eleições 2022

Malu Gaspar: Anular processos não apaga a história

É dos anos 90 uma das mais bem-sucedidas operações-abafa de um escândalo de corrupção na história brasileira. Numa quinta-feira de 1993, agentes da Polícia Federal descobriram no banheiro da casa de um diretor da Odebrecht em Brasília pilhas de documentos incriminadores. Havia de tudo nas 18 caixas e centenas de disquetes levadas pelos policiais: relatórios sobre negociações subterrâneas, contabilidade de doações não declaradas para campanhas eleitorais, listas de obras com os nomes de políticos, acompanhados de porcentagens e valores, até pedidos de liberação de verbas com assinaturas de prefeitos e governadores, já prontos para ser apresentados pelas próprias empresas à Caixa Econômica Federal.

Vivia-se o auge da CPI do Orçamento. A papelada deu origem a um relatório bombástico, lido em plenário pelo senador José Paulo Bisol, do PSB do Rio Grande do Sul. Bisol, porém, cometeu um erro primário ao propagar que um documento com o organograma formal da empreiteira era, na verdade, um mapa de organização criminosa. 

Em sua reação, Emílio Odebrecht explorou o deslize ao máximo. Numa entrevista coletiva tão performática quanto a leitura de Bisol, acusou o senador de perseguição, ignorância e má-fé. O argumento colou na imprensa da época e mobilizou mais de 300 deputados e senadores para enterrar a CPI. Conseguiram. A única consequência prática do escândalo foi a popularização da expressão “trezentos picaretas”, cunhada pelo então oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva para designar os parlamentares.

Dezesseis anos e um mensalão depois, em 2009, os alvos da Polícia Federal foram executivos e dirigentes de outra empreiteira, a Camargo Corrêa. A operação, batizada Castelo de Areia, pilhou um esquema de pagamento de propinas e desvios de recursos de obras como a Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Segundo a investigação, o dinheiro desviado era remetido ao exterior por doleiros, usando empresas de fachada e contas offshore em paraísos fiscais. Mas a investigação acabou anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A corte considerou que as provas coletadas não eram válidas porque a apuração começara a partir de uma denúncia anônima.

Em 2014, o esquema voltou à tona. Descobriu-se, de novo, que as empreiteiras patrocinavam campanhas eleitorais e interesses particulares de políticos de todos os calibres e partidos com o dinheiro desviado de estatais como Petrobras, Eletrobras e Transpetro. Batizado petrolão, o escândalo deu impulso à Operação Lava-Jato.

Dessa vez, as investigações foram mais longe. Renderam 295 prisões, 140 delações premiadas, a devolução de R$ 4,3 bilhões aos cofres públicos e impulsionaram um processo de impeachment. Mas, como nos outros casos, o dia da desforra chegou. A revelação dos desvios indicados nas mensagens de celular trocadas por procuradores — e captadas ilegalmente por um hacker — criou um clima favorável à anulação de condenações e denúncias.

Sob o argumento de que o foro em que tramitavam não era o correto, foram anuladas as condenações dos ex-presidentes Lula e Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco. O mesmo argumento levou à suspensão de ações contra o atual presidente da Câmara, Arthur Lira. Questões processuais já tinham enviado para a gaveta o processo contra o senador José Serra.

Todas essas decisões, comemoradas efusivamente por uns, discretamente por outros, têm enorme serventia político-eleitoral, ajudam a construir narrativas. Mas, embora a morte dos processos por inanição seja bastante provável, ainda é cedo para dizer que a Justiça tenha decretado a inocência de quem quer que seja. Fernando Collor de Mello, afastado da Presidência da República em 1992, só foi declarado inocente pelo Supremo — por falta de provas —em 2014.

Por ora, tais desfechos só provam mesmo duas coisas. 

A primeira é que, no Brasil, quando o assunto é corrupção, a história se repete. Escândalos abalam a política, as investigações apontam culpados e, mais cedo ou mais tarde, os processos são sepultados por decisões judiciais que raramente entram no mérito das acusações. 

A segunda, e mais importante, é que a história não se anula, muito menos a canetadas. Por mais que se queira esquecê-la ou distorcê-la, de tempos em tempos ela volta a nos assombrar. Quando isso acontece, acumulam-se os prejuízos, aumenta a insegurança jurídica e se reforçam narrativas políticas cada vez mais simplistas e muitas vezes irresponsáveis.

A história cobra um preço alto quando se ignoram suas lições. Quem paga somos todos nós. E não só com dinheiro, mas com um pedaço do nosso futuro.


Merval Pereira: Cabeça de juiz

A novela do julgamento de Lula pode chegar a um fim hoje, se o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a Segunda Turma, que decidiu pela suspeição do então juiz Sergio Moro, poderia fazê-lo mesmo antes de ser definida a questão da competência da Vara de Curitiba nos julgamentos da Lava-Jato.

Mas, como em cabeça de juiz ninguém sabe o que se passa, a dizer que julgam com independência — a evolução da tecnologia médica não permite mais dizer que não se sabe o que tem em barriga de grávida nem em fralda de bebê —, existem algumas situações peculiares neste julgamento de hoje.

O decano do STF, ministro Marco Aurélio, não concordou com a afetação do processo ao plenário, mas, vencido pela “douta maioria” — nesse caso não tão douta assim, na sua opinião —, já votou a favor da manutenção dos processos em Curitiba, e pode votar outra vez, já que disse que a suspeição de Moro é bem mais importante. O ministro é sempre elogioso ao trabalho de Moro na Operação Lava-Jato e, com seu voto, pode ajudar a impedir que seja confirmada a suspeição dele.

O ministro Alexandre de Moraes disse na sessão anterior que não é possível afirmar que o julgamento pelo plenário significa desrespeito ao princípio do juiz natural: “A estrutura da Corte privilegia o plenário, e as turmas só foram criadas devido ao excesso de trabalho do tribunal”. Com essa posição, é provável que defenda que o plenário tem preferência às turmas. Mas não significa que concorde ou não com a suspeição de Moro.

A ministra Rosa Weber convocou para assessorá-la durante o julgamento do mensalão o juiz Sérgio Moro, que era famoso apenas no círculo jurídico como especialista em combate à corrupção, não a celebridade de hoje. Ela tem melhores condições que qualquer outro para julgar se Moro é um juiz suspeito.

O ministro Nunes Marques é contabilizado como um dos quatro votos certos a favor de que a Segunda Turma tinha condições de julgar a suspeição naquela sessão, pois votou na ocasião, embora contra, para surpresa do ministro Gilmar Mendes. Mas pode alegar que, hoje, com a decisão tomada pelo plenário sobre a incompetência da Vara de Curitiba, considera que aquela questão se sobrepõe à suspeição.

Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, o plenário não é órgão revisor das turmas. Mas, nesse caso, seria uma análise técnica, não uma revisão. *

Nesse caso, o resultado é imprevisível. Já temos três votos pela suspeição dados na Segunda Turma —Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — e um a favor de Moro, por Nunes Marques. Alguns ministros já se pronunciaram favoravelmente em várias oportunidades sobre a Operação Lava-Jato, como o presidente Luiz Fux e os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. Assim como fizeram, contra, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Na visão de Fux, a discussão envolvida no caso é relevante, pois pode afetar outros processos da Lava- Jato e “atingir um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção”. A sombra que paira sobre o julgamento, os diálogos entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sergio Moro divulgados depois de ter sido roubados por um hacker, sofreu um golpe com o laudo da Polícia Federal afirmando que não há possibilidade técnica de atestar sua veracidade ou origem. O laudo não apagou da mente dos ministros a impressão causada, mesmo que digam que não o usaram nas decisões, mas colocou concretamente a possibilidade de que tenham sido alterados.

A suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá criará uma situação esdrúxula: o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento a Lula em troca de benefícios recebidos durante seu governo, será também absolvido, assim como o ex-executivo Agenor Franklin Medeiros, ambos condenados no mesmo processo. O mesmo acontecerá nos demais processos contra Lula, caso o benefício seja estendido a eles pelo ministro Gilmar Mendes, novo relator da Lava-Jato na Segunda Turma do STF.


Marco Aurélio Nogueira: Descoordenação geral

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente.

Enquanto o presidente da República exibe seu peculiar estilo de criar caso e agredir, afundando seu governo no desgoverno, a crise segue corroendo as esperanças brasileiras, sem sinal de superação.

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente. A crise sanitária e a crise econômica são grandes, terríveis, têm pinta de que se estenderão. A crise da educação mistura-se com  elas, e vai ceifando a inteligência nacional a partir de baixo, dos mais jovens, o que sugere a criação de um legado arrasador, que se espalhará pelo tempo. Pode-se dizer o mesmo da crise do saneamento, cujos déficits são escandalosos.

Somente elas são suficientes para explicar por que o País não está dando certo. São crises que se enraízam no chão profundo da história nacional, como se tivessem a ser criadas intencionalmente por mãos humanas. Servindo de base para todas elas, a desigualdade social obscena, chaga exposta a céu aberto, da qual muito se fala mas que segue se reproduzindo.

Nesse tronco principal enroscam-se outras crises, que eventualmente são mais fáceis de serem contornadas. Por comodidade vou chamá-las de “média intensidade”: a crise da federação e a crise dos poderes de Estado. As tensões que estão a ser reprisadas dia após dia têm a ver com isso. Há defeitos de formatação sistêmica no presidencialismo federativo, mas o que mais chama atenção é a ausência de um centro gestor eficiente, com um governante central interessado em defender o País mediante a harmonização de poderes e entes federativos. Nos últimos dias, o Judiciário entrou em rota de colisão com o Senado. O Senado reagiu à altura e assimilou o problema, mas não mostrou saber como processá-lo. Confusão à vista. O Executivo fez questão de deixar suas digitais. Com aquele jeito Bolsonaro de ser, resolveu conspirar com um senador (o inacreditável Kajuru) para pressionar os senadores e o STF simultaneamente. Para além da demonstração de desrespeito à Constituição, à ética pública, à decência e às boas maneiras, a iniciativa presidencial se dedicou, na verdade, a soprar as brasas de uma fogueira que libera gases tóxicos sem cessar. Uma fogueira que lhe queima as penas e o isola, mas que também cria um alvoroço que a todos confunde. Serviu, ao meno

Chamo essas crises de “média intensidade” porque podem ser enfrentadas com os recursos da política prática: a inteligência, a responsabilidade, a seriedade, a disposição ao diálogo, o jogo democrático. Se continuam a latejar é porque tais recursos não estão sendo empregados. Ressentimo-nos da falta deles, da falta de elites políticas dotadas de capacidade de iniciativa e proposição. Talvez não haja uma cultura política (um ethos, um conjunto de valores e convicções) que dê sustentação a boas elites, talvez os partidos não estejam sendo a “escola de formação” de que se necessita, talvez a classe política seja covarde de mais e lúcida de menos. Pode ser tudo isso. O fato é que as instituições democráticas, que se supõe fortes e estáveis, não estão produzindo respostas que amenizem crises e dificuldades, que avancem pactos e soluções positivas. Donde a sensação crescente de descontrole, descoordenação, desgoverno.

O País está sem diretrizes, sem políticas. O meio ambiente é uma tragédia, o Itamaraty marchou para trás, não há política externa, a Cultura foi jogada na sarjeta, o desarranjo atinge todos os segmentos da gestão pública. Carecemos de muitas coisas.

Até onde um País assim conseguirá chegar é uma incógnita. Não há futuros predeterminados. Há muitos caminhos abertos na encruzilhada da História. O fato é que os motores estão engasgando e não se vislumbra no horizonte próximo quem poderá voltar a fazê-los funcionar.


Alon Feuerwerker: Cone Sul

O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).

Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).

Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Zeina Latif: O presidente não sabe surfar

Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal, e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio

Empolgados com a expressiva alta dos preços de commodities, analistas apostam em um ciclo robusto adiante, em boa medida por conta das perspectivas de vacinação em massa no mundo. Os países emergentes se beneficiariam com o influxo de capitais estrangeiros, para além da melhora do saldo exportador.

Haveria mais investimento nesses setores e em ativos de risco, pela própria percepção de redução do risco nos países - como sugerem as elevadas correlações entre preços de commodities e o custo (spread) da dívida soberana ou o preço do seguro contra calote (credit default swap) de emergentes.

O otimismo tem contribuído para sustentar preços de ativos. Convém, no entanto, conter o entusiasmo, especialmente para o caso brasileiro.

O principal combustível para a alta das commodities é o comércio mundial, que exibiu recuperação em formato de “V” e embalou a alta de 68% nos preços de commodities entre o colapso de abril passado e março último, pelo índice do FMI. Certamente a elevada liquidez mundial tem sua contribuição, por se tratar de um preço de ativo.

A tendência, porém, é de desaceleração do comércio mundial, pois fatores transitórios explicam em boa medida sua recuperação: a recomposição de estoques de commodities pela China, os estímulos monetários no mundo e própria normalização de cadeias de valor.

Avanços adicionais dependerão de mais elementos, sendo que a superação da pandemia significará muito mais a reativação do setor de serviços do que de setores intensivos no uso de commodities, mais preservados na crise.

Vale lembrar que o comércio mundial estava estagnado antes da crise, em função do protecionismo no mundo e da desaceleração na China.

A China acelerou seus planos de rebalanceamento do modelo de crescimento voltado a setores intensivos em tecnologia, em detrimento da indústria tradicional -, aliás, a disputa tecnológica está no cerne da guerra comercial entre China e Estados Unidos. Esses segmentos, no entanto, não são intensivos na utilização de commodities e tampouco o retorno do maciço investimento estatal está garantido, ainda menos de forma tempestiva.

 A complexidade da implementação e da maturação de projetos de tecnologia não se compara à de investimentos tradicionais em capital fixo. É natural, portanto, que ocorra uma desaceleração na China, inclusive pela acomodação na oferta de crédito após os estímulos recentes.

Em relação a agendas globais, ainda não chegou o momento do multilateralismo no comércio. O foco tem sido muito mais na questão ambiental, que ganhou ímpeto com Joe Biden. Mantém-se o quadro de protecionismo comercial, inclusive com risco de recrudescimento, por conta das exigências da agenda ambiental.

Mesmo que o ciclo de commodities perdure, é improvável que o Brasil consiga “surfar a onda” como no passado.

No primeiro governo Lula, isso foi possível. A política macroeconômica herdada de FHC foi fortalecida e houve avanço em políticas públicas que contribuíram para aumentar o potencial de crescimento de longo prazo do País e a emergência da nova classe média.

Apesar da crise política que interrompeu precocemente as reformas, o Brasil conseguiu se beneficiar do vento de popa do exterior, decorrente da entrada da China na OMC no final de 2001, e caminhou para conquistar o grau de investimento em 2008.

O quadro atual é outro. Já assistíamos à redução da participação do Brasil no investimento direto estrangeiro mundial e à saída de empresas do País. A má gestão da crise da pandemia agravou bastante a situação, sendo que a deterioração do regime fiscal em curso traz mais incertezas para o comportamento do dólar, das taxas de juros e da própria carga tributária no futuro.

Tudo somado, o cenário eleitoral ganha maior relevância no radar de empresários e investidores.

O governo está em um círculo vicioso de decisões equivocadas. O imbróglio do orçamento reflete erros passados na gestão da crise e sua suposta solução - que amplia os gastos públicos praticamente sem constrangimento, pendurando tudo na conta da covid-19 - produz outros tantos.

Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio.

Esse quadro reduz as opções para correções de rumo. Mesmo se houvesse interesse, o esforço teria de ser enorme diante da perda de credibilidade. As saídas se estreitam e o Brasil perde a onda.


Elio Gaspari: De Zappa@edu para Bolsonaro@gov

O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente

Presidente,

O senhor implica com os diplomatas profissionais e chega a ironizar suas boas maneiras. Como disse um colega, alguns arrumam melhor os talheres numa mesa que os pronomes numa frase. Escrevo-lhe com a autoridade de quem, no século passado, serviu como embaixador em postos para os quais o creme de barbear chegava por mala diplomática (Pequim, Hanói, Maputo e Havana). Eu evitava usar smoking, porque seria confundido com garçom.

Amanhã o senhor começará a participar da Cúpula do Clima e terá momentos difíceis. Acho que posso ajudar com uma ideia simples: deixe a diplomacia com os diplomatas profissionais. Teste-os, enunciando uma tolice. Quem concordar, profissional não é.

Na diplomacia, não há lugar para ganhadores nem para perdedores. Isso é coisa de militares. Às vezes o vencedor finge que perdeu e dá ao perdedor a chance de dizer que ganhou. Conversa de diplomata? Talvez o senhor esteja entre aqueles que consideram o americano Henry Kissinger um grande diplomata. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas abandonou o Vietnã à própria sorte depois de massacrar parte de sua população numa guerra perdida. Eu vivi lá e sei o que houve. Grande marqueteiro, isso sim.

O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente. Depois de delirar na virtude de ser um pária, seu governo não deve apresentar contas. Sua carta ao presidente Joe Biden foi longa demais porque muita gente meteu a colher.

Nós já compramos causas perdidas. Apoiamos o colonialismo português na África, ficamos com os chineses de Taiwan, mesmo depois que os americanos se acertaram com a China. Votávamos nas Nações Unidas com Portugal por causa da pressão de meia dúzia de comendadores do Rio de Janeiro. Saímos dessa encrenca. Mais difícil foi aguentar as implicâncias com o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. O senhor implicou com a vacina chinesa. Para quê?

Diplomatas consertam vasos quebrados desde os tempos coloniais. Eles sabem lidar com o ritmo e o tom nas crises. Na questão da Amazônia, o Brasil precisa apenas voltar a ser ouvido. Deixamos de sê-lo porque deliramos. A irracionalidade não é invenção nossa. Veja o caso dos Estados Unidos na Amazônia. No século XIX, eles queriam mandar para lá seus negros. No início do XX, Henry Ford delirou querendo transformar um pedaço da floresta em seringal particular. Décadas depois, o bilionário Daniel Ludwig teve uma ideia parecida. Deliraram, deram-se mal e foram-se embora.

Existe um espaço enorme para negociarmos projetos relacionados com a Amazônia. Para um exportador de grãos que compete conosco no mercado internacional, vossa política ambiental é um presente.

Pelo que sei, há malandraços oferecendo pontes com a Casa Branca. Não caia nessa. O presidente Biden tem um jeitão de vovô, mas conhece Washington. Para seu caderno de notas: em abril de 1975, as tropas do Vietnã do Norte estavam entrando em Saigon, e discutiam-se recursos para resgatar os vietnamitas que haviam ajudado os americanos. O então senador Biden avisou:

— Voto qualquer quantia para tirar os americanos, mas não quero me meter com operações para retirar vietnamitas.

Eu servi lá e nos Estados Unidos. Sei quanto isso custou aos dois povos.

Atenciosamente,

Ítalo Zappa.


Bernardo Mello Franco: Os estribos do general

O novo ministro da Defesa está empenhado em agradar o chefe. Walter Braga Netto estreou no cargo com uma exaltação ao golpe de 1964. Em seguida, passou a usar cerimônias militares para endossar o discurso do capitão.

Ontem o general aproveitou a troca de comando do Exército para fazer mais um comício bolsonarista. Às vésperas da Cúpula do Clima, ele tentou rebater as críticas da comunidade internacional pela devastação da Amazônia. “Os brasileiros que estão presentes na região sabem que a floresta continua de pé”, afirmou.

A patriotada não apaga o que as imagens de satélite mostram ao mundo. Ao analisá-las, o Imazon constatou que o desmatamento em março foi o maior para o mês nos últimos dez anos.

Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que “é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso.

O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de “intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições”.

Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI.

O general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão “prontas” e “sempre atentas à conjuntura nacional”. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de “meu Exército”.

Braga Netto assumiu a Defesa no momento em que o presidente cobrava mais manifestações de apoio dos militares. Sua primeira medida foi derrubar o general Edson Pujol, que tentava controlar a exploração política da tropa.

Ontem o ministro se despediu do ex-comandante com um bordão da caserna: “Que nossos estribos se choquem em cavalgadas futuras”.


Vera Magalhães: Campeonato do fim do mundo

“Nesse campeonato do fim do mundo, quando você é muito bem-sucedido, você acrescenta meio grau na temperatura do planeta”, disse, de forma contundente, o escritor e líder indígena Aílton Krenak na última segunda-feira no centro do Roda Viva.

Para ele, é este campeonato que o Brasil, tendo Jair Bolsonaro e Ricardo Salles como técnico e auxiliar, resolveu jogar. E é na condição de líder da tabela desse torneio macabro que o país chega à Cúpula de Líderes pelo Clima, proposta por Joe Biden, que será anfitrião virtual de 40 chefes de Estado a partir desta quinta-feira para marcar a volta dos Estados Unidos à mesa das negociações climáticas, depois de quatro anos de abandono desta agenda por Donald Trump.

Todos os olhos do mundo antes da reunião estão postos sobre o Brasil. Os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia, as queimadas na floresta e também no Pantanal, o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e a reiterada disposição de Bolsonaro de liberar a exploração mineral e de madeira em reservas indígenas, rever demarcações e legalizar terras ocupadas ilegalmente na região amazônica são apenas alguns dos "feitos" pelos quais o presidente brasileiro deverá ser questionado por seus pares.

Embora mantenham a absoluta falta de compreensão a respeito da importância econômica central da agenda climática e ambiental em qualquer fórum global hoje, Bolsonaro e seus auxiliares terão mais uma mostra de sua inadequação para esse debate, pois as cobranças para que se endureça com eles vêm não apenas dos adversários de sempre, como lideranças ambientalistas como Krenak ou a jovem Greta Thunberg, ou artistas como Leonardo di Caprio ou Wagner Moura, mas dos empresários.

Escrevi a esse respeito aqui na coluna na semana passada, e retomo o fio desta meada: Salles só será ameaçado no cargo quando Bolsonaro sentir na pele o risco de mantê-lo, ainda que ele sempre tenha feito exatamente o que o chefe mandou.

Grandes empresas brasileiras sabem o quanto de prejuízo reputacional e de negócios enfrentarão quando se tornar um imperativo para vendas a certificação ambiental de produtos, algo cada vez mais comum. Vale sobretudo para o poderoso agronegócio, até aqui ainda um reduto de apoio ao bolsonarismo, mas que não rasga dinheiro.

A pressão mundial é para que Biden endureça o jogo com o Brasil, não aceitando fazer nenhum acordo com o governo do capitão a não ser que o país reveja sua doutrina ambiental e se comprometa com metas objetivas e mensuráveis de redução de desmatamento e de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.

Bolsonaro ficará ainda mais exposto pelo fato de que os anfitriões querem marcar sua “volta ao jogo” com a assunção de metas ousadas e o anúncio de investimento pesado em conter o aquecimento global, para além da mera retórica.

Sabemos como o presidente brasileiro costuma se comportar em eventos mundiais como a Assembleia Geral da ONU ou o Fórum Econômico Mundial de Davos: como um peixe fora d’água, alguém que sabe que não tem o que dizer para além das quatro linhas das redes sociais e do cercadinho do Alvorada, onde fica seguro na companhia dos seus seguidores fanáticos.

Sem o “amigo" Donald Trump a chancelar o desdém e o discurso negacionista em relação ao Meio Ambiente, Bolsonaro ficará completamente isolado na cúpula. O discurso proferido nesta terça-feira pelo ministro da Defesa, Braga Netto, na linha “a Amazônia é nossa”, mostra que o nacionalismo mofado é a tônica em todas as áreas do Executivo, não só na pasta de Salles. 

Parece ingênua, portanto, qualquer esperança de que o Brasil vá ao encontro munido de novos propósitos para deixar a liderança da peleja do fim do mundo. Só fará isso se levar um cartão vermelho de Biden.


Vinicius Torres Freire: Para onde vai dinheiro das emendas parlamentares, que fazem Bolsonaro dançar miudinho?

Crise do Orçamento tem a ver com podridão do governo e é também problema histórico

Muito se falou de emendas parlamentares nestes dias da novela infame do Orçamento federal. Por que tanto tumulto por causa de um tipo de despesa que não chega a 1,5% do gasto do governo? Para onde vai esse dinheiro? Por que o aumento do valor total das emendas ainda vai manter Jair Bolsonaro com a corda no pescoço?

O comando do Congresso e o governo haviam aprovado um Orçamento em que a despesa superava o que, em tese, é permitido gastar, dado o “teto”. Um motivo do estouro era o aumento da despesa decidida por meio de emendas parlamentares, o que foi possível porque haviam sido subestimados gastos obrigatórios (como benefícios do INSS, por exemplo), resultado de malandragem e inépcia.

Caso Bolsonaro vetasse muita emenda, a retaliação no Congresso seria maior. Depois de dias de intriga, chegou-se a um acordo. Mantém-se parte do dinheiro extra para emendas parlamentares e diminui bem o risco de Bolsonaro e gente do governo serem processados por crime fiscal. O Congresso-centrão e parte do governo reduziram Paulo Guedes a papel ainda mais ridículo.

Uma emenda ao Orçamento é a destinação que um parlamentar, uma comissão, uma bancada estadual ou o relator do Orçamento dão a parte do dinheiro federal. O site Siga do Senado listou 17.825 delas em 2020, das quais 13.764 viram algum dinheiro.

Fora despesas extras com Covid, em 2020 o governo federal gastou R$ 1,5 trilhão. O valor das emendas parlamentares pagas foi de R$ 22 bilhões (o valor das executadas, de obras e serviços concluídos ou em andamento, foi de R$ 35 bilhões). Relativamente, é pouco dinheiro.

Quase 94% da despesa federal é obrigatória: 54% vai para Previdência e benefícios assistenciais, abono salarial, seguro-desemprego. Para salários, cerca de 21%. Etc.

Sobra 6% para a operação de governo (gasto administrativo, bolsa de pesquisa, insumo de hospital, obras etc.). Como os parlamentares avançaram nas emendas, o governo terá de cortar no osso a fim de que tenha dinheiro para funcionar no mínimo básico (haverá talho em obras definidas pelo Executivo, ciência, pesquisa, educação superior etc.). Ainda assim, terá de negociar com o Congresso o destino de algumas emendas. Vai dançar miudinho.

Boa parte do dinheiro das emendas vai para investimento, em geral obras pequenas: estrada, ponte, posto de saúde, casa popular, transporte público, obra contra seca, cadeia, quadra de esporte. De 2017 a 2019, dois terços foram para gastos em saúde. O grosso do resto vai para a Infraestrutura e ministérios que remediam a vida no interior pobre (Desenvolvimento Regional, Cidades, Integração, o nome que tenham). O valor médio da emenda paga em 2020 foi de R$ 1,5 milhão, mas metade delas levou menos de R$ 289 mil.

É ruim? Depende da obra. Mas, como se diz faz décadas, o Orçamento acaba picotado. Sobra pouco para fazer obra grande e de relevância “estrutural”.

As emendas parlamentares levam cada vez mais dinheiro por força do Congresso. Os motivos são complexos. A escassez regional de dinheiro para obras pode ser um deles (muito estado faliu), assim como a redução do financiamento privado de campanha eleitoral (parlamentares precisam de mais obras locais para garantir o mandato). Os parlamentares avançam também porque lidam com governos de escassa legitimidade e sob ameaça de deposição (Michel Temer) ou sem projeto civilizado algum, grosseiramente ineptos e sem coalizão política, como o dos Bolsonaro, que precisam ainda fugir da polícia e têm pânico de impeachment.

A crise do Orçamento resulta da degradação avançada da liderança política, agora em fase de horror e colapso, de depressão econômica e de um gasto público formatado de modo inviável e iníquo. Ainda vai longe.


Ruy Castro: Bilhete a um jovem bolsonarista

Se estiver sentindo o vírus perigosamente por perto, prepare-se para vir conhecer o Brasil real

Se o amigo vive no Brasil de Jair Bolsonaro, parabéns. Até há pouco, jovem, feliz, negacionista e com histórico de atleta, você era imune à Covid. Enquanto os velhos morriam, você assobiava no azul —distanciamento, higiene, restrições ao comércio, máscara e vacinas eram coisa de maricas e comunistas. Nas últimas semanas, no entanto, ao sentir o vírus perigosamente por perto e sabendo que amigos de seu porte físico e idade estavam intubados ou já no cemitério, é possível que você esteja pedindo ingresso no Brasil real —o nosso.

Não podemos bater-lhe a porta na cara, mas não espere muito de nossa parte. Somos 200 milhões à mercê da pandemia, dependendo apenas de nossos cuidados e do sacrifício dos profissionais da saúde —aqueles que nunca mereceram uma palavra de gratidão de Bolsonaro, muito menos uma visita de solidariedade a uma linha de frente. Mas fique certo de que esses profissionais o tratarão com a mesma heróica dedicação com que nos tratam —para eles, você será só mais um a ser salvo, não um farrista de aglomerações, festas clandestinas e carreatas.

Nós, brasileiros de segunda classe, estamos há um ano lendo e ouvindo entrevistas dos epidemiologistas e infectologistas. Mês a mês, eles avisaram sobre o que iria acontecer —e aconteceu. O combate a uma pandemia não pode caber a uma besta fardada como Eduardo Pazuello, cuja grande façanha militar foi obrigar um soldado a puxar uma carroça diante dos colegas num quartel em Brasília, em 2005. Talvez não seja também da sola de um cardiologista invertebrado como Marcelo Queiroga. Os especialistas continuam a avisar e a não serem levados em conta.

Neste Brasil à deriva, torça para não ser intubado. E, se for, que os hospitais tenham os remédios para ajudá-lo a engolir aquela tubulação.

Suas chances de sobreviver não serão muitas, mas, se sair dessa, aí, sim, bem-vindo ao Brasil real.


Hélio Schwartsman: Guerras vacinais

Qual vacina você tomaria se pudesse escolher?

Se você, leitor, pudesse escolher, qual vacina tomaria? Penso que muitos optariam pela da Pfizer. Ela, afinal, apresenta uma das taxas mais altas de eficácia em estudos de fase 3 publicados, não foi associada a efeitos colaterais graves, ainda que muito raros, e está mostrando que funciona bem na vida real, como se vê em Israel.

A questão, porém, é mais complexa. Ao que tudo indica, o Sars-CoV-2 veio para ficar. É provável que tenhamos de colocar a vacina anti-Covid no calendário anual de imunizações, e aí as vantagens da Pfizer talvez não se sustentem.

Hoje, diante dos custos econômicos de lockdowns, mesmo a mais cara das vacinas é uma pechincha. Mas, se precisarmos de reforços anuais, o preço será uma variável importante, e o da Pfizer está entre os mais elevados --US$ 20 a dose, contra US$ 4 da vacina Oxford. A logística também é mais complicada, já que o biofármaco da Pfizer precisa ser mantido à temperatura de -70°C.

Quem desponta como candidata forte a prevalecer no mercado de mais longo prazo é justamente a vacina da Oxford, a mais barata entre os principais imunizantes, que se conserva em geladeiras comuns e que também vem se mostrando efetiva nos experimentos de mundo real.

A disputa por mercado, assim como interesses geopolíticos ou simplesmente eleitoreiros, são fatores que não devem ser ignorados quando analisamos os noticiários sobre as vacinas. Não acho que, nas esferas "mainstream", ninguém esteja inventando notícias falsas contra este ou aquele imunizante, mas o peso que cada país dá a elas e as medidas que toma têm muito a ver com esses elementos não farmacológicos.

É nesse contexto que devemos entender a guerra que países da União Europeia deflagraram contra a vacina Oxford ou que Bolsonaro travou contra a Coronavac. Para nós, cidadãos comuns, qualquer vacina que evite que morramos ou desenvolvamos quadros graves deve ser celebrada.


Bruno Boghassian: Militares mantêm escolta política e retórica golpista de Bolsonaro

Novo ministro da Defesa indica que vai seguir discurso de intimidação do presidente

Se alguém tinha dúvidas sobre as intenções de Jair Bolsonaro ao trocar o comando das Forças Armadas, basta acompanhar os pronunciamentos do novo ministro da Defesa. Em poucas semanas, o general Walter Braga Netto mostrou que pretende manter a escolta política dos militares ao governo e seguir a retórica conflituosa do presidente.

Desde o início do mandato, Bolsonaro usa as Forças Armadas como ferramenta para intimidar adversários políticos e outros Poderes. Foi assim em seu embate com governadores e em ameaças que fez ao STF. Braga Netto indicou que vai ajudar o presidente nesse delírio autoritário.

Na semana passada, com o governo acuado pela CPI da Covid, o ministro agiu como auxiliar político de Bolsonaro e repetiu a tática de desviar o foco das investigações. "O uso de recursos pelos gestores dessas instâncias, estadual e municipal, deve ser acompanhado pela população e sofrer apuração rigorosa", declarou.

Braga Netto reforçou o gesto de continência nesta terça (20), na posse do novo comando do Exército. Num recado ao Congresso e ao Judiciário, disse que "é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros".

"A sociedade, atenta a essas ações, tem a certeza de que suas Forças Armadas estão prontas a servir aos interesses nacionais", completou. O general só não quis explicar por que os militares deveriam vigiar o que ocorre no terreno da política.

Em contraste, o comandante demitido fez um discurso burocrático, quase sonolento. Edson Pujol passou longe da cartilha bolsonarista e apresentou um relatório de gestão que mencionava até a sinalização de trânsito no setor militar de Brasília.

O antecessor de Braga Netto também dava guarida ao presidente. Fernando Azevedo e Silva sobrevoou com Bolsonaro uma manifestação golpista e assinou uma mensagem ao STF em tom ameaçador, mas foi derrubado mesmo assim. O novo ministro já provou que está disposto a cumprir as missões políticas do chefe para ficar mais tempo no cargo.