, o capitão manifestou seu desconforto com o presidente da Petrobras.
Às 17h35m, uma mão invisível do mercado operou uma aposta de R$ 2,6 milhões na baixa nas ações da Petrobras. Passados nove minutos, outra, de R$ 1,4 milhão. Nunca haviam acontecido operações desse tamanho em tão pouco tempo. Às 19h (85 minutos depois da primeira aposta), Bolsonaro anunciou que “alguma coisa” aconteceria na Petrobras.
Malu Gaspar mostrou que até as 17h15m, quando terminou a reunião do Planalto, aconteceram 41 transações, com algo mais de 2 mil apostas. Depois que a reunião terminou, em apenas 39 minutos, foram negociadas 2,5 milhões de apostas.
Quem conhece o mercado estima que o dono, ou os donos, da mão invisível embolsaram algo como R$ 18 milhões com a queda do valor da ação da Petrobras no dia seguinte.
À primeira vista, os órgãos de controle do governo poderão desvendar essa salada de números. Contudo, durante o governo Bolsonaro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) soltou um edital prevendo a compra de R$ 3 bilhões de equipamentos para a rede pública de ensino.
A Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de controle do governo, sentiu cheiro de queimado. Afora os indícios de direcionamento, 355 colégios receberiam mais de um laptop por aluno, 46 ganhariam mais de dois, e um deles, em Itabirito (MG), teria direito a 30 mil, 118 para cada aluno.
A CGU funcionou. O edital foi suspenso e logo depois cancelado, mas até hoje ninguém explicou como e por quem foi produzido o jabuti. Nem em pizza deu, deu em nada.
Recordar é viver
Em 1969, um comando da Vanguarda Armada Revolucionária roubou um cofre guardado na casa da namorada do ex-governador paulista Adhemar de Barros. Quando o arrombaram, encontraram cerca de US$ 2,5 milhões de dólares (algo como US$ 18 milhões de hoje). Parte do ervanário ainda estava com as cintas de papel de um banco suíço.
A poderosa máquina da ditadura identificou quinze pessoas envolvidas no assalto. Quatro foram mortos e sete foram presos nos meses seguintes. Um deles morreu sob tortura num quartel. Sua autópsia, feita no Hospital Central do Exército, apontou dez costelas quebradas e pelo menos 53 marcas de pancadas.
Imenso foi o esforço para se descobrir o que foi feito com o dinheiro. Nula foi a curiosidade para saber como ele foi parar no cofre. Adhemar era conhecido por ter uma “caixinha” e apreciava o slogan “rouba, mas faz”.
Com a ajuda de um amigo militar, a dona da casa sustentou que o cofre estava vazio. Nem em pizza o cofre do Adhemar deu. Deu em nada.
A ditadura negava que torturasse presos e orgulhava-se de ter uma Comissão Geral de Investigações para caçar corruptos. À época, era presidida por generais.
Tarcísio está noutra
Tarcísio Freitas, ministro da Infraestrutura, só convive com as moscas de padaria. Não é candidato a nada e não quer ser. Até porque já decidiu: quando sair do governo, irá para a iniciativa privada.
Guedes e Maritza Izaguirre
Outro dia, o ministro Paulo Guedes disparou uma urucubaca:
“Para virar a Argentina, seis meses; para virar Venezuela, um ano e meio.”
Misturou cloroquina com cloro de piscina. A Argentina teve projetos liberais mal conduzidos e fracassados. Na Venezuela, isso nunca aconteceu. O projeto de demagogia miliciana de Hugo Chávez era político.
Em 1999, quando o coronel Chávez assumiu, o tal de “mercado” torceu para que a manutenção de Maritza Izaguirre no Ministério da Fazenda garantisse alguma racionalidade. Um ano depois, Izaguirre foi substituída e voltou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Chávez chegou prometendo “mercado até onde for possível e Estado apenas onde for necessário”. Era lorota.
Sonham acordados
Quando o governador João Doria anunciou que em janeiro começaria a vacinação em São Paulo, o secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel da reserva Élcio Franco (aquele que usa brochinho de crânio atravessado por uma faca), disse o seguinte:
— Senhor João Doria, não brinque com a esperança de milhares de brasileiros, não venda sonhos que não possa cumprir, prometendo uma imunização com um produto que sequer possui registro nem autorização para uso emergencial.
No dia 17 de janeiro, foi vacinada no Hospital das Clínicas a enfermeira Mônica Calazans.
Jogo jogado
Na quinta-feira, a repórter Paula Ferreira mostrou que Franco encaminhou ao Senado uma planilha informando que neste mês o ministério distribuirá 38 milhões de vacinas.
No dia 17 de fevereiro, o general Eduardo Pazuello anunciou que entregaria 46 milhões de imunizantes. Onze dias depois, a previsão baixou para 39,1 milhões.
Em duas semanas, evaporaram-se 7,9 milhões de vacinas.
O doutor deveria entrar na sala do general Pazuello admitindo:
— Chefe, estamos brincando com a esperança de milhares de brasileiros, vendendo sonhos que não podemos cumprir.
(O Ministério da Saúde levou em conta 8 milhões de doses de um laboratório que ainda não deu entrada ao pedido de autorização da Anvisa, mas deixa pra lá.)
José Roberto Mendonça de Barros: Totalmente sem rumo
A ausência, por quase 3 meses, dos pagamentos do auxílio amplia a fraqueza da demanda
Estamos perdidos no meio de uma tempestade. Antes de tudo, pelo que aconteceu no ano passado. Desde que a pandemia mostrou sua força, mergulhamos numa crise humanitária, com elevado sofrimento e número de mortos, que nos jogou numa forte recessão.
Pior que tudo, o negacionismo do presidente da República e a explosiva mistura de arrogância e incompetência de seu terceiro ministro da Saúde tornaram as coisas mais difíceis, com apelo a poções mágicas e negligência na compra de vacinas, a única forma de combater o coronavírus nos dias de hoje.
Além disso, pego de surpresa, o ministro da Economia começou uma longa corrida atrás dos fatos, desde que declarou que “com R$ 5 bi nós matamos o bicho”. Foi o Congresso que desenhou todas as regras e a estrutura do auxílio emergencial (depois apropriado pelo Executivo), que, a partir de junho, elevou a demanda de consumo e resultou numa melhora da atividade no segundo semestre.
Nesta semana, soubemos que a queda do PIB foi de “apenas” 4,1%, e não os 6% a 8% que se anteviam por volta de junho.
Nesse resultado, merece menção que, do lado da oferta, cresceram apenas o setor financeiro, a agropecuária, os serviços imobiliários e a extrativa mineral.
Do lado da demanda, a queda foi universal, destacando-se o consumo das famílias.
O pior é que não se projeta continuidade da recuperação rumo a um crescimento mais sustentável, como mostra a precariedade da taxa de investimento (que ficou abaixo de 16%, quando se corrige o impacto das importações fictas de plataforma de petróleo), a queda abrupta das expectativas de todos os agentes econômicos neste início de ano e as consequências da desastrada intervenção na Petrobrás.
Ao contrário, até o governo já reconhece que não haverá crescimento no primeiro semestre. Para a MB, o PIB, na margem, será negativo em 0,8% no primeiro trimestre e 0,3% no segundo trimestre, configurando uma recessão técnica. E a recuperação era para ter sido em “V”!
Nada é mais distante da realidade do que declarou o ministro à Veja (23/12/20): “Estamos disparando uma onda de investimentos. O grande desafio de 2021 será exatamente esse. O Brasil será a maior fronteira de investimentos do mundo”.
O conjunto de vetores aponta para um período ainda muito difícil adiante.
Antes de mais nada, a virulência da segunda onda do vírus está produzindo um colapso em muitos Estados, que piora o ambiente e implica restrições à atividade em muitos lugares. O mercado de trabalho continua extremamente fraco e os dados mostram que a população sacou uma quantia apreciável de suas cadernetas de poupança para cobrir seus compromissos.
A ausência, por quase três meses, dos pagamentos do auxílio emergencial amplia a fraqueza da demanda.
Estamos assistindo a uma piora significativa na inflação, que continua puxada pelo custo de alimentação e outras pressões no setor industrial. Isso levará o Banco Central a iniciar uma elevação de juros a partir de março, pressionando a recuperação da atividade através do custo do crédito, já prejudicado pelo avanço da tributação no sistema bancário.
Uma coisa positiva foi a aprovação da PEC emergencial no Senado, por trazer de volta a ajuda às famílias mais pobres. Entretanto, as contrapartes aprovadas contêm apenas promessas futuras de avanços no equilíbrio das contas públicas, que ainda terão muita dificuldade em se materializar.
Finalmente, vemos uma diminuição do peso da equipe e a ausência de uma proposta consistente e convincente de política econômica para enfrentar o momento.
Fica cada vez mais difícil crer que uma aliança do Centrão com o Palácio do Planalto vá resultar em reformas e ajuste fiscal. Mais fácil acreditar em duendes.
Com o País aflito e desarvorado, podemos bater no muro em futuro relativamente próximo.
Celso Ming: Razões de governo e direito ao luto
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega o direito ao luto e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade
O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de governo para julgar “frescura e mimimi” a prostração dos brasileiros pelos mais de 260 mil mortos pela covid-19. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando, contraria leis multimilenares, que existem desde que o homem é homem.
A mais representada das tragédias gregas em todos os tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 441 antes de Cristo. Trata do conflito entre razões de governo e direitos de família.
Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das aves carniceiras. Antígona, irmã de Polinices, se rebelou contra essa determinação “desumana e contrária aos deuses”. Em segredo, recobriu o cadáver do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados. “As tuas determinações não têm força” – justificou-se depois diante de Creonte – “para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis.”
Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as consequências vieram a galope. Creonte e sua família foram castigados pelos deuses. “Cedo ou tarde, o mal parecerá um bem àquele que os deuses resolveram desgraçar” – canta o coro da peça.
O direito ao luto e a reverência aos mortos são registrados pela literatura clássica e pelos que vieram depois. Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante da coligação grega, se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de Aulis.
Esta é mais uma situação em que razões de governo se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina a mãe.
Nas cenas finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida, transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante das muralhas de Troia, e implora a devolução do cadáver para que possa ser pranteado e, depois, cremado. O “animal Aquiles” – na expressão de Christa Wolf, em sua obra “Cassandra” – se comove com a coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e determina trégua na guerra, até que se completem os funerais.
Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro, a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em memória do falecido.
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega essa herança cultural e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade. Como visto pela literatura, coisas assim têm consequências.
Míriam Leitão: Velhos temores que nos rondam
A inflação ronda a economia. O temor até dentro do governo é que ela não caia depois de chegar a 7% em junho. Bolsonaro piora tudo. Ele produz incerteza, isso pressiona o dólar que, num círculo vicioso, atinge os preços. A inflação de alimentos fechou em 11% no ano passado e alguns produtos industriais estão em falta, como papelão e aço. Há outros fantasmas. A dívida é alta e ficará mais cara. Os juros futuros e o risco-país aumentaram e a Selic terá que subir. A equipe finge acreditar que há ajuste fiscal na PEC aprovada no Senado. Ela nada economiza a curto prazo, cria mais rigidez, fragiliza a Receita Federal e propõe a médio prazo o que não conseguirá fazer.
Bolsonaro é a crueldade ostentação. O “vai chorar até quando?” ou o “vai comprar vacina na casa da mãe” foram lançados no rosto de um país que enterra quase dois mil mortos por dia. Ele gostaria de desviar a atenção posta sobre a mansão do filho. O mundo vê, registra e quer distância de nós. Esta semana, dois grandes jornais, um americano e um britânico, fizeram editoriais dizendo que somos fator de risco sanitário global.
Na economia, há uma mistura pesada. Recessão, inflação, desemprego e piora fiscal. A alta dos juros começará ao longo do primeiro semestre apesar da atividade fraca. O mercado financeiro comemorou a aprovação da PEC Emergencial porque acha que ela evitou o pior. O Bolsa Família fora do teto abriria mais espaço no orçamento para despesas populistas. O ganho foi, portanto, evitar o bode voador que apareceu na última hora. No resto, o ajuste é um saco vazio. Ele proíbe o proibido. O salário do servidor civil já não seria reajustado este ano, portanto esse ponto da PEC é inócuo. Ela permite a alta dos salários dos militares e ainda carimbou despesas das Forças Armadas. Ao fim, a emenda engessou mais o orçamento. A única desvinculação afeta a Receita Federal, o órgão que arrecada, combate a sonegação e a lavagem de dinheiro.
O faz de conta fiscal levou o governo a uma situação ridícula. Ele terá que decretar estado de calamidade para acionar os gatilhos, porém os gatilhos nada acionam. O governo precisa gastar mais por causa da pandemia, mas não consegue formular boas políticas de ajuste.
A parte da PEC que trata da redução de subsídios é inexequível. Felipe Salto, da IFI, mostra que ao blindar a Zona Franca de Manaus, o Simples, os fundos constitucionais e as entidades filantrópicas ficou inviável a proposta de reduzir as renúncias fiscais a 2% do PIB. Teria que zerar toda a dedução do Imposto de Renda Pessoa Física, todos os subsídios agrícolas, acabar com a lei de incentivos para a cultura, suspender estímulos à ciência e inovação tecnológica. Salões de beleza caros da Zona Sul do Rio são optantes do Simples, mas o governo ameaça tomar o dinheiro do Microempreendedor Individual (MEI).
Reduzir subsídios é necessário, mas trabalhoso. Exige olhar dentro desses gastos, para separar o justo do injusto. Bolsonaro acabou de criar R$ 3 bilhões de subsídios para o diesel. Não alivia o consumidor, porque o dólar está subindo, e o petróleo, também. Mas pesa para o Tesouro. O benefício é para o caminhoneiro autônomo. Mas também para as empresas que têm frotas de caminhões, os carrões SUV, as lanchas. Todo benefício geral é injusto num país desigual. O trigo subsidiado faz o pão do pobre e o das padarias gourmet. A cesta básica inclui filé mignon, picanha, peixes nobres como salmão e subsidiá-la custou R$ 15 bilhões em 2018. Seria melhor ter dado esse dinheiro diretamente aos mais pobres.
O que se diz até na equipe econômica é que se as expectativas de inflação ficarem sem âncora, os índices não vão cair no segundo semestre, ao contrário do previsto. E isso pode “definir o destino deste governo”. As projeções para o IGP-M já estão em 8%, depois de subirem 23% em 2020. O quadro é este: a economia está instável, a situação social é dolorosa, a pandemia mata cada vez mais e Bolsonaro escala as agressões. O objetivo dele é conhecido. Ele mente dizendo que tem plano pronto contra a pandemia, mas não executa porque o STF não deixa, e que os governadores causaram a crise econômica. Por isso ele adula as Forças Armadas. Bolsonaro é um autocrata trabalhando para uma ruptura, que, segundo o filho 03, não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O que a família reinante parece não saber é que a economia em escombros derruba governos.
Vinicius Torres Freire: Nova falha na vacinação vai matar milhares de idosos no Brasil
Novo cronograma federal é em parte ficção; Bolsonaro precisa ser interditado
O atraso da Fiocruz e da importação de vacinas da Índia vai deixar o Brasil sem 15,2 milhões de doses da AstraZeneca/Oxford em março. Seria o bastante para vacinar 7,5 milhões de pessoas do grupo de mais de 60 anos, no qual morrem mais de 74% das vítimas de Covid-19. Levando em conta o número diário de mortes recente, esse buraco de um mês na vacinação vai ameaçar a vida de uns 7.400 idosos. Nem todos seriam salvos, pois a vacina leva tempo para fazer efeito. Mas milhares morrerão porque faltaram essas vacinas.
É um exemplo aritmético do terror, que pode ficar pior. É preciso instalar uma espécie de governo de salvação nacional da saúde, uma articulação de governadores, prefeitos e Congresso capaz de aprovar medidas legais e administrativas a fim de garantir vacinas e providências epidemiológicas coordenadas. Jair Bolsonaro está em campanha contra a República Federativa e contra a segurança nacional sanitária. Como não será impichado, precisa ser neutralizado.
Ainda que o novo cronograma federal de vacinas fosse cumprido, já seria tarde. A economia vai afundar pelo menos até abril. Sem antecipar vacinas, afundará por mais tempo. O vírus pode se espalhar a ponto de causar uma epidemia de variantes incontroláveis. O genocídio de março já está dado. O de abril, quase garantido. Há que se evitar a marca de 400 mil mortes em maio.
Parte do novo cronograma do Ministério da Saúde para março e abril ainda é ficção. Parte é incerteza: houve um problema na produção dos primeiros lotes da Fiocruz, das vacinas que serviriam para um teste antes da fabricação "industrial". Com essa falha, em vez de entregar 15 milhões de doses em março, a Fiocruz vai entregar apenas 3,8 milhões (ainda tentam salvar alguma coisa mais).
Um calendário obtido por este jornalista no governo federal prevê 32 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford em abril. Mas a Fiocruz por ora estima poder entregar 25 milhões, se é que a fábrica não vai quebrar de novo. As doses de AstraZeneca/Oxford que seriam importadas da Índia, do Serum, dependem de boa vontade política: é grande a pressão para barrar a venda para o exterior.
No calendário, o ministério inclui doses da Covaxin, outra indiana, 8 milhões em março e mais 8 milhões em abril. Mas essa vacina não tem licença da Anvisa, que começou a conversar com a fabricante apenas na quinta-feira. Aliás, nem mesmo as vacinas AstraZeneca/Oxford a serem fabricadas pela Fiocruz foram autorizadas pela Anvisa. Espera-se que o sejam até 12 de março.
No calendário federal consta a entrega de um número otimista de doses do Butantan para abril. O instituto espera, sim, antecipar a entrega de vacinas, mas isso não é certo. Ainda para abril, o governo prevê a chegada de 2,9 milhões da Covax e 400 mil doses de Sputnik, que também não foi aprovada pela Anvisa.
Em resumo, o governo espera receber 94,1 milhões de doses em março e abril. Pelo menos 29,3 milhões são promessas ainda mais incertas ou doses de vacinas não aprovadas.
Caso seja cumprido, o calendário federal prevê vacinas para mais de 75 milhões de pessoas até o fim de maio (cerca de 158 milhões de doses). Seria mais do que suficiente para vacinar os maiores de 50 anos e, em suma, todos os grupos das pessoas em que morrem 88% das vítimas de Covid-19 no Brasil. É o equivalente a 49% da população vacinável (maior de 18 anos) ou a 35% da população total. Ainda seria tarde. A fim de evitar genocídio e desastre econômico maiores, é preciso antecipar em quase um mês esse calendário.
Bruno Boghossian : Bolsonaro já sente custo político de choques na economia
Presidente passa a trabalhar quase exclusivamente para conter efeitos sobre popularidade
O aumento da gritaria contra o fechamento do comércio e a investida sobre a Petrobras revelam o que inquieta Jair Bolsonaro no pior momento da pandemia. O presidente sentiu o impacto dos choques da economia e passou a trabalhar exclusivamente para reduzir os efeitos dessa crise sobre sua popularidade.
Sem o amortecedor do auxílio emergencial, os efeitos da inflação e o tropeço da atividade econômica passaram a ter um custo político maior. Embora Bolsonaro se esforce desde os primeiros dias da pandemia para fugir das responsabilidades nessa área, a conta costuma ficar com os presidentes das República.
Os números já apareceram em pesquisas feitas nos primeiros meses de 2021. A reprovação ao governo Bolsonaro cresceu à medida que a população começou a dar sinais crescentes de desconforto em relação aos rumos da economia.
Desde dezembro, o percentual de brasileiros que classificavam o trabalho do presidente como ruim ou péssimo subiu de 35% para 42% nos levantamentos XP/Ipespe. No mesmo período, a proporção de entrevistados que diziam que a economia estava no caminho errado passou de 50% para 57% –e só 30% acham que esse caminho está certo.
Vem desses dados a preocupação de Bolsonaro em transferir para os governadores a responsabilidade pela piora nos indicadores econômicos. Desde o fim de fevereiro, ele ataca quase todos os dias as medidas de restrição à circulação nos estados, omitindo o fato de que elas só são tomadas para conter o colapso de sistemas de saúde e salvar vidas.
Já o malabarismo para reduzir o preço dos combustíveis e a promessa de "meter o dedo na energia elétrica" são tentativas de conter a inflação.
Esse componente do desajuste econômico costuma provocar uma reação imediata do eleitorado –que tende a ser mais intensa com um auxílio emergencial menor. Em janeiro, o Datafolha mostrou que 96% dos brasileiros diziam ver aumento de preços da comida, 86% citavam o gás e 84% falavam da conta de luz.