eleições 2022
Ascânio Seleme: O poder político é civil
Ideia de reunião com os chefes das três Forças Armadas é oferecer poder político a quem por direito constitucional não o tem
Ascanio Seleme / O Globo
Não se deve oferecer poder político a quem por direito constitucional não o tem. A ideia dos governadores de se reunirem com os chefes das três Forças Armadas para medir a temperatura e tratar das manifestações do dia 7 de setembro é exatamente isso, dar força e poder político aos militares. O Brasil não precisa disso numa hora como esta. Conversar com os chefes militares pode até ocorrer, mas informalmente e nunca de maneira concertada e coletiva. No caso, os militares têm um dever constitucional e a ele devem se ater. Se ocorrer um badernaço de policiais militares armados no dia 7, caberá às Forças Armadas intervir para manter a lei e a ordem, como manda a Constituição. E ponto.
Generais só devem ser ouvidos sobre questões militares ou que envolvam atividades fora das definições constitucionais em que as Forças Armadas possam ser empregadas. Se um governador precisar da ajuda do Exército para abrir uma estrada ou construir uma ponte, por exemplo. Ou se um ministro precisar do serviço da Aeronáutica para transportar vacinas para um local que não é servido por linhas aéreas comerciais. Conversar com militares sobre suas atribuições constitucionais é chover no molhado. Sabem o que o general Paulo Sérgio, comandante do Exército, responderia aos governadores se estes lhes perguntassem como agiria em caso de baderna no 7 de setembro? Que agiria de acordo com o que determina a Constituição.
Aliás, o general Paulo Sérgio disse esta semana que o Exército respeitará sempre seus limites constitucionais. Falou isso no discurso que fez no dia do soldado. Foi claro diante do presidente da República, que ouviu calado. Mesmo que Jair Bolsonaro tente dar um golpe (e vai tentar), não será no dia 7 de setembro deste ano. E no momento em que tentar, pelo que se ouviu no dia do soldado, será rechaçado pelo Exército. Poderá ter o apoio de policiais militares? Sim. Mas estes nada podem sozinhos, não são organizados nem disciplinados. Sua reputação é péssima em todas as unidades da federação, ao contrário das Forças Armadas, uma das instituições mais respeitadas do país.
Exército, Marinha e Aeronáutica jamais se subordinarão a um golpe engendrado pela PM que, embora seja uma força de segurança pública, também em muitos casos é sinônimo de violência e terror. Tampouco as Forças Armadas se aliarão às milícias, quase todas formadas por ex-oficiais e ex-praças das PMs e dos Bombeiros. O que resta a estes agitadores que pretendem se manifestar armados no dia 7 é a baderna.
Usar a arma da corporação para se manifestar em vias públicas e ameaçar a democracia é crime. PMs armados em ato civil são declaradamente covardes. Qualquer ato de violência que vier a ocorrer será de responsabilidade destes que desrespeitam as leis e a Constituição. E devem ser punidos. É importante que os opositores de Jair Bolsonaro entendam isso e não insistam em se manifestar no mesmo dia. Podem dar o argumento que os extremistas precisam para iniciar a baderna e responsabilizar o outro lado.
Embora o Congresso estude uma quarentena de cinco anos para militares disputarem eleição, ninguém tem medo de medir forças com eles. Mas que venham desarmados, sem as fardas, reformados, e pelo voto. Em 2018, arrastados pelo fenômeno que elegeu Jair Bolsonaro, 72 militares foram eleitos para exercer mandatos nas câmaras estaduais e federal e no Senado. Menos de 5% dos 1626 parlamentares eleitos naquele ano excepcional. Dos 27 governadores eleitos, dois são militares reformados.
Todos os militares foram eleitos depois de se reformarem. Embora muitos usem seus antigos cargos antes do nome, como o ex-senador major Olímpio, nenhum deles é mais militar. São todos civis e só por isso foram habilitados para disputar um cargo eletivo. O poder político é civil no Brasil, manda a Constituição. Quer usar farda e armas pagas pelo Estado? Então fique no quartel. A beleza da democracia é que o eleito será sempre aquele que o povo escolher. Pode ter sido coronel, sargento, professor ou advogado, pode nem ser o melhor, mas sempre será um civil escolhido pelos eleitores de maneira livre e secreta.
Negociar o quê?
Os governadores, liderados por João Doria, erram ao tentar negociar com o presidente Jair Bolsonaro. Não há o que negociar. Não há mais diálogo possível com o chefe do Executivo. Os entendimentos têm que ser feitos com os Poderes Legislativo e Judiciário, com os setores organizados da economia, o agronegócio incluído, com sindicatos patronais e profissionais, com a comunidade acadêmica e com a sociedade civil. É impossível pacificar o país convencendo Bolsonaro que o caminho moralmente aceito e constitucionalmente possível não é o dele.
Não chamem os bombeiros
Neste momento, bombeiros apenas atrapalham o percurso que o Brasil terá de seguir até se ver livre de Bolsonaro. O ministro Luiz Fux já tirou o uniforme e o capacete e voltou a usar a toga.
Cabeça de bozo
Os brasileiros lotaram as praias e os parques no fim de semana passado. Ipanema, vista de quem andava do outro lado da calçada, parecia viver um veranico normal, como se estivéssemos em agosto de 2019. Havia de tudo naquela orla, menos máscaras. Ah, sim, faltaram também as bandeiras do Brasil.
Beija mão 1
O presidente parece mesmo disposto a destruir a candidatura de André Mendonça para o Supremo. Jogou Mendonça aos lobos ao informar aos apoiadores do seu curralzinho no Alvorada que o candidato a juiz se comprometeu de rezar na primeira sessão de cada semana da Corte e com ele almoçar uma vez por semana.
Beija mão 2
Quem notou o gesto e já fez um rápido movimento para ocupar o vácuo involuntário deixado por André Mendonça foi o ministro do STJ João Otávio Noronha.
Beija mão 3
O apoio do pastor Silas Malafaia ajuda ou atrapalha a candidatura de Mendonça? Se desse para agradecer e dizer “não, obrigado”, essa era a hora.
Nosso Rio
Muito bom o Instagram da Prefeitura do Rio. Moderno, ágil, didático, bem humorado. Vale como uma aula de comunicação.
Melhor calar
Lula é mesmo muito corajoso. Podia ficar na dele, calado sobre assuntos polêmicos em que o PT está do lado errado da corda esticada. No caso da censura à imprensa, apelidada de regulação da mídia pela sua turma, Lula disse que será prioridade em seu governo. Por falar demais, deixou escapar sua real motivação: “Eu vi como a imprensa destruía o Chávez”. Significa que é melhor calar a imprensa antes de ouvir dela denúncias contra o seu governo. Na Venezuela, aliás, a imprensa foi dizimada por Chávez e Maduro.
Respeitem os índios
Não é de hoje que os índios brasileiros são desrespeitados e vilipendiados por seus conterrâneos não originários. Quase todos os ataques que sofrem têm natureza econômica em razão da ocupação e exploração de terras. Mas eles também sofrem preconceitos racistas facilmente identificados. O que os índios brasileiros querem é viver em paz nas suas terras. E querem também, se entenderem ser este o caso, ter o direito de eles próprios explorarem seus recursos naturais e suas áreas agricultáveis. Deve-se respeitar o índio como nosso mais rico patrimônio antropológico.
Pobre Minas
Quem achava que Minas Gerais não poderia chegar mais fundo no poço em que se meteu, surpreendeu-se com a aparição de Romeu Zuma, na cola do meteoro Bolsonaro de 2018. O governador causa mais vergonha aos mineiros do que um de seus mais célebres antecessores. Minas está cada vez mais parecida com o Rio. Acha o governador atual ruim? Corrupto? Espere o próximo.
Chora mais
Fabio Rigo, herdeiro da empresa que produz o arroz Prato Fino, atacou o SUS no seu Twitter, disse que teve Covid sem sentir cócegas, que não vai se vacinar e concluiu com a frase imortal dos abusados: “Quem pode mais, chora menos”. O tweet foi postado 16 horas depois de o Grêmio, seu time de coração, levar de 4 X 0 do Flamengo. Com todo respeito aos demais gremistas, chora mais, Rigo.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/o-poder-politico-civil-25174643
Triunfo eleitoral, mais distante, sempre foi o plano B de Bolsonaro
O plano A é um golpe de Estado, com a submissão do Judiciário e do Congresso ao 'meu Exército'
Demétrio Magnoli / Folha de S. Paulo
Munique tornou-se, desde setembro de 1938, um nome polissêmico. A capital da Baviera alemã passou a evocar “apaziguamento” e, ainda, “traição”. No Brasil de hoje, Munique é Brasília, desde que o comando do Exército recusou-se a punir Eduardo Pazuello. Dependendo da conclusão do caso do coronel Aleksander Lacerda, logo será São Paulo.
No Rio de Janeiro, em 23 de maio, Bolsonaro pronunciou um discurso subversivo, em ato de rua. Ao seu lado, no palanque, estava Pazuello, que também discursou. Duas semanas depois, uma nota do Exército comunicou o arquivamento do processo administrativo instaurado contra o general da ativa.
Munique: Neville Chamberlain e Édouard Daladier entregaram os Sudetos a Adolf Hitler. Brasília: Paulo Sérgio de Oliveira jogou à lata de lixo o Regulamento Disciplinar do Exército que proíbe manifestações públicas políticas de militares de ativa.
O “chavismo de direita” de Bolsonaro, na precisa expressão de Rodrigo Maia, subverte a ordem democrática na tentativa de dissolver a fronteira legal que separa os homens em armas da atividade política. O triunfo eleitoral, horizonte cada vez mais distante, sempre foi o plano B do presidente. Seu plano A é um golpe de Estado: a submissão do Judiciário e do Congresso ao “meu Exército”.
O “meu Exército” bolsonarista não é o Exército brasileiro, mas uma milícia nucleada por militares amotinados. A agitação subversiva no interior das Forças Armadas ainda não ganhou tração, apesar do espaço aberto pelo apaziguamento do comandante do Exército. Nas polícias militares, porém, ergue-se um Partido Bolsonarista cujos contornos delineiam-se com nitidez às vésperas dos atos golpistas de 7 de Setembro.
Nas quase 400 mensagens que publicou em agosto, o militante bolsonarista Aleksander Lacerda, que veste uniforme de coronel da PM, insultou reiteradamente o governador paulista e o presidente do Senado. Mas, sobretudo, convocou seus “amigos” —ou seja, os 5.000 policiais de sete batalhões que comandava— aos atos subversivos.
Não são gestos de um solitário desvairado, mas lances de uma estudada provocação. Lacerda testava os limites, investigava a firmeza da coluna vertebral de João Doria. Sua conclusão provisória é que São Paulo pode ser Munique.
“Ele tem de ser severamente punido sob o ponto de vista administrativo e sob o ponto de vista penal-militar. Se não, vamos instalar a balbúrdia na instituição”, alertou o coronel Glauco Carvalho, ex-comandante de policiamento da capital do estado.
Doria, porém, preferiu classificar o comportamento de Lacerda como “inadequado” e afastá-lo de seu comando, entregando-o à Corregedoria da PM. A “balbúrdia” está a apenas um tiro de distância.
O STJ (Superior Tribunal de Justiça) já firmou entendimento de que governadores têm a prerrogativa de expulsar oficiais da PM, via processo administrativo, sem prejuízo de julgamento pela Justiça Militar. Contudo, em São Paulo, o apaziguamento começa a fazer seu curso. Simulando cegueira, Doria descreveu a conclamação de Lacerda ao motim como um “fato pontual”.
Enquanto o governador praticamente encerrava o assunto, a facção bolsonarista da PM paulista organizava caravanas de ônibus de policiais que, à paisana, pretendem participar das manifestações do 7 de Setembro.
“A solução do problema da Tchecoslováquia é o prelúdio de um acordo mais amplo pelo qual toda a Europa pode encontrar a paz”, declarou Chamberlain ao retornar de Munique. Segundo a teoria do apaziguamento, a paz vale a traição. Trump e Biden aplicaram a tese ao Talibã, assinando um acordo pelo qual o governo afegão libertou 5.000 combatentes inimigos, que retornaram de imediato ao campo de batalha.
“Vocês tiveram a escolha entre guerra e desonra. Escolheram a desonra, e terão a guerra”, fulminou o sucessor de Chamberlain. Cabul caiu 16 meses após o acordo. Hitler atacou um ano após Munique.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/08/triunfo-eleitoral-cada-vez-mais-distante-sempre-foi-o-plano-b-de-bolsonaro.shtml
Cristina Serra: Progressistas, acordem!
Em setores da oposição ao fascismo, prevalece aparente falta de estratégia e/ou predominância de projetos pessoais
Cristina Serra / Folha de S. Paulo
Eleito no embalo do golpe de 2016, do lava-jatismo e da insânia bolsonarista, o Congresso atual é o pior do período pós-redemocratização. Exceção deve ser feita a uma minoria atuante, porém insuficiente para se contrapor às pautas que destroem o Estado brasileiro e aprofundam as desigualdades e injustiças na nossa sociedade.
A Câmara foi sequestrada pela perversa aliança do centrão com a extrema direita, o que garante a permanência do arruaceiro no Palácio do Planalto e rebaixa o Parlamento. Qualquer novo governo comprometido com princípios civilizatórios elementares terá muita dificuldade de reverter o dano sem uma maioria progressista de deputados e senadores.
Em setores da oposição ao fascismo, porém, prevalece aparente falta de estratégia e/ou predominância de projetos pessoais. Em que pese a legitimidade dessas ambições, é hora de reocupar o Congresso. Todos com potencial de puxar votos para eleger bancadas expressivas têm que ser chamados para ajudar a restabelecer a normalidade institucional.
O estrago feito por talibãs de gravata como Eduardo Cunha e Arthur Lira (PP-AL) é autoexplicativo.
Além de reeleger os progressistas que já estão lá, é importante levar para o Congresso figuras públicas como Marina Silva, Flávio Dino, Miro Teixeira, Cristovam Buarque, Manuela D’Avila, Eduardo Suplicy, Nelson Jobim, Fernando Haddad, Guilherme Boulos e muitos outros que poderão, inclusive, atrair novas lideranças para a política.
É imperativo que a oposição progressista repense candidaturas estaduais. De que adiantará ter presidente e governadores democratas se o centrão, fundamentalistas do mercado e bancadas BBB (boi, bala e bíblia) mantiverem seu poder de chantagem? Ganhar a Presidência não será fácil, tampouco suficiente. Ou se retoma a civilidade no Congresso Nacional ou o país levará décadas para se recuperar da desgraça que a atual legislatura e esse desgoverno genocida estão executando com alguma competência.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/08/progressistas-acordem.shtml
Marco Antonio Villa: Precisamos salvar o Brasil do bolsonarismo
Bolsonaro quer que a oposição vá para o pau-de-arara, seja torturada e morta. Só não o fez ainda graças à ação corajosa do STF
Marco Antonio Villa / Revista IstoÉ
Os tambores das tropas de assalto bolsonaristas anunciam o golpe. Não há dia sem alguma notícia de ameaça ao Estado democrático de Direito. Jair Bolsonaro vocifera com ódio contra a democracia. A mesma democracia que abriu caminho para que chegasse à Presidência, isto após trinta anos de vida parlamentar. Houve um erro, grave erro, dos poderes constituídos que assistiram passivamente Bolsonaro atacar os fundamentos constitucionais, defendendo abertamente a supressão da Carta de 1988. Esta ação criminosa permitiu que numa conjuntura de enfraquecimento das instituições, em um momento de angústia e desespero frente aos sucessivos casos de corrupção, da falta de candidaturas que lessem a conjuntura e conseguissem entender o sentimento dos brasileiros cansados e frustrados com os presidentes recentemente eleitos, deu a Bolsonaro a chance de chegar ao posto de chefe do Executivo federal.
Do interior do aparelho de Estado, Bolsonaro foi diuturnamente solapando as bases democráticas construídas com tanto esforço desde os anos 1980. Ele representa os derrotados, a extrema-direita que foi enxotada do governo, que durante 21 anos se locupletou em nebulosas transações, que organizou um sistema repressivo para exterminar criminosamente os opositores à ditadura. Não é acidental que faça loas ao covarde coronel Ustra, transformando-o em seu herói. Para ele, a oposição tem de ir para o pau-de-arara, deve ser torturada e morta. Só não o fez ainda, graças à ação corajosa e republicana do Supremo Tribunal Federal. Se não estamos em uma ditadura — e desde o ano passado — é graças ao STF.
Estamos nos aproximando da hora decisiva. O Brasil não aguenta mais tanta turbulência política, tanto ódio, incompetência administrativa, falta de projeto de governo, tantos mortos da pandemia. Estamos alcançando a macabra marca de 600 mil óbitos. No País, em um ano e meio de pandemia e sem nenhum tiro — graças ao planejamento do genocida Bolsonaro — tivemos quatro vezes mais mortos do que em vinte anos de guerra no Afeganistão. Precisamos salvar o Brasil da sanha nazifascista, do bolsonarismo. Roubaram até a nossa bandeira. Temos de dizer: tirem as mãos do pavilhão nacional. Ele representa as lutas do povo brasileiro. Fiquem com a suástica e o fascio. A bandeira verde e amarela é nossa.
O Brasil não vai resistir a um processo eleitoral, no ano que vem, tendo Bolsonaro na Presidência. Ele quer completar a sua obra ensanguentando o País. Temos de resistir, antes que seja tarde demais.
Fonte: Revista IstoÉ
https://istoe.com.br/precisamos-salvar-o-brasil-do-bolsonarismo/
Governo e Centrão ainda parecem perplexos diante da piora da economia
Até o final do último semestre, o cenário era de festa, com retomada econômica e o aumento recorde de arrecadação
Adriana Fernandes / O Estado de S. Paulo
Com os preços dos alimentos e combustíveis em alta e o tarifaço da conta de luz mostrando a sua cara, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem recomendar a todos os brasileiros que comprem fuzil, mesmo que seja caro.
Parece piada de mau gosto, mas não é. É o presidente falando: “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”, disse Bolsonaro numa fala odiosa e desrespeitosa com os brasileiros que estão penando com os efeitos da inflação.
É a última pérola de uma semana marcada por declarações de integrantes do governo que sintetizam o estado de desorganização na condução dos múltiplos problemas mais urgentes do País, como a inflação e a crise energética, temas que estão deixando o presidente e o governo ensandecidos.
PAULO GUEDES, MINISTRO DA ECONOMIA
Jair Bolsonaro achou por bem recomendar a todos os brasileiros que comprem fuzil. Foto: Evaristo Sá/AFP
“Qual o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara?”, indagou o ministro Paulo Guedes. “Como gerar emprego com uma CLT tão rígida?”, questionou Bolsonaro.
“Cadê a grande deterioração fiscal?”, perguntou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que na semana anterior dissera que era impossível controlar a inflação com o fiscal descontrolado. Perguntas cujas respostas teriam de ser dadas por aqueles que estão questionando.
Campos Neto já suavizou o discurso do descontrole fiscal porque sua fala desagradou aos seus colegas da equipe econômica do lado de lá, no Ministério da Economia. Foi lembrado que os dados das contas públicas melhoraram nos últimos meses, enquanto a inflação acumulada em 12 meses tem assustado e chegou à marca de dois dígitos em quatro capitais na prévia de agosto.
A fala do presidente do BC também não foi bem recebida pela ala política, que viu na declaração uma crítica direta aos governistas do Centrão, grupo com fama e prática de gastador, mas que está preocupado com o prejuízo eleitoral de alta de preços persistente.
Campos Neto continua, porém, com excelente trânsito com o mundo político, que volta e meia elogia seu trabalho no BC em contraponto ao ministro Guedes, que voltou a ser alvo dos aliados do Centrão.
Governo e Centrão parecem ainda perplexos diante da piora do quadro econômico. Até o final do último semestre, o cenário era de festa, com retomada econômica e o aumento recorde de arrecadação. Dados positivos que alimentaram os instintos mais primitivos da gastança pré-eleitoral, e que agora cobram o seu preço. Todos acreditando que o Brasil ficou rico durante a pandemia pelo ciclo de alta das commodities, que encheu os cofres dos Estados e do governo federal a um ano da campanha de 2022.
Patrocinaram também a manutenção das emendas de relator, que financiam o orçamento secreto, a frágil governabilidade do presidente e o apoio nas votações de interesse do governo. O veto prometido do presidente não aconteceu com a ameaça dos caciques de retaliação.
O gatilho da piora no ambiente econômico foi disparado pelas trapalhadas na condução da negociação do parecer do projeto do Imposto de Renda e da PEC de parcelamento dos precatórios. Desde que a PEC foi enviada, o humor azedou ainda mais. Foi só ladeira abaixo porque há muita controvérsia e divisão de opiniões em torno da solução para o parcelamento por 10 anos do pagamento de uma dívida certa. A unanimidade no governo e no Congresso é que a PEC não fica em pé do jeito que está.
Um tema que dividiu até mesmo fiscalistas e defensores do teto de gastos e colocou pesos-pesados de equipes econômicas de governo passados em defesa da flexibilização da regra fiscal para evitar a moratória.
Em outro caminho, Legislativo e Judiciário também costuram uma solução para precatórios para limitar o pagamento até um determinado valor, e o saldo restante ficaria para ser pago no Orçamento dos anos seguintes, já como prioridade para serem quitados antes. Uma proposta que permitiria ser implementada com a aprovação de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou do Senado Federal, sem PEC, mas que é vista pelos críticos como uma “canetada” que passa por cima da Constituição.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-e-centrao-ainda-parecem-perplexos-diante-da-piora-do-quadro-economico,70003824056
A estratégia de criar inimigos em modo ‘reels’
Seguindo o exemplo de Trump, Bolsonaro radicalizou a linha de Maduro, Duda e Modi
João Gabriel de Lima / O Estado de S. Paulo
Criar inimigos é um clássico do arsenal dos políticos. Uma anedota conhecida sobre Jânio Quadros conta que, forçado a aumentar a gasolina, o ex-presidente inventou uma teoria conspiratória e colocou a culpa nos americanos – outro clássico. Mais tarde, em sua famosa carta de renúncia, que completou 60 anos nesta semana, Jânio invocou “forças terríveis”, esperando que parte da população se juntasse a ele no combate a tais entidades. Não houve clamor popular.
Jânio voltou para casa e amargou mais de 20 anos longe de cargos públicos.
Criar inimigos, em geral imaginários, tornou-se ainda mais fácil na era das redes sociais. “Diante do caos e da complexidade de um mundo em mudança frenética e acelerada, o populismo digital garante o repouso em certezas que não requerem provas”, escreveu Andrés Bruzzone em seu recém-lançado livro Ciberpopulismo. Bruzzone, consultor do Estadão e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é o entrevistado do minipodcast da semana.
Cada populista escolhe o moinho de vento que lhe parece adequado. Nicolás Maduro, da Venezuela, demoniza as ONGS de direitos humanos. O polonês Andrzej Duda já vociferou contra os imigrantes muçulmanos – que são pouquíssimos em seu país – e contra uma suposta conspiração LGBTQIA+. O indiano Narendra Modi cria leis para amordaçar a imprensa, inimiga clássica de dez entre dez autocratas.
Seguindo o exemplo de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro radicalizou a linha de Maduro, Duda e Modi. Troca de inimigos como modelos mudam de look no “reels” do Instagram. Seus moinhos de vento já foram o fantasma do comunismo (uma alma penada), a urna eletrônica (que nunca deu problema no Brasil) e o “kit gay” (dispensa comentários). O mais recente é o ministro Alexandre de Moraes. Neste caso há um motivo concreto para a inimizade: “Quando se trata de livrar os seus familiares e amigos do alcance da Justiça – afinal, essa é a causa de sua desavença com Alexandre de Moraes – (Bolsonaro) não tem limites”, escreveu o Estadão em editorial.
Maduro, Duda e Modi são a prova de que a estratégia do inimigo imaginário pode trazer recompensas. Todos estão no poder em seus países. Vai funcionar com Bolsonaro? O presidente está em campanha frenética pela reeleição, mas enfrenta problemas. Sua popularidade vem caindo. A respeitada consultoria Eurasia, que previu a vitória de Bolsonaro em 2018, hoje aposta em Lula, e vê uma escotilha aberta para a terceira via.
Com a campanha antecipada a pleno vapor, os pré-candidatos perceberam que quem não colocasse o bloco na rua ficaria para trás. João Doria, Ciro Gomes e Eduardo Leite já esquentam os tamborins. A classe política não vê mais Bolsonaro como um player inexorável em 2022. Reportagem do Estadão mostrou que vários parlamentares duvidam que o presidente chegue ao segundo turno. O voto impresso não passou, e o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes foi rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco – ele próprio um possível candidato em 2022.
O cientista político Carlos Pereira levantou, no Estadão, a hipótese de que o presidente, antevendo o próprio fracasso, queira se tornar um mártir para seus apoiadores. Mártires, no entanto, não têm caneta. Como Trump, conseguem sobreviver politicamente – mas, como Jânio, acabam voltando para casa. Cultivar inimigos de forma serial, em modo “reels”, pode não ser uma boa estratégia.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-estrategia-de-criar-inimigos-em-modo-reels,70003823913
Murillo de Aragão: O alto custo da instabilidade política
Setores radicais estão querendo tornar pior o que já não está bom
Murillo de Aragão / Revista Veja
O semestre parecia positivo ao país. A vacinação seguia derrubando os índices de óbitos pela Covid-19 nos estados. A economia caminhava bem, e o câmbio em queda sinalizava que o cenário poderia se configurar para melhor. A arrecadação estava em alta e a dívida pública, em baixa. O Brasil, porém, é o Brasil. E, quando tudo poderia melhorar em meio à tragédia da pandemia, uma tormenta de tolices, equívocos e disputas frívolas arruinou a expectativa quando mais precisávamos dela.
Ainda que o Brasil seja melhor do que parece, setores radicais estão querendo que o que não está bom fique pior. Mesmo diante do risco de nova onda de Covid-19 e de uma crise hídrica que pode ser terrível, em especial em ambiente de inflação em alta e desemprego em nível assustador, há quem queira incendiar o parque institucional.
A instabilidade política trabalha contra o país. E quem a está incentivando não percebe isso. Cabe às instituições, inclusive o governo, conter os ânimos. Há tempos afirmei que o presidente Jair Bolsonaro tem em seus aliados mais radicais os seus principais adversários. Ao ser complacente com os delírios de seus apoiadores, para dizer o mínimo, Bolsonaro pode estar inviabilizando tanto o seu governo quanto o seu desejo de se reeleger.
“Não há caminho para rupturas no país sem que isso provoque imensos transtornos aos brasileiros”
As consequências são óbvias: Lula foi “ressuscitado” politicamente e o centro, que parecia pouco competitivo, pode se transformar em uma alternativa viável. No establishment econômico há um misto de enfado, desânimo e estupefação com a incapacidade do governo de capitalizar o que faz de bom. E, por outro lado, com a sua capacidade de se meter em querelas inúteis. Seu histórico é digno de uma república de bananas podres: ofensas pessoais, ameaças de invasão a órgãos públicos, paralisações, acusações sem prova, ameaças de agressões e não aceitação das regras democráticas, além de meteoros fiscais e propostas tributárias polêmicas.
Temos o privilégio de ser uma nação com poucos problemas gerados no exterior. Nossos problemas são 100% brasileiros. Mas estamos exagerando. Ao programarmos protestos contra instituições, passamos uma péssima imagem para os investidores. Como se estivéssemos, enquanto país, brincando de roleta-russa com um revólver carregado de balas.
Setores radicais que apoiam o governo querem forçá-lo a praticar haraquiri institucional. Só não percebem que o resto do país não quer isso. Por mais que o povo desconfie das instituições, somos um país cujo nível de reformismo é de baixo impacto. Acreditamos que mudanças cumulativas podem trazer bons resultados, e as reformas feitas nos últimos cinco anos mostram justamente que estávamos avançando.
Não há caminho nem clima para rupturas institucionais sem provocar imensos transtornos aos brasileiros, sobretudo aos que estão à margem do sistema. O direito de manifestação é livre e assegurado pela Constituição. E deve ser respeitado. Contudo, isso não significa que os manifestantes, sejam de qualquer espectro político, tenham passe livre para atacar instituições, vandalizar prédios e afetar o direto de ir e vir. É hora de termos mais juízo como nação e começar a pensar no elevado custo da instabilidade institucional.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/o-alto-custo-da-instabilidade/
Alon Feuerwerker: Nunca mais?
Decisão a favor do ex-presidente Lula é mais uma pá de terra sobre a Operação Lava Jato
Alon Feuerwerker / Veja / Análise Política
E os últimos dias assistiram ao enterro da 17ª ação judicial contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Advogados e apoiadores dele festejaram mais uma pá de terra sobre a Lava Jato.
Se nenhum obstáculo jurídico aparecer até outubro de 2022, e se o acaso não pregar nenhuma peça, o petista caminhará elegível para as urnas eletrônicas, hoje alvo preferencial do até agora principal adversário dele, o presidente Jair Messias Bolsonaro.
O incumbente, aliás, enfrenta especulações algo semelhantes às ameaças que acabaram removendo Lula de 2018. Um cerco judicial que ronda tirá-lo da eleição. Como, ainda não se sabe muito bem.
Um problema, para certos personagens que sonham com 2022 sem Bolsonaro, é a possibilidade de parte dos votos dele acabarem migrando para Lula e assim ajudarem a liquidar a fatura logo de cara.
Sobre esse pessoal, e essa possibilidade, Talleyrand repetiria que não aprenderam nada e não esqueceram nada.
Diante do risco, uma solução especulada nos círculos do “lavajatismo pós-Lava Jato” é simplesmente tirar os dois. Por enquanto, nenhum gênio das alquimias de Brasília descobriu o caminho, mas acham que não custa sonhar. E, segundo a sabedoria empresarial, sonhar grande e sonhar pequeno dá o mesmo trabalho.
Enquanto a turma sonha, a crise já vem contratada, pois estamos a anos-luz de algum consenso nas regras do jogo.
O único ponto de contato no discurso dos atores políticos neste momento é afirmarem estar preocupados apenas e somente com a preservação da liberdade e da democracia. Qual é o problema? Para quase todos eles, Bolsonaro incluído, a “verdadeira democracia” supõe certos adversários não poderem assumir o governo, em nenhuma hipótese, pois representariam um risco à própria democracia.
A transição de 1984-85 impôs o “nunca mais” aos que apoiaram o regime militar. Depois de 2002, reinou o “nunca mais PSDB”. Aí a era petista terminou e abriu-se o ciclo do “nunca mais PT”. Que deu em Bolsonaro, que carrega a tocha do antipetismo. Mas o capitão agora enfrenta um “nunca mais” todinho só dele.
A tara pelo "nunca mais" é um sintoma. A atual instabilidade decorre em última instância de ter colapsado o acordo fundamental que fez nascer a hoje agonizante Nova República.
Que acordo? As diversas forças políticas conviverem num ambiente de democracia constitucional, e as diferenças serem resolvidas nas urnas. E entre duas eleições os conflitos serem dirimidos no Legislativo. É sabido que as circunstâncias históricas levaram a um desgaste desse pacto, afinal sepultado em algum ponto da viagem entre 2013 e 2018.
E cá estamos nós de novo à beira de uma grave crise institucional. Fenômeno que os otimistas, ou ingênuos, achavam ser coisa do passado. É inevitável? Ainda não, mas o trem está em marcha. E se acontecer, de quem será a culpa, a responsabilidade histórica?
Periga tornar-se mais um assunto de debate e disputa entre políticos, historiadores, jornalistas, profissionais e amadores, para todo o sempre.
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Publicado na revista Veja de 01 de setembro de 2021, edição nº 2.753
Fonte: Veja / Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/08/nunca-mais.html
Ministro Edson Fachin extingue ações contra inquérito das fake news
Ajuizadas por Bolsonaro e pelo PTB, elas questionavam a norma do STF que possibilitou a abertura dos Inquéritos 4781 e 4828
SCO/STF
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a extinção de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) que questionavam o dispositivo do Regimento Interno da Corte (RISTF) que fundamentou a abertura Inquérito (INQ) 4781, que apura notícias fraudulentas, ameaças e outros ataques à Corte. Segundo o ministro, não cabe ADPF contra controvérsias já definidas pelo STF.
As ações foram ajuizadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, (ADPF 877), e pelo Partido Trabalhista Brasileiro (ADPF 704) contra o artigo 43 do Regimento do STF, que determina que, “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”. O argumento era o de violação aos princípios constitucionais do juiz natural, da segurança jurídica, da vedação a juízo de exceção, do devido processo legal, do contraditório, da taxatividade das competências originárias do STF e da titularidade exclusiva da ação penal pública pelo Ministério Público.
Fachin também determinou a extinção das ADPFs 719 e 721, em que o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) contestava decisões do ministro Alexandre de Moraes nos Inquéritos INQ 4781 e 4828.
Leia também:
20/8/2021 - Bolsonaro questiona dispositivo do Regimento Interno do STF que embasou abertura do inquérito das fake news
Meio jurídico eficaz
Nas decisões, o ministro salientou que a ADPF tem por objetivo evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. Mas, entre os requisitos para sua admissão, está o de que não haja outro meio jurídico eficaz para sanar eventuais lesividades (princípio da subsidiariedade), conforme previsto na Lei 9.882/1999 (artigo 4º, parágrafo 1º).
Ao determinar a extinção das ações, o relator observou que é incabível a impetração de ADPF em matérias já definidas recentemente pelo próprio Supremo e que eventuais lesões individuais e concretas devem ser objeto de impugnação pela via recursal pertinente. No caso, como a controvérsia constitucional sobre a questão já foi resolvida na ADPF 572, em que o Plenário declarou a legalidade e a constitucionalidade do INQ 4781, uma nova ação semelhante não é o meio necessário e eficaz para sanar a lesividade alegada.
O ministro destacou que, em parecer na ADPF 704, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) apontaram essa impossibilidade, especialmente quando for utilizada com o intuito de desconstituir decisão proferida antes do seu ajuizamento e quando não há modificação relevante ou pertinente do estado de fato que justifiquem a revisão do precedente.
Embora a controvérsia a respeito do artigo 43 do RISTF não fosse o objeto expresso do pedido formulado na ADPF 572, Fachin assinalou que, naquela ocasião o Tribunal reconheceu a constitucionalidade das normas regimentais que regulamentam o exercício do poder de polícia previsto nos artigos 42, 43, 44 e 45.
Leia a íntegra da decisão na ADPF 877
Leia a íntegra da decisão na ADPF 704
Leia a íntegra da decisão na ADPF 719
Leia a íntegra da decisão na ADPF 721
Rubens Barbosa: Cá e lá, más fadas há
Nos EUA e no Brasil, populismo autoritário e tentativa de deslegitimar eleições
Rubens Barbosa / O Estado de S. Paulo
De retorno dos EUA, não resisto a comentar o cenário doméstico norte-americano no início do governo Biden, em meio à crise da pandemia, e compará-lo com o que se passa no Brasil. Se, no caso do Brasil, uma análise objetiva da situação atual aponta para uma forte preocupação com a evolução dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais nos próximos meses e anos, nos EUA a crise apresenta-se mais grave e profunda. Dada sua posição de liderança no mundo, o desdobramento do que acontece nos EUA poderá afetar outros países e mesmo tendências globais.
A divisão da sociedade norte-americana – acentuada nos últimos anos, em especial na campanha política que precedeu a eleição presidencial – está presente nos principais temas em discussão diária nos jornais e na TV. A forma como os EUA saíram do Afeganistão fez aumentar a divisão, com Donald Trump pedindo a renúncia de Joe Biden.
A ameaça à democracia norte-americana é vista como a mais séria desde a guerra civil, em 1861. Sua exteriorização foi concretizada nos acontecimentos de 6 de janeiro, quando o Congresso, em Washington, foi invadido por uma multidão de fanáticos seguidores de Trump, o que começa a ser examinado por uma CPI no Senado. A polarização está presente desde a indicação dos membros republicanos pela presidente do Senado, sob a alegação de que iriam obstruir a busca da verdade sobre o que realmente aconteceu. Trump deu voz à classe média e aos mais pobres das áreas rurais, sobretudo nos Estados do sul, mais conservadores, e ampliou a retórica negacionista que hoje contamina o Partido Republicano. A atitude de negação da ciência e as evidências se estendem desde a recusa à vacinação e ao uso de máscaras, passando pela modificação da legislação eleitoral em 18 Estados para restringir o direito do voto das minorias, sobretudo a negra, até a modificação da regulamentação nas escolas para eliminar as discussões sobre costumes e raça.
A radicalização no Congresso dificulta o avanço da legislação prevendo reformas econômicas para estimular a renda e reduzir o desemprego. O impasse está presente num dos aspectos mais importantes, que são as dotações para obras de infraestrutura em todo o País. Aprovada por um voto no Senado, corre o risco de ser rejeitada na Câmara.
A questão do aumento da compra de armas e a explosão da violência durante a pandemia é outro item controvertido da agenda doméstica. Os números de mortes são os maiores registrados nos últimos anos e a compra ilegal de armas tem facilitado o crime organizado e a luta de gangues nas ruas das principais cidades, além dos atentados em escolas e lugares públicos. O tema está sendo tratado diretamente pelo presidente Biden, dada a gravidade da situação, que se mistura com as novas regras para tentar reduzir a violência das polícias estaduais, impregnadas de preconceito racial. O movimento nacional contra o racismo, que ganhou grande repercussão com a morte de dois negros por policiais, continua a ter papel importante, com a inevitável polarização.
Recentemente, diversos livros foram publicados com relatos das últimas semanas do governo Trump, depois do resultado das eleições. Os relatos mostram o caos reinante na Casa Branca em função da instabilidade emocional de Trump. A desastrosa ação presidencial nesse período foi além de sua denúncia, sem provas, de fraude nas eleições e da tentativa de reverter, com manobras no Judiciário e nos Estados, os resultados das eleições, que até hoje seus seguidores repetem ter sido ganha e que Biden roubou a eleição. As instituições prevaleceram. Integrantes das Forças Armadas saíram em defesa da democracia e as alegações de fraude foram derrotadas na Suprema Corte. Surgiram relatos de que o Alto Comando das Forças Armadas temia que Trump estivesse preparando um golpe de Estado e, como comandante supremo, iria convocá-las para dar-lhe o necessário respaldo. Nas conversas entre os militares, saiu a decisão de um pronunciamento público do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas reafirmando a posição de instituição com um órgão de Estado, e não de governo. No âmbito da Defesa havia também o receio de que Trump, num arroubo insano, determinasse um ataque militar ao Irã, o que poderia desencadear grave crise no Oriente Médio. Precaução também foi tomada quanto ao acesso do presidente ao equipamento para uma ação nuclear.
Como se vê, o cenário doméstico nos EUA apresenta grande semelhança, em muitos aspectos, com o brasileiro. A preocupação com o funcionamento das instituições e da democracia não chega ao grau de risco que se percebe hoje no Brasil, por circunstâncias específicas do nosso país. O populismo com características autoritárias e a tentativa de deslegitimar as eleições estão presentes nos dois países. A grande diferença até aqui é a atitude pública de afastamento dos militares norte-americanos da política, enquanto recentemente ocorreu exatamente o contrário no Brasil. Militares da ativa e da reserva, em clara interferência política, fizeram declarações que foram interpretadas como de apoio às ameaças de realização das eleições em 2022 se o Congresso não aprovasse o voto impresso.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,ca-e-la-mas-fadas-ha,70003819216
Eliane Catanhede: Planalto vê 7 de Setembro como divisor de águas
Crises são sempre desastrosas, mas crises artificiais e ameaças de golpe são ainda piores: demolidoras
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
Há mais entre o céu e a terra do que a vã filosofia, os aviões de carreira e a fumaça dos tanques militares que desfilaram na Praça dos Três Poderes no dia nervoso da votação da cédula de papel no Congresso. O clima é de tensão e preocupação, depois de o presidente Jair Bolsonaro pedir o impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes e resolver se apoderar do nosso 7 de Setembro para transformá-lo num divisor de águas a seu favor.
Bolsonaro passou anos construindo ligações com a milícia. Ao assumir a Presidência, liberou geral as armas para a população civil para deixar as tropas bolsonaristas de prontidão. Depois, minou o comando dos governadores sobre as polícias estaduais, enquanto metia a mão na Polícia Federal. Por fim, rachou as Forças Armadas, ao intervir no Ministério da Defesa e nos comandos de Marinha, Exército e Aeronáutica.
Resultado: o Brasil está como o diabo gosta. Roberto Jefferson, Sérgio Reis, Ottoni de Paula, Daniel Silveira, oficiais baderneiros da PM de São Paulo e adoradores de armas em geral conclamam as tropas para as ruas. Dane-se a Pátria! Dane-se a Nação! O objetivo confesso é endeusar o mito e atiçar a invasão do Supremo e do Congresso, ameaçando ministros e parlamentares.
“É fogo de palha, preocupação zero”, declarou o vice Hamilton Mourão, tentando tranquilizar o País, mas está difícil. Basta um punhado de malucos, ou de infiltrados, para transformar esse fogo de palha num incêndio de grandes proporções. Quem vai impedir? E, depois, quem vai apagá-lo?
O Brasil está feroz e doentiamente dividido, mas há um desequilíbrio de forças. A minoria ameaça com revólveres, fuzis, invasões e agressões. A maioria, desarmada, defende-se com declarações e manifestos do STF, Senado, ex-presidentes, ex-ministros, lideranças políticas, econômicas, financeiras, profissionais e religiosas.
No Planalto, o 7 de Setembro é visto como um “divisor de águas”, com expectativa de recorde de bolsonaristas nas ruas, mas sem risco de ataques a tiros contra instituições e seus representantes. “Isso, não”, diz um ministro. Fora do Planalto, inclusive nos governos estaduais, não há essa certeza e João Doria (SP) alerta para “militantes bolsonaristas armados”. O sinal amarelo piscou quando dois coronéis da PM paulista, um da ativa, outro da reserva, subverteram a ordem: convocaram a turba que a PM, depois, terá, ou teria, de controlar.
Na visão da oposição, a crise começa com o presidente, que ataca, atiça, ameaça agir fora da Constituição e contra as eleições e não para de fustigar Judiciário, governadores e mídia. Logo, o Supremo apenas reage em defesa da democracia, das instituições e do equilíbrio da Federação, ao atender ora à PF, ora à Procuradoria-Geral da República, e determinar a prisão ou busca e apreensão daqueles que acatam a orientação de cima e atemorizam instituições e pessoas.
Já a versão do Planalto, encampada sem restrições pelo núcleo bolsonarista, é oposta: o Supremo e particularmente Alexandre de Moraes é que provocam, esticam a corda e ameaçam Bolsonaro, ao, por exemplo, mandarem para a prisão os aliados Roberto Jefferson, trabalhista-integralista, e Daniel Silveira, um valentão. Assim, Bolsonaro apenas reagiria aos ataques. O pedido de impeachment de Moraes foi “para incomodar”. O 7 de Setembro é para “mostrar força”.
Nesse clima, 25 dos 27 governadores se reuniram ontem e estão dispostos a patrocinar uma reunião entre os poderes, para baixar a tensão e as labaredas. Até porque, enquanto Bolsonaro brinca perigosamente de guerra, armas e xingamentos, a economia recua, a pandemia é incerta e quem sofre? A população. Crises são sempre desastrosas, mas crises artificiais e ameaças de golpe são ainda piores: demolidoras.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-ve-7-de-setembro-como-divisor-de-aguas-governadores-temem-armas-e-invasoes,70003819402
Carlos Andreazza: Cristo Ipiranga e a fé caloteira
Na última quarta-feira, Bolsonaro disse que, “com fé, com vontade, com crença”, o Brasil poderia superar a inflação e o desemprego. No dia seguinte, à Comissão de Relações Exteriores do Senado, Paulo Guedes sapecou — com vontade — o combo chantagem/incompetência e mostrou ao presidente que não existe Cristo Ipiranga, ao mesmo tempo que lembrava ao povo quem será o sacrificado:
— Se precatório não passar, vamos mandar Orçamento de R$ 90 bilhões e vai faltar dinheiro para pagamentos até de salários.
Referia-se, pela ordem, à PEC dos Precatórios, por meio da qual pretende formalizar um calote em credores da União, condição movediça — fonte incerta — que a criatividade liberal encontrou para bancar programa permanente, o novo Bolsa Família; ao Orçamento de 2022, dentro do qual o fiscalista do amanhã finge tentar embutir a conta da reeleição do mito, enquanto, no mundo real, acionado vai o teto de gastos solar, para fora do qual dependuram-se fundos e outros infinitos em que os sócios do Centrão poderão encher seus balões quando lotados os orçamentos secretos; e aos recursos para custear a remuneração do funcionalismo público, despesa obrigatória, mas com que resolveu ser austero, já que, comprometido com os acordos do amortecedor Ciro Nogueira e do trator Arthur Lira, não tem braço para ser valente com gastos discricionários.
Não existe Cristo Ipiranga. Nem Posto Ipiranga. Nem sequer o Paulo Guedes que Paulo Guedes ainda apregoa. (Para que se avalie o prestígio: o Onyx Lorenzoni de Chicago perdeu o Ministério do Trabalho para que o Onyx Lorenzoni redpill tenha base por onde tocar sua campanha ao governo do Rio Grande.) Há um ministro da Economia bom de promessas, mas com graves dificuldades em formular políticas públicas e incapaz de acompanhar politicamente — e de executar — o pouco que propõe. O produto exemplar dessa miséria sendo o projeto de capitalização da Eletrobras, entregue ao patrimonialismo em troca de algo a ser vendido como privatização, afinal uma escada para que usineiros sem gás façam negócios subsidiados pelo trouxa cuja conta de luz subirá.
MINISTRO PAULO GUEDES
Diga-se que estelionato eleitoral também é modalidade de calote.
Aliás, o severo de propaganda — o que ameaça não pagar salário em nome da higidez de um teto arrombado — é o pai daquela PEC, a Emergencial, a do Futuro (a de rigores fiscais só para 2025), concebida para oportunisticamente permitir reajustes salariais no ano eleitoral que vem. Que não se espere coerência. O recado aos servidores é este mesmo — a ameaça: terão aumento em 2022, mas, se o Parlamento não aprovar a tunga nos credores, não receberão os salários. O recado aos legisladores — a chantagem: se não apoiarem o calote nos precatórios, darei calote no funcionalismo; e a culpa será de vós.
Calote ou calote, informou o ministro da Reeleição; que, enquanto deixa correr frouxa uma reforma do IR destinada a comer a arrecadação federal, quer engajar a todos (ou serão militantes traidores da pátria) na missão de legitimar os dinheiros com que bancar a campanha eleitoral golpista por meio da qual Bolsonaro, populista autoritário cuja existência competitiva depende da forja de conflitos, quer mais quatro anos para dilapidar a República.
Ao ouvir Guedes, lembrei-me do presidente do Banco Central falando em ruídos geradores de pressão inflacionária:
— Reconhecemos que há grande quantidade de ruído em torno do Bolsa Família e de novas medidas [referia-se à PEC caloteira dos Precatórios] que o governo divulgou.
Roberto Campos Neto tratando esse barulho como fato isolado, elemento episódico, e não como estado permanente, talvez, por envolvido demais, impossibilitado de perceber a constância do distúrbio derivado de o combo guedista de chantagem e incompetência cobrar sua fatura sob um presidente que é o próprio centro difusor de instabilidades.
Não tem — nunca teve — como dar certo.
Se Campos Neto não se comportasse como agente político, se não se turvasse participando de reuniões ministeriais e até de encontros de Bolsonaro com empresários, se não se tivesse tornado crente nas palestras de Guedes (para quem a peste não teria segunda onda), talvez a situação brasileira fosse um pouco melhor. Talvez o Banco Central não tivesse sido mergulhado na euforia de analfabetos em matéria democrática. Talvez não se emparedasse contaminado pela lógica dos robertos-jeffersons e daniéis-silveiras da Faria Lima. Talvez fosse um pouco mais conservador antes de forjar juros dinamarqueses num país com estabilidade política peruana.
Vai piorar. O golpismo de Bolsonaro — o do guarda da esquina — opera por dentro e por baixo. E logo teremos — à guisa de manifestação eleitoral — brasileiros armados se medindo nas ruas. O país subordinado a uma agenda de confrontos avessa ao mais mínimo requisito de prosperidade econômica. Ou não vemos o presidente segurar um de seus pedidos de impeachment contra ministros do Supremo — contra Barroso — para soltá-lo mais proximamente ao protesto de 7 de setembro? Parcelará a entrega, contratada nova página de abalo institucional. A fluência da vida republicana — alguma tranquilidade para investimento e geração de empregos — submetida à necessidade de alimentar base de apoio sectária, aquele comandante da PM para quem “liberdade se toma”.
A intenção é a mensagem. É fortalecer a posição de vítima do sistema, impedido de governar pelo establishment; isso enquanto, no mundo real, oferece mais ministérios — talvez tirados de Guedes — aos parceiros do Centrão, o sistema.
Certeza: Guedes fica. Sem ele desanda — crê.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/carlos-andreazza/post/cristo-ipiranga-e-fe-caloteira.html