eleições 2022
Vitórias parciais e novos desafios ao sistema político
Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil
Prossigo, como fiz na semana passada, batendo na tecla de que, ao reverso do que ocorreu em 2018, dessa vez a caravana da política precisa passar. A defesa do sistema político que temos é das mais elementares condições para que se produza um desfecho democrático da crise de múltiplas faces que a política brasileira vem enfrentando há quase uma década e se exorcize os fantasmas de metástase que passaram a ameaçar nossa república, desde que, naquele ano, um autocrata extremado chegou, pelas urnas, à sua presidência.
Essa reflexão é institucional e, também, política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos, pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue, com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então, aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada indulgente com as segundas.
Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.
Por outro lado, é por esse mesmo Congresso – mais exatamente pela Câmara dos Deputados – que tem encontrado passagem uma boiada reacionária, subversiva de direitos, que emana da agenda do governo. A operação passa graças a espaços pródigos abertos a partidos e parlamentares fisiológicos na composição ministerial, sendo dessa mesma natureza a mudança em curso, nessa composição, cujo sentido é fazer prevalecer, no Senado Federal, a mesma atitude de prevaricação política. Que é do jogo, não se pode negar. Mas não se pode deixar de apontar que, nesses casos, os efeitos são nefastos.
O reconhecimento concomitante das virtudes e das mazelas é indispensável para se avaliar com realismo e a devida ponderação a presente conduta de diferentes facções da elite política no âmbito dos partidos e dos poderes Executivo e Legislativo. Os limites que a política real tem mostrado, no enfrentamento das ameaças à democracia, por omissão ou por ações na contramão da república, precisam ser investigados e iluminados, assim como é necessário considerar como ameaças poderiam ter sucesso se estivesse ausente o muro de contenção que, com seu barro impuro, a política institucional tem erguido à barbárie.
Essa complexidade exige condução cuidadosa. Daí precisar ser tratada de modo sério e responsável por quem faz e por quem toca a agenda de partidos e de poderes da República. É mesmo uma orientação, digamos, metodológica inescapável da ordem do dia de atores institucionalmente poderosos. Frequentemente a afinação dos instrumentos da orquestra sistêmica soa mal aos ouvidos de uma sociedade que não tem gosto pela partitura da política. Gera-se um contencioso entre estado e sociedade que, se não se contiver em limites razoáveis, por ambas as partes, compromete pacto e consensos que são necessários, entre elas, para defender a república e a democracia dos inimigos comuns.
Veja-se, por exemplo, a questão do fundo financiador da atividade eleitoral dos partidos. Essa questão é mais complexa e delicada do que parece. A opinião pública reage a todo dispêndio público com partidos e eleições. Mas não podemos esquecer que desde 2018 proibiu-se o financiamento empresarial e por demais pessoas jurídicas, por conta do clima de escândalo reinante sob a operação Lava-Jato. De fato, o financiamento empresarial gerava custos de campanha absurdos e elitizavam a representação. Era preciso conter a farra, parteira de uma promiscuidade entre setor público e empresas privadas. Mas se o STF foi aplaudido quando resolveu dar freio radical naquilo (poderia ter havido fixação de limites, mas sob pressão do clima de faxina, optou-se pela proibição) de algum lugar haverá de sair o dinheiro. Para haver competição democrática não apenas é necessário, mas também desejável, que advenha de recursos públicos. Senão, será candidato com chance real de competir apenas quem tiver recursos próprios para financiar sua campanha, ou – ao se vedar também, ou limitar fortemente, o uso desse tipo de recurso - quem possa dispor de apoiadores individuais abastados, ou quem já tenha mandato e, através dele, acesso privilegiado a meios de comunicação. Seria uma oligarquização ainda maior do que aquela, propiciada pelo financiamento empresarial. Portanto, é preciso ter como premissa que o fundo público para financiar eleições via partidos não tem nada de espúrio. É legitimo, necessário, democrático, o que se pode e deve discutir é seu montante.
Chega-se aí a outro ponto: é intuitivo e, também, induzido pela experiência da sociedade brasileira em lidar com a ambição e ousadia de interesses corporativos (inclusive, mas não apenas, de agentes estatais e da elite política), que o montante previsto é exagerado. Isso tem de ser avaliado e comprovado com critérios objetivos e comparativos com a eleição de 2018, que foi a mais recente eleição do porte da próxima, que envolverá Presidência da República, Senado, Câmara dos Deputados, governos estaduais e assembleias legislativas. É razoável tomar aquela eleição como parâmetro e fazer naquele valor correções mínimas, tendo em conta o contexto crítico que se atravessa. Mas não é razoável dizer que o fundo é ilegítimo, nem que deva ser depreciado, pois é do financiamento da democracia que se trata. De uma democracia ameaçada, sob fogo cerrado. Se a sociedade não quiser financiar eleições e o setor privado está proibido de fazê-lo legalmente, o dinheiro virá de alguma fonte do submundo. O preço a pagar será maior.
Em resumo: democracia não sai grátis, nem barato. Ela é vital para tudo o mais e o discurso de opor gastos com eleições a, por exemplo, com o auxílio emergencial é de um populismo politicamente esperto, porém, raso e vizinho da demagogia. As duas coisas são essenciais nesse momento. O que falta para o auxílio emergencial e outras políticas sociais inadiáveis precisa ser buscado em rubricas que alimentam posições plutocráticas e não nas que financiam a democracia, desde que estejam razoavelmente dimensionadas.
Enquanto os olhares da sociedade são desfocados para uma cruzada contra o fundo de financiamento das eleições, nova boiada – essa sim, espúria - está prestes a passar no Congresso sem que até mesmo os canais de comunicação estejam lhe dando o merecido destaque. Políticos individuais (negam-se como elite política pela simples razão de que operam para destruí-la) sem outro mister senão a contemplação grosseira e politicamente malsã do auto-interesse, organizam-se para liquidar, de um só golpe, o sistema eleitoral e o sistema partidário, através de o chamado “distritão”, pelo qual se consagra o candidato de si mesmo, mandando às favas o sentido institucional da política.
Os pormenores desse projeto e seus previsíveis efeitos requerem nova coluna. Mas o mais evidente deles será imediato (os de longo prazo ainda são incomensuráveis) Anulará, na prática, os efeitos do fim das coligações partidárias em eleições proporcionais (para deputados e vereadores), a melhor medida de reforma política que o Congresso anterior aprovou, em 2017. Em vez de fortalecer os partidos e dar consistência maior ao sistema partidário – possibilidades que não são quimeras, como mostraram os resultados eleitorais de 2020, já sob efeito da reforma anterior - a destruição institucional de agora, autonomeada de reforma, pode converter os partidos em entidades fantasma e revogar qualquer traço de sistema partidário digno desse nome, no Brasil.
A aprovação dessa matéria, tida como provável, dá uma medida das sequelas da eleição de 2018, do retrocesso político que o seu resultado causou, ao alterar de modo radical a composição das Casas legislativas entronizando ali contingentes expressivos de pregadores e praticantes de antipolítica. Convém recordar que o Congresso anterior recebeu as críticas moralistas de sempre, de ter aprovado a reforma de 2017 exclusivamente movido pelo interesse de reeleição dos então parlamentares. Essa obviedade foi guindada à condição de descoberta e assim denunciada, sem se considerar que, naquele momento, auto-interesse e aperfeiçoamento do sistema estavam sendo, simultaneamente, contemplados.
Mas havia uma cobrança de dimensão eleitoralmente relevante por parte de um sentimento público, alimentado por uma direita voluntarista, que clamava por "renovação", eufemismo que traduzia o desejo de exterminar a classe política, suposta responsável pelas mazelas da hora e pelas de sempre. A força desse senso comum de inspiração demagógica cegava a maioria das análises para os fatores institucionais e a isso se somava o ressentimento da esquerda para com o então Congresso, que havia votado o impeachment de Dilma Rousseff. Então, tome pedras, vindas de todos os lados. Mas, na verdade, aquela reforma preservava e aperfeiçoava o sistema no mérito e no modo incremental que, há anos, vinham sendo cobrados pelas mesmas consciências críticas que seguiam, naquele contexto perigoso, apontando o dedo acusador para o "corporativismo" de uma elite parlamentar que apenas lutava para não ser varrida do mapa, a jatos de demagogia. Aí está agora, para que comparemos com a reforma de 2017, essa mixórdia do distritão, que reforçará, exponencialmente, tudo contra o que se batia a lógica da faxina. Se passar, será a mais nova cria com digitais e DNA da "nova política" vencedora em 2018.
O sistema político brasileiro - em sua ambiguidade tradutora da ambiguidade da própria política que processa - tem diante de si duas possibilidades de afirmação permitidas pela pauta atual do Congresso. A de revisar, sem capitular, os termos em que está posto o fundo eleitoral e a de se recusar a cometer, com o distritão, um haraquiri político num instante em que a democracia da Carta de 88 precisa que seu hardware político sobreviva íntegro a essa crise, para retomar, com reformulações incrementais típicas de democracia em modo gerúndio, a trajetória ascendente e socialmente inclusiva de suas duas primeiras décadas.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/07/paulo-fabio-dantas-neto-vitorias.html
Golpe? Que golpe?
Demorou, mas finalmente as instituições se mexeram e foi criada a CPI da Covid
Vai ter golpe? Não. Já teve. Não sei se você lembra, mas foi em 2016, contra Dilma Rousseff. Como o espaço é curto, eu vou resumir. Teve o tuíte golpista do general Villas Bôas ao Supremo, Lula foi preso, não pôde participar da eleição e Bolsonaro foi eleito, enquanto as instituições, claro, funcionavam normalmente. Sim, teve o Moro, hoje, sabe-se, um juiz suspeito.
Tudo ia muito bem para essa gente. Mas, no meio do caminho tinha uma pandemia. Demorou, demorou, mas, ufa, finalmente, as instituições se mexeram e foi criada a CPI da Covid. Eis que os senadores descobrem fortes indícios de corrupção na negociação para comprar vacinas! As suspeitas envolvem coronéis e o general da ativa que foi ministro --e também encostam em Bolsonaro.
Ele despenca nas pesquisas. O que faz, então, o presidente enfraquecido? O arauto do caos intensificou a pregação golpista contra a urna eletrônica e as eleições, contando, agora, com o reforço escancarado do ministro da Defesa, Braga Netto, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo. A ameaça do general foi direcionada ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o mesmo que com seus poderes hipertrofiados se recusa a analisar os pedidos de impeachment contra o presidente.
Ocorre que Bolsonaro foi buscar apoio justamente no centrão de Lira. Na rapina do dinheiro público, a turma de Lira faz assim: escalpela, dilacera as vísceras e termina o repasto triturando os ossos até o tutano. O híbrido de governo miliciano, centrão, liberais defensores do Estado esquelético e militares saudosos da ditadura ainda vai produzir muitos sobressaltos.
Mas o Brasil que irá às urnas em 2022 é muito diferente daquele que votou com ódio em 2018. E tudo o que os generais herdeiros de Ustra conseguirão com seus arreganhos é se parecer cada vez mais com um bando de "maria fofoca", metidos num disse me disse de golpe. Generais, vistam o pijama e devolvam-nos o país que vocês destruíram. Não estão satisfeitos com 550 mil mortos?
Toque de retirada
Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão da vulnerabilidade a que está exposta a condução da política econômica
Salta aos olhos a escalada de dificuldades que vêm sendo enfrentadas pela condução da política econômica nos últimos meses, em decorrência da perda de ascendência do governo sobre o Congresso. Basta ter em conta episódios recentes mais marcantes para discernir os contornos de um processo, cada vez mais claro, de avanço do Centrão sobre a condução da política econômica.
Não é que o governo tenha perdido o controle do Congresso para a oposição. Longe disso. O que se observa é algo bem distinto. Fragilizado como está, o governo perdeu ascendência sobre o bloco parlamentar que supostamente lhe dá apoio. Matérias de seu interesse acabam, sim, sendo aprovadas pelo Congresso. Mas sempre à moda do Centrão. O governo já não tem como impedir que sejam brutalmente desfiguradas.
É o que fica claro quando se tem em conta os episódios do orçamento secreto, da pilhagem da privatização da Eletrobrás e, agora, da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com amplo espaço para reedição do orçamento secreto, em 2022, e triplicação do financiamento público de partidos políticos nas eleições do ano que vem.
Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão dessa vulnerabilidade tão séria a que está claramente exposta a condução da política econômica. E, dessa perspectiva, é fácil perceber quão temerária foi a decisão do governo de enviar ao Congresso, justo agora, um projeto tão complexo de reforma da tributação direta no País.
Mesmo que se tratasse de projeto cuidadosamente concebido e bem articulado, sobre o qual o governo tivesse inabalável convicção, ainda teria sido decisão imprudente, tendo em conta o alto risco de que, nas atuais circunstâncias, as medidas propostas acabassem desfiguradas no Congresso. Tendo em vista, contudo, que não se trata em absoluto de um projeto bem concebido e que, sobre ele, nem mesmo o Ministério da Economia se mostra convicto, a decisão já não pode ser considerada meramente imprudente. Só pode ser percebida como deplorável temeridade.
Constatados os furos, as inconsistências e as desarticulações do projeto, o que agora se vê é o complexo sistema de tributação de renda pessoal, lucros e aplicações financeiras no País sendo drasticamente reconcebido pelo Centrão, ao sabor de uma pororoca de lobbies de todo tipo. No Congresso, brinca-se com dispositivos e parâmetros tributários com a mesma leveza com que uma criança encaixa peças de um jogo de armar, ao acaso, sem maiores preocupações com o que está sendo montado. Não é excesso de pessimismo temer que disso dificilmente sairá um sistema de tributação direta melhor do que o que hoje se tem.
Vendo-se agora relegado a mero coadjuvante na tramitação da reforma no Congresso, o ministro da Economia tem razões de sobra para estar alarmado com o desfecho que poderão ter as negociações no Legislativo quando, afinal, o projeto for votado em plenário, na Câmara e no Senado.
Tudo indica que o presidente, devidamente alertado, já compartilha dessa apreensão. Há poucos dias, Bolsonaro achou oportuno esclarecer que, a seu ver: “Houve um exagero por parte da Economia na reforma tributária, já está sendo acertado com o relator. Realmente, a Receita, no meu entender, como é muito conservadora, foi com muita sede ao pote”. E acrescentou: “Mesmo sendo projeto meu, se passar no Congresso e chegar para mim aumentando a carga tributária, eu veto” (O Globo e Estadão, 21/7).
A ameaça de veto é uma solução descabida. Mas ainda há tempo de evitar o pior. Não é a primeira vez que o governo constata que submeteu ao Congresso um projeto equivocado e impensado. Quando isso ocorre, a solução natural é a simples retirada do projeto. É inegável que há muito o que aprimorar na legislação de Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas. Mas, nas atuais circunstâncias, o que de melhor o governo poderia fazer é retirar o projeto do Congresso e deixar a reforma que faria sentido para momento mais oportuno. Se o Centrão consentir, é claro.
*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
Um Brasil sem futuro
Falta um ano para as eleições presidenciais, e só tem turbulência em volta. Mas, entre disparates golpistas, a Arena renascendo e os generais aloprados, temos outro problema grave. No longo prazo, talvez mais grave. Quem frequenta o circuito dos encontros com pré-candidatos, lê atento os jornais e conversa com políticos de todos os partidos logo percebe o tamanho. Quase nenhum dos principais líderes políticos vive no século XXI. Constroem suas ideologias, à direita ou à esquerda, sobre os alicerces de uma realidade que não mais existe. E isso quer dizer que, como está, não importa que grupo suceda a Bolsonaro. Governará o país sem um diagnóstico da transformação em curso.
Há exceções. Alguns deputados federais e mesmo senadores, um ou outro dirigente partidário, mesmo técnicos e acadêmicos que dão apoio às candidaturas. Mas são exceções e, quase sempre, gente com influência menor nos altos-comandos das legendas.
Isso não tem rigorosamente nada a ver com idade. Joe Biden é um político do tempo da Guerra Fria que já se candidatara à Presidência quando a internet apareceu, já concorrera duas vezes à Casa Branca quando se falou a sério de mudanças climáticas e, quase octogenário, redirecionou o Estado a toda no sentido da era em que vivemos.
Sua visão de EUA se traduz em dois pilares. Uma sociedade e uma economia que sejam digitais e verdes. As frentes para tocar esse projeto, no entanto, são muitas. Uma é dar infraestrutura ao país para que possa crescer nesse caminho. Isso quer dizer redes físicas de banda larga por toda parte. Também quer dizer subsídios, investimentos e incentivos para a conversão de antigos e criação de novos negócios. Mas também é um cuidado pesado com retreinamento de mão de obra. E, principalmente, a compreensão de que, se a operário basta o ensino médio, no século XXI um percentual maior da população precisa ter formação superior. Este é um século em que o PIB está relacionado ao número de cérebros bem-educados. País que não dá universidade a muita gente é país pobre.
Outra perna do trabalho é enfrentar os monopólios do Vale do Silício. Há motivos pontuais — a pandemia de desinformação, que abala democracias e faz morrer gente. Mas, no médio e longo prazos, é mais que isso. Com talentos e recursos financeiros concentrados em poucos grupos fortes demais, como é a natureza dos monopólios, a criação trava, o mercado congela, a inovação desaparece.
Operários em fábricas não voltarão mais. Toda a classe em cima da qual Karl Marx ergueu sua leitura de uma revolução futura deixará de existir. Afinal, “quarta era industrial” é metáfora, não descrição. A Era Industrial acabou. Assim como o tempo do combustível fóssil está terminando — sim, ele resistirá ainda um quê a mais, só que não muito. Bata na porta de uma petroleira, e a moça da recepção logo corrigirá: “Não, aqui somos uma empresa de energia”.
Isso não quer dizer que não exista mais necessidade de esquerda. O digital criou um tipo de precarização de serviços, com Ubers e Rappis, que precisa ser resolvido. Tampouco aponta para a extinção da direita — empresários precisam de mais apoio do que nunca para fazer a transição digital. É um processo complexo, difícil, inevitável — que, no Brasil, não está sendo feito em inúmeros setores. Isso torna o país ainda menos competitivo.
A conta da incompetência de todos os governos passados com educação chegou. Precisaremos resolver a educação pública de qualidade com urgência. Isso e um projeto econômico verde para a Amazônia são as prioridades do próximo Planalto. Só que formar daqui a 20 anos não bastará. Os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski vêm defendendo um programa de importação de cérebros. Estão certos, e é inevitável.
É o básico para qualquer governo pós-pesadelo.
Recibo de estelionato
A ida de Ciro Nogueira para a Casa Civil muda o desenho dos negócios em Brasília. Até aqui, o Centrão se limitava a fazer escambo: alugava apoio parlamentar e sacava sua parte em cargos e benesses. Agora o bloco vai trocar o balcão pela gerência da loja. Passará a mandar sem intermediários.
O chefão do PP se reaproximou do poder em junho de 2020, quando Jair Bolsonaro começou a sentir o cheiro do impeachment. Para socorrê-lo, Nogueira exigiu o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A autarquia cuida de temas que não costumam emocionar os políticos, como a aquisição de livros didáticos e a organização do transporte escolar. Seu segredo está no orçamento, que ultrapassa os R$ 50 bilhões anuais.
Em fevereiro deste ano, Bolsonaro ajudou outro pepista, Arthur Lira, a se eleger presidente da Câmara. A ascensão do deputado aumentou o poder de barganha do Centrão. O grupo capturou o Ministério da Cidadania, abocanhou a Secretaria de Governo e agora assume a Casa Civil, coração da máquina federal.
No presidencialismo brasileiro, o chefe da Casa Civil acumula poderes próximos aos de um premiê. Coordena os ministérios, comanda investimentos em infraestrutura e filtra o que sai no Diário Oficial. É o cargo dos sonhos para quem gosta de políticas públicas e para quem busca outros tipos de recompensa do poder.
Para acomodar Nogueira, o capitão chutou mais um general: Luiz Eduardo Ramos será rebaixado a secretário-geral da Presidência. O militar se disse “atropelado por um trem”, mas não demorou a recuperar os sentidos. Horas depois da demissão, sorria ao lado do chefe num estádio de futebol.
O novo ministro é um bolsonarista tardio. Há três anos e meio, descrevia o capitão como “um fascista”. Seu modelo de estadista era Lula, “o melhor presidente da história deste país”. A seu favor, ele não é o único a mudar repentinamente de opinião.
Na campanha, Bolsonaro prometeu combater a “velha política” e definiu o Centrão como “a nata do que há de pior no Brasil”. Ontem ele escancarou que o personagem vendido em 2018 era pura ficção. “Eu sou do Centrão”, disse. “Eu nasci de lá.” Ao autografar a nomeação de Nogueira, o presidente assinará mais um recibo de estelionato eleitoral.
O preço e a saúde da democracia brasileira
O Centrão carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar o dinheiro público
Quando o Congresso aprovou uma verba de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral, muitos, como eu, protestaram. É o preço da democracia, falou-se em defesa do assalto ao Tesouro. De fato, as eleições têm um preço para todos, sobretudo depois que se decidiu transitar do financiamento privado para o público. Precisava ser um preço tão alto?
A ideia na transição era a de que os gastos excessivos, as campanhas rocambolescas dariam lugar a um processo de debates, e com custos mais modestos. Reconheço que a expressão custos mais modestos tem um valor subjetivo. No entanto, outro argumento se impõe: já que são gastos públicos, devem ser orçados com transparência.
Não foi o que aconteceu. A transparência desejada deu lugar a uma opacidade calculada. O fundo eleitoral deveria ser votado em destaque separado.
Nessa hipótese, os defensores da proposta deveriam explicar o sentido daquela soma de R$ 5,7 milhões. Por que esta soma e não outra, que cálculos os levaram a concluir por um volume de recursos quase três vezes superior ao que foi votado no passado recente?
Adianta pouco pessoas que conhecem a complexidade e os mistérios da política dizerem pura e simplesmente: o volume é esse e pronto, um custo democrático. O que se espera é uma discussão transparente e realista sobre os custos eleitorais, até porque podem ser feitos ainda num contexto de pandemia. Caem as internações, mas a variante delta avança no Brasil e já é a segunda encontrada entre as novas contaminações.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumentou numa entrevista que os gastos eram apenas um quarto dos custos totais das eleições. Mais uma razão para nos inquietarmos: se isso é verdadeiro, as eleições no Brasil custarão R$ 24 bilhões. As de 2018 teriam custado R$ 21,8 bilhões e não estávamos devastados pela pandemia. Não estou acrescentado a esse custo os R$ 2 bilhões necessários para implantar o voto impresso, uma bandeira de Bolsonaro que já está desbotando na Câmara, embora tenha sua votação apenas adiada.
Há algum tempo os especialistas consideram as eleições brasileiras as mais caras do mundo. Em 2006, o brasilianista David Samuels comparou as eleições brasileiras e americanas: as nossas custaram entre US$ 3,5 bilhões e US$ 4,5 bilhões, ante US$ 3 bilhões nos EUA. Os cálculos de Samuels não incluem o chamado horário eleitoral gratuito, que tem esse nome para atenuar seu impacto nas contas, mas representa custo real para o País.
O ato de orçar as eleições brasileiras não envolve, pois, apenas uma parte do preço da democracia, mas também uma porção considerável de sua saúde, expressa em legitimidade.
Dominado pelo Centrão, o Congresso sente-se forte ante um presidente acossado por mais de uma centena de pedidos de impeachment. E carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar dinheiro público.
Esse movimento perdulário não se esgota no fundo eleitoral. O próprio Estado denunciou uma espécie de orçamento secreto, em que as emendas parlamentares são destinadas sem transparência.
Esse processo foi introduzido por meio de um artifício que intitularam “emendas do relator”. Só neste ano Arthur Lira deverá dispor de R$ 11 bilhões para destinar a deputados e partidos fiéis, dentro dessa rubrica.
O chamado preço da democracia brasileira está influenciando a sua saúde. Todos os ressentimentos que já existem sobre a atuação do Congresso acabam ganhando dimensão maior quando se acrescentam essas variáveis financeiras.
Por essas razões foi necessário protestar contra o fundo eleitoral. Bolsonaro não pode simplesmente vetá-lo. Será necessário buscar uma saída conciliatória, pois não podemos voltar subitamente ao financiamento privado.
Aliás, a situação de Bolsonaro é muito cômoda. Ele é candidato e seus gastos de campanha até o momento não são computados como tal. Eles são bancados pelo governo federal, que financia seus deslocamentos no Brasil para passear de motocicleta e fazer discursos eleitorais, às vezes disfarçados, às vezes não. Os custos da campanha já em curso não se esgotam aí. Seu passeio no Rio custou ao Estado R$ 645 mil na montagem do esquema de segurança. Em São Paulo, esse custo praticamente dobrou e foi a R$ 1,2 milhão.
Bolsonaro venceu as eleições em 2018 surfando a onda da luta contra a corrupção e o desprezo do sistema político pelas preocupações das pessoas comuns. Alguns analistas acham que Bolsonaro venceu por causa de um moralismo primário dos eleitores e de alguns formadores de opinião. Essa acusação de moralismo se volta agora contra quem protesta pelo alto custo do fundo eleitoral. No entanto, nosso protesto pode resultar em economia concreta para os cofres públicos, sem prejuízo da disputa eleitoral.
Esses R$ 5,7 milhões serão de alguma forma reduzidos.
A análise do moralismo é precária se não leva em conta o fato de que o sistema político continua de costas para a sociedade e prepara reformas ainda mais escabrosas que o valor do fundo eleitoral.
O grande perigo para a democracia acontece quando o povo se volta contra ela. É o aprendizado que o processo de redemocratização tem de fazer, para evitar que aventuras autoritárias se tornem viáveis de novo.
Extrema direita mundial estreita laços com Governo Bolsonaro
Após troca de comando nos EUA, Brasil ganha centralidade entre nações que pregam contra o que chamam de comunismo e defendem pautas ultraconservadoras. País emula modelo húngaro de controle
A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) exibiu orgulhosa uma foto com a deputada alemã Beatriz von Storch, do partido de extrema direita AfD. “Hj recebi a deputada Beatrix von Storch, do Partido Alternativa para Alemanha [AfS], o maior partido conservador daquele país. Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”, escreveu a deputada em sua rede social. A foto causou choque, especialmente pelo fato de Storch ser neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do Governo nazista de Adolph Hitler. Nascido em 2013, o partido AfD é alvo de investigação do serviço secreto alemão por conexões com atos extremistas no país.
Não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. No final do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) promoveu uma live com o líder do Vox, Santiago Abascal. Um ano antes, o deputado esteve na Hungria com o premiê Viktor Orbán, do partido Fidesz. Em comum entre a AfD, o Vox e o Fidesz, a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.
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O Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora. O papel do Governo brasileiro ficou claro em janeiro de 2021, quando funcionários de alto escalão de Trump enviaram mensagens a outros países informando que projetos que tinham sido conduzidos pela Casa Branca seriam assumido a partir daquele momento por Bolsonaro. Seria do presidente brasileiro a função de liderar a aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da ONU, OMS e outros organismos. A informação faz parte de um e-mail enviado a colaboradores por Valerie Huber, a pessoa escolhida pela Casa Branca no governo Trump para tratar de temas de saúde da mulher. Numa mensagem de 20 de janeiro de 2021 obtida pelo EL PAÍS, Huber anuncia que o Brasil, gentilmente, ofereceu-se para coordenar essa “coalizão histórica”.
A coalizão de cerca de 30 países ganhou o nome de Declaração de Genebra e se transformou numa referência das alas mais radicais em movimentos religiosos. “Países que desejam se unir à Declaração podem fazer isso contatando a embaixada do Brasil nos EUA, por mais detalhes”, explicou. Huber foi a pessoa que arquitetou a coalizão e, ao longo dos últimos meses, costurou uma aproximação importante com a pasta de Damares Alves.
O Governo Bolsonaro não é o único neste movimento de manter viva a agenda de extrema direita no mundo. Mas, tornou-se chave para o fortalecimento desse grupo. De fato, a ausência de Trump não desfez a coordenação internacional. Nos últimos meses e em plena pandemia, membros do Governo brasileiro foram convidados de destaque em encontros fechados com representantes de ONGs cristãs americanas, com grupos de lobby anti-LGBTe antiaborto, além de reuniões com partidos como o Vox e outros grupos de extrema-direita.
Para diplomatas estrangeiros, o que se vê na atuação do Brasil não é nada mais que um roteiro já desenhado e implementado em países menores, mas que tiveram já anos de governos ultraconservadores. Agora, a meta é sua internacionalização. “Há um script e ele é assustador”, afirmou um negociador da UE, na condição de anonimato. O script é a transformação dos governos da Hungria e da Polônia que, ao longo de uma década, conseguiram desmontar uma democracia liberal e instaurar uma nova base ultraconservadora.
A costura dessa aliança começou a ganhar forma já nos primeiros dias do governo Bolsonaro. De forma inédita, o Brasil enviou ao menos seis missões em menos de um ano em 2019, com agendas que incluíam a promessa de uma coordenação na luta contra a perseguição sofrida por cristãos, a defesa da família e a necessidade de proteger a “soberania”. Não faltou ainda um encontro entre o então secretário da Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, com equipes do ministério da Cultura da Hungria. Alvim acabou caindo diante de um polêmico vídeo no qual ele usou referências nazistas.
Longe dos encontros ministeriais, reuniões informais, conferências fechadas e um intercâmbio intenso também foram estabelecidos entre membros do segundo escalão do governo brasileiro e húngaro. Não faltou nem mesmo uma visita de Eduardo Bolsonaro ao primeiro-ministro em Budapeste. A frequência dos encontros se contrasta ainda mais diante da constatação de que, em toda a era republicana, o Brasil jamais havia enviado uma missão com um chanceler para Budapeste.
Modelo Orbán
As coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil chamam a atenção por sua semelhança em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán. O húngaro assumiu o poder em 2010. Mas, durante uma década, o que ocorreu foi o esvaziamento da democracia e um abalo nos pilares da liberdade. Hoje, Orbán controla a Corte Constitucional, o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.
Com eleições se aproximando em 2022 e com a oposição tentando criar pela primeira vez uma frente única para derrotá-lo, o primeiro-ministro ampliou sua radicalização e o uso da guerra cultural como forma de reagir à pressão. No Parlamento, leis foram aprovadas nas últimas semanas tornando a adoção de crianças por casais homossexuais um ato praticamente impossível. Ele ainda modificou normas que acabaram impedindo que menores de 18 anos tenham acesso a qualquer tipo de material que possa fazer alusão ao movimento LGBT. Livros com tais conteúdos são obrigados a trazer um alerta em suas capas e a publicidade de qualquer empresa terá de seguir regras sobre a divulgação de conteúdo.
Em seu projeto de destruição da democracia num caminho similar ao que adota Bolsonaro hoje, Orbán foi em busca da construção de uma Justiça que fosse leal a ele e sua ideologia. Se uma primeira tentativa de reforma do Judiciário esbarrou em protestos da UE, ele agora modifica de forma mais sutil, transformando o sistema de pontos pelos quais os candidatos são julgados para ganhar vagas de juizes. Quem passou por funções no governo, segundo a nova lei, ganha pontos extras. Resultado: o fim de qualquer investigação sobre corrupção no governo e entre seus aliados e o respaldo legal às mudanças de leis sobre o conceito de família, religião, imigração e do próprio sistema democrático.
Outro foco dos ataques de Orbán tem sido as ONGs, ativistas ou qualquer movimento que questione de forma dura o governo, outra bandeira também adotada pelo governo Bolsonaro. Uma das formas de intimidação em Budapeste sobre os movimentos sociais foi a proliferação de controles de auditoria e de impostos, principalmente entre 2014 e 2016. Além disso, todas as entidades que recebem algum tipo de recursos do exterior passaram a ser registadas por “agentes externos”. Apesar de o país ter cerca de 60.000 ONGs, elas passaram a ser excluídas do processo de elaboração de políticas públicas.
Assim como Bolsonaro argumenta que o único termômetro da representatividade da democracia é a eleição, o governo Orbán usa exatamente esse argumento para justificar que organizações da sociedade civil não têm mandato para atuar na formulação de políticas públicas. As coincidências na forma de agir entre os dois governos também ocorrem no tratamento da imprensa. Tanto em Brasília como em Budapeste, os meios de comunicação são considerados como uma força a ser neutralizada.
Por anos, aliados do governo passaram a comprar jornais locais, rádios e outros canais. Quando praticamente toda a imprensa estava nas mãos desses empresários, eles decidiram doar seus impérios para uma obscura fundação, em 2018. No total, 400 meios de comunicação estariam sob uma só direção. Uma semana depois, Orbán assinou um decreto isentando essa fusão de qualquer controle externo, numa centralização sem precedentes. A coordenação entre jornais regionais, revistas, rádios e TVs passou a ser completa, com títulos parecidos para suas manchetes, mesmas imagens e argumentos.
Enquanto financia quem o apoia, o governo “leva à fome” os meios independentes. Empresas que fazem publicidade em jornais contrários ao governo temem perder contratos públicos e o governo passou a não mais responder aos emails e pedidos de informação por parte desses jornais. Enquanto isso, jornalistas são assediados e a oposição passou a ser praticamente vetada de todos os debates nas televisões.
O mesmo movimento de controle também passou pela academia de ciência, dirigidas por leais seguidores do partido de Orbán. Tais estruturas passaram a concentrar grande parte do dinheiro do Estado, com professores com salários mais elevados, esvaziamento dos cursos de Ciências Humanas, o controle das universidades e, na prática, o fim de suas autonomias.
A guerra cultural ainda teve como objetivo reescrever a história do país e estabelecer o comando de teatros e museus para que a ideologia de extrema direita prevalecesse nas peças escolhidas, nas mostras e até mesmo na programação da Opera Nacional. Com uma diferença de dez anos em relação ao governo Bolsonaro, a Hungria serve de modelo de uma guinada iliberal. E que agora é assumida em parte pelo Brasil para influenciar na agenda internacional.
Vera Magalhães: São todos cúmplices
Não resta espaço para dúvida de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ameaçando caso o voto impresso não fosse aprovado.
Lira trucou a ameaça e, como o governo Jair Bolsonaro tem DNA golpista, mas é eminentemente composto de pessoas despreparadas e algo covardes, o presidente e seu general recolheram as ameaças, ao menos por ora, e o resultado foi que o PP e o Centrão avançaram algumas casas para tomar conta de tudo — se apossando de novo até de espaços dos militares.
Foi o Centrão que tirou o general Eduardo Pazuello da Saúde. Mantendo Roberto Dias, o assessor que o general e seu sub, o coronel Elcio Franco, não conseguiram demitir.
Agora é de novo um alto expoente do PP, seu presidente, Ciro Nogueira, que faz outro general pegar o quepe. Luiz Ramos, assim como Pazuello, verga a espinha e aceita ir para um ministério de menor importância.
O mesmo faz Paulo Guedes, ao bater continência para o capitão e para a ala política que já comanda a maior parte do Orçamento e aceitar perder um naco de seu “superministério” para acomodar outro demitido de luxo.
Para onde esses arranjos por baixo da mesa levam o Brasil? Para a esculhambação institucional e política a cada dia mais absoluta e para a constatação óbvia de que não temos um governo, mas uma bodega tocada à base de muita fisiologia, nenhum trabalho, zero planejamento e uma única ideia fixa: a reeleição cada vez mais difícil de alguém que nunca poderia presidir qualquer país.
Quem ameaçou, Braga Netto, e o aliado de quem foi ameaçado, Ciro Nogueira, dividirão a mesa às reuniões ministeriais como se nada tivesse acontecido. O resto das autoridades, aquelas a quem sempre cobro neste espaço, seguirão fingindo acreditar nos desmentidos frouxos, sem se dar conta de que, de bravata em bravata, vai-se corroendo a democracia a partir de dentro.
Está claro que Braga Netto não fala em nome do conjunto das Forças Armadas. Mas também resta evidente que a quantidade de golpistas que ousam dizer suas ideias em voz alta é maior hoje no meio militar que em 2018. Isso já é altamente nocivo para o ambiente político e institucional brasileiro. E nos cobrará um preço enorme.
Também é evidente que Lira, Nogueira e os demais “progressistas” — ah, as ironias das siglas partidárias — não vão com Bolsonaro para uma tentativa canhestra de invasão do Congresso, à Trump. Mas também é cristalino quanto ganharam poder e dinheiro do Orçamento, em múltiplas frentes, só para blindar o presidente e tentar ajudá-lo a se livrar da CPI da Covid e a emplacar seus nomes no Senado.
Além dos bilhões das emendas do relator, nome oficial do orçamento secreto cujo tesoureiro é Lira, agora há o fundão multiplicado. Será que Bolsonaro, agora que o PP deixou vazar a ameaça de Braga Netto e que Ciro Nogueira está de mudança para o Planalto, vai mesmo vetar a farra? Ainda mais diante da possibilidade de fusão de PSL, PP e DEM, partido que pode ser seu próprio destino numa cara campanha eleitoral no ano que vem? Difícil de acreditar nisso, hein?
Não espanta que Bolsonaro, diante desse cenário, declare seu amor filial ao Centrão. Nem mesmo surpreende que os militares, tirados por ele da caserna, comecem a demonstrar nostalgia da ditadura.
Mas chama muito a atenção o silêncio covarde dos que se diziam democratas, iam às ruas pedir o fim da corrupção — e agora se calam diante da escalada diária de mortes, ruína social e econômica e autoritarismo.
São industriais, integrantes do mercado, profissionais liberais e outros que apertaram 17 e agora não têm a coragem de admitir que elegeram o pior presidente do Brasil. São tão cúmplices quanto os fardados e o Centrão.
Jamil Chade: Brasil vive momento mais perigoso de sua democracia
O palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe
Teremos eleições em 2022? A mera existência de uma pergunta como essa em pleno século 21 é um dos sintomas mais dramáticos da ameaça que a democracia brasileira atravessa.
Ao longo dos últimos meses, governo, milícia digital e cúmplices de um movimento autoritário disseminaram dúvidas sobre a legitimidade das urnas no país, contradizendo auditorias nacionais e internacionais. O objetivo nunca foi o de construir um sistema mais sólido.
Mas, assim como toda a estratégia do bolsonarismo, a meta é a de minar a credibilidade e desmontar a confiança popular sobre as instituições.
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O projeto não é novo. A extrema-direita no Brasil iniciou os ataques contra a democracia ao colocar opositores, imprensa e sociedade civil como alvos de uma operação de destruição de reputações, além de borrar as fronteiras entre a Justiça e o Executivo.
Para esse grupo no poder, jamais houve um limite sobre o que era possível fazer para justificar a morte — inclusive no cadastro do SUS — de qualquer um que representasse um questionamento.
Ao disseminar mentiras como política pública, as autoridades buscaram retirar qualquer legitimidade dessas vozes.
Não faltaram ainda ofensivas para rever a história do Brasil, transformando o Golpe de 1964 em um ato a ser comemorado.
Enquanto isso ocorria, um avanço claro era feito para fechar qualquer tipo de canal para permitir a influência da sociedade civil na condução das direções do país. Operações para esvaziar a imprensa também passaram a ser recorrentes, com ataques verbais do presidente Jair Bolsonaro, a opacidade sobre decisões de estado, a lentidão de seus serviços de imprensa em dar respostas aos jornalistas e campanhas declaradas apelando à população para considerar a imprensa como inimigos.
Ao longo de dois anos e meio, o resultado foi a redução do espaço cívico, as dúvidas sobre informações apuradas de maneira profissional e a construção deliberada de um cenário de incertezas.
Agora, o palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe.
Não podemos esperar pelos tanques para agir. Eles talvez nunca virão. Mas a destruição da democracia, por um sistema sofisticado, está em curso.
Em 2022, viveremos a eleição mais importante de nossa jovem democracia. O que estará em jogo não é o destino de um candidato. Mas de uma nação. E, por isso, a luta diária por sua realização se confunde com a própria sobrevivência da liberdade. Não há mais tempo a perder.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Luiz Carlos Azedo: O general linha-dura
Braga Netto assumiu a Defesa para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições. O que consegue, porém, é desgastar as Forças Armadas
Desde que assumiu o Ministério da Defesa, o general Braga Netto tem atuado para alinhar as Forças Armadas aos objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro. Extrapola, porém, as atribuições do cargo, ao se pronunciar sobre temas políticos que não dizem respeito nem demandam o posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Como na desequilibrada nota contra a CPI da Covid, que foi emitida em nome dos comandantes militares, sem que saio menos um deles, com certeza, tenha sido consultado. Mesmo quando nega ter pressionado o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a aprovar a proposta de voto impresso, sob risco de as eleições não serem realizadas, Braga Netto se manifesta sobre o assunto de forma inapropriada, pois é prerrogativa do Congresso decidir a questão sem se submeter a chantagens. Na prática, a nota reverbera de forma ambígua as suspeitas e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao pleito.
Pode ser que Braga Netto esteja confundindo os papéis de antigo ministro da Casa Civil, no qual desempenhava importantes missões políticas, e de ministro da Defesa, que não deve se imiscuir nas relações entre os Poderes. Em vez de se espelhar no figurino dos ex-ministros da Defesa Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a ocupar um cargo criado para ser exercido por civis, e de seu antecessor Fernando Azevedo e Silva, que se recusou a desempenhar esse papel, Braga Netto vestiu a fantasia dos generais linha-dura que pontificaram durante o regime militar — até o presidente Ernesto Geisel demitir o general Sílvio Frota, seu ministro do Exército.
Apesar dos desmentidos à matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de autoria das jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, houve a conversa do interlocutor de Braga Netto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não desmentiu a informação, tergiversou. Nos bastidores do Congresso, comenta-se que o portador do recado fora ninguém menos do que o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que assumirá a Casa Civil no lugar do general Luiz Ramos. Mente-se muito na política, embora a mentira acabe quase sempre desnudada. Mente-se muito mais nos jogos de guerra. Os militares chamam isso de contrainformação, cujo objetivo é impedir ou dificultar o acesso à informação verdadeira, mediante, principalmente, a divulgação de informações diversionistas. O Palácio do Planalto trabalha nessa linha, não preza a transparência nem a informação de interesse público.
Por exemplo, o YouTube acaba de retirar do ar 15 lives do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, por conterem informações falsas. O general Braga Netto, como chefe da Casa Civil e coordenador do governo no combate à pandemia, foi um dos construtores da narrativa negacionista e das desastradas ações do Executivo que defendiam o uso maciço da cloroquina e outros medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus. Essa narrativa, até hoje, está presente nas redes sociais e somente fracassou porque o Brasil já registra 546 mil mortes pela doença. Mais cedo ou mais tarde, Braga Netto será chamado a depor na CPI do Senado, que investiga a atuação do Ministério da Saúde na pandemia, por sua atuação na Casa Civil.
Melar as eleições
A polêmica sobre o voto impresso é um case de contrainformação. A narrativa de Bolsonaro falseia a realidade com objetivo de melar as eleições de 2022, caso seja derrotado, como tentou o ex- presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em quem se espelhou, ano ser derrotado pelo presidente Joe Biden. Quanto maior o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião e a desaprovação do governo, mais recrudescem os ataques de Bolsonaro à urna eletrônica, em que pese nunca ter apresentado provas de fraude na apuração das eleições de 2018, que afirma, fantasiosamente, ter ganhado no primeiro turno.
Braga Netto substituiu o general Fernando Azevedo para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições republicanas. O que vem conseguindo, porém, é desgastar as Forças Armadas, como no episódio da não-punição do exministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado e se manifestando no desfile de motociclistas bolsonaristas no Rio de Janeiro, mesmo estando na ativa. A politização das Forças Armadas e seu envolvimento na política em si é uma ameaça à democracia. O presidente Bolsonaro tenta cooptar militares da ativa para seu projeto autoritário ao requisitá-los para exercer funções civis no governo; de igual maneira, ao estimular pronunciamentos como o do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista.
Entretanto, não existe um ambiente favorável a um golpe de Estado no país, muito pelo contrário, cresce a campanha pelo impeachment. Por isso, a retórica do presidente da República contra a segurança da urna eletrônica e as pressões de Braga Netto para aprovação do voto impresso soam como uma espécie de déjà-vu político. Esse morde-assopra é uma tática conhecida de contrainformação, que os militares utilizam em tempos de guerra, para testar suas cadeias de comando e a capacidade de resistência do inimigo. Por essa razão, tanto o Judiciário quanto Congresso precisam exercer com firmeza suas prerrogativas constitucionais, entre as quais, decidir sobre o sistema de votação e limitar a presença de militares da ativa em cargos civis.
‘Polo democrático precisa construir agenda mínima e ter cara’, diz consultor estratégico
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O consultor estratégico Orlando Thomé Cordeiro faz um alerta sobre a necessidade de se criar uma alternativa aos nomes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “É imprescindível que o chamado Polo Democrático construa uma agenda mínima, olhando para frente, para o futuro”, afirma, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de maio.
O polo democrático deve “deixar claro quais os pontos básicos que uma candidatura desse campo tem a oferecer para a população”, afirma, na publicação, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. “Em complemento, há que se produzir a narrativa adequada para que as ideias-força sejam comunicadas de maneira a emocionar, engajar e mobilizar”.
Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021
Na avaliação do consultor, a agenda e a narrativa mobilizadoras necessitam de um nome que as represente. “Precisa ter cara! Ser percebida pelo eleitorado como competitiva para conseguir chegar ao segundo turno e derrotar qualquer um dos dois atuais favoritos. É uma decisão pra já! Como disse o poeta, não temos tempo a perder”, escreve ele, na revista Política Democrática Online.
“É evidente que Bolsonaro não joga sozinho nesse campo, e a oposição não petista, mesmo não tendo encontrado ainda o melhor caminho para derrotá-lo, tem procurado se mexer. Uma coisa é certa, porém: uma dispersão de candidaturas provocará a repetição do que aconteceu em 2018”, afirma. “É possível evitar isso?”, questiona.
De acordo com Cordeiro, a polarização representada pelas candidaturas de Lula e Bolsonaro só interessa a eles. “Afinal, trata-se de um processo de retroalimentação. Não tem, no entanto, efeito prático algum criticar tal polarização sem apresentar alternativa capaz de atrair aquela parcela do eleitorado que prefere não votar em nenhum dos dois”, assevera.
Confira todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online
A íntegra do artigo de Cordeiro está disponível, no portal da FAP, para leitura gratuita na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.
O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.
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Fonte:
Cursos a distância crescem no Brasil, apesar de acesso à internet não ser para todos
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Em andamento na plataforma Somos Cidadania (somos23.somoscidadania.org.br), o curso Gestão Cidadã, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e parceria com o Cidadania, ao qual é vinculada, é mais um retrato do fortalecimento de formações online no Brasil.
Iniciado no dia 3 de maio deste ano, o curso foi destaque da reportagem especial da revista Política Democrática Online de maio (31ª edição). Oferece aulas telepresenciais para novos líderes, prefeitos, vereadores e demais gestores filiados ao Cidadania, como oportunidade de capacitar os gestores dos municípios brasileiros, principalmente.
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Mesmo com as dificuldades, as formações online têm avançado no país. Em 10 anos, por exemplo, o número de novos alunos em cursos superiores a distância aumentou 4,7 vezes. Saltou de 330 mil estudantes, em 2009, para mais de 1 milhão e meio, em 2019, o que equivale a um crescimento de 378,9%.
Já o índice de ingressantes em graduações presenciais foi ampliado em escala bem menor: 17,8%. Os dados são do Censo de Educação Superior, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Três em cada quatro brasileiros acessam a rede, o que equivale a 134 milhões de pessoas, de acordo com a mais recente pesquisa TIC Domicílios, baseada em dados oficiais de 2019.
Realizado por meio da plataforma Somos Cidadania, o curso Gestão Cidadã tem o objetivo de elevar o padrão das administrações municipais e conta com um time de professores considerados de alto nível.
Clique aqui e conheça o curso Gestão Cidadã
A fundação, desde que foi criada, em 2000, tem atuação bastante forte na formação política, primeiro com cursos exclusivamente presenciais. Depois, a FAP passou a fortalecer suas atividades no segmento de cursos a distância.
Apenas no ano passado, a fundação realizou dois cursos online de formação política, com entrega de certificados para 606 concluintes, no total. A Jornada da Cidadania formou 391 alunos e a Jornada da Vitória, 215.
Além de incluir as duas jornadas na lista de seus cursos de formação a distância, o mineiro Pedro Auarek agora ocupa seu tempo com dedicação ao Gestão Cidadã. “Fiz mais de 20 cursos online, a maioria deles no período da pandemia”, comemora.
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A íntegra do artigo da reportagem está disponível, no portal da FAP, para leitura gratuita na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.
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