eleições 2022

O Estado de S. Paulo: STF derruba condenações de Lula e torna o petista elegível

Em julgamento fatiado, ministros analisam se a 13ª Vara Federal de Curitiba tinha competência para julgar petista. Placar provisório é de 8 a 2 a favor de decisão que anulou condenações de Lula e tornou o ex-presidente apto a disputar eleições de 2022

Rafael Moraes Moura e Paulo Roberto Netto

Por 8 a 3, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (15) derrubar as condenações impostas pela Operação Lava Jato ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que deixa o petista elegível e apto a disputar as próximas eleições presidenciais. Na prática, o plenário manteve a decisão do ministro Edson Fachin, que considerou que a Justiça Federal de Curitiba não era competente para investigar Lula, já que as acusações levantadas contra o ex-presidente não diziam respeito diretamente a um esquema bilionário de desvio de recursos na Petrobrás. Ainda está em aberto se as quatro ações penais que miram Lula (do triplex do Guarujá, do sitio de Atibaia e duas que miram o Instituto Lula) vão ser encaminhadas para a Justiça Federal do DF ou de São Paulo.

Apenas o presidente do STF, Luiz Fux, o decano do Supremo, Marco Aurélio Mello, e o ministro Kassio Nunes Marques se posicionaram a favor do recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) para manter válidas as decisões tomadas pela Justiça Federal de Curitiba contra o ex-presidente da República. Pelo voto dos três, Lula ficaria inelegível e impossibilitado de concorrer ao Palácio do Planalto em 2022.

No entanto, prevaleceu o entendimento de Fachin, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia, que votaram a favor da decisão do relator da Lava Jato, que beneficiou Lula e o tornou elegível. Em um momento histórico, Barroso não votou por videoconferência, do seu gabinete ou residência. O ministro utilizou o celular para dar o voto, enquanto acompanhava a sua mulher, em um hospital.

O julgamento será retomado na próxima quinta-feira (22), quando o plenário vai analisar um outro ponto delicado: se a suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro vai ser arquivada ou não. Pelo raciocínio de Fachin, se a condenação que Moro impôs a Lula na ação do triplex do Guarujá não existe mais, não faz mais sentido discutir a atuação do ex-juiz federal no caso. Mesmo assim, a Segunda Turma decidiu, no mês passado, por 3 a 2, declarar Moro parcial no caso. Agora, a palavra final será do plenário, que deve se dividir sobre o tema.

A suspeição de Moro é uma questão-chave pro futuro da Lava Jato e de Lula, porque os ministros vão decidir se as provas coletadas pelo ex-juiz poderão ser reaproveitadas ou não pelo futuro juiz que assumir os casos do ex-presidente. Um dos temores de investigadores é a de que haja um efeito cascata, contaminando outros processos da Lava Jato nos quais Moro atuou.

“O Ministério Público acabou colocando em todas as denúncias o nome da Petrobrás e pedia a prevenção da 13ª Vara Federal de Curitiba, exatamente como no caso em questão. Em nenhuma das denúncias, seja no sítio Atibaia, seja no triplex do Guarujá, seja no Instituto Lula, em nenhuma delas, nem o Ministério Público nem o juiz Sérgio Moro, quando condenou, em nenhuma delas apontou que o dinheiro veio da OAS, ou da Odebrecht, ou de alguém, ou contrato da Petrobrás. Não”, disse Moraes.

“O que não significa que os fatos ocorreram  ou não, mas cada fato deve ser analisado dentro das suas características”, acrescentou o ministro.

O julgamento sobre Lula foi retomado nesta quinta-feira, após os ministros decidirem ontem que o caso deve ser examinado pelo plenário, e não pela Segunda Turma, como pretendia a defesa do petista.

Os ministros decidem agora se mantêm ou se derrubam, na íntegra ou parcialmente, todos os pontos levantados na decisão que o relator da Lava Jato no STF proferiu há cerca de um mês: a anulação das condenações de Lula no âmbito da operação; o envio dos processos – triplex do Guarujá, sítio de Atibaia, terreno do Instituto Lula e doações da Odebrecht ao mesmo instituto – à Justiça Federal do DF; e o arquivamento da suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro.

“Do enredo narrado, extraio uma ligação muito distante entre as condutas imputadas e sua repercussão sobre o patrimônio da Petrobrás, insuficiente paras atrair a incidência das regras de conexão. Não há margem para a reforma da decisão do eminente relator”, observou Rosa Weber.

Em seu voto, Kassio afirmou que a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba se dá por conexão, ou seja, os atos narrados pela Lava Jato que teriam sido praticados por Lula seriam conexos aos desvios da Petrobrás. O ministro também afirmou que os processos não poderiam ser anulados.

“Verifica-se que os fatos versados nas ações penais descritas estão, de fato, associados diretamente ao esquema criminoso de corrupção e lavagem de dinheiro investigado no contexto da Operação Lava Jato cuja lesividade veio em detrimento exclusivamente da Petrobras. E assim sendo, a competência, a meu sentir é da 13ª Vara Federal”, disse Nunes Marques.

“Ocorre no caso tanto a conexão subjetiva como o motivo para a conexão das ações. Foi uma investigação dos primeiros crimes que coletou provas que levaram ao conhecimento da segunda onda de crimes”, acrescentou.

Mais cedo, o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, votou para negar um recurso da PGR e manter a decisão que anulou as condenações impostas pela Operação Lava Jato ao ex-presidente Lula. Na prática, a decisão do ministro tornou Lula elegível e o habilitou a disputar as próximas eleições presidenciais.

Neste momento, os ministros analisam o recurso da PGR contra a anulação das condenações de Lula e a transferência dos casos de Curitiba para a Justiça Federal do DF. “A competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba foi sendo entalhada à medida em que novas circunstâncias fáticas foram trazidas ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal que, em precedentes firmados pelo Tribunal Pleno ou pela Segunda Turma, sem embargo dos posicionamentos divergentes, culminou em afirmá-la apenas em relação aos crimes praticados direta e exclusivamente em detrimento apenas da Petrobras S/A”, observou Fachin, ao elencar uma série de decisões anteriores do Supremo em que foi delimitada a atuação da Justiça Federal de Curitiba na Lava Jato.

O ministro destacou que, em setembro de 2015, o plenário do STF firmou o entendimento de que “nenhum órgão jurisdicional pode-se arvorar de juízo universal de todo e qualquer crime relacionado a desvio de verbas para fins político-partidários, à revelia das regras de competência”.

Segundo Fachin, as acusações levantadas contra Lula apontam a existência de um grupo criminoso em cargos estratégicos na estrutura do governo federal, não sendo restrita à Petrobrás, mas abrange, incluindo “extensa gama de órgãos públicos em que era possível o alcance dos objetivos políticos e financeiros espúrios”. Em casos que envolviam discussão semelhante, o STF acabou decidindo que Curitiba não era competente para investigar os acusados.

“Para decidir situações semelhantes, de forma semelhante, independentemente da capa ou do nome dos autos, é forçoso reconhecer que o caso não se amolda ao que se tem decidido majoritariamente no âmbito do plenário da Segunda Turma e ao que veio sendo decidido em 2015 a despeito de diversos votos divergentes que proferi”, frisou.https://www.youtube.com/embed/uMwRtZv92hE?feature=oembed&enablejsapi=1&origin=https%3A%2F%2Fpolitica.estadao.com.br

A análise do caso pelo teve início na última quarta, 14, após o plenário da Corte referendar a decisão do ministro Luís Roberto Barroso que determinou a instalação da CPI da Covid-19 no Senado. 

Os ministro estão examinando pontualmente cada questão levantada por Fachin. O primeiro ponto, discutido ainda na sessão de ontem, foi um recurso apresentado pela defesa de Lula que contestava o envio da decisão do relator da Lava Jato no STF para referendo dos 11 integrantes da Corte, ao invés da Segunda Turma.

A manutenção do julgamento no Plenário do STF

Em uma análise de uma questão preliminar, por 9 a 2, o STF decidiu que caberá aos 11 ministros do plenário analisar se mantém cada um dos pontos da decisão do ministro Edson Fachin que anulou as condenações de Lula. Os ministros discutiram se caberia à Segunda Turma julgar o caso, como queria a defesa do ex-presidente, ou o plenário, como se posicionou Fachin. Ao fim, o relator da Lava Jato venceu a primeira disputa.

“Por que justamente no caso do ex-presidente? Será que o processo tem nome e não capa. A última vez em que se fez, isso custou ao ex-presidente 580 dias de prisão, e causou a impossibilidade de se candidatar a presidente a República”, criticou Ricardo Lewandowski, ao defender a análise do caso pela Segunda Turma.

Marco Aurélio também indicou que não concordaria com o envio do caso ao plenário. “O ex-presidente tem prerrogativa de só ser julgado pelo plenário?”, questionou o decano do STF.

Além de Fachin, o presidente do STF, Luiz Fux, Nunes Marques, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes votaram pela análise do caso no plenário, formando a maioria pela manutenção do caso no plenário.

“Não existem três Supremos, existe um, que por questões, ao longo do tempo, de excesso de trabalho, foi dividido, formando as suas turmas, a partir disso. Não consigo enxergar afirmação de que o julgamento pelo plenário do Supremo significa desrespeito ao juízo natural. Não encontro na Constituição Federal a expressão ‘turmas do Supremo Tribunal Federal”, encontro ‘STF’. Não posso acreditar que qualquer seja o paciente, pode achar que vai ser prejudicado porque o julgamento será feito no plenário da Suprema Corte”, observou Moraes.

Entenda os recursos contra a decisão de Fachin

Tanto a Procuradoria-Geral da República como a defesa de Lula apresentaram recursos contra o entendimento de Fachin. A estratégia do ministro com a decisão era tentar reduzir danos, tirar o foco de Moro e evitar a implosão da Lava Jato.

Segundo o Estadão/Broadcast apurou, Fachin deve rejeitar os recursos da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da defesa de Lula contra a sua polêmica decisão, assinada no mês passado.

No recurso ao Supremo, a PGR fez uma fez uma série de pedidos, trabalhando do ‘melhor’ par o ‘pior’ cenário. A solicitação principal é para que os casos de Lula permaneçam em Curitiba, ou seja, que as condenações contra o ex-presidente sejam mantidas. Caso o Supremo não atenda esse ponto, a PGR pediu que o tribunal confirme a validade de todos os atos já tomados nas ações contra Lula, inclusive os tomados pelo ex-juiz Sérgio Moro, ou ainda para que as investigações sejam enviadas à Justiça Federal de São Paulo, e não para Brasília, como determinou Fachin.

Por outro lado, a defesa de Lula alega que a competência analisar os processos do petista é da Segunda Turma da corte, e não do Plenário. A defesa do ex-presidente chegou a pedir que o grupo presidido pelo ministro Gilmar Mendes reafirmasse tal competência para evitar ‘alterações abruptas do órgão julgador após já iniciado o julgamento’. Além disso, os advogados do ex-presidente questionam a parte da decisão de Fachin que declarou a extinção de uma série de recursos da defesa, entre eles o que pedia a suspeição de Moro.

A decisão do Supremo sobre o caso pode resultar em um impacto – maior ou maior – nos processos contra Lula. Além disso, vai determinar os caminhos para a tramitação das ações envolvendo o petista e consequentemente as estratégias da Procuradoria e da defesa. Enquanto a cúpula da PGR vê espaço para que a suspeição de Moro no caso triplex seja revista no Plenário do Supremo, a defesa de Lula já pediu a extensão da decisão para os outros dois casos contra o petista em que o ex-juiz da Lava Jato atuou, o do sitio de Atibaia e do terreno do Instituto Lula.


William Waack: Mentalidade do cercadinho

Mesmo as ameaças do presidente estão perdendo credibilidade

Por ser o STF uma instância política, preocupada com política, e tomando decisões políticas, não é surpresa que esteja dando aulas de política para Jair Bolsonaro, aquele que assumiu recusando-se a fazer política. O próprio Bolsonaro acha que não, que está fazendo política, atividade que ele confunde com esbravejar declarações desconexas para grupelhos de apoiadores, proferir bobagens em lives e postar falsidades em redes sociais, além de vociferar ao telefone com senadores.

Algumas decisões do STF são para lá de exóticas (para se usar linguagem diplomática) e geram enorme insegurança jurídica, mas o ponto principal é que o conjunto da Suprema Corte tem um entendimento mais apurado do que Bolsonaro do que é o jogo institucional, o papel dos seus atores, seus limites políticos e legais. É esse jogo que o voluntarioso Jair disse que ia liquidar no gogó. Não conseguiu, e está perdendo de lavada do STF, mas não só.

Alguns feitos políticos de Bolsonaro são notáveis – pela ironia dos fatos. Ao seguir adiante com um Orçamento inexequível, mas que negociara com o Congresso, pois precisa gastar para se reeleger, acabou permitindo que os profissionais do Centrão carimbassem na testa do ministro que já foi estrela, Paulo Guedes, a expressão “fura-teto”. Outra ex-estrela, Sérgio Moro, o paladino da luta anticorrupção, Bolsonaro já tinha empurrado para uma espécie de vala comum de malfeitores (sob aplausos de ministros do STF, no único elogio que destinam a Bolsonaro).

Há dúvidas se Bolsonaro se deu conta do “golpe” que o Centrão lhe aplicou na esteira dessa ainda não resolvida confusão do Orçamento. O Centrão se recusou a votar uma PEC que, para acomodar interesses, declararia algumas despesas como fora dos limites hoje vigentes. O Centrão declarou que não aprova medidas “fura-teto”. Mas o motivo principal para a recusa é outro, e se constitui em mais uma aula de política: o Centrão não quer abrir mão de suas prerrogativas de determinar alocação de recursos via Orçamento, um clássico instrumento de poder que o presidente cedeu.

A dor de cabeça de uma CPI no Senado é real, porém pequena se comparada à dor de cabeça de uma economia que teima em não deslanchar. O problema para o governo é que não adianta dizer, como Guedes insiste, que o “Brasil estava decolando” e a economia “se recuperava em V” quando ocorreu uma segunda onda do vírus. Os fatos na cabeça das pessoas são preços em subida, inflação voltando, desemprego persistente, e economia andando devagar.

Nem todos os acontecimentos da economia são negativos para os planos do governo e o País, conforme atesta o sucesso dos leilões de concessão de portos, ferrovias e aeroportos. Porém, a inequívoca aposta de investidores na obtenção de bons retornos via concessões é coisa de longo prazo, e as questões emergenciais de pandemia e economia são no curtíssimo – as consequências políticas idem. A confiança de varejo, indústria e setor financeiro está sendo demolida pelo cenário político de instabilidade e imprevisibilidade.

Dedicado dia e noite a acelerar e piorar o que sozinha já seria uma tempestade perfeita, Jair Bolsonaro está perdendo a credibilidade até quando faz ameaças do tipo “aguardo sinal do povo para tomar providências”. O PT foi apeado do poder quando achava que era dono das ruas, mas não era. Vivendo na bolha peculiar de sites, portais e redes sociais amigas, Bolsonaro confunde esse tipo de espuma em meios digitais com “povo”. 

A expressão “mentalidade do bunker” se consagrou para descrever o governante que perde a noção da realidade, pois vive distante dela. No caso de Bolsonaro, deveria ser trocada por “mentalidade do cercadinho”. Fica do mesmo jeito em um outro universo, paralelo.


Merval Pereira: O pleno se pronuncia

O resultado de 9 a 2 no julgamento de ontem, confirmando que o plenário do Supremo Tribunal Federal pode julgar a decisão do ministro Edson Fachin de enviar à Justiça do Distrito Federal os processos contra o ex-presidente Lula não relativos à Petrobras, não reflete necessariamente a posição da maioria quanto à suspeição do ex-ministro Sergio Moro, decidida pela Segunda Turma. Embora possa indicar que a mudança de foro de Curitiba para o Distrito Federal será aprovada.

A figura política do ex-presidente Lula pairou sobre os votos de ontem, embora muitas vezes não tenha sido citado. O ministro Ricardo Lewandowski, que mencionou o ex-presidente diversas vezes em seu voto e em suas intervenções, chegou a afirmar que o tema só estava sendo discutido no plenário porque se tratava de Lula. Foi rebatido pelo presidente Luiz Fux, que lembrou que é inegável que o julgamento é importante porque diz respeito à Operação Lava-Jato e ao combate à corrupção no país.

Lewandowski foi o que mais politizou o tema, chegando a dizer que julgamentos do Supremo levaram a que Lula não pudesse concorrer à disputa em 2018, o que, segundo ele, poderia ter mudado para melhor o futuro do país.

O resultado de ontem foi uma derrota dos advogados da defesa do ex-presidente Lula, que queriam que o recurso da Procuradoria-Geral da República fosse tratado na mesma Segunda Turma. No plenário, a possibilidade de derrota é maior, embora possa não se confirmar.

A mudança de foro dos processos de Lula, de Curitiba para o Distrito Federal, decretada pelo ministro Edson Fachin, deve ser mantida pela vasta maioria do plenário, mas suas consequências em relação ao ex-juiz Moro ainda dependem do tamanho da divisão do plenário.

Os três ministros que votaram pela suspeição de Moro na Segunda Turma — Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Lewandowski — já reafirmaram seus votos no julgamento de ontem, em comentários paralelos. A discussão de hoje será em torno de um paradoxo jurídico: um juiz pode ser considerado incompetente para julgar um caso e, ao mesmo tempo, suspeito?

A decisão da maioria de admitir julgar o caso no plenário pode significar que, aprovando a tese de Fachin, o julgamento da isenção de Moro fica prejudicado. No entanto, para explicitar que seu voto não significa a análise do mérito, a ministra Cármen Lúcia reiterou que o plenário do Supremo não é órgão revisor da decisão das turmas e, portanto, não tem poderes para alterá-la.

Essa tese parece ter boa aceitação, sem que seja possível, no entanto, definir qual será a decisão final. Relator da Lava-Jato no Supremo, Fachin considera que o julgamento da suspeição perdeu sentido com a mudança de foro, e tem adeptos dessa tese.

O que estará sendo julgado, subjacente à suspeição, é o destino dos processos da Operação Lava-Jato. Caso Moro seja considerado suspeito no caso do triplex do Guarujá, todas as operações e investigações já ocorridas durante a tramitação desse processo em Curitiba serão anuladas, e ele terá que ser iniciado da estaca zero, o que poderá garantir sua prescrição.

A derrubada da suspeição manterá a elegibilidade do ex-presidente Lula, mas dará ensejo a que os novos juízes utilizem, em parte ou no todo, o material colhido pela força-tarefa de Curitiba em todos os processos, o que, em tese, faria com que Lula ficasse com uma espada de Dâmocles sobre sua candidatura à Presidência da República.

O ministro Marco Aurélio, ontem um dos dois votos contrários a que o plenário examinasse o recurso da Procuradoria-Geral da República, ironizou o fato de o ex-juiz Moro ter passado de herói nacional a bandido, indicando talvez que vote contra a decisão de suspeição tomada na Segunda Turma. Mas a tese de Cármen de que a decisão da Turma não pode ser revista tem seu peso. A grande questão é que a suspeição de um processo pode levar a que outros julgados por Moro venham a ser considerados nulos também pela Turma, o que prejudicaria toda a operação Lava-Jato e proporcionaria a revisão de todos os julgamentos do ex-juiz Moro.


Malu Gaspar: Povo, Bolsonaro? Que povo?

‘O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu tenho que tomar providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização. Porque a fome, a miséria, o desemprego estão aí, pô. Só não vê quem não quer’, afirmou o presidente Jair Bolsonaro, na manhã da quarta-feira, à sua claque de plantão na porta do Palácio da Alvorada. “Esse pessoal, amigos do Supremo Tribunal Federal… Daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui”, continuou. “Parece que é um barril de pólvora que está aí. E tem gente de paletó e gravata que não quer enxergar.”

Tudo o que Bolsonaro disse ali, ele já falou com outras palavras, em outras ocasiões. O golpismo continua, mas há algo diferente. O tom beligerante de um ano atrás deu lugar à desorientação e ao cansaço, e até o apelo ao povo sai sem muita convicção.

Embora o discurso para as redes bolsonaristas ainda seja triunfante e desafiador, o presidente no fundo sabe que não há nada de tão explosivo para acontecer, afora a tragédia sanitária da Covid-19, que já fez mais de 360 mil vítimas fatais. O capitão percebe, também, que seu “povo” não lhe dará nenhuma mostra de apoio mais enfática do que as já prestadas em manifestações de rua e buzinaços.

Não que elas tenham sido desprezíveis. O “mito” não deixou de ter seu público cativo. Até agora, porém, esse contingente não foi capaz de evitar a crise em que Bolsonaro se afundou.

O que o presidente da República mais precisa agora é de uma solução para o impasse em torno do Orçamento para 2021, que veio do Congresso com previsão de gastos acima do teto legal permitido, a maior parte com emendas parlamentares. Se não cortar despesas, Bolsonaro corre o risco de ser processado por crime de responsabilidade e de sofrer impeachment. Mas, se cortá-las, entra em colisão com o Congresso, que acaba de abrir uma CPI para apurar responsabilidades pelos erros na condução do governo na pandemia.

Na guerra feroz dos bastidores, líderes do Parlamento e ministros palacianos não aceitam cortes além de certo limite, considerado o mínimo necessário para deputados e senadores gastarem no “Orçamento da reeleição”. A equipe econômica defende os cortes, mas tem em Paulo Guedes um chefe politicamente cambaleante, que sofre ataques e humilhações de todos os lados, mas justifica o apego ao cargo com variações do “ruim comigo, pior sem mim”.

Embora já tenha enfrentado outras crises, Guedes nunca pareceu tão vulnerável. E não só aos olhos dos colegas de Esplanada, mas também aos dos operadores do mercado, que já especulam quem pode vir a substituí-lo. Isso diz muito não só sobre o ministro, mas também sobre o próprio presidente. Se Bolsonaro manteve o “posto Ipiranga” até hoje, foi por acreditar que abrir mão dele seria admitir uma derrota política de que talvez não pudesse se recuperar. Ele sabe que o Centrão está à espreita, esperando a vaga abrir para ocupá-la.

Nesse contexto, a fala de Fernando Collor de Mello contra a CPI da Covid, na sessão do Senado que a instalou, na última terça-feira, ganha contornos especialmente simbólicos. “Temos que ter consciência do momento que vivemos. Falo isso como alguém que já passou e viveu episódios dramáticos da vida nacional”, disse o ex-presidente, afastado depois que uma CPI desnudou as relações espúrias de seu operador, PC Farias, com a elite empresarial da época.

Há muitas diferenças entre a situação de Bolsonaro e a de Collor pré-impeachment, até porque, em 1992, a ameaça à sobrevivência dos brasileiros era “só” a inflação alta. Escândalos de corrupção abalavam o país, mas não havia centenas de milhares de mortes assombrando o Planalto. 

Mas há também semelhanças. A primeira é um governo em frangalhos, com os ministros que realmente importam se unindo em torno do presidente por poder e dinheiro. A segunda é uma CPI com maioria de membros da oposição, prestes a dar o bote.

Por fim, há um presidente acuado, que convoca o povo para ir às ruas apoiá-lo usando verde e amarelo. “Vamos mostrar a essa minoria que intranquiliza diariamente o país que já é hora de dar um basta a tudo isso”, disse Collor em agosto de 1992. “A sociedade quer tranquilidade para poder trabalhar.” Em resposta, o povo foi às ruas de preto, e Collor saiu do Planalto pelos fundos semanas depois.

Não há, por ora, sinais de que o destino de Bolsonaro será o mesmo. Mas já está claro que esse povo de quem o presidente espera sinais pouco pode fazer para salvá-lo. A esta altura, o único “povo” que pode tirar o presidente do corner é justamente essa gente que está de paletó e gravata, cercando seu gabinete em Brasília. Resta saber se ela o fará.


Adriana Fernandes: Briga de galos

Bolsonaro, Guedes e Congresso brigam pelo Orçamento, enquanto Brasil padece com a covid

Encontraram a solução para o Orçamento? Essa é a pergunta que mais fazem em Brasília nos dias de hoje, esquecendo que os principais problemas a serem solucionados para o enfrentamento do combate da pandemia (ampliados todos os dias) continuam à espera de resposta.

Governo, equipe econômica e o Congresso se meteram numa guerra de versões e pareceres jurídicos para sustentar, cada um, a sua verdade dos fatos, e não se tem a mínima noção de como vai terminar essa briga de galos em torno da sanção da lei orçamentária.

Mais uma semana de agonia até o prazo final para o presidente Bolsonaro sancionar o Orçamento aprovado em março, já com três meses de atraso.

Nem parece que o País padece com a pandemia e que as mortes continuam em patamar inaceitável, enquanto o governo e o Congresso arrumam confusão na base do quem pode e manda mais na República - provando mais do que nunca que é de bananas.

Estão todos perdidos em discussões eternas de regras fiscais (pode isso, não pode aquilo), desconfianças mútuas, medos de traição mais à frente e ameaças de retaliação nas votações num ambiente conturbado pela CPI da Covid.

Alô!!! Tem uma pandemia aí. As falas em defesa de vacinas e súplicas de parlamentares não adiantam mais a essa altura do caos.

A nova medida que saiu da cartola do governo foi uma PEC para delimitar o alcance dos gastos para a renovação dos programas de emprego, o BEm, o Pronampe (crédito para micro e pequenas empresas) e gastos para o Ministério da Saúde.

Essa PEC não deveria nem estar na mesa de negociação agora. O governo conseguiu aprovar em março uma PEC justamente para permitir que os gastos da calamidade fossem feitos com segurança jurídica. Por que não se resolveu ali todo o enrosco jurídico para as despesas extras da covid-19

Naquele momento, já se sabia que seria preciso mais dinheiro para a covid-19. Quando a PEC emergencial foi aprovada, o BEm já estava desenhado, como também já havia um acordo com o Congresso para renovar o Pronampe, programa que tem custo para o Tesouro que precisa repassar recursos para um fundo como garantia para os casos de calote dos empréstimos.

Empresários que seguram as demissões já avisaram que vão demitir. E os R$ 44 bilhões aprovados para o auxílio emergencial também não serão suficientes porque ele não comporta nem mesmo aqueles vulneráveis que são elegíveis ao benefício. Até as portas dos ministérios da Esplanada sabem disso.

Pipocam denúncias de que o governo está cortando os beneficiários do auxílio sem explicação. Portanto, esse corte não é sustentável por muito tempo, porque as pessoas vão provar que têm direito ao auxílio. Não dá para fazer vista grossa ao problema. Ele vai estourar.

Mas o temor de o gasto explodir e a tentativa de fazer um “combo” para resolver o impasse do Orçamento via essa PEC levou o Ministério da Economia a preferir não acionar o botão da calamidade. Faltou confiança do time econômico no próprio governo e no Congresso.

Em vez de descomplicar, mais regras aparecem para complicar. A versão da nova PEC, antecipada pelo Estadão, deixava fora do teto de gastos (sempre ele) os programas da covid-19, além de um “jabuti” de mais R$ 18 bilhões para acomodar uma parte das emendas parlamentares do Orçamento.

Foi mal recebida e, aí, mais versões de quem era o culpado pelo jabuti ou “variante que escapou do laboratório”, na fala do ministro Guedes a interlocutores, virou o tema central da discussão nos últimos três dias em Brasília.

Apelidada de fura-teto, a PEC com esse jabuti acabou alimentando outro erro. O dinheiro para os programas da covid-19 não pode ser considerado um fura-teto.

Para chegar ao acordo, alguém precisa ceder. O presidente da CâmaraArthur Lira, dá sinais que não pretende recuar e mandou a consultoria da Câmara preparar um segundo parecer mostrando que é possível sancionar o Orçamento sem vetos. Ele foi eleito como aquele que cumpre acordos. E precisa das emendas.

No lado oposto do Congresso, o presidente do SenadoRodrigo Pacheco, está ouvindo lideranças e dá sinais de que pode aceitar o veto parcial. É preciso restaurar um mínimo de confiança entre as partes para sair dessa encrenca que não ajuda em nada nessa hora tão difícil para o País.


Correio Braziliense: 'Bolsonaro gosta de errar,' afirma Doria em entrevista exclusiva

Atacado duas vezes em poucos dias, político paulista rebate pedindo que o presidente da República governe mais e faça menos confusão

Israel Medeiro, Correio Braziliense

Em menos de uma semana, Jair Bolsonaro voltou a colocar João Doria no alto da prateleira dos seus desafetos políticos. No jantar com empresários, na capital paulista, na quarta-feira passada, o presidente não poupou xingamentos ao governador de São Paulo e, ontem, ao visitar uma família de refugiados venezuelanos em São Sebastião, no Distrito Federal, voltou à carga, chamando-o de “patife”. Nas duas oportunidades, Doria rebateu com bom humor e preferiu não inflar a polêmica. Nesta entrevista ao Correio, o ocupante do Palácio dos Bandeirantes classifica o chefe do Palácio do Planalto como alguém que dá importância a questões desimportantes, num momento em que o país vive a pior crise sanitária em mais de 100 anos. Explica, ainda, que o programa de ajuda aos necessitados em São Paulo tem diferenças importantes em relação ao auxílio emergencial do governo federal. E garante que o Instituto Butantan cumprirá o cronograma de entrega de vacinas fechado com o Ministério da Saúde.

O presidente Jair Bolsonaro dá sinais de que, em uma eventual CPI da covid-19 no Senado, vai tentar culpar os governadores pela situação a que o país chegou nesta pandemia. O senhor teme alguma coisa? O que diria ao presidente diante dessas ameaças?
Faça mais gestão e menos confusão. O presidente Bolsonaro gosta de errar e gosta de fazê-lo permanentemente. Em vez de se concentrar em buscar soluções para a crise da saúde, a pior pandemia que se abateu sobre o Brasil nos últimos 100 anos, e a crise da economia, do meio ambiente, da educação, da pobreza, ele prefere mergulhar e criar a crise política, eleitoral e ideológica. É uma subversão de valores e de tempo. Ele se aplica ao que não é importante e despreza o que é substantivo.

O presidente participou de um jantar, na semana passada, organizada pelo empresário Washington Cinel, que é próximo do senhor. Como vê essa reaproximação de setores do empresariado com Bolsonaro?
O Washington Cinel tem todo direito, como empresário e cidadão, de fazer a opção que lhe abrace, que deseje fazer. Não condeno meus amigos pelas suas decisões políticas nem eleitorais. Não tenho amigos por razões eleitorais ou partidárias; os tenho por uma vida, uma existência, pelo convívio. Embora eu discorde dessa opção feita pelo Washington, não vou deixar de gostar dele, nem da mulher dele ou abrir mão do convívio que temos de mais de 20 anos de amizade. Agora, entendo como algo muito mais volúvel uma relação com o presidente e com o bolsonarismo do que algo com raízes, com profundidade. Mas respeito a opção não só do Cinel, como dos demais empresários. Eu diria que, daqueles que estavam no jantar, pelo menos 18 conheço muito bem. Não vou desrespeitá-los, sei que essa é uma situação momentânea. Meu sentimento é de relevar isso, não criar um distanciamento, nem transformar em inimigos quem tomou a decisão de aplaudir Jair Bolsonaro. Eu apenas lamento.

O presidente o insultou nesse jantar. Como o senhor recebeu as ofensas?
Eu fiz até um tuíte. Aquela é minha resposta. Eu fui insultado, mas eu dei uma resposta bem-humorada ao presidente. Falei: “Presidente, tenha calma, eu vou lhe dar as vacinas: vacina do Butantan contra a covid-19, que, aliás, sua mãe tomou aqui em São Paulo. E vou lhe dar também a vacina antirrábica, que o Butantan também produz”.

O programa Bolsa do Povo foi anunciado na mesma semana em que o governo federal retomou o auxílio emergencial. Foi provocação? Há alguma semelhança entre eles?
O Bolsa do Povo não foi feito, não foi inspirado nem tem nenhuma relação com o programa Auxílio Emergencial, do governo federal. Nós o construímos desde o ano passado. Estávamos buscando a integração de programas — ou seja, como fazer para integrar vários programas sociais do governo de São Paulo e agregar valor com contrapartida. Aliás, o maior desafio foi esse. São Paulo tem uma situação saudável, estável do ponto de vista fiscal, porque fomos o único estado do Brasil que fez reforma fiscal.

Que diferenças o programa de São Paulo traz para o do governo federal?
O difícil era encontrar um mecanismo de benefício que pudesse ter contrapartida. O que nós não queríamos, aqui, era fazer um programa que dá dinheiro sem contrapartida alguma, como é o caso do auxílio emergencial. O Bolsa do Povo envolve uma contrapartida: as pessoas vão receber até R$ 500 e têm que trabalhar, dar expediente de até quatro horas por dia para fazer jus a esse benefício.

Sobre os insumos para a produção de vacinas do Instituto Butantan, o senhor conversou com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, há poucos dias. A matéria-prima que atrasou, e impactou a produção, chega mesmo esta semana?
Primeiramente, não houve interrupção, houve conclusão. Pode parecer semântica, mas não é. Uma coisa é você concluir a produção, outra coisa é interrompê-la. O Butantan concluiu a produção com os insumos que já tinha recebido. Agora, receberá, no próximo dia 19, mais. Continuamos a produzir e a entregar mais vacinas para o PNI, o Programa Nacional de Imunização. Ainda depois do dia 12 teremos uma nova entrega de vacinas e, até o final deste mês, vamos entregar 46 milhões de doses, exatamente o que estava previsto. E depois, mais 54 milhões até 30 de agosto. Era para ser até 30 de setembro, mas estamos fazendo um esforço enorme para entregar até dia 30 de agosto.

Qual o motivo do atraso no carregamento?
Houve alguma circunstância relativa à orientação e à agilidade para liberação da exportação dos insumos, mas o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, foi muito atencioso e diligente. Ele me disse que, naquele mesmo dia, falaria com a Chancelaria. Dito e feito. Ele falou, o assunto foi resolvido e o embarque foi programado, ou seja, solução encontrada e viabilizada. Até o presente momento, não há motivos para se preocupar com as entregas do Butantan. O que está previsto para 30 de abril, as 46 milhões de doses, o Butantan me confirma que serão entregues dentro do período combinado. E esperamos que os 6 mil litros de insumos que vão chegar, em dois lotes de 3 mil, cheguem nas datas programadas e sem percalços para que o Butantan possa, no prazo necessário, fazer a operacionalização e o envase — operações em que é preciso pelo menos 10 dias seguidos para fazê-la.


César Felício: Bolsonaro e os ungidos do Senhor

Presidente deve redobrar aposta conservadora

Na Assembleia de Deus - Ministério de Madureira no Parque Jandaia, em Guarulhos, só se admitiu a presença no culto do domingo a quem se apresentou de máscara e com álcool gel. Foi feito um rodízio para cumprir o protocolo de se garantir a lotação de apenas 25% da capacidade do templo. O frequentador é convidado por mensagem de aplicativo a comparecer. Quem vai em um culto, precisa aguardar uma semana para ser chamado de novo. Antes, havia fiéis que batiam ponto no templo todos os dias. A empolgação de cantos de louvor não existe mais, para evitar a emissão de partículas de aerosol.

É muito difícil convencer um religioso praticante que, mesmo com a adoção de todos estes cuidados, não há segurança sanitária para se promover a aglomeração em um evento fechado. Como de fato não há, por mais protocolos que se adotem.

A ilusão de que se pode driblar o vírus com cautelas, profilaxias e precauções, no entanto, é por demais persuasiva. E para os fiéis, há uma estrada aberta para se acolher como verdadeira a narrativa de que não passam de preconceito contra os religiosos os bloqueios à realização de cultos, referendada por governadores, prefeitos, ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo consenso do entendimento científico,

O julgamento dessa semana no Supremo Tribunal Federal, portanto, reforça a estratégia bolsonarista de que existe um movimento “cristofóbico”. Estratégia na qual, por motivos diversos, se incorporam o ministro Kassio Nunes Marques, o advogado-geral da União e o procurador geral da República.

O presidente se apoia no Centrão, nos militares e no mercado para governar, não raro colaborando para jogar estes grupos um contra o outro. Para ganhar eleição, entretanto, ele depende do fundamentalismo cristão. É um conceito que transcende o protestantismo: abarca também movimentos leigos conservadores da Igreja Católica e as correntes denominadas “carismáticas” do catolicismo.

Houve um tempo, o da hegemonia na Câmara dos Deputados de Eduardo Cunha, em que os interesses do fundamentalismo cristão iam para a linha de frente do Parlamento. O lobby fundamentalista teve mais sucesso, entretanto, em barrar a agenda dita progressista e identitária do que propriamente em impulsionar a pauta conservadora.

Com o advento de Bolsonaro, este lobby deixou de dar o tom no Congresso, ao menos por agora, e cresceu sua influência de modo excepcional no Executivo. Começa a ofensiva este ano sobre o Judiciário, da qual a polêmica sobre os templos abertos é o primeiro movimento.

Um dos mecanismos de fidelização é a ocupação de espaços estratégicos. O antropólogo Ronaldo Almeida, livre-docente da Unicamp e especialista no tema, está mapeando o aparelhamento da máquina pública pelo fundamentalismo cristão. O mapeamento é parte de uma pesquisa que em breve aparecerá com mais detalhes em publicações especializadas.

É enganoso tomar como exibição de força evangélica apenas o fato de terem hoje cinco ministros na Esplanada (Luiz Eduardo Ramos, Onyx Lorenzoni, Milton Ribeiro, Damares Alves e André Mendonça). Nem todos deste grupo estão onde estão por serem evangélicos.

Chama mais a atenção de Almeida a qualidade dos espaços ocupados. Por meio do MEC e do ministério de Damares, o fundamentalismo tem como tocar sua pauta de modo transversal. Na Funai, os evangélicos conquistaram a área que cuida de indígenas isolados, ponto nevrálgico para a expansão missionária na região Norte.

No próximo ano, o da eleição presidencial, ninguém segura Bolsonaro, acredita Almeida. Ele procurará avançar com a agenda conservadora com toda força que tiver, para sedimentar seu apoio no segmento que em 2018 entregou a ele dois de cada três votos.

“Ele não vai parar um instante sequer de tentar fidelizar este público”, aposta o antropólogo. Até porque existem rachaduras no apoio fundamentalista a Bolsonaro, já perceptíveis a olho nu.

“A pandemia traz um problema para Bolsonaro entre os evangélicos, porque há uma incidência maior de mortes exatamente nas áreas em que a concentração de fiéis é maior. Quando Bolsonaro muda de tom em relação às vacinas, também está de olho nisso”, comenta o reverendo André Mello, da Igreja Presbiteriana da Aliança, em Florianópolis. Há lideranças evangélicas morrendo.

Bolsonaro chegou ao poder retratado por fiéis como um ungido do Senhor. E em um ungido do Senhor não se toca, e nem se cobra ao Altíssimo pelo fato de pessoas por vezes tão destituídas de mérito terem recebido o chamado para este papel. Ao ungido do Senhor se obedece. Só há um detalhe: o ungido do Senhor pode perder esta condição.

Mello afirma que em sua rede de contatos são frequentes as comparações de Bolsonaro com o rei Saul. É uma comparação simplesmente terrível no meio evangélico. Pelas mãos do profeta Samuel, Saul foi ungido para ser o primeiro rei do povo de Israel. Antes de receber a unção, Saul era apenas um pastor da menor tribo dos judeus que andava em busca de alguns jumentos perdidos. A autoridade de Saul foi aceita porque provinha de Deus, mas o monarca pecou contra o Senhor. Soberbo, ele envolveu Israel em guerras inúteis contra vizinhos poderosos e passou por cima da autoridade dos profetas, sem demonstrar arrependimento. Perdeu a condição de ungido, que foi transferida para Davi. Israel passou a estar sob juízo do Senhor. Nada poderia dar certo para o povo escolhido nas mãos do rei errado.

A metáfora indica que nada, nem mesmo o apoio evangélico, é monolítico ou incondicional. Cultivar essa base precisa ser um esforço permanente do presidente.

Doria

Por motivos que ainda não estão claros, o governador paulista João Doria não colhe dividendos em sua imagem depois do inegável sucesso de sua administração em produzir uma vacina que tem se mostrado eficaz, até o momento, contra a pandemia. A pesquisa Ipespe divulgada pelo Valor, se confirmada por futuros levantamentos, debilita dramaticamente sua articulação para concorrer à Presidência.


Maria Cristina Fernandes: Rejeição empresarial a presidente se mantém ascendente

Propaganda de apoio do PIB nacional com jantar em São Paulo foi tiro que saiu pela culatra

Se o jantar oferecido pelo dono da empresa de segurança Gocil, Washington Cinel, ao presidente da República tinha por objetivo propagandear o apoio desfrutado por Jair Bolsonaro no meio empresarial, o tiro saiu pela culatra. Grupos de WhatsApp de grandes empresários e investidores amanheceram indignados com a percepção vigente sobre o encontro. A avaliação é de que o Palácio do Planalto foi bem sucedido em passar a percepção, que asseguram equivocada, de que Bolsonaro tem apoio na elite econômica do país. A reunião, dizem, limitou-se a um punhado de empresários e banqueiros que responde a um dos critérios ou a ambos: são do núcleo duro raiz do bolsonarismo e estão sempre a assediar o presidente de plantão. A casa que sediou o jantar é um reflexo simbólico desta percepção. Vizinha do ex-deputado Paulo Maluf, nos Jardins, em São Paulo, a casa um dia pertenceu a um dos grandes industriais do país, José Ermírio de Moraes, e hoje é do empresário da segurança privada, ramo que cresceu junto com violência decorrente da falta de rumos do país.

A posição do grande empresariado e da grande finança estaria bem mais refletida, na visão deste interlocutor, em iniciativas como a Coalizão Brasil e a Concertação pela Amazônia, motivadas pelos equívocos da política ambiental brasileira, ou mesmo o apoio ao manifesto dos economistas por saídas para a pandemia. Essas mobilizações reúnem CEOs de grupos como Itaú, Klabin, Gerdau, Amaggi, Natura, Ambev, Gávea e Marfrig. Jantares do gênero são comuns em momentos de descrença sobre o apoio empresarial a um presidente em crise, mas a baixa representatividade do encontro de quarta-feira saltou aos olhos. A política dos “campeões nacionais” e a fartura do BNDES poupou a ex-presidente Dilma Rousseff de quóruns tão pouco representativos, o que não a impediu de cair.

A tentativa do presidente da República de ressuscitar o antipetismo para fisgar de volta o apoio empresarial perdido, diz este interlocutor, tampouco surtirá efeito. Entre aqueles que, de fato, ditam os rumos da economia nacional, este discurso não adiciona um único voto para o presidente da República em 2022. Uma parte deles reconhece que se o PT estivesse no poder o país não teria afundado tanto e a grande maioria recebe esse discurso do presidente da República como um estímulo redobrado para a busca por uma terceira via. A presença do ministro Paulo Guedes tampouco sensibilizou os empresários que ficaram de fora do jantar. Se o ministro da Economia já não empresta prestígio ao presidente da República, a recíproca também é verdadeira. Guedes hoje é visto como ministro de um país imaginário onde todos gostariam de viver, mas que, infelizmente, ninguém acredita existir senão em seus devaneios.

Apesar do incômodo gerado pelo jantar, cuja divulgação teve o empenho pessoal de ministros palacianos, não haverá mobilizações adicionais para mostrar o azedume com este governo. E o principal motivo é a pandemia. Os CEOs críticos ao bolsonarismo estão recolhidos em suas casas porque temem aquilo que o presidente despreza, a agressividade da covid-19. Cresce, porém, neste grupo, a percepção de que Bolsonaro, no limite, chegará a 2022.

O cerco da imprensa internacional a Bolsonaro reflete-se no comportamento dos parceiros internacionais desses empresários. Edições das duas principais publicações financeiras do mundo, “The Economist” e “Financial Times”, mostraram que o dano à imagem internacional do presidente é irreversível. A revista trouxe uma charge contestando que a resposta brasileira à pandemia seja conduzida por um cabeça-oca, mas sim por um “ignorante, teimoso e arrogante”. Já o jornal da City londrina trouxe uma reportagem sob o título “Bolsonaro mais isolado do que nunca” em que uma dirigente da Organização Pan-Americana de Saúde reportou preocupação com o espraiamento das variantes brasileiras por 15 vizinhos das Américas. É a percepção do Brasil como ameaça global que cresce no mundo e preocupa os grandes empresários brasileiros.

Não há, por outro lado, percepção sobre saídas fáceis à vista. Há empresários deste meio que se aproximaram do vice-presidente Hamilton Mourão por conta de sua atuação no Conselho Nacional da Amazônia mas não há qualquer mobilização real para apear o presidente da República do poder por conta da percepção de que o Congresso quer mantê-lo no cargo. O artigo do vice-presidente publicado na terça-feira, 6, no jornal “O Estado de S. Paulo” (“O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas”) foi lido como uma manifestação clara de que Mourão não endossou o comportamento de Bolsonaro na recente crise militar e que subscreve a atuação estritamente constitucional das Forças Armadas em defesa das instituições nacionais.

Um dos empresários descrentes do bolsonarismo diz ter sido procurado por ministro de origem militar em busca de sua percepção sobre a conjuntura. O constrangimento do ministro ante seu pessimismo lhe deixou a impressão de que os militares deste governo têm a consciência de que estão em nau à deriva. Ante reclamações de que o Supremo Tribunal Federal estica a corda com o presidente, este empresário responde que o limite da tensão, na verdade, foi alargado lá atrás pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas com o tuíte ameaçador sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o beija-mão promovido pelo mesmo general aos pré-candidatos à Presidência da República em 2018. Este empresário não mantém contato com o vice-presidente Hamilton Mourão. Tem a convicção de que, assim como o ex-ministro do TSE Herman Benjamin estava com a razão quando dizia que a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer deveria ter sido cassada por excesso de provas, é preferível dois impeachments em cinco anos a um crime de responsabilidade por dia.


Ricardo Noblat: Em um único dia, Bolsonaro é derrotado duas vezes no STF

Vem aí a CPI da Covid para acuar o governo

O fracasso do governo do presidente Jair Bolsonaro no combate à Covid-19 subiu à cabeça de Marcelo Queiroga, o quarto ministro da Saúde em menos de um ano.

Anthony Fauci, o mais respeitado imunologista americano e conselheiro do presidente Joe Biden, disse que o Brasil virou uma “ameaça mundial” porque a pandemia aqui só faz crescer.

Em visita a Porto Alegre, perguntado a respeito, Queiroz estufou o peito, imitou a arrogância do seu chefe, e respondeu assim:

– Ele [Fauci] deve cuidar dos Estados Unidos. Do Brasil, cuido eu.

Bolsonaro amou a resposta de Queiroga logo no dia em que o vírus matou no país mais 4.190 pessoas. Foi o segundo dia com mais mortes desde o começo da pandemia.

A quarta-feira havia sido um dia ameno para Bolsonaro. Ele fez o que mais gosta: viajar, falar o que lhe vem à cabeça sem ser contestado, e arrancar aplausos dos seus devotos.

Esteve em Chapecó, em Santa Catarina, em Iguaçu, no Paraná, e em São Paulo onde jantou com empresários amigos escolhidos a dedo e que acabaram por ovacioná-lo.

A quinta-feira foi um dia pesado para Bolsonaro. Não pela morte de tanta gente, mas porque ele colheu duas derrotas importantes no Supremo Tribunal Federal.

A primeira: por 9 votos contra 2, o Supremo decidiu que governadores e prefeitos podem fechar templos e igrejas enquanto durar a pandemia. Bolsonaro queria o contrário.

A segunda derrota: o ministro Luís Roberto Barroso mandou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), instale de imediato a CPI da Covid.

Cumpridas as exigências da Constituição (número mínimo de apoiadores, definição do fato a ser investigado e prazo de funcionamento), a CPI é direito da minoria parlamentar.

Todos os requisitos foram cumpridos desde janeiro último, mas Pacheco, eleito presidente do Senado com o apoio de Bolsonaro, recusou-se a instalar a CPI para não criar embaraços ao governo.

Ontem mesmo, antes de Barroso anunciar sua decisão, Pacheco afirmou:

– Considero que a CPI da pandemia neste momento vai ser um ponto fora da curva. Além disso, pode ser o coroamento do insucesso nacional do enfrentamento da pandemia.

No seu despacho, Barroso ensinou a respeito de CPIs:

– Trata-se de garantia que decorre da cláusula do Estado Democrático de Direito e que viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática.

Simples assim. O que levou Pacheco a retrucar que, a seu juízo, e por razões de conveniência, a CPI não deveria sair da gaveta, mas que decisão da justiça é para ser cumprida, e ele a cumprirá.

Ora, era o que faltava. Não cumprir? Agora, resta ao governo escalar a maior e a mais confiável bancada de senadores aliados seus para se defender na CPI e atrapalhar seu funcionamento.

Custará caro. Ninguém trabalha de graça para governo numa CPI. Só o faz em troca de muito dinheiro, de cargos e de outros favores inconfessáveis. Sempre foi assim e sempre será.

Bancada de Bolsonaro no STF aumenta com adesão de Toffoli

A partir de julho serão três ministros

Era certo que a bancada de ministros bolsonaristas no Supremo Tribunal Federal se resumiria a dois ministros até o fim de 2022 – Nunes Marques, que já está por lá ocupando a vaga aberta com a saída de Celso de Mello, e outro a ser indicado pelo presidente a partir de julho próximo e que sucederá a Marco Aurélio Mello.

Mas, não. Descobriu-se, ontem, que Bolsonaro contará com três – um deles, José Antônio Dias Toffoli, que surpreendeu seus colegas ao votar junto com Nunes Marques pela abertura de templos e igrejas durante a pandemia da Covid. Toffoli não justificou seu voto. Limitou-se a dizer que acompanharia Nunes Marques.

Toffoli sabia que seria derrotado. O placar final foi de 9 a 2. Não se incomodou com isso. Está com Bolsonaro para o que der e vier. Encantou-se por ele antes mesmo de Bolsonaro ser candidato a presidente. À época em que foi assessor parlamentar do PT na Câmara, entre 1995 e 2000, os dois conversavam muito.

Foi Lula que fez de Toffoli ministro do Supremo em 2009. Toffoli havia passado no teste de fidelidade ao PT como consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT), advogado de três campanhas presidenciais de Lula, subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil e Advogado-Geral da União.

Sua recente passagem pela presidência do Supremo coincidiu com os dois primeiros anos de Bolsonaro presidente. Renasceu e se fortaleceu a amizade entre os dois. Toffoli virou uma espécie de assessor informal de Bolsonaro dando-lhe conselhos e, sempre que pôde, facilitou a vida dele dentro do tribunal.

Orgulha-se Toffoli de ter evitado em 2020 uma crise institucional que quase deflagrou um golpe militar. Ele ajudou a salvar o Brasil e a evitar a queda de Bolsonaro. A indicação de Nunes Marques para ministro passou por seu crivo. Foi quando Bolsonaro o visitou em casa, sendo recebido com um caloroso abraço.


Murillo de Aragão: O preço das decisões erradas

O governo federal foi lento e confuso nas respostas à pandemia

A essa altura dos acontecimentos, devemos ponderar sobre os erros que nos levaram a mais de 340 000 mortos pela Covid-19. Sem alarde nem radicalismos. A coleção de erros é enorme. Começa com erros estratégicos, por parte de todos os atores públicos e privados, e chega a erros táticos. Nesse rol se inclui a sociedade, que teima em não se conscientizar dos riscos. O ponto inicial reside no fato de que o mundo inteligente já sabia da gravidade do problema em janeiro de 2020. O mundo político brasileiro, porém, só reconheceu a gravidade do tema em março.

O segundo erro estratégico foi cometido pelo governo federal, ao não coordenar uma ação conjunta com governadores, prefeitos, Judiciário e Legislativo. Prevaleceram o conflito, as egotrips e, sobretudo, a descrença de que o problema era muito sério.

O terceiro erro estratégico foi não optar pela compra das várias vacinas que estavam em desenvolvimento. O governo federal apostou apenas na AstraZeneca, cujo processo de produção é insuficiente para nossos desafios. Fica a questão: por que a Fiocruz, berço do partido sanitarista, não propôs uma compra abrangente de vacinas de várias procedências até que o Brasil dominasse a produção?

“A compra maciça de vacinas é a melhor política para a retomada da economia”

Obviamente, terminamos dependendo da rejeitada CoronaVac, do Instituto Butantan, e da escassa, até agora, vacina da AstraZeneca. Se hoje, em pleno abril de 2021, ainda estamos decidindo se compramos ou não a vacina russa, imaginem se o governo de São Paulo não tivesse tomado a decisão de negociar e produzir vacina no ano passado? E as mortes prosseguem.

No campo da narrativa, o governo federal se mostrou confuso. Lento nas respostas e descrente das consequências da “gripezinha”. Não houve palavras de liderança. Os sucessivos comandos do Ministério da Saúde foram, cada um a seu tempo, espetaculosos, erráticos e com um processo deliberativo lento. Deveriam ter imposto uma ação abrangente de pré-compra de vacinas e, em coordenação com a Anvisa, uma liberação expedita das doses. Em janeiro, a Anvisa fez um espetáculo midiático para autorizar o uso emergencial de vacinas. Àquela altura, o Brasil já deveria estar vacinando, e não fazendo midiatismo em torno da obrigação de fazer de forma correta o que estava fazendo errado.

Governadores e prefeitos demoraram a reagir quanto à imposição do distanciamento social. O exemplo trágico do Amazonas resultou no caos da saúde pública no estado. Também desmontaram hospitais de campanha país afora sem um horizonte claro do fim da pandemia e não se preparam para o pior, quando o pior já se apresentava, no fim do ano passado. Politicamente, Bolsonaro cometeu um grave erro ao não assumir a liderança no combate à pandemia. O Brasil deseja um líder que Bolsonaro ainda não quer ser.

Se tivesse comprado milhões de vacinas, o Brasil poderia ter vacinado o dobro ou o triplo do que vacinou até o início deste mês. Gastos com a compra em massa de vacinas seriam uma pequena parcela do que será despendido com o auxílio emergencial. A aquisição maciça de vacinas é a melhor política para a retomada da economia. Estamos chegando tarde e a conta em vidas está aumentando.

Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733


Luiz Carlos Azedo: Duas derrotas num só dia

Bolsonaro anunciou um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama

O presidente Jair Bolsonaro sofreu duas derrotas ontem, ambas no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma foi a decisão acachapante do plenário da Corte em favor de governadores e prefeitos que determinarem o fechamento temporário de templos religiosos para combater a propagação da pandemia da covid-19, durante os períodos de rígido distanciamento social, cujo resultado foi 9 a 2. A outra, a liminar do ministro do STF Luís Roberto Barroso a favor do mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira (SE) e Jorge Kajuru (GO), do Cidadania, determinando a imediata instalação da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que vinha empurrando o assunto com a barriga há 65 dias.

CPIs são uma prerrogativa da oposição, desde que tenham número mínimo de subscrições para instalação, o que é o caso. O que muda com a instalação da CPI é que o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga e, principalmente, seu antecessor, o general Eduardo Pazuello, passarão a ter muitas dores de cabeça em razão de tudo o que ocorreu durante a pandemia até agora. Na lógica da oposição, a CPI é a banda de música dos pedidos de impeachment. O negacionismo de Bolsonaro tem um histórico de atitudes e medidas contra a política de isolamento social, mas também contra a compra e produção de vacinas, o uso de máscaras etc. É um prato cheio para a responsabilização criminal pelo elevado número de mortes que vem ocorrendo.

Rodrigo Pacheco segurou a instalação da CPI enquanto pôde, pressionado por Bolsonaro e pelo Centrão, mas contrariou os seto- res da oposição, inclusive os que o apoiaram. Com seu estilo conciliador e habilidoso, manobrou demais e acabou provocando mais uma intervenção do Supremo no Congresso. Agora, a oposição tem prerrogativas constitucionais e regimentais para fazer uma devassa no Ministério da Saúde. Como a base do governo é majoritária no Senado, o Palácio do Planalto tentará controlar a CPI, voltando-a contra governadores e prefeitos, mas isso fará com que o cacife dos partidos de Centrão aumentem nas negociações com o presidente da República.

Vacinas
Em sua live semanal, ontem, Bolsonaro voltou a criticar o isolamento social e defendeu “outras medidas” para combater a pandemia do novo coronavírus. Aproveitou para anunciar um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama. “É uma possibilidade. Um outro possível remédio que estará à disposição de todo o Brasil. Esperamos que dê certo”, disse. Também defendeu o exercício físico, que segundo ele, aumenta em oito vezes a velocidade de recuperação da doença.

Enquanto Bolsonaro flerta com o curandeirismo, a covid- 19 continua avançando no Brasil. Registrou 4.249 óbitos e 86.652 novos casos nas últimas 24 horas, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 345.025, e o total de casos aumentou para 13.279.857. Na quarta-feira, foram registrados 3.829 óbitos e 92.625 novos casos. Ou seja, por falta de vacinas e isolamento social adequado, a escalada da pandemia continua.

Para complicar a situação, há 12 dias o Instituto Butantan não produz novas vacinas por falta de insumos. Ontem, reconheceu que a remessa de matéria-prima da CoronaVac está atrasada, mas anunciou que já foi liberada na China e deverá chegar a São Paulo até 20 de abril. O princípio ativo da vacina era para ter chegado ontem. De acordo com o Butantan, o lote de 3 mil litros de insumos é suficiente para a produção de 5 milhões de doses da vacina. Uma segunda remessa, com mais 3 mil litros, está prevista para chegar até o final do mês. O atraso não vai impactar as entregas previstas ao Ministério da Saúde: 46 milhões até o final de abril. O Butantan já disponibilizou 38,2 milhões de doses ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e ainda possui cerca de 3,2 milhões de vacinas no controle de qualidade, que devem ser liberadas até o dia 19 de abril.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-duas-derrotas-num-so-dia/

Alon Feuerwerker: Não é o que parece

Faça como numa reunião por Zoom: ponha a política no mudo

Apesar de tudo, o universo da política continua achando mais provável Jair Bolsonaro ficar no Planalto pelo menos até 2022. E tem outra. Depois de Luiz Inácio Lula da Silva voltar à elegibilidade, diminuiu naturalmente o número de quem vê o atual presidente na cadeira até 2026. Diminuiu, mas está longe de ter virado fumaça.

O ambiente anda chacoalhado. Esqueça, porém, os discursos: os principais atores só estão de olho mesmo é em 2022. Isso seria apenas o óbvio, não comparecessem dia sim outro também diante do público para dizer que estamos mergulhados numa tragédia (e estamos mesmo) e que isso exige medidas radicais imediatas.

De vez em quando, faça como numa dessas reuniões no Zoom, ou no Teams: ponha a política no mudo. Preste atenção no que os políticos fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis. Na forma, um libelo pela democracia. Na alma, apenas um posicionamento para a eleição. Contra Bolsonaro, Lula e possíveis aliados de cada um dos dois.

Se a prioridade fosse fazer um gesto antibolsonarista, Lula teria sido convidado. Mas suponhamos que as atribulações jurídicas dele constrangeram os autores. Então por que não chamaram o Guilherme Boulos? Ele é pré-candidato. Ou seja, se tirarmos o som, conclui-se que no manifesto a dita fé democrática apenas encobriu mais uma tentativa de alavancagem eleitoral “contra os extremos”.

Teria sido melhor dizer “olha, somos pré-candidatos, mas estamos dispostos a nos juntar em torno de um único nome”. Esta é, aliás, uma vantagem do atual ocupante do Planalto: as falas dele trazem o que pretendem dizer, não encobrem intenções e não exigem do povo grande esforço de interpretação.

“Preste atenção no que fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis”

Querem saber uma razão da estabilidade vivida pelo governo Bolsonaro, mesmo com a tragédia sanitária e suas consequências econômicas? Não há consenso entre os adversários de que qualquer coisa é preferível a ele na Presidência.

E o capitão vai tocando o barco, protegendo e mantendo organizadas suas fileiras, para resistir e preservar uma musculatura político-eleitoral que o coloque pelo menos no segundo turno em 2022.

Não que a vida de Bolsonaro esteja resolvida. Vamos ver o que sai da caixinha de surpresas do Supremo Tribunal Federal no dia 14, mas se Lula continuar candidatável espera-se a intensificação do bombardeio contra Bolsonaro vindo do “centro”, para tentar demoli-lo e oferecer-se ao eleitorado hoje bolsonarista como a única opção contra “a ameaça da volta do PT”.

Sobre isso, espera-se também um esforço monumental do establishment para convergir o “centro” para um único nome.

A política brasileira é cheia de sobressaltos, mas também tediosamente previsível.

Ah, e uma diferença definitiva entre a situação de agora e a das Diretas Já, citada no “manifesto dos seis”. Em 1984/85, os liberais que hoje seriam chamados de centristas aceitaram juntar-se à esquerda. Não consta que alguma vez Ulysses Guimarães, Franco Montoro ou mesmo Tancredo Neves tenham colocado a coisa como uma luta “contra os extremos”.

Era outro tempo. E outro tipo de político.

Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733