eleições 2022
Marcus Pestana: Uma agenda para o Brasil pós-pandemia
Atravessamos um período gravíssimo de nossa história, onde há uma combinação explosiva entre a nefasta pandemia, desemprego e o agravamento da miséria e da fome. Já são 420 mil vidas brasileiras perdida. Para além da retórica política de quem quer que seja, há uma evidência: o Brasil tem 2,7% da população mundial e 12,9% das mortes causadas pela COVID-19.
Talvez a morte do tão querido ator e humorista Paulo Gustavo nos abra os olhos e nos sensibilize para o sofrimento das milhares de famílias que anonimamente perderam seus parentes. A não ser que haja uma adesão coletiva à cínica afirmação de Stalin, ditador da antiga URSS, que afirmou: “Uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”.
De qualquer forma é preciso repensar o futuro do país. Qual é o Brasil que queremos quando a tempestade passar? O debate público é centrado em torno de personalidades, seus atributos e defeitos. As candidaturas tem conteúdo mais personalista do que programático.
Honra seja feita, como exceção, ao fato de Ciro Gomes ter lançado o livro “PROJETO NACIONAL: O DEVER DA ESPERANÇA” (Editora LeYa) e de o PSDB ter lançado, com o apoio do Instituto Teotônio Vilela, a coletânea de artigos “O BRASIL PÓS PANDEMIA: uma proposta para reconstrução do futuro” (https://www.psdb.org.br/wp-content/uploads/2020/12/BRASIL-PÓS´PANDEMIA-FINAL.pdf).
Já disse aqui que não é o momento de discutir a sucessão presidencial de 2022. A população está interessada em vacina, emprego e segurança alimentar. Dado isto, seria um bom momento para partidos amadurecerem um projeto para o futuro do país.
Essa reflexão, em minha opinião, deveria abranger quatro eixos centrais. O primeiro é sobre a questão democrática. A liberdade e a democracia andaram ameaçadas. Quais as travas necessárias para evitar retrocessos? Qual é a reforma política profunda que temos que produzir? Quais as transformações constitucionais e legais para que a convivência entre os Poderes republicanos supere o permanente estado de conflito que vivemos? Qual é o papel do Poder Judiciário e das Forças Armadas? E o papel do Brasil no cenário mundial? Perguntas que precisam ser respondidas por qualquer candidato à presidência.
Em segundo lugar, a discussão sobre o novo modelo de desenvolvimento econômico. Como crescer, incluindo? Qual Estado precisamos? Como conseguir uma integração competitiva ao mundo globalizado? Quais são as diretrizes corretas para as políticas fiscal, monetária e cambial? Como privilegiar a inovação e o empreendedorismo? Como enfrentar o desemprego tecnológico? Como repensar o mundo do trabalho? Como superar a armadilha do baixo crescimento?
Em terceiro lugar, o desafio de combate às crônicas e inaceitáveis desigualdades pessoais e regionais de renda e qualidade de vida. Qual é a educação e a saúde com que sonhamos? Quais as formas de redistribuir renda? Qual seguridade social e rede de proteção precisamos? O dever número 1 de qualquer candidatura é explicitar suas estratégias para tirar milhões de brasileiros da miséria e da pobreza.
Por último, a visão da sustentabilidade e do compromisso ambiental aonde o Brasil tem papel central no debate internacional.
Política é meio, não fim em si mesma. Um candidato à presidência não pode ser um rebelde sem causa. Antes de debater nomes, é urgente discutir as ideias.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PDSB-MG)
Fonte:
O Tempo
https://www.otempo.com.br/politica/marcus-pestana/subscription-required-7.5927739
Vera Magalhães: Os 3 caminhos da CPI para ‘encher o saco’ de Bolsonaro
Jair Bolsonaro pode se preparar para continuar irritado. A CPI da Pandemia pretende juntar munição para “encher o saco” do presidente, como ele demonstrou temer em seu mais recente ataque verborrágico.
Transcorrida a primeira semana de depoimentos da CPI da Pandemia, os senadores do chamado G7, o grupo dos independentes e oposicionistas que tem a maioria na comissão, já definiu três linhas principais de investigação que podem levar à responsabilização de Jair Bolsonaro e de Eduardo Pazuello, em cuja gestão à frente do Ministério da Saúde ocorreu a disparada do número de mortes e casos de covid-19.
São os seguintes os eixos a partir do qual devem ser organizados os depoimentos, e que deverão nortear também o relatório final de Renan Calheiros:
1) a recusa reiterada na compra e no financiamento de vacinas, conjugada com a falta de esforços para sua análise e aprovação pela Anvisa.
Alguns dos depoimentos da semana que vem vão aprofundar as apurações para chegar à cadeia de comando da ordem para não adquirir vacinas que foram oferecidas ao governo federal pela Pfizer e por outros fabricantes.
São os do ex-secretário de Comunicação da Presidência Fábio Wajngarten e dos representantes da Pfizer, Carlos Murillo e Marta Diéz. A ideia é traçar a cronologia exata das tratativas entre a empresa e o governo federal, bem como quais integrantes dos diversos ministérios participaram e opinaram contra a aquisição antecipada dos imunizantes.
2) gasto de recursos públicos para a produção e a aquisição de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19, bem como a adoção de protocolo para seu uso precoce e o envio de grandes quantidades para Estados e municípios.
A ideia aqui é deixar provado que Bolsonaro priorizou a compra, fabricação e indicação de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina à aquisição de vacinas, comprovadamente mais eficazes para conter a pandemia.
A adoção do protocolo do chamado “kit covid” para casos leves e iniciais da doença, à revelia de evidências científicas e depois da recusa de dois ministros em consigná-lo também deve ser apontada como irregularidade e imputada ao presidente e a Pazuello.
3) ações do presidente para estimular a chamada “imunidade de rebanho” em Estados e municípios, com incentivo à tese de que quanto antes maiores parcelas da população contraíssem o vírus mais rapidamente a pandemia seria debelada.
A tese anticientífica de que seria possível atingir imunidade de rebanho sem vacina foi defendida por governistas como o deputado Osmar Terra, e a necessidade de “enfrentar” o vírus foi repetida por Bolsonaro seguidas vezes.
De acordo com os senadores, as aglomerações defendidas ou promovidas pelo presidente, inclusive em solenidades oficiais, e as vezes em que ele recorreu a STF para tentar sustar medidas de distanciamento social adotadas por governadores e prefeitos entram nesse quesito.
Um depoimeto chave para tentar construir esta tese será o do vice-governador do Amazonas, Carlos Almeida Filho, segundo quem Manaus foi usada como “laboratório” da tese de imunidade de rebanho, o que teria criado o ambiente propício à mutação do coronavírus e o surgimento da variante P1.
Fonte:
Demétrio Magnoli: Lei do Estado democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições
A Câmara revogou a Lei de Segurança Nacional, com módico atraso de 32 anos. No seu lugar, aprovou uma Lei do Estado Democrático que flerta, aqui e ali, com a criminalização da opinião política. Paira no ar o perigoso conceito de democracia militante.
A LSN já vai tarde. Bolsonaro e seu assecla André Mendonça a invocam, dia sim e outro também, para tentar intimidar críticos do governo. Mas, como o Bombril, a lei da ditadura tem mil e uma utilidades: o STF também achou conveniente brandi-la quando inaugurou o infindável inquérito das fake news. No percurso, diante do arruaceiro deputado Daniel Silveira, enfiou numa sacola única o elogio retórico do AI-5 e os crimes de incitação à violência e ameaça. Ao redigir a Lei do Estado Democrático, a Câmara avaliza a manobra dos supremos juízes.
“A Constituição não permite a propagação de ideias contrárias ao Estado democrático”, escreveu o STF ao tornar réu o parlamentar bolsonarista. Falso! Nada, na Carta de 1988, proíbe defender ideias autoritárias. Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação.
Gilmar Mendes sustentou a criminalização da difusão de ideias autoritárias com base no conceito legal alemão de democracia militante (streitbare Demokratie). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, veta a negação do Holocausto e o uso da suástica. Mas o Brasil, que nunca experimentou algo como o nazismo, não se define como democracia militante. Por aqui, só são puníveis explícitos discursos de ódio contra segmentos da população, além de calúnia, injúria ou difamação.
A caduca LSN é um código de uma ditadura militante (há outro tipo?). No seu artigo 23, criminaliza “incitar à subversão da ordem política ou social”, expressão que permite encarcerar o comunista ortodoxo por palavras proferidas numa entrevista ou passeata pacífica. A nova Lei do Estado Democrático tipifica vagamente crimes “contra as instituições democráticas” e de disseminação “de fatos inverídicos” em redes sociais no curso de processos eleitorais. Na forma como redigida pela Câmara, oferece caminhos para encarcerar o cachorro que apenas late.
Talíria Petrone, líder do PSOL, identificou os contornos da besta: “Sabemos bem como esses tipos penais abertos podem levar à criminalização de movimentos sociais”. O PSOL ama a ditadura castrista, que persegue movimentos sociais como as Damas de Branco ou o Movimento San Isidro por meio da acusação legal de subversão. Mas a duplicidade moral não impugna a crítica específica: o texto pode, efetivamente, ser interpretado de modo a punir a mera palavra subversiva, tanto de direita quanto de esquerda.
“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais”, retrucou Orlando Silva. O deputado do PC do B é um pândego: seu partido ama de paixão o regime totalitário chinês, que editou a Lei de Segurança de Hong Kong, uma LSN com esteroides, para encarcerar os estudantes do Movimento Guarda-Chuva.
Há pouco, um popular youtuber investiu no negócio da moda, que é rotular Bolsonaro como genocida. André Mendonça, então ministro da Intimidação, poderia processá-lo por calúnia, exigindo retratação. Preferiu, porém, erguer a espada afiada da LSN. Quando apreciar o texto proveniente da Câmara, o Senado tem o dever de evitar a promulgação de uma “LSN do Bem” que, inevitavelmente, serviria aos propósitos dos Mendonças vindouros.
Já temos leis suficientes sobre as fronteiras da liberdade de palavra. A Lei do Estado Democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições. Nossa democracia não milita.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-democracia-nao-milita.shtml
João Gabriel de Lima: Uma razão para ter orgulho do Brasil
Uma ideia que ajudou a mudar o mundo nasceu, como algumas canções da bossa-nova, em guardanapos de papel. Era o ano de 2009 e almoçavam, em Brasília, a secretária nacional de Mudança Climática, Suzana Kahn Ribeiro, e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O assunto: o que o Brasil poderia sugerir na COP 15, a Conferência do Clima de Copenhague? Suzana rabiscou um esquema no guardanapo. Nascia a “espiral positiva”.
A ideia era simples. Suzana e Carlos achavam que o Brasil deveria propor, unilateralmente, a redução de suas emissões de carbono. Mais: fixar metas concretas. Ainda mais: expor-se ao escrutínio internacional, abrindo seus números. Houve resistências dentro do governo, cujo discurso – recorrente entre os caramurus à esquerda e à direita – era cheio de “não podemos abrir mão de nossa soberania” e “eles devastaram suas próprias florestas, não se metam com a nossa”.
A “espiral positiva” era, antes de tudo, um desejo, um “wishful thinking”: inspirados pelo exemplo do Brasil, vários países tomariam atitudes semelhantes, numa competição virtuosa. A ideia venceu as resistências internas – entre elas, a da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ganhou a adesão do Itamaraty, com seu timaço de negociadores com experiência em meio ambiente (a coluna voltará ao assunto em breve).
No plano externo, o sucesso não foi imediato. Os brasileiros ganharam aplausos em Copenhague, mas não adesões. A semente germinaria seis anos depois. O Acordo de Paris, assinado em 2015, era precisamente a ideia do Brasil – países propondo voluntariamente metas de redução de carbono, com métricas críveis.
O que mudou em seis anos? “Ficaram claros os incentivos para uma economia de baixo carbono. Não se trata apenas de salvar o planeta, mas também de ganhar dinheiro”, diz Suzana Kahn Ribeiro, atualmente professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela discorre sobre o assunto no minipodcast da semana.
As oportunidades são inúmeras. Segundo Suzana, a China, que já foi refratária a metas de emissões, cresceu o olho sobre o mercado de energia renovável. Países nórdicos investem em madeira certificada: do lado certo da força, ganham a concorrência com nações que devastam florestas. Acessam, de quebra, o bilionário mercado de títulos verdes. O lado certo da força, diga-se, acaba de ser demarcado com sabre de luz pelo Obi-Wan da vez – o presidente americano Joe Biden.
Se há uma razão para que os brasileiros se orgulhem de seu país, é a liderança que já exercemos na área mais estratégica do planeta – a que garante a própria sobrevivência da esfera azul que habitamos. Além de inspirar, em alguma medida, o Acordo de Paris, o Brasil foi o berço do moderno combate à mudança climática – na Rio 92, marco positivo do governo Collor.
Perdemos, no entanto, essa primazia – e, com ela, oportunidades de enriquecimento e projeção internacional. “É possível que, depois da pandemia, o mundo se reconstrua como uma economia moderna”, diz Suzana. “Conectar-se com esse futuro é uma chance enorme.” O tema começa a entrar em pauta entre os pré-candidatos de oposição para 2022. Do governo atual, pelo que diz e faz, não se deve esperar nada.
O Brasil conhece bem o caminho para reconquistar alguma relevância no mundo. Já houve um tempo em que nossas ideias, rabiscadas em guardanapos de papel, faziam o planeta cantar – ou ajudavam a salvá-lo, inspirando boas práticas.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,uma-razao-para-ter-orgulho-do-brasil,70003708202
Fabio Giambiagi: Gasto do governo com militares teve um incremento real de 4% em 2020
Uma lição que tentava passar para meus alunos quando dava aulas de Finanças Públicas era: “Sempre que for possível, abram o dado”. Ou seja, antes de fazer afirmações peremptórias sobre algo, é preciso entender bem o que está acontecendo. O gasto público está aumentando? Sim, ok. Por causa de que rubricas? INSS? Perfeito, onde? Aposentadorias urbanas ou rurais? Por idade ou por tempo de contribuição? O problema está nas “outras despesas”? Quais delas, então?
Agora faço uma observação similar quando vejo análises gerais sobre a despesa com pessoal. Esta é uma rubrica que, sem dúvidas, era necessário rever no começo do atual governo, haja vista o fato de que, desde que o teto do gasto fora adotado em 2016, ela e o INSS foram os dois grandes itens que continuaram mantendo seu crescimento, em contraste com a evolução do terceiro grande bloco de despesa – as “outras” – que encolheram muito entre 2016 e 2019. A razão se localiza na decisão do governo Temer de validar os aumentos salariais negociados politicamente – ainda no governo Dilma – com a maioria das carreiras do funcionalismo, acarretando um incremento real do gasto. Esse item, então, pressionou severamente as chamadas “despesas discricionárias”, que têm sido espremidas nos últimos cinco anos.
Como, porém, aqueles aumentos nominais se esgotavam em 2019, é útil colocar uma lupa na questão e analisar o que continuou acontecendo em 2020 e 2021. A observação dos dados sugere que chegou a hora de tratar de um tema que, até agora, tem merecido escassa ou nenhuma importância nas análises da maioria dos analistas. Parodiando o nome de um famoso filme, eu diria que “precisamos falar sobre a despesa com pessoal dos militares”. O rigor analítico exige apresentar os números de forma nua e crua.
Vejamos as questões com maior grau de detalhamento. Entre 2016 – ano da aprovação da “regra do teto” – e 2019, as despesas com pessoal passaram de 20,6% para 22,2% do total do gasto. O que aconteceu com essa rubrica em 2020? Neste ponto, há que lembrar a negociação que ocorreu em 2019, visando à aceitação, por parte dos militares, de uma reforma previdenciária da categoria que fosse aceitável por parte das Forças Armadas. Eles acabaram apoiando a proposta específica de reforma enviada ao Congresso, em troca de aumentos salariais maiores ao longo da carreira, vinculados a determinados requisitos.
O fato é que, muito provavelmente, o que os economistas chamamos de “integral de remuneração”, ou seja, o valor de quanto será pago a essa pessoa ao longo de toda a sua vida será maior do que antes da reforma, uma vez que, embora o tempo de vigência da aposentadoria será menor, o valor gasto na ativa, após os aumentos, será muito superior ao que iria ser pago antes dos aumentos concedidos, além de outros detalhes que não há espaço aqui para comentar. Alguém poderia alegar que isso ocorreria só em forma dilatada ao longo do tempo, mas não é o que os dados mostram.
A realidade dos números é inequívoca: deflacionando os dados pelo IPCA médio anual, em 2020, o gasto com pessoal civil teve uma redução real de 2%, enquanto o gasto militar teve um incremento real de nada menos que 4% – no ano em que o PIB caiu 4%! E, quando se olha para o pessoal ativo, devido ao congelamento nominal de uns e aos aumentos concedidos a outros, o contraste entre civis e militares foi maior ainda: o gasto com ativos civis caiu, em termos reais, 4%, enquanto o gasto com pessoal ativo militar teve um salto real de 7%. E, nos primeiros três meses de 2021, essa realidade se acentuou: a despesa com ativos civis caiu em termos reais mais 6% e com pessoal ativo militar aumentou novamente outros 7% reais. Não é preciso ser um profundo conhecedor de política para entender a lógica desse processo. Em outras épocas, dir-se-ia que se tratava de uma “questão de correlação de forças”. Neste caso, literalmente.
*ECONOMISTA
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,gasto-do-governo-com-militares-teve-um-incremento-real-de4-em-2020,70003706910
Bernardo Mello Franco: Tropa de trapalhões
Em duas semanas, o Planalto já acumula ao menos sete vexames na CPI da Covid. A série começou quando o UOL publicou uma planilha da Casa Civil com 23 acusações contra o governo. A lista foi redigida para ajudar os bolsonaristas. Ao vazar, virou arma para a oposição.
Na semana passada, O GLOBO revelou que requerimentos assinados por senadores governistas foram produzidos em computadores da Presidência. Os registros eletrônicos mostram que os parlamentares atuaram como laranjas do capitão.
Nesta terça, o ex-ministro Henrique Mandetta expôs mais uma lambança. O ministro Fábio Faria enviou para o celular dele, por engano, uma pergunta que seria feita pelos aliados de Bolsonaro.
No dia seguinte, os governistas protagonizaram outro papelão: tentaram impedir as representantes da bancada feminina de falar. Os senadores Ciro Nogueira e Marcos Rogério se esforçaram para calar as colegas no grito. Foram desautorizados até por Soraya Thronicke, uma bolsonarista de carteirinha.
O general Eduardo Pazuello ainda não deu as caras, mas já acumula dois vexames na CPI. Na terça, apresentou uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento. Disse que teve contato com dois coronéis contaminados, embora não tenha se prestado a fazer um teste de Covid-19.
Ontem o drible se transformou em escárnio. Enquanto dizia estar isolado no hotel de trânsito do Exército, o general fujão recebeu a visita do ministro Onyx Lorenzoni.
O sucessor de Pazuello protagonizou a sétima trapalhada governista. Num depoimento arrastado, Marcelo Queiroga deixou dezenas de perguntas sem resposta. A cada enrolação, evidenciava o medo de dizer algo que desagradasse o chefe.
“O senhor é médico, fez o juramento de Hipócrates, mas não consegue responder àquilo que eu pergunto”, protestou o senador Otto Alencar. Queiroga continuou a embromar e voltou para casa com o apelido de ministro Rolando Lero.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tropa-de-trapalhoes.html
Hélio Schwartsman: Pazuello, covarde ou herói?
O general Pazuello fugiu do depoimento que daria à CPI da Covid. Isso é fato. Resta determinar se o fez por covardia ou bravura. É claro que estou sendo irônico, mas menos do que o leitor imagina. A relação entre covardia e bravura é irredutivelmente paradoxal.
O guerreiro que nada teme não faz nada de extraordinário quando enfrenta a morte no campo de batalha. Para que sua atitude tenha algo de heroico, é preciso que ele tenha medo, se não de perder a vida, dos chamados destinos piores que a morte, como viver em desonra ou ver seus familiares e compatriotas reduzidos à escravidão. E basta admitir que o medo é indissociável da bravura para gerar situações contraditórias.
Gosto de uma observação do marechal Georgi Jukov: “No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde”. É que os soviéticos punham em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer soldado que parecesse recuar. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.
Num exemplo mais literário e mais doméstico, Gonçalves Dias cria um I-Juca Pirama tão valente que não teme passar por covarde para cumprir suas obrigações filiais, sendo rejeitado até mesmo pelo pai pelo qual sacrificara a honra aparente.
Em qual contexto a fuga de Pazuello da CPI poderia ser interpretada como um ato de bravura? Lealdade. O general é tão leal ao comandante em chefe que não hesita em passar por covarde para protegê-lo. O fato de Pazuello ser um militar, carreira em que a covardia é o pior anátema que pode ser pespegado a alguém, torna seu sacrifício ainda mais trágico.
Só o que impede o general de ter seu destino imortalizado em versos são as motivações do chefe. Elas são tão mesquinhas que apequenam qualquer heroísmo. Se Pazuello não é covarde por ter fugido da CPI, o é por não ter denunciado os crimes de Bolsonaro.
Fonte:
O Globo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/pazuello-covarde-ou-heroi.shtml
Beatriz Della Costa: A sociedade civil tem que pautar a política
Umas semanas atrás fui entrevistada por uma jornalista que me perguntou assim: “Como mudar a situação do Brasil?”. Minha primeira reação foi partir para o óbvio: lockdown, vacina e auxílio emergencial. “Mas o que podemos fazer hoje para transformar esse cenário amanhã?”, ela insistiu. Fiquei aflita, pois não tenho a resposta. O que pude dizer foi que não há solução imediata, que a ideia do impeachment se esvai a cada dia e que já está bem claro que somos triplamente reféns: do vírus, do Governo negacionista e de políticos fisiologistas.
A conversa me deixou reflexiva. Primeiro pela essência da pergunta em si, que enfatiza o quanto estamos todos ansiosos para sair do buraco. Depois, pela constatação da inexistência de uma saída rápida. O bolsonarismo está por aí desde antes de 2018 e, de uma forma ou de outra, vai persistir para além de 2022 ou 2026. Ele representa um pensamento com o qual 30% da população de certa maneira se identifica. Então, querer mudar o futuro é, primeiro, ser capaz de olhar para este presente e entendê-lo a partir das heranças do passado, boas ou ruins. Precisamos lembrar que o bolsonarismo apenas vocaliza o comportamento de um país que se desenvolveu a partir do autoritarismo, da escravidão, da violência, do extrativismo.
E o que a gente sente é que ninguém, seja no governo ou na oposição, está preocupado em fazer isso, em delinear um projeto de país. Os partidos e os políticos, os tais fisiologistas de que falei, estão ali travando uma disputa de cabo de guerra que nada tem a ver com você ou comigo. De onde, então, pode vir a esperança? A que podemos nos apegar?
Sou cética no que diz respeito a uma oposição que, sem propostas, busca a união pela via do “anti”, mas confesso que aquele primeiro discurso de Lula depois de seu retorno ao jogo político, em março, me fisgou. Vi ali uma chance de enfim fugirmos destes tempos com sabor de 1964. A questão que fica é: para que futuro Luiz Inácio nos levaria? Chegaríamos finalmente à terceira década do século XXI? Ou iríamos para o futuro de 2010, numa continuidade direta de seu segundo mandato? Seja como for, a escolha entre 1964 e 2010 não é nada difícil.
Não tenho dúvidas, entretanto, de que a única maneira de entrarmos de vez no século XXI é nos livrando por completo da ideia de salvadores da pátria. Não existe mágica, não existem personificações puras do bem e da mudança. Qualquer pessoa que se proponha a botar o país nos eixos, a nos reinserir numa linha do tempo próxima à realidade, deve governar pelo diálogo com os mais diferentes grupos da população. Lula talvez esteja dando umas dicas de que está disposto a fazer isso (anda falando de imprensa livre, segurança, relações internacionais, pandemia e de vez em quando até de meio ambiente), mas já conhecemos suas limitações: além de representar um grupo político com visões enraizadas no fim do século XX, também é, de certa forma, parte do problema que vivemos.
No meio disso tudo, a sociedade civil tem a grande missão de começar a pautar a política de maneira menos centralizada e dependente. Precisamos disseminar o diálogo construtivo entre o poder público e, também, entre a população. Desde já, as organizações precisam ouvir brasileiros de todos os tipos, brasileiros que pensam de muitas maneiras, brasileiros que votam em pessoas diferentes. Isso vai decifrar insatisfações e, o mais importante, desvendar os pontos de convergência que podem fomentar um projeto de país e repavimentar a estrada para um Brasil justo e humano. Poucos países têm uma sociedade civil tão sólida, é hora de usarmos isso a nosso favor.
Sei que estamos resolvendo emergência atrás de emergência. Quando o encanamento se rompe e tudo fica debaixo d’água, vamos pensar em chamar um bombeiro hidráulico ou na reforma da casa? É possível lidar com a urgência e ao mesmo tempo se dedicar à construção de um futuro? Só há uma resposta: tem que ser. Estamos diante do grande desafio desta geração, a reconstrução do nosso tecido social. E chegou o momento de enfrentarmos nossos medos e as sombras do nosso passado, estabelecermos conversas, praticarmos a tolerância e sairmos Brasil adentro para construir nossos sonhos para o século XXI.
Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-05/a-sociedade-civil-tem-que-pautar-a-politica.html
Alon Feuerwerker: O atraente bidenismo
A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital do mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais, para distribuir a quem tem menos.
A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.
Claro que a análise objetiva exige levar em conta as circunstâncias. Cada um de nós é ele mesmo e suas circunstâncias. Uma foi o governo Temer ter entrado em modo de sobrevivência por razões da área policial, e depois a pandemia da Covid-19 pegou pela proa a administração Bolsonaro. Mas aí enveredamos pelo terreno das explicações e justificativas. E na política, a exemplo de outras esferas da vida, quem começa a se explicar e justificar já está perdendo.
Os ventos bidenistas e a crônica pasmaceira econômica acenderam no Brasil o desejo de uma guinada. Mas qual a viabilidade dela? Que candidato com chances vai pegar a estrada em 2022 dizendo que irá fazer dívida pública pesada para ampliar o investimento estatal e prometendo tomar o dinheiro dos “ricos” (que no Brasil, na prática, incluem uma gorda fatia da classe média) para redistribuir renda pela mão do Estado?
Políticas econômicas precisam ter, antes de tudo, viabilidade política. Há sim teóricos respeitáveis que garantem: fazer dívida em moeda nacional não produz inflação. Mas qual presidente vai arriscar, no sempre instável cenário institucional brasileiro, colocar todas as fichas numa teoria contraintuitiva? Se der errado, seus autores no máximo farão autocrítica. Já o político provavelmente terá ido para o cadafalso, talvez metafórico.
Há uma diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos. Eles podem legalmente imprimir dólares sem lastro e nós podemos imprimir reais sem lastro, mas não parece que as consequências venham a ser as mesmas. Isso e outros fatores devem impelir os candidatos competitivos a buscar soluções mais convencionais. Uma em especial: a atração maciça de capitais externos para fazer subir a taxa de investimento privado.
Eis por que no próximo governo, pois entramos na etapa conclusiva deste, talvez um ministério de importância renovada será o das Relações Exteriores. E quem sabe não deveríamos voltar nossos olhos também para o Oriente, em vez de apenas para o Norte? É pouco razoável imaginar que a economia brasileira vai se erguer puxando os próprios cabelos para cima. Ou colocando todas as fichas de política exterior numa única casa.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.737
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/o-atraente-bidenismo.html
Veja
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/o-atraente-bidenismo/
Eliane Cantanhêde: Gabinete das trevas
A estrela da CPI da Covid nesta semana é a cloroquina, mas a da semana que vem será a vacina. O governo Jair Bolsonaro não sai bem nem numa nem na outra e todas as perguntas giram em torno de um mesmo eixo: o grave negacionismo científico do próprio presidente da República diante da cloroquina, da máscara, do distanciamento, da vacina. De toda a pandemia, enfim.
A cronologia da CPI corresponde e expõe às câmeras, para o Brasil inteiro, a própria realidade do governo. Luiz Henrique Mandetta foi demitido do Ministério da Saúde por defender teses e protocolos científicos e da OMS. Nelson Teich foi colocado lá para ficar quieto, não atrapalhar, mas se rebelou quando percebeu a roubada. E o jeito foi meter um general da ativa do Exército, Eduardo Pazuello, para fazer o papel de bobo, obedecendo a tudo que seu mestre mandasse.
Por trás dessa cronologia, há o que Mandetta revelou já no primeiro dia de depoimentos: quem manda na pandemia não é o Ministério da Saúde, logo, nem Mandetta, nem Teich, nem Pazuello, mas, sim, o presidente, com um gabinete das sombras, ou das trevas. Não consta que Bolsonaro seja médico, cientista ou saiba a diferença entre vírus e bactéria. E não se sabe quem são e qual é a formação e a expertise em saúde, particularmente em saúde pública, dos tais integrantes do gabinete misterioso.
É dali, porém, que saem decisões estapafúrdias que dizem respeito à vida de todos os brasileiros e foram rechaçadas por Mandetta e Teich, mas assumidas alegremente por Pazuello e pela cúpula do governo. Não fosse assim, o que levaria um outro general, este da reserva, mas de quatro-estrelas, a ter de se vacinar escondido? E por que demorar um ano inteiro para lançar uma simples campanha para orientar os cidadãos para o uso de máscara, álcool em gel, distanciamento, vacina?
A grande dúvida, porém, é quanto ao quarto ministro em plena pandemia: o que defende, faz e pretende, e qual o grau de autonomia do médico Marcelo Queiroga em relação ao “doutor” Bolsonaro e ao gabinete das trevas? Como ele entrou e saiu da CPI sem citar uma única vez a palavra “cloroquina”, nem para aprovar, nem para condenar, as duas perguntas ficaram sem resposta conclusiva.
Foi aflitivo assistir ao depoimento. Queiroga fez um esforço gigantesco para se equilibrar entre suas crenças e a condição de ministro de Bolsonaro, tentando resumir tudo a um mantra: “A solução está na vacinação”. Não deixou, porém, de admitir, transversalmente, ou nas entrelinhas, que também é a favor das máscaras e do isolamento social e contra a cloroquina. Ou seja: não acusou Bolsonaro, mas disse, sem dizer, que defende exatamente o oposto do presidente, seu chefe.
Um exemplo da saia-justa foi quando, sem ter o que responder à pergunta sobre a orientação do Ministério da Saúde para “tratamento precoce”, que não tem respaldo científico em lugar nenhum do mundo, ele frisou que, “na minha gestão”, não houve orientação nem distribuição de cloroquina. Leia-se: se havia e não há mais é porque… ele é contra.
Enquanto a CPI expõe os absurdos de Bolsonaro, ele tenta distrair a plateia. Umas sacadas são só de mau gosto, como rir do cabelo “black power” de um seguidor: “Tô vendo uma barata aqui!”. Outras vão além, como chamar os contrários à cloroquina de “canalhas” ou voltar a atacar a China gratuitamente numa hora dessas. Os efeitos não são contra a pessoa de Jair Bolsonaro, mas contra o interesse nacional e a vida dos brasileiros.
Por falar em vida, lá está o Brasil mais uma vez de forma desoladora na mídia internacional, com a chacina no Rio, onde um tiroteio entre polícia e bandidos deixou 25 mortos. É essa a imagem do “novo Brasil”, esse Brasil do gabinete das trevas.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gabinete-das-trevas,70003706947
Igor Gielow: Forças Armadas em ações de segurança pública têm legado questionado por militares e civis
Símbolo da falta de projeto civil para as Forças Armadas, as GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem) completarão 20 anos em 2022 com um legado questionado igualmente por militares e civis.
Não por esse motivo, e sim por pressão dos fardados em busca de respaldo jurídico para operações internas determinadas pelo Planalto, o presidente Jair Bolsonaro reduziu bastante o uso do expediente desde que assumiu, em 2019.
Até aqui, são 3,5 GLOs anuais a média sob Bolsonaro. Os anos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) viram 5,9 ações, os de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010), 4,9/ano, os de Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), 5,6/ano e os de Michel Temer (MDB, 2016-2018), outras 5,6 anuais.
Para o presidente, o problema é a falta do infame “excludente de ilicitude”, um instrumento inspirado por exceção do Código Penal que buscaria isentar de culpa militares que se envolvessem em tiroteios com vítimas, por exemplo.
Na verdade, Bolsonaro tentou aplicar a ideia de forma ampla a forças policiais, mas foi barrado pelo Congresso. Propostas semelhantes estão paradas. “Eu pretendo usar a GLO, se tiver que usar, com excludente de ilicitude“, disse ele numa live no fim de 2020.
Não que isso o torne um legalista.
O presidente tem insistido em falas que poderá usar as Forças Armadas contra as medidas restritivas aplicadas por estados contra a disseminação do novo coronavírus. Oficiais-generais são contrários à ideia, até por não haver no artigo 142 da Constituição, que regula os militares, tal autorização de uso.
“O problema começa lá pela previsão da Constituição. Nosso principal negócio é a defesa da pátria, mas o nosso emprego tem sido fundamental para cumprir outras missões e a necessidade da nação brasileira”, resumiu o ex-comandante do Exército Edson Leal Pujol em uma outra live, em novembro passado.
As GLOs nasceram da necessidade de dar uma aparência de cidade pacífica ao Rio em 1992, quando Fernando Collor de Mello sediou a conferência ambiental Rio-92. Mas ao longo dos anos a aplicação foi diversificada, sempre sob queixa dos militares.
Muito antes da ascensão e queda do ministro Paulo Guedes (Economia) com o proverbial “Posto Ipiranga”, esse era o apelido no Planalto para as Forças Armadas. Sob FHC, chegou a haver 11 ações num só ano, 2000.
Os motivos se multiplicaram. Grandes eventos seguiram como prioridade, somando 27,3% do total das ações, seguido por controle de motins de PMs (18,2%) e crises de segurança estaduais (16,1%). Um grande contingente de 22,4% das GLOs cai na rubrica “outros”, que vai de garantir eleições a ações ambientais.
A única GLO em vigor, Operação Verde Brasil 2, foi encerrada na sexta (30), após um ano implementada. Os dados de desmatamento na Amazônia mostram que o esforço foi, no máximo, isso —um esforço.
Ainda assim, ela poderá ganhar uma nova edição. A GLO empregou 2.450 militares. Sua antecessora, a Verde Brasil 1, durou de agosto a outubro de 2019, no auge da crise internacional de imagem devido aos incêndios amazônicos.
Novamente, acabou sendo vista como cosmética. E custou R$ 124,5 milhões aos cofres públicos —menos de um terço do que a GLO dos Jogos Militares Mundiais, de 2011, de todo modo.
“O uso banalizado de um recurso excepcional traz desmoralização, já que o emprego recorrente não trouxe melhoras significativas no cenário da violência”, afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.
Para ele, há o risco sempre citado pelos próprios militares de contaminação de tropas na ponta, pelo contato com o tráfico e outras formas de criminalidade.
“Militar cumpre o que lhe é pedido. Mas isso tem consequências”, diz o diretor do Brazil Institute do King’s College de Londres, Vinicius Mariano de Carvalho, lembrando que a Constituição não prevê o uso ostensivo dos fardados em patrulhamento.
Langeani ressalta também o ponto levantado por Pujol: o militar é preparado para outra coisa. “As forças policiais têm efetivo mais estável, com mais tempo de serviço, treinamento e protocolos, que incluem o uso de técnicas de defesa pessoal, armas menos letais. E parte grande da interação dos policiais demanda comunicação, não armas”, diz.
“Nas Forças Armadas há menos espaço para esses conhecimentos. Não é acidente que tenhamos tantos casos de mortes desastradas e evitáveis, como na fiscalização de um veículo, na morte do músico Evaldo Rosa em 2019 [cujo carro foi atingido por 257 tiros numa barreira militar no Rio]”, afirma.
Por óbvio, há momentos de crise aguda em que apenas a força militar pode colocar ordem, mas eles são exceções. Langeani aponta motins simultâneos de várias polícias, por exemplo, como situações em que a GLO se justifica.
Como diz Carvalho, há a questão sobre qual tipo de Forças Armadas o país quer para si. No caso brasileiro, pela forte inserção dos fardados na história política desde a proclamação da República e pela inapetência civil em lidar com assuntos de defesa, a situação fica algo fluida.
Há um mantra nas Forças Armadas, Exército no seu centro, com a questão da ocupação do território como forma de manter a soberania nacional. Com efeito, nos rincões da Amazônia, muitas vezes o único Estado existente é o que usa farda.
Alguns números justificam a preocupação. Há no Brasil 22 km² para cada militar, ou 176 fardados para cada 100 mil habitantes. Na América do Sul, a Colômbia conta um membro de Força para cada 3,8 km² ou 592 a cada 100 mil moradores.
Mas o país vizinho vive cinco décadas de guerra civil em níveis diferentes, com problemas de segurança interna bastante diversos dos graves desafios brasileiros.
Houve momentos em que a aplicação das GLOs serviu às Forças Armadas, contudo.
Durante os 13 anos em que o Brasil liderou a Missão de Paz das Nações Unidas, um dos argumentos mais correntes era de que a experiência de polciamente na ilha caribenha poderia ser replicada em morros cariocas —inclusive alterações foram testadas em blindados.
Aqui e ali, ocorreram alguns espasmos no pós-redemocratização de interação dos poderes civil e militar. Do Ministério da Defesa nasceram a política e a estratégia para o setor do país, além dos inventários do Livro Branco.
Lá há preocupações de todo tipo desenhadas, algumas bastante objetivas. “A Marinha é uma Força bastante profissional”, diz Carvalho. Mas a realidade costuma se interpor cada vez que uma Polícia Militar resolve se amotinar.
Fonte:
Folha de S. Paulo
El País: Morte de Paulo Gustavo catalisa ódio contra Governo Bolsonaro por má gestão da pandemia
Joana Oliveira, El País
“Paulo Gustavo não morreu de covid-19. Paulo Gustavo morreu de Brasil.” Essa é uma das milhares de mensagens que têm circulado nas redes sociais desde a noite de terça-feira, quando o país recebeu a notícia do falecimento do humorista de 42 anos, que deixou o marido, Thales Bretas, e dois filhos de um ano e nove meses. Ele estava internado em um hospital do Rio de Janeiro para se tratar da doença desde 13 de março e tornou-se uma das mais de 411.000 vítimas fatais da pandemia no país, mortas por “uma doença para a qual já existe vacina”, como não deixaram de lembrar os fãs do artista. A morte de Paulo Gustavo, um ator e humorista de personagens icônicos, como Dona Hermínia, que fazia rir e era apreciado nos mais diversos lados do espectro político, catalisou a dor coletiva e o ódio pela perda de quase meio milhão de brasileiros. A avaliação mais frequente é que ao menos parte das mortes seriam evitáveis caso o Governo Federal, sob comando de Jair Bolsonaro, tivesse adotado as medidas necessárias na gestão da pandemia, como a compra em massa de vacinas já no ano passado.
O humorista querido pelo país faleceu no mesmo dia em que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta deu testemunho da política negacionista de Bolsonaro durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos em depoimento de estreia da CPI da covid-19. A CPI já levantou que o Governo brasileiro recusou pelo menos 11 ofertas formais de fornecimento de vacinas contra essa doença —levando em conta os episódios em que há provas documentais da omissão governamental. Nesses casos, o Ministério da Saúde simplesmente ignorou as ofertas, sem dar resposta aos fornecedores. Nesse pacote estão, por exemplo, 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer que poderiam ter sido compradas entre agosto e setembro do ano passado.
“Hipócrita”, “verme”, “canalha”, “maldito”, “desgraçado”, “genocida”, “assassino”. Esses foram alguns dos termos usados por famosos, políticos da oposição e anônimos para responder ao presidente após ele publicar nas redes sociais uma mensagem de condolência pela morte de Paulo Gustavo. “Meus votos de pesar pelo passamento do ator e diretor Paulo Gustavo, que com seu talento e carisma conquistou o carinho de todo Brasil. Que Deus o receba com alegria e conforte o coração de seus familiares e amigos, bem como de todos aqueles vitimados nessa luta contra a covid”, escreveu Bolsonaro.
Em meio aos adjetivos nada elogiosos, surgiam comentários que lembravam muitas das vezes em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia, a demora para firmar acordos para a compra de vacinas, as aglomerações que ele promoveu e das quais participou, sua recusa em usar máscaras, a falta de adoção de medidas restritivas e de promoção do distanciamento social, a propaganda da cloroquina como tratamento precoce contra covid-19, mesmo sem eficácia cientificamente comprovada, e uma longa lista de discursos e ações. Na CPI que investiga a gestão da pandemia, Mandetta disse ter a impressão de que o Governo Bolsonaro apostava na teoria da imunidade de rebanho ―que supõe a proteção de uma comunidade quando um percentual da população já tem anticorpos― para superar a pandemia.
O escritor Paulo Coelho, mundialmente reconhecido, foi um dos que, sem citar nomes, responsabilizou diretamente o presidente e seu Governo pela morte de Paulo Gustavo. “Assassinos de Paulo Gustavo: quem dizia ‘é só uma gripezinha’; ‘não passa de 200 mortes’; ‘cloroquina resolve’; ‘gente morre todo dia’; ‘lockdown destrói o país’; ‘máscara nos faz respirar ar viciado’; ‘eu obedeço o comandante’. E por aí vai. Canalhas da pior espécie”, publicou em uma rede social.
Nesta quarta-feira, a jornalista e apresentadora Fátima Bernardes deu voz em seu programa matinal Encontro com Fátima (Rede Globo) à raiva que acompanha a tristeza pela morte do humorista, uma morte que reaviva a dor da perda das outras mais de 400.000 pessoas. “Hoje é um dia de luto pelo Paulo Gustavo, mas também por todos os outros que se foram por conta dessa doença terrível que é a covid-19. E pela forma como essa pandemia vem sendo administrada, infelizmente, aqui no nosso país. Dói muito saber que muitas pessoas, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Cadê a vacina, o respeito ao distanciamento, ao uso de máscara? Cadê uma campanha forte e firme de alerta e informação da população?”, questionou ela. “Nós não estamos só tristes, estamos indignados, nós estamos revoltados. É muito ruim quanto a tristeza e a indignação se misturam à raiva”, acrescentou.
Enquanto a CPI avança no Senado, onde o Governo enfrenta as pressões da oposição, a frustração borbulha nas redes e, em menos de 24 horas, começaram a surgir comentários sobre a organização de protestos na rua contra Bolsonaro. Os administradores do perfil Qual máscara?, uma iniciativa que recompila e distribui informações baseadas em evidências sobre proteção contra a covid-19 e que soma mais de 200.000 seguidores no Instagram e no Twitter, comprometeu-se a distribuir máscaras PFF2 (de alta proteção) para manifestações ao ar livre, a fazer um material informativo para os atos e arrecadar doações para que eles aconteçam.
Nesta mesma quarta-feira, Bolsonaro voltou a menosprezar o uso de máscaras contra a propagação do coronavírus. Durante um ato para falar sobre a inauguração de obras no país, criticou os jornalistas que, segundo ele, “se preocupam apenas em dizer que o presidente está circulando sem máscaras”. “Já encheu o saco isso, pô!”, arrematou.
Fonte:
El País