eleições 2022
Bolsonaro é o preferido em áreas de milícia no Rio
Allan de Abreu,* Folha de São Paulo
No primeiro turno das eleições, o presidente Jair Bolsonaro (PL) teve 8 pontos percentuais a mais de votos do que seu principal oponente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na região metropolitana do Rio, que agrega dezenove municípios. Nas áreas dominadas pelas milícias, no entanto, Bolsonaro, que possui ligações históricas com essas forças paramilitares, expande essa vantagem para 14 pontos, de acordo com estudo inédito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) obtido pela piauí. “Embora à primeira vista a diferença pareça pequena, em uma eleição tão acirrada quanto essa ela é muito significativa”, afirma o cientista político e coordenador do Observatório Político e Eleitoral da UFRJ Josué Medeiros. Bolsonaro teve 53% dos votos nas áreas controladas por milícias, contra 39% de Lula. No Grande Rio como um todo, o presidente teve 50% dos votos, contra 42% do petista.
A vantagem de Bolsonaro diante de Lula cresce conforme aumenta o controle miliciano sobre o território. Para aferir essa tendência, os pesquisadores dividiram as áreas controladas pelas milícias em três níveis: baixo, médio e alto. Essa classificação baseou-se em dois fatores: a presença ou não de outros grupos criminosos no território e a extensão do controle territorial. Assim, Campo Grande e Santa Cruz, na Zona Oeste, são de alta presença miliciana, pois são bairros extensos em que há um monopólio dos paramilitares. Já em Bangu e Senador Camará, o domínio da milícia é baixo e médio, respectivamente, uma vez que os paramilitares convivem com facções do tráfico.
Olhando o peso da votação de cada um por área, o estudo mostra que 3,52% dos votos de Bolsonaro na Região Metropolitana do Rio vieram das áreas com baixa presença de milicianos; no caso de Lula, essas áreas garantiram 3,14% dos votos do petista, uma diferença de 0,4 ponto percentual. Já nas áreas com alta concentração de paramilitares, a diferença entre os dois se amplia: o atual presidente conseguiu ali 27,51% do total de seus votos, contra 24,08% do petista. A diferença entre os candidatos sobe para 3,43 pontos percentuais, ou quase nove vezes a verificada nas áreas com baixo controle miliciano. Ou seja: na prática, Bolsonaro depende mais dos votos nas áreas de milícia que Lula, e tal dependência é tanto maior quanto mais forte for a hegemonia das milícias nessas áreas.
Esse curral eleitoral do bolsonarismo vem crescendo ao longo dos anos. Se em 2012 havia 833 mil eleitores em áreas dominadas pelos paramilitares (ou 9,6% do eleitorado de toda a região metropolitana), hoje são 1,4 milhão, ou 14,8% do total da região metropolitana, mais que o eleitorado de Recife. Já as áreas controladas pelas facções do tráfico de drogas (Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos), o eleitorado permaneceu estável, com 9,7%. Um estudo divulgado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), e pelo Instituto Fogo Cruzado em setembro mostrava que, de 2006 a 2021, as áreas controladas por forças paramilitares cresceram quase 400% no Rio. Os pesquisadores da UFRJ cruzaram os dados desse estudo com as estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Como são muitos os fatores de mediação entre o eleitor e o candidato, como a religião, a ideologia e o clientelismo tradicional, é muito difícil analisar somente o fator milícia isolado dos demais”, pondera Orlando Alves dos Santos Júnior, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) e integrante do Observatório das Metrópoles, ambos da UFRJ. “Mas a análise comprova que a presença ou não da milícia influencia diretamente no voto, disso não há dúvida.”
Em setembro, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), disse ao presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, que candidatos não apoiados pela milícia estavam sendo impedidos de acessar áreas controladas pelos paramilitares na capital – ele não disse quais seriam os candidatos. No dia 2 de outubro, primeiro turno das eleições, olheiros a serviço das milícias em Campo Grande e Santa Cruz tentaram impedir os fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de flagrar crimes como boca de urna e exibição de bandeira de candidatos próximos às seções eleitorais, de acordo com reportagem do jornal O Globo. No pleito de 2018, os fiscais foram atacados com pedras em áreas controladas pelos paramilitares na Zona Oeste – não houve feridos. Atualmente, as maiores milícias do Rio são comandadas por Danilo Dias Lima, o Tandera, e Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho.
No livro A república das milícias, Bruno Paes Manso narra que em 2003, com a eleição do filho Flávio para a Assembleia Legislativa do Rio, Jair Bolsonaro começou a se aproximar de grupos milicianos que surgiam na época por meio de Fabrício Queiroz, um policial militar próximo desses paramilitares que era amigo de Jair. Querendo se vender como representante das milícias no Parlamento fluminense, Flávio nomeou Queiroz para o seu gabinete e passou a laurear policiais suspeitos de integrar milícias e grupos de extermínio, como Adriano da Nóbrega, morto em 2020. No total, foram 32 medalhas. Além disso, segundo o Ministério Público, Flávio financiou a construção de prédios da milícia em Rio das Pedras, berço dos paramilitares, com dinheiro das “rachadinhas” (parte dos salários que os funcionários do gabinete do deputado, incluindo parentes de Nóbrega, eram obrigados a devolver ao parlamentar).
Além dos negócios em comum, o discurso militarista dos Bolsonaro, dizem os pesquisadores, combina com o ethos miliciano, de valorização da lei e da ordem – os paramilitares surgiram com a proposta de expulsar ladrões e narcotraficantes dos bairros, em troca de “taxas de segurança” e do monopólio de determinados serviços, como gás e tevê a cabo irregular. “A solução paramilitar de controle dos territórios é altamente convergente com a imagem de uma sociedade armada como forma de proteção à escalada da violência urbana”, diz Filipe Souza Corrêa, pesquisador do Observatório das Metrópoles. Procurada pela piauí, a assessoria da Presidência da República não se manifestou.
Para o cientista político Medeiros, se nada for feito, a milícia ganhará cada vez mais poder político no estado do Rio, o terceiro maior do país depois de São Paulo e Minas Gerais. “Sabemos que os milicianos sempre buscaram ter representação política. Por isso, se não fizermos nada agora, aonde vamos chegar? A sociedade fluminense precisa fazer essa reflexão”, afirma.
Texto publicado originalmente em Folha de São Paulo Piauí.
Revista online | Roberto Freire: “Votar em Lula é salvar a democracia”
Entrevista concedida a Caetano Araújo, Luiz Sérgio Henriques, João Rodrigues e Paulo Fábio Dantas Neto, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
Na reta final do segundo turno da campanha presidencial, diversos fatos ainda movimentam o xadrez político nacional. No último domingo (23/10), por exemplo, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) atacou policiais federais com granadas e tiros de fuzil, após resistir a uma ordem de prisão expedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para analisar a conjuntura política e o futuro da democracia no Brasil, a equipe da revista Política Democrática online entrevistou o presidente do Cidadania, Roberto Freire. “Votar 13 no próximo domingo é a nossa única chance de salvar o Estado Democrático de Direito no Brasil”, resumiu Freire.
Ex-senador e deputado federal, líder do governo Itamar Franco e candidato a presidente da República em 1989 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Roberto Freire defende que o voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é essencial para frear o projeto fascista do bolsonarismo. Freire também foi membro da Assembleia Nacional Constituinte e um dos responsáveis pela transformação do antigo PCB no Partido Popular Socialista (PPS), em 1992.
O papel estratégico da senadora Simone Tebet (MDB-MS) na campanha do ex-presidente Lula (PT), a ampliação da federação PSDB Cidadania, com uma eventual inclusão do MDB, e a importância de movimentos de renovação política estão entre os temas abordados. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista com Roberto Freire.
Confira, abaixo, galeria de imagens do entrevistado:
Política Democrática (PD): Como você avalia esta reta final da campanha, com todas as incertezas que este complexo processo eleitoral tem demonstrado?
Roberto Freire (RF): Em primeiro lugar, gostaria de registrar que considero as pesquisas eleitorais confiáveis e acredito que elas devem ser consideradas. No primeiro turno, as pesquisas acertaram o percentual de votos atingido pelo ex-presidente Lula (PT). O problema maior foi em relação ao presidente Bolsonaro (PL). Porém, como muitos eleitores bolsonaristas, por orientações de ministros do atual governo, inclusive, se recusaram a responder os levantamentos, pode ter ocorrido influência. Estou em Brasília, não tenho percorrido o Brasil neste segundo turno. Até porque não adianta muito a gente andar na rua, pois a campanha é majoritariamente digital. Contudo, penso que a eleição está mais ou menos decidida. Esse episódio do Roberto Jefferson – que atacou com granadas e tiros de fuzil agentes da Polícia Federal para descumprir uma decisão do STF – pode fazer com que pessoas que antes diziam votar nulo agora decidam votar 13, no Lula. Certamente, houve um impacto muito negativo para a campanha do Bolsonaro. Foi algo patético, bizarro. Você imagina se fosse um negro, favelado, pobre? Atirar na polícia é inaceitável. O apoio da Simone Tebet e da Marina Silva, em diversos eventos pelo país afora, também ajuda o Lula a diminuir o receio de alguns setores da sociedade. A minha impressão é de que está bem encaminhada a vitória do ex-presidente Lula no próximo domingo, 30 de outubro. A não ser que surja um fato novo, algo imponderável.
Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online
PD: Qual a sua avaliação do desempenho de Simone Tebet no primeiro turno da eleição presidencial e como analisa o papel estratégico dela na campanha do ex-presidente Lula (PT)?
RF: O desempenho foi ótimo. Infelizmente, tivemos poucos votos. Talvez, tenha sido a terceira via com menor percentual de votos absolutos nas eleições. A rejeição dos dois principais candidatos e a polarização foram fatores decisivos para esse cenário. Mas a Simone Tebet é muito maior do que os votos que conquistou. Ela obteve um crescimento exponencial, saiu bastante fortalecida do processo eleitoral e está consolidada como uma das maiores lideranças políticas do país. A presença dela no palanque do Lula é um diferencial, ajuda muito. Logo no início do segundo turno, eu me lembrei da campanha de 1989, quando mandamos fazer camisas e adesivos com a frase: ‘Sou Freire e estou Lula’. Reproduzimos esse slogan agora com a Simone. Nosso objetivo é passar aquela ideia: ‘com a Simone a gente vai’. Digo isso porque esse fato abriu um pouco alas para as pessoas que ficavam meio encabuladas, pois vinham perguntar: mas você não vivia esculhambando com o Lula? Ou qualquer outra coisa desse tipo. A partir dessa ideia (“Sou Simone e estou Lula”), conseguimos um anteparo. São diversos economistas, o pessoal do Plano Real, intelectuais, artistas, que agora passam a apoiar mais efetivamente o voto em Lula neste segundo turno. Todos esses atores têm um papel importante. A Marina Silva, por exemplo, que já foi do PT, mas tinha se afastado, exemplifica esse esforço por um bem maior, que é a democracia brasileira e o compromisso com o progresso nacional.
A militância do partido da Cidadania está muito ativa no lulismo, tem participado energicamente em tudo quanto é lugar do Brasil. O que a Simone está fazendo também é de uma militância impressionante. Ela está colada em Lula, até parece a vice, que não descola da vinculação com o titular. É algo praticamente inédito, de ter um apoio tão efetivo de uma candidata que não foi ao segundo turno, mas está totalmente comprometida com a candidatura. Isso é uma coisa que está engrandecendo-a. Aqueles que estavam decepcionados com Bolsonaro imaginavam que não iriam para o Lula de jeito nenhum e ela foi. Então, ela cresceu no conceito e no respeito de todos exatamente por conta dessa integração com muita ênfase na campanha presidencial. É uma militante que alguns petistas mais ativos devem estar mirando como exemplo.
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PD: Pensando em um cenário pós-eleitoral, você acredita que, assim como Tancredo Neves foi chamado de “candidato da conciliação nacional”, o ex-presidente Lula poderia ajudar a pacificar o país?
RF: Essa é a questão em que a gente vai ter que se concentrar a partir de segunda-feira (31/10). Que quadro nós vamos ter? Vitória de um ou de outro. Vamos admitir que hoje não temos essa definição, apesar de certo favoritismo do ex-presidente Lula. Mas é um grande debate. Hoje já fui confrontado com isso em uma entrevista que dei a uma rádio de Pernambuco (PE). Eu disse que não estamos definidos. Eu dizia que Lula seria presidente, mas que nós não tínhamos definido se estaríamos no governo ou ficaríamos na oposição. Sem grandes problemas. Até porque oposição sistemática tivemos apenas na ditadura. O fato concreto é de que nós vamos ter que nos debruçar sobre isso. Vamos usar mais uma vez a Simone Tebet como exemplo. Como é que a Simone vai se posicionar? Estou querendo conversar com ela e ainda não pude. Ela tem viajado bastante. Falei pelo telefone, mas não avançamos em nada, por enquanto. Eu acredito que ela não queira participar de um novo governo Lula. Estava até discutindo uma questão colocada na ampliação da federação PSDB Cidadania, com a integração do MDB, para criar talvez a terceira ou quarta bancada. Se conseguirmos, podemos estar nos preparando para planos maiores em 2024 e 2026, fugindo desses dois polos que vão continuar. Qualquer que seja o resultado é fundamental para nós discutirmos, inclusive com a Simone, MDB e PSDB, ela liderando e nós vamos ter que discutir enquanto Cidadania. Pode oferecer a Lula a possibilidade de ele brigar contra seus radicais e entender que precisa minimamente não pacificar, mas, ter uma ampla maioria para evitar uma radicalização bolsonarista. Garantir a capacidade da sociedade de impedir que isso frature ainda mais o que já está fraturado. A presença da Simone, dos economistas, do setor liberal, de setores empresariais em apoio a sua candidatura tem que ficar junto dele no seu governo. Esses economistas, que vão ter um certo peso para contrabalançar o programa econômico de Lula, precisam estar junto também para dizer a ele: ‘olhe, você tem que ter o cuidado no governo de buscar pacificação, tolerância. Não pode excluir parte da sociedade que porventura não tenha votado em você.’ Embora a Lei não permita nenhum revanchismo, qualquer distúrbio que porventura possa existir deve ser suprimido. Não vamos pensar que esse episódio Roberto Jefferson, que ocorreu agora como um sinal de sedição, não sei, mas depois de uma derrota, isso pode se tornar algo comum. Indivíduos que queiram não admitir os resultados. Precisa ter um governo que tenha capacidade de juntar na realidade aqueles que estão votando para ter um processo democrático e não retrocessos. A gente não fala muito do Viktor Orbán e fala muito da Venezuela. O Bolsonaro não vai ser aquele que vai tentar experimentar um sistema de estatização da economia, de provocar aquilo que a Venezuela provocou concretamente, um empobrecimento da própria sociedade. Nós somos muito mais para a economia da Hungria, que cresce, do que para a economia da Venezuela, que vai lá para baixo. O governo Bolsonaro, autoritário, pode ter amplo apoio da sociedade. Não gerar o que gerou a Venezuela do empobrecimento, de uma decadência como ocorreu.Esse é o risco! Vamos analisar a Venezuela apenas como processo, mas não como base. Isso vai ficar mais para Polônia, para aquele sistema inserido na economia de mercado, que não vai sofrer retrocesso. O perigo está aí. Não é um processo de ruralização. Não vamos ter uma venezuelização por aqui, nesse sentido. Eu me lembro, quando vim de Cuba, em 1981, com o Goldman (Alberto), que estava sentado comigo, quando descemos em São Paulo, no aeroporto de Guarulhos, e vimos que aquilo era uma imensidão, uma potência. E eu brinquei com Goldman: ‘se a gente quiser fazer o que Cuba fez, vamos precisar de cinco Stalin e cinco Miami.’ Em Cuba, precisou de um só, mas por aqui precisariam de cinco. É uma economia que não tem como você imaginar que vai implantar isso e continuar. Eu acredito que esse é um grande desafio que a gente tem que pensar. É levar esse movimento que está ocorrendo no segundo turno para uma base efetiva do governo Lula. Nem mesmo participando necessariamente, não é isso. Mas é tendo o apoio crítico, mesmo com a independência, mas dando sustentação. E Lula entendendo que é fundamental ter isso. E não pensar que vai pegar o Centrão com qualquer movimento de aceitar processos de orçamento secreto ou qualquer outra forma para garantir o apoio meramente fisiológico. Ele tem que buscar esse apoio nesse sentimento democrático da sociedade. A Simone pode exercer o papel de liderança junto ao MDB e ao PSDB e, claro, nós do Cidadania estamos integrados nisso. Até porque esse objetivo, independente de quem for, a gente sempre teve.
PD: O que poderemos chamar de “centro democrático” no Brasil pós-eleição, ganhando Lula ou Bolsonaro? Quais são as condições para se articular com a razoável autonomia?
RF: Esse é o nosso grande desafio. Eu fico imaginando, tem um pouco de torcida, mas começa a ser um pouco de realidade. É um favoritismo. Vamos admitir que o governo Lula é o melhor para nós. O centro democrático se consolida mais com o governo Lula. Um eventual segundo governo Bolsonaro seria terrível para o Brasil. Teríamos que tomar uma série de medidas para não conviver com uma clara escalada golpista. Se Bolsonaro for eleito, o STF vai ter novos membros. Eles vão, talvez, abrir alguns impeachments de ministros do Supremo no Senado Federal. Caso ganhem, eles teriam uma postura autoritária e fascista, com forte presença no Senado, com figuras que terão lideranças importantes até vinculadas às Forças Armadas, como é o caso do atual vice-presidente, Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul (RS). Ele foi um dos primeiros a verbalizar a ideia do aumento de ministros no STF. Esse é apenas o passo inicial. Eles vão querer modificar as relações com o Judiciário, que hoje é o poder mais frágil do Estado brasileiro. Precisamos reconhecer que o Supremo foi importante para conter avanços antidemocráticos nos últimos anos. Com Arthur Lira no comando da Câmara Federal, o Congresso não agiu em praticamente nenhum movimento para conter arroubos autoritários. Na época do Rodrigo Maia, ainda tivemos algumas votações de decretos legislativos, impedindo retrocessos. Se Bolsonaro ganhar, o STF ampliado por novos ministros eventualmente bolsonaristas pode ser bastante prejudicial para a nossa democracia. Acabou. A partir daí, controla tudo. Isso é o modelo do Chaves na Venezuela. O Bolsonaro tem fortes aliados. Parte do setor de bancos, a maior parcela do agronegócio, que pode ajudar tremendamente a que isso se transforme em uma atitude de separação dos poderes, afirmando que o Executivo não pode ser impedido de governar, independente do Legislativo e, especialmente, do Judiciário. É preciso ter cuidado. Quem ganhar a eleição tem espaço para ajustar discurso do futuro democrático do Brasil. Agora, se ganhar o Lula, nós podemos, a partir da presença que Simone pode ter – e eu fico imaginando que ela não participe – porque poderíamos construir uma federação ampliada, da qual ela seja a presidente, passando a ter um papel político importante na sociedade brasileira. Uma federação ampliada com o MDB, com todos os eventuais problemas, poderíamos, sim, chamar de ‘frente democrática brasileira’, que não é ampla como a uruguaia, que foi feita a partir das esquerdas. Porém, nós podemos e devemos encaminhar isso. Vamos ter alguns bolsonaristas que vão querer fazer uma oposição maior, mas isso a gente terá que trabalhar para segurar. É mais fácil segurar quem quer fazer oposição do que quem adere. Nós, do Cidadania, podemos, com o governo Lula, manter a independência e ao mesmo tempo construir uma possibilidade, pois não vamos construir uma alternativa democrática à direita. O campo da direita durante algum tempo vai ser hegemonizado pela parte mais extremada.
PD: Você acha que isso acontecerá mesmo com a vitória do ex-presidente Lula?
RF: Com certeza. O bolsonarismo permanecerá, independente do resultado das urnas neste segundo turno. É ótimo que estamos aqui com pessoas que têm a visão da esquerda que quer ser contemporânea desse mundo que está aí, uma esquerda moderna. Ao contrário da esquerda dogmática, que pensa que é ainda revolucionária dos tempos do capitalismo industrial, bolchevique ou quer outros tipos de revoluções. E a América Latina tem muito disso. A América Latina é refratária a toda movimentação que houve no pensamento de esquerda, que é hoje o sustentáculo da União Europeia. Outro exemplo é a esquerda norte-americana, que consegue entender que para derrotar Donald Trump era melhor colocar Joe Biden do que Bernie Sanders. Essa esquerda que é democrática no mundo e entende a globalização, essa nova economia, as mudanças nas relações de trabalho e a evolução da própria sociedade.
A tendência do mundo, quando se fala de reforma trabalhista, é de querer regulamentar esse novo que está surgindo e não modificar o do passado. O próximo governo vai ter que lidar com um mundo que já não corresponde mais à mentalidade metalúrgica de Lula, daqueles que falam de classe operária enchendo a boca como a gente enchia, imaginando que o mundo era da classe operária no futuro. Era uma marcha que nós devíamos fazer na história. Não conseguem entender que não foi derrotado, houve a superação desta realidade, desta sociedade. E isso vai gerar crise lá dentro. Estou imaginando que esta força, o crescimento desta terceira via, é o avanço de uma visão que envolva também pensamentos – vamos chamar de social-democrata, centro-esquerda, o referencial que teremos para o futuro de uma esquerda democrática. A Europa democrática entende que deve se posicionar contra Putin em defesa da soberania da Ucrânia. Isso é um pouco essa visão progressista, e não da visão que aproxima Lula, também Bolsonaro a Putin. O eventual novo governo Lula vai ter essa contradição muito maior do que teve, por exemplo, em 2003, no início do primeiro mandato do PT, quando eles pensaram em fazer alguma reforma ali e, como reação, foi criado o Psol, de Heloísa Helena e tantos outros. Depois veio o mensalão, o que aumentou ainda mais as dissidências internas e tudo mais. Agora, vai ser muito mais concreto, não vai ter condições de alguém pensar na economia com a visão de que vamos fazer protecionismo, vamos construir uma indústria nacional, como disseram: ‘na pandemia, tivemos problema com agulhas, com máscaras, que poderiam não ter existido’. Por favor, isso foi um colapso da logística do mundo. Não é um problema para ficar imaginando que precisamos estar lá nas fronteiras produzindo algumas dessas coisas como se voltássemos ao mundo das barreiras alfandegárias.
Esse processo de globalização só vai se intensificar. Precisamos de um governo que tenha capacidade de administrar o país com a essa nova realidade e nenhum dos dois que estão aí está tendo capacidade para isso. Lula pode vir a ter, e vai ser necessário, porque ele precisa ampliar a sua base, mas, no momento que ele tomar determinadas decisões, pode enfrentar dissidências pela extrema esquerda. Vai ter problemas com aqueles que não permitem o que chamam de neoliberalismo, não admitem que você tenha uma visão de integração na economia mundial. Que diga que são sustentáveis, que isso seja mais importante que a economia do petróleo, do pré-sal. Teremos conflito com as corporações, haverá discussões sobre as necessárias reformas que estão em pauta. Por isso, fico imaginando que nós – e é dramático porque o MDB, com muito setor bolsonarista, o PSDB também, e até nós do Cidadania – como vamos gerar uma unidade para entender que nem Bolsonaro nem as posições majoritárias no PT são o futuro? O amanhã promissor nasce a partir da liderança da Simone Tebet, que também precisa entender que tem um grande papel. Esse é o nosso grande desafio. Concretizando essa federação ampliada, com o MDB, é até um desafio que se possa imaginar que tem que se criar uma nova formação política com esse setor, mas isso precisaria ter lideranças e eu não sei se o Eduardo Leite, eleito no RS, e se a Raquel Lyra, provavelmente eleita em PE, terão força suficiente para trazer o PSDB minimamente para um projeto desse porte. Nós, do Cidadania, estamos com dificuldade, poderíamos exercer esse papel se tivéssemos muita unidade com a nossa bancada. Esse é o drama. Não termos o velho Partidão, que enfrentou na época da ditadura a esquerda em cima, resolução, aventura, romantismo, outras tantas dificuldades e a gente se segurou e dentro do MDB, construindo uma alternativa democrática. Foi demorado, não foi fácil. As pessoas pensam que foi no final, quando as Diretas Já eram realidade, mas poucos sabem dos percalços. Nós acompanhamos. E agora, eu não sei qual força pode fazer isso. O PSDB não tem força para fazer. Esse é o drama que estamos vivendo. Mas é necessário construirmos. Se a gente tivesse esse setor que está indo para o Lula com a compreensão de que temos, desde já, buscar maior integração e construir novas alternativas políticas ao país, seria um avanço importante. Tem que tentar desde agora construir essa alternativa: a frente democrática que vai disputar 2026 não como um azarão, mas como uma força política que supere essa polarização que se afirmou novamente agora.
Sobre o entrevistado
Roberto Freire é presidente nacional do Cidadania, advogado, ex-senador, ex-deputado federal e foi candidato a presidente da República em 1989 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
** Entrevista produzida para publicação na revista Política Democrática Online de outubro de 2022 (48ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
Equipe de entrevista
Caetano Araújo: Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), consultor legislativo do Senado Federal e diretor-geral da Fundação Astrojido Pereira (FAP)
Luiz Sérgio Henriques: tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das “Obras” de Gramsci no Brasil, além de integrante do Conselho Consultivo da FAP
João Rodrigues: jornalista, sociólogo, mestre em Ciência Política e coordenador de Audiovisual da FAP
Paulo Fábio Dantas Neto: cientista político, economista, professor da Universidade Federal da Bahia e integrante do Conselho Consultivo da FAP
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Em ato de apoio a Lula em Brasília, Simone Tebet diz que Bolsonaro vai para o ‘lixo da história’
Cidadania23*
A candidata a presidente pelo MDB, PSDB e Cidadania no primeiro turno, senadora Simone Tebet (MT) participou, nesta quarta-feira (19), de caminhada em Brasília de apoio à campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e subiu o tom das críticas contra o presidente Jair Bolsonaro (PL), ao afirmar que ele vai ter a palavra corrupção estampada em sua testa e que vai para o ‘lixo da história’.
“Eu estou aqui para tirar a faixa desse presidente que vai perder o foro privilegiado e aí nós vamos estampar na testa dele a palavra corrupção”, disse a senadora.
Milhares de pessoas acompanharam o ato no Setor Comercial Sul com a presença de lideranças políticas locais, como os ex-candidatos ao governo Leandro Grass (PV) e Leila Barros (PDT), o ex-governador Rodrigo Rollemberg (PSB), além da deputada federal Erika Kokay (PT-DT) e a ex-candidata ao Senado, Rosilene Corrêa (PT).
“Esse povo guerreiro, esse povo trabalhador, esse povo que ama a democracia e vai jogar para o lixo da história esse presidente insensível que se chama Jair Messias Bolsonaro”, afirmou Simone Tebet.
Ao final da caminhada, SimoneTebet subiu em um caminhão de som e fez um discurso.
“Eu estou aqui pela democracia, porque quero de volta um governo um humano. Eu e o presidente Lula temos grandes diferenças políticas e econômicas, mas colocamos o povo em primeiro lugar”, afirmou.
A senadora disse que a disputa não será fácil e pediu um esforço de convencimento de indecisos na reta final.
“Essa não é uma eleição fácil. Essa é uma eleição que não dá margem para erros. Nós vamos ganhar, e o presidente Lula vai voltar a governar este País, mas precisamos continuar vigilantes, não aceitem provocação”, pediu.
“Não descansem, no ônibus, no trabalho, na festa onde vocês forem. Dialoguem com os diferentes”, completou.
Só Lula é democrata
Simone Tebet também disse que não há dois candidatos à Presidência da República, porque apenas um deles, Lula, é democrata.
“Não existem dois candidatos a presidente da República nesse segundo turno. Só tem um que é democrata e chama Luiz Inácio Lula da Silva”, afirmou.
Ela também citou as denúncias de corrupção contra Bolsonaro e sua família. Relembrou o caso das rachadinhas, a compra de imóveis por seus familiares em dinheiro vivo e as denúncias de corrupção apontadas pela CPI da Covid. (Com informações das agências de notícias)
Texto publicado originalmente no portal do Cidadania23.
Esquerda precisa focar em emprego contra 'identitarismo de maioria'
Shin Suzuki*, BBC News Brasil
O pastor Alexandre Gonçalves, presidente do Movimento Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT, diz que "emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para a esquerda". "Porque se for entrar com a luta identitária, o Bolsonaro ganha com o identitarismo de maioria."
Ele se refere à substancial fatia da população brasileira que é evangélica e conservadora e se reúne em torno do ideal de "defesa da família" — associado a plataformas contra o aborto e o casamento gay.
Projeção do doutor e pesquisador em demografia José Eustáquio Alves aponta que os evangélicos serão o maior grupo religioso do Brasil em dez anos.
Gonçalves considera que atualmente há uma ênfase excessiva do que ele chama de "nova esquerda" na questão identitária (luta contra a discriminação racial, feminista e LGBT) em lugar de temas sociais, ligados a mais garantias e bem estar dos trabalhadores.
Para o pastor, que assessorou o candidato derrotado Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, isso, somado a uma atitude que ele chama de "condescendente" da esquerda em relação aos evangélicos, leva os neopentecostais conservadores a cerrar fileiras pela candidatura de Jair Bolsonaro (PL).
Gonçalves decidiu declarar voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por sua oposição ao atual presidente, que considera o introdutor de uma "seita pseudocristã chamada 'bolsonarismo dentro da igreja'".
"Nós estamos indo para o caminho de uma ex-nação."
Carioca de 52 anos, ele é pastor da Igreja de Deus, uma denominação pentecostal, fundada em 1836 nos Estados Unidos, "conservadora e tradicional" e "que de 2014 para cá vem tendo umas ideias muito erradas em relação à questão política".
"Mesmo com todas as dificuldades, problemas e as nossas contradições, me mantenho ali porque ainda acredito que é um ambiente que a gente ainda pode de alguma forma viver sem que fique insalubre."
Em meio a pressões na igreja, Gonçalves deixou de ser pastor em tempo integral e desde 2004 é concursado da Polícia Rodoviária Federal. Mora hoje em Santa Catarina.
O Movimento Cristãos Trabalhistas, que ele ajudou a fundar no final de 2017, inicialmente era formado apenas por evangélicos como Assembleia de Deus, Presbiteriana, Batista e Quadrangular, e mais tarde agregou católicos.
O grupo ainda vai se reunir para definir a posição conjunta sobre o segundo turno — a declaração de voto em Lula é uma posição pessoal de Gonçalves.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista com o pastor:
BBC News Brasil - Por que Lula e a esquerda têm dificuldades de obter o voto evangélico?
Pastor Alexandre Gonçalves - Se você pergunta para os evangélicos se eles querem ter saúde e escola públicas de qualidade, um transporte público ágil para não ficar 3 horas no trânsito e direitos trabalhistas como férias, eles vão dizer que sim. É dessa forma que a gente consegue se conectar com as igrejas.
Se você inicia um diálogo com temas transversais, ainda que eles tenham a sua importância, mas que são dominados por um identitarismo de minoria, isso acaba fazendo surgir um identitarismo de maioria. Isso faz muito bem à direita. A direita ganha nesse campo.
A prioridade hoje da chamada nova esquerda, que a gente acredita que é oriunda de uma tendência norte-americana, é de defesa de um identitarismo que entendemos ser raso e dissociado da luta universal dos trabalhadores em prol de sua emancipação.
E se você quer impor através do Estado conceitos de família, seja o conceito cristão tradicional ou o conceito liberal da esquerda, você vai causar conflito.
Emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para a esquerda ganhar alguma eleição majoritária. Porque se for entrar com a luta identitária, o Bolsonaro ganha com o identitarismo de maioria. É só saber matemática.
BBC News Brasil - Quais são os problemas de comunicação da esquerda com essa fatia da população?
Gonçalves - Se uma pessoa fala qualquer termo que não está de acordo com a linguagem da nova esquerda, o que acontece com essa pessoa? Ela não é ensinada: ela é massacrada. Não há uma pedagogia para essa pessoa. Ela não é, com amor, induzida a mudar o seu modo de pensar, ela é destruída.
Querem mudar uma estrutura brutal de opressão mudando a linguagem, ou seja, de fora para dentro. Eles acham que alterando a forma vão conseguir alterar o conteúdo. Primeiro, você tem que mexer lá dentro, no conteúdo. A forma vem depois.
Isso é ensinamento de Jesus: "Lave o copo por dentro". Ou seja, primeiro é ali dentro, tem que mexer nessa estrutura. E como mexe nessas estruturas? Justamente mexendo na economia.
A esquerda fica mais preocupada em falar "vamos legalizar o aborto". Não estou dizendo que essas pautas não sejam importantes. Elas têm a sua importância. Mas não vão resolver o problema estrutural. Qual é o motivo que faz as pessoas abortarem? Qual o motivo que faz com que pessoas transsexuais sejam discriminadas?
Outro ponto [ruim na comunicação] é a fragilidade moral da nova esquerda. Quando ela se tornou governo, houve uma realidade de roubalheira generalizada que é injustificável. Houve o lavajatismo? Houve sim, mas a autoridade moral que a esquerda tinha quando era oposição foi perdida.
BBC News Brasil - Mas por que denúncias de corrupção relacionadas ao governo e à família Bolsonaro, além de declarações do presidente que afrontam valores das igrejas cristãs, como a defesa do aborto feita no passado, não afetam o apoio majoritário dos evangélicos a ele?
Gonçalves - Aí são dois problemas: um na esquerda e outro dentro da igreja. No Brasil, entre os anos 1950 e 1960, entraram duas teologias: a do domínio e a da prosperidade, uma com ligação à outra. A do domínio pregava que o reino de Deus será estabelecido aqui na Terra pela igreja. Daí o nome.
E como é esse domínio? A igreja tem que exercer influência nas principais áreas da sociedade: política, economia, cultura, arte, tudo. E aí uma grande parte das igrejas, principalmente as neopentecostais, tomaram essa teologia podre, que veio para cá importada dos EUA, e colocaram na vida política.
Vários falam para mim: "Bolsonaro não é cristão, a gente sabe que ele não é. A gente sabe que ele tem um monte de erros, mas ele defende os valores cristãos".
Bom, mas você não vota num governante para que ele imponha princípios cristãos à sociedade. Você vota no governante para que ele possa administrar o bem público de forma que todos possam se beneficiar. Isso se inverteu na cabeça de grande parte dos evangélicos, principalmente por causa do aumento das igrejas mercantilistas massivas.
E a igreja evangélica tem o olhar reducionista sobre a esquerda: diz que todo mundo é comunista e não consegue separar entre sociais-democratas, trabalhistas etc. Reduz a esquerda a casamento gay, aborto e maconha. A esquerda, por sua vez, se sente superior, tem um olhar condescendente com os evangélicos.
BBC News Brasil - Há como a esquerda usar uma linguagem, usando as palavras do senhor, "menos condescendente" e defender temas como o combate à violência homofóbica e a legalização do aborto?
Gonçalves - Não numa eleição majoritária. Candidatos a presidente, a governador, não tem que entrar nessas pautas. Quem tem que entrar, quem vai entrar, são os candidatos a cargos proporcionais. É esse o ponto. Até porque o presidente não pode fazer nada sobre isso. Presidente não pode legalizar o aborto. Isso é tarefa do Congresso Nacional. Um candidato a presidente tem que fugir dessas cascas de banana. Numa campanha majoritária você não quer só o voto da esquerda, você quer o voto da maioria da população.
O que aconteceu no Chile recentemente foi uma oportunidade imensa de mudar o sistema previdenciário e introduzir uma nova Constituição. A nova esquerda do Chile introduziu esses temas na reforma constitucional. O que aconteceu? 60% de rejeição.
Nós temos um Brasil de interior com muita gente que não tem a mentalidade das grandes cidades. E mesmo dentro das grandes cidades, nas periferias, há pessoas com um pensamento muito diferente do que se vê nas novelas, nos filmes, na arte… e eles são brasileiros.
O caminho é não falar e deixar isso para as representações legislativas. Houve eleição de representantes transsexuais para a Câmara Federal. Essas pessoas terão que levar debates, por exemplo, sobre se o SUS [Sistema Único de Saúde] poderá bancar cirurgias de mudança de sexo, fazer projetos de lei e, dentro da democracia do país, ou seja, no Congresso Nacional, levar isso à votação, que será aprovado ou não.
BBC News Brasil - Nesta segunda-feira (8/10), Lula afirmou ser contra o aborto e que a discussão sobre o assunto é "papel do Legislativo". O que achou do anúncio?
Gonçalves - Eu acho que é a declaração correta. Ele falou aquilo que ele pensa. Com toda certeza se outra pessoa declarasse isso seria cancelada para o resto da vida na internet. Mas como é o Lula não tem problema, ele pode falar.
BBC News Brasil - Qual é a visão do senhor como pastor sobre o casamento gay e a comunidade transsexual?
Gonçalves - Nós temos uma posição clara no nosso movimento dos Cristãos Trabalhistas que não somos contra a união civil de pessoas do mesmo sexo e a existência de qualquer pessoa. Isso são fundamentos do Estado laico. Não somos contra que possam estabelecer seus direitos previdenciários, de plano de saúde, tudo.
O que nós nos colocamos contra é uma imposição para que, dentro das igrejas, pastores sejam obrigados a efetuar o casamento religioso de pessoas do mesmo sexo. Eu acho que aí deve ser de acordo com a consciência de cada pastor. Tem igrejas que fazem e tem igrejas que não fazem. É uma questão teológica, doutrinária, que diz respeito à liturgia dentro de cada igreja, e elas devem ter essa independência, que é um pressuposto do estado laico.
As pessoas num estado laico são livres para o que anteriormente se via como escolha e hoje pode ter uma força biológica. Isso não é algo que a igreja tenha que se intrometer. Essas pessoas têm todo o direito de existir e ter a sua plena cidadania. Dentro do movimento a gente tem bastante respeito.
BBC News Brasil - Como o senhor vai se posicionar no segundo turno?
Gonçalves - O nosso movimento está para se reunir, mas a minha posição pessoal é de voto silente no Lula. E as minhas razões não são de cunho econômico ou social porque eu entendo que Lula e Bolsonaro têm o mesmo modelo. É por conta de que, embora eles causem mal ao país de maneiras diferentes, Bolsonaro introduziu o que a gente chama de uma seita pseudocristã chamada "bolsonarismo dentro da igreja". É um mal que ele causa à igreja, muito maior do que o mal que, de maneira abstrata, Lula poderia causar. O mal do Bolsonaro é concreto porque tem entrado na estrutura da igreja usando símbolos cristãos em nome do poder. Não há como não me posicionar contra ele. E o que tem hoje contra ele é o Lula. Então, a minha posição é o voto em Lula.
*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil. Título editado
PDT declara apoio a Lula no 2º turno; Ciro endossa decisão da sigla
Sandy Mendes e Mariana Costa, Metrópoles*
Mesmo com as diferenças políticas, o PDT, partido do ex-governador do Ceará Ciro Gomes, decidiu apoiar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno da disputa presidencial, que ocorrerá no dia 30 de outubro. Segundo o presidente da sigla, Carlos Lupi, Ciro seguirá a decisão.
Em coletiva de imprensa, nesta terça-feira (4/10), Lupi oficializou o apoio ao petista e disse que a decisão foi unânime.
“Todos os partidários vão seguir o partido. Se o partido decide e os partidários não seguem, para que ter partido?”, falou Lupi. “Ciro participou da reunião e disse que endossa integralmente a decisão do partido”, concluiu.
Veja a declaração de Lupi:
Derrotado pela quarta vez na corrida ao Palácio do Planalto, Ciro já foi ministro da Integração Nacional durante o governo do petista.
Para a costura do acordo com o ex-presidente, o partido condicionou a implementação de pelo menos três projetos do pedetista no plano de governo do PT. Entre eles:
- O programa de zerar dívidas do SPC.
- O plano de renda mínima; proposto, inicialmente, por Suplicy.
- O projeto Educação em Tempo Integral.
Primeiro turno
Ao fim do primeiro turno, Ciro Gomes ficou em quarto lugar, atrás de Simone Tebet (MDB), com 3,5 milhões de votos, o que representa 3% dos votos válidos. Na primeira fala após a apuração, ele se disse “profundamente preocupado com o que acontece no Brasil”.
“Eu nunca vi uma situação tão complexa, tão desafiadora, tão potencialmente ameaçadora sobre a nossa sorte como nação”, pontuou Ciro durante entrevista coletiva.
Ele ainda salientou que primeiro conversaria com a sigla para definir eventuais apoios. “Eu peço a vocês que me deem mais algumas horas para conversar com os meus amigos, com o meu partido, para que a gente possa achar o melhor caminho para bem servir à nação brasileira.”
Quarta e última tentativa
Ciro Gomes teve a sua pior votação para o Planalto nesta eleição, que foi a quarta e, segundo o pedetista, última ao cargo.
“O futuro a Deus pertence. Se eu ganhar, quero trocar a minha reeleição pela reforma que o país precisa ter, e que foi jogada na lata do lixo. Se eu não vencer, quero ajudar a juventude a pensar as coisas, sem a suspeição de uma candidatura. Essas coisas sempre podem mudar, mas tenho 64 anos, dei a minha vida inteira à causa do povo brasileiro”, declarou.
Antes, Ciro tentou o Planalto em 1998 e 2002, pelo PPS, e em 2018 pelo seu atual partido, o PDT. Em 1998, teve 7,4 milhões de votos. Em 2002, 10,2 milhões de votos. Em 2018, obteve 13,3 milhões de votos. Agora, foi votado por 3,5 milhões de brasileiros.
Foi deputado, prefeito, ex-governador do estado do Ceará, ministro da Fazenda, durante o governo Itamar Franco, e da Integração Nacional, no governo do ex-presidente Lula.
Texto publicado originalmente no Metrópoles.
Eleições 2022: fake news sobre perseguição a evangélicos chegam a milhões via filhos e aliados de Bolsonaro
Julia Braun*, BBC News Brasil
As mensagens — compartilhadas não apenas por políticos influentes como também por usuários comuns — associam candidatos de esquerda, principalmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a falsos projetos para proibir pregação de pastores, criminalizar a fé evangélica e até retirar o nome de Jesus da Bíblia.
Outras fazem referência a casos reais de violência contra comunidades religiosas em países da América Latina, Ásia e África e alardeiam que isso pode ocorrer no Brasil.
"No cenário eleitoral e político brasileiro atual, isso se traduz em uma representação de Lula como um anticristão, enquanto que o Jair Bolsonaro é representado como um grande Messias", afirma Débora Salles, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e uma das pesquisadoras do NetLab responsável pelo relatório 'Evangélicos nas redes'.
O relatório monitorou perfis de influenciadores com grande alcance no segmento evangélico entre janeiro e agosto de 2022 e identificou os macro-influenciadores e perfis mais relevantes no terreno da desinformação de fundo religioso.
Entre eles, personalidades com ampla base de seguidores nas redes como o senador Flávio Bolsonaro (PL), o deputado Eduardo Bolsonaro (PL) e o vereador Carlos Bolsonaro (PL); os deputados Marco Feliciano (PL) e Carla Zambelli (PL); e o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
A BBC News Brasil analisou as redes sociais dessas seis figuras expoentes entre 6 de agosto e 6 de setembro e encontrou pelo menos 85 mensagens que usavam o temor de perseguição para "demonizar" adversários como Lula e Ciro Gomes.
Foram identificadas 14 postagens nas páginas do senador Flávio Bolsonaro, 11 nas do deputado Eduardo Bolsonaro, 2 na do vereador Carlos Bolsonaro, 8 nas de Carla Zambelli e 3 na do pastor Silas Malafaia no período. O campeão de postagens, porém, foi Marco Feliciano, com um total de 47 em apenas um mês.
Desse total, três mensagens chegaram a ser proibidas pelo TSE por "deturpar e descontextualizar" notícias a fim de gerar a "falsa conclusão no eleitor".
"Percebemos oportunismo de muitos políticos ligados ao bolsonarismo para usar os ambientes de troca de informação dos evangélicos para ganhar confiança, disseminar desinformação e angariar votos", diz a professora Rose Marie Santini, fundadora do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ dedicado a estudos de internet e redes sociais.
"As pessoas estão mais informadas em relação ao perigo das fake news do que estavam em 2018, quando muitos foram pegos de surpresa. Mas certamente esse tipo de desinformação com fundo religioso terá grande impacto no resultado", diz Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, especializado em checagem de notícias falsas com teor religioso.
'Banir a religião cristã'
Uma das fake news compartilhadas nos perfis monitorados pela BBC News Brasil afirma que Lula editou um decreto para "banir a religião cristã" em 2010.
Trata-se de um vídeo que combina reportagens da Band e da TV Globo sobre o decreto conhecido pela sigla PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos), de 2009.
Antes do vídeo, uma narração faz a seguinte pergunta: "Você sabia que em 2010 o presidente Lula assinou o decreto PNDH-3 para censurar a imprensa e banir a religião cristã e dar direito de posse da terra a invasores? Mas o projeto foi barrado pelo Congresso. Acha que se ganhar a eleição, ele não vai tentar novamente?".
A alegação é falsa. O documento assinado por Lula não cita qualquer tipo de banimento da religião cristã. O decreto, que ainda está em vigor, propõe justamente o inverso: incentivar a liberdade religiosa e combater a discriminação.
O documento também não prevê censura à imprensa ou dar o direito de posse de terra a invasores. O vídeo foi compartilhado em diversas redes sociais. No TikTok, uma das postagens tem quase 100 mil visualizações.
Ele também foi compartilhado pelo senador Flávio Bolsonaro em suas páginas no Facebook e Instagram no dia 19 de agosto e retuitado pelo deputado Eduardo Bolsonaro a partir de outro perfil no Twitter em 25 de agosto.
A BBC News Brasil entrou em contato com os dois filhos do presidente, mas eles não responderam aos pedidos de comentário até a publicação desta reportagem.
Nas postagens do senador Flavio Bolsonaro, entre comentários de 'Lula nunca mais' e '#bolsonaro2022', uma usuária escreveu: "Isso precisa ser divulgado em todas redes sociais". Uma outra versão da mesma notícia falsa foi postada pelo deputado Marco Feliciano no Facebook e Instagram em 20 de agosto.
Em 19 de agosto, Eduardo publicou no Twitter, Facebook e Instagram uma montagem afirmando que "Lula e PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos". Na mesma imagem, há recortes de notícias sobre a perseguição de religiosos na Nicarágua e de declarações do PT e de Lula sobre o presidente Daniel Ortega.
Após um pedido da campanha do petista, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou no início de setembro a remoção das publicações, que não estão mais no ar, por "deturpar e descontextualizar quatro notícias a fim de gerar a falsa conclusão, no eleitor, de que o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores apoiam invasão de igrejas e a perseguição de cristãos".
A reportagem entrou em contato com a campanha de Lula, mas não obteve resposta.
Eduardo Bolsonaro já tinha recebido ordens do TSE para tirar do ar um vídeo que, segundo o tribunal, apresentava de forma descontextualizada e editada um material cujo objetivo era dizer que Ciro Gomes, candidato à presidência do PDT, prega a desarmonia entre as religiões.
A postagem afirma, entre outras coisas, que Ciro "comparou igrejas com o narcotráfico em 2018". "Os recortes são manipulados com o objetivo de prejudicar a imagem do candidato, emprestando o sentido de que ele seria contrário à fé católica e odioso aos cristãos", escreveu o ministro Raul Araújo, do TSE, na decisão.
'Discurso de ódio para destruir as igrejas evangélicas'
As mensagens que fazem referência a uma ameaça de perseguição aos cristãos não estão apenas no Facebook, Instagram e Twitter. São compartilhadas também por usuários desconhecidos em aplicativos de mensagem como WhatsApp e Telegram, com muito menos controle das autoridades.
Segundo levantamento feito pelo Monitor de WhatsApp da UFMG a pedido da BBC News Brasil, a mensagem mais compartilhada nos mais de mil grupos públicos acompanhados na rede social desde o começo do ano e que contém expressões como 'cristofobia', 'destruir as igrejas' e 'intolerância religiosa' é também de ataque ao ex-presidente Lula.
A postagem diz, entre outras coisas, que o candidato "não tem apreço por pastores e militares, faz um verdadeiro discurso de ódio para destruir as igrejas evangélicas" e foi enviada um total de 19 vezes por 6 usuários distintos em 15 dos grupos monitorados pelos pesquisadores.
A segunda mais repostada, porém, também contém distorções, mas contra o presidente Jair Bolsonaro.
"O povo de Deus abandonou Bolsonaro e suas mentiras, ele é o enviado da morte, fome, desgraça e desemprego, que veio para destruir as igrejas evangélicas com política, e jogar irmão contra irmão", diz o texto, enviado 18 vezes por 3 usuários distintos em 10 grupos.
Entre as mensagens detectadas pela UFMG há ainda uma que se refere a uma suposta "lei de proteção doméstica" em debate no Senado Federal que proibiria a pregação religiosa. Ela foi enviada um total de 68 vezes por 49 usuários distintos e apareceu em 63 grupos.
A mensagem cita uma iniciativa debatida no Senado que teria como objetivo, entre outras coisas, determinar a prisão religiosa por pregações em horários impróprios e a sanção de congregações e fiéis. Segundo o coletivo Bereia, trata-se de uma notícia falsa, e não existe Projeto de Lei em discussão denominado "Proteção Doméstica".
O texto em tramitação mais próximo ao citado é o PL 524/2015, que está parado no Senado Federal e prevê estabelecer limites para emissão sonora nas atividades em templos religiosos, sem menção à prisão religiosa, proibição de pregações ou limitação da liberdade religiosa.
'Um alerta à igreja'
Mas nem todos os posts identificados pela reportagem são imediatamente reconhecidos como fake news. Enquanto alguns usam notícias ou declarações tirados do contexto com o objetivo de desinformar, outros simplesmente reproduzem o discurso que explora o temor de restrição à liberdade religiosa.
Um vídeo em que o ex-presidente Lula aparece falando justamente do crescimento das fake news religiosas e acusa algumas pessoas de "fazer da Igreja um palanque político" foi compartilhado com frequência no final de semana de 20 e 21 de agosto e associado a um ataque a pastores e igrejas.
"Tem muita fake news religiosa correndo por esse mundo. Tem demônio sendo chamado de Deus e gente honesta sendo chamada de demônio", diz o petista na gravação feita durante um comício. Em seguida, ele afirma que, em um eventual novo governo seu, o Estado será laico. "Eu, Luiz Inácio Lula da Silva, defendo Estado laico, o Estado não tem que ter religião, todas as religiões têm que ser defendidas pelo Estado", diz
"Igreja não deve ter partido político, tem que cuidar da fé, não de fariseus e falsos profetas que estão enganando o povo de Deus. Falo isso com a tranquilidade de um homem que crê em Deus."
Ao ser compartilhado nas redes sociais, porém, o vídeo foi descrito como uma demonstração de ódio ou zombaria. "Mais uma vez Lula zomba da fé cristã. Desta vez, atacando o sacerdócio e a honra de padres e pastores. INACEITÁVEL!", escreveu a deputada Carla Zambelli.
A BBC News Brasil procurou Zambelli, que afirmou em nota que "existe, sim, uma ameaça à liberdade do Cristianismo no Brasil, e não podemos ignorar isso tão somente argumentando que vivemos em um país majoritariamente cristão".
"Os ataques ocorrem não apenas a templos e igrejas, mas a valores cristãos. A censura à manifestação religiosa é uma tática antiga de ideologias de esquerda, como no regime soviético, que taxou igrejas, proibiu a venda e circulação da Bíblia Sagrada e praticou diversas campanhas antirreligiosas", disse ainda a deputada, que é autora de um projeto de lei para ampliar a legislação sobre crimes contra a liberdade religiosa.
O vídeo também foi repostado por Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro e pelo deputado Marco Feliciano.
Carlos Bolsonaro não respondeu ao pedido de comentário feito pela reportagem. Em nota, Feliciano afirmou que suas postagens não se tratam de fake news e que parte de "premissas incontestes" quando faz alertas sobre a ameaça à liberdade religiosa dos cristãos.
"Desavisados, manipuladores e as esquerdas atribuem às ideias conservadoras como fake news. Numa narrativa rasa dos assuntos que não lhes convém! Quando eu publico um alerta ao povo que me elegeu, cristãos evangélicos e conservadores, eu parto de premissas incontestes!", disse Marco Feliciano em nota enviada à BBC News Brasil.
"Em todos os países em que a esquerda socialista-comunista tomou o poder à força ou pela urnas, quando não conseguiu uma Igreja subserviente, partiu para a mais atroz perseguição, como estamos assistindo na Nicarágua, que persegue a Igreja Católica expulsando freiras e fechando as emissoras de rádio cristãs, regime que tem muitos amigos por aqui (Brasil). Completo: não se trata de falso temor, mas da sabedoria popular: 'o seguro morreu de velho'".
Mas a professora Marie Santini, da UFRJ, afirma que mensagens como as postadas pelos filhos e aliados de Bolsonaro geram desinformação e alardeiam pânico sem apresentar evidências que justifiquem esse temor.
"Entendemos fake news como algo que parece jornalismo, mas na verdade é só propaganda. A desinformação é algo mais amplo, inclui teorias da conspiração, distorção de fatos, discursos de ódio e que citam a intolerância e o ódio, por exemplo", diz Santini.
Em alguns dos vídeos compartilhados pelo pastor Silas Malafaia, a reportagem também identificou o discurso classificado como desinformativo pelos especialistas e que trata, por vezes de forma implícita, da ameaça de perseguição aos cristãos.
Em um vídeo postado em seu canal no YouTube em 4 de setembro e compartilhado também em suas páginas no Facebook, Instagram e Twitter, o pastor faz um "alerta" à sua igreja e fala sobre um avanço "com toda força" contra os evangélicos.
"Ficamos chocados quando comunistas e ímpios rasgam a Bíblia e tacam fogo nela. E quando os crentes rasgam a Bíblia do seu coração apoiando gente que nos odeia e odeia nossos fundamentos e princípios?", diz Malafaia, no vídeo de cerca de 11 minutos.
"Eu estou dando um alerta, depois não chora. Porque meu irmão, vão vir em cima da igreja com toda força (...), porque nós somos o último guardião contra aquilo que eles creem e acreditam."
O vídeo tem mais de 150 mil visualizações no YouTube. Um trecho compartilhado no perfil de Malafaia no Instagram tem 84 mil curtidas.
A reportagem procurou o pastor Silas Malafaia, que afirmou que suas postagens não são fake news e que suas manifestações fazem parte de seu direito de expressão. "A minha fala não tem relação com perseguição. O que estou dizendo é que não podemos apoiar um candidato que é contra nossas crenças, valores e fundamentos", disse.
Como exemplos de medidas que corroboram sua visão, Malafaia citou a PLC 122/2006, que criminaliza a homofobia, como um projeto cujo objetivo era "botar padre e pastor na cadeia que impedisse que gays dessem beijo no pátio da igreja" e que foi apoiado pelo PT.
Em sua redação final aprovada na Câmara dos Deputados, antes de ser enviado ao Senado, a proposta citada pelo pastor não mencionava padres ou pastores. Um dos artigos previa pena de reclusão de dois a cinco anos para quem impedisse ou restringisse a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público por discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. O projeto, porém, foi arquivado.
Malafaia disse ainda que, durante seu governo, a ex-presidente Dilma Rousseff "promoveu através do secretário Rachid da Receita Federal perseguição às igrejas". "Eu sou um que sofreu perseguição e multas violentas, de pura maldade", disse à BBC News Brasil.
'Cristofobia'
O uso do tema da perseguição a cristãos pela esquerda, porém, não é novo. O discurso remonta às eleições de 1989, quando o PT lançou Lula candidato pela primeira vez e apoiadores de Fernando Collor de Mello usaram o imaginário da ameaça comunista relacionada ao PT e o discurso de que ele fecharia as igrejas para apoiar sua campanha.
A narrativa foi retomada com mais força mais recentemente, nas eleições municipais de 2020, sob o rótulo do termo "cristofobia". Dentro das esferas evangélicas, o termo tem sido usado para se referir a perseguições sofridas por adeptos do cristianismo em diversos países, principalmente em locais onde eles são minoria. Bolsonaro usou a expressão em discurso na ONU naquele ano.
"Há alguns anos, eram mais comuns as postagens que identificavam casos de perseguição a cristãos no Oriente Médio, na China e em países ligados ao comunismo. As mensagens criavam um certo pânico em torno disso e chamavam os cristãos brasileiros para que tivessem solidariedade", afirma Magali Cunha.
"Mas de 2020 para cá, temos observado que se está trazendo para a realidade do Brasil esse tipo de abordagem."
O antropólogo Flávio Conrado é assessor de campanhas do grupo de pesquisa Casa Galileia e coordena um projeto de monitoramento de perfis cristãos nas redes sociais.
Segundo ele, a narrativa de perseguição religiosa tem objetivo de atingir especialmente os grupos evangélicos, mas em muitos momentos também acaba por chamar a atenção de católicos mais conservadores.
"Algumas das vozes por trás das postagens usam uma estratégia de se associar aos católicos e passam a falar em nome dos cristãos como um todo", diz. Para Conrado, o objetivo por trás da campanha de desinformação é usar o temor de um ambiente de perseguição para atrair votos.
De acordo com Débora Salles, o discurso de ameaça à liberdade religiosa dos cristãos também se mistura de forma intensa com uma outra narrativa que vem sendo difundida com frequência nas redes sociais — a de que existe uma "guerra" de valores morais entre evangélicos e a esquerda.
"Essas narrativas se baseiam em uma lógica populista em que tenta se criar a ideia de que há uma guerra político cultural em que os evangélicos deveriam se juntar pela defesa dos seus valores, que estão ameaçados por uma esquerda associada a instituições democráticas, à mídia tradicional e a figuras importantes do cenário cultural", explica a pesquisadora
Em alguns de seus vídeos para as redes sociais, o vereador mineiro Nikolas Ferreira (PL-BH) dá voz a esse discurso.
"Esse vídeo é um alerta para abrir os nossos olhos para a guerra silenciosa que estamos vivendo", diz ele em um vídeo de março, em que fala sobre uma "doutrinação" nas escolas e universidades e cita a criação de um exército pelo que define como "o inimigo" dos cristãos.
Em outra postagem, associa a campanha do ex-presidente Lula à ditadura da Nicarágua e à invasão de igrejas. "Essa galerinha de esquerda gosta de invadir uma igreja né? Imagina quantas igrejas não serão invadidas se o Lula estiver no poder?", diz no vídeo, que tem mais de 500 mil curtidas.
O vereador de 26 anos tem uma grande comunidade de fãs nas redes, com 3,1 milhões de seguidores no Instagram e 1,4 milhão no TikTok.
Nikolas Ferreira, enviou a seguinte nota à reportagem: "Eu não me baseei em achismo ou levantei meras suposições, mas expus fatos que evidenciam igrejas sendo invadidas, imagens sendo quebradas e profanadas nos países da América Latina. A perseguição já existe. Inclusive, o amigo do Lula, Daniel Ortega, está fechando rádios católicas e perseguindo fiéis na Nicarágua. Desinformar é dizer o contrário."
Segundo o antropólogo Flávio Conrado, também são comuns os conteúdos desinformativos que, por exemplo, associam o PLC 122/2006, projeto de lei chamado informalmente de "projeto anti-homofobia", apresentado em 2001 para punir criminalmente discriminação de gênero e de orientação sexual, com a perseguição a pastores e o fechamento de igrejas.
A proposta foi arquivada no final de 2014, mas em junho de 2019 o STF decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia, com a aplicação da Lei do Racismo (7.716/1989).
Em um vídeo compartilhado no início de agosto, o deputado Marco Feliciano afirma que pastores de todo o Brasil estão sendo perseguidos e processados por se recusarem a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo. "A liberdade de consciência e crença está em jogo. A Igreja precisa resistir!!!", escreveu na legenda.
Mas há ou não perseguição a cristãos no Brasil?
Todos os anos, a ONG internacional Portas Abertas, que auxilia cristãos que sofrem opressão por conta de sua religião, produz um ranking dos 50 países onde seguidores do cristianismo são mais perseguidos por causa de sua fé.
O estudo é feito a partir de relatos de incidentes de violência. Na edição de 2022 do ranking, os únicos países da América Latina citados como localidades onde há perseguição severa são Colômbia (30ª posição), Cuba (37ª) e México (43ª).
Há ainda uma lista de países em observação, que engloba outras 26 nações — entre elas estão Nicarágua (61°), Venezuela (65°), Honduras (68°) e El Salvador (70°). O ranking é elaborado anualmente e a edição atual foi feita entre setembro de 2020 e outubro de 2021, o que significa que a classificação de alguns países pode mudar na próxima publicação.
O governo da Nicarágua, citado em muitos dos conteúdos desinformativos identificados pela reportagem, tem sido, de fato, denunciado por repressão à Igreja Católica no país. A tensão entre o Executivo do presidente Daniel Ortega e a instituição cresceu desde que o clero forneceu abrigo a estudantes envolvidos nos protestos de 2018.
Mas desde que a lista do Portas Abertas começou a ser feita, há quase 30 anos, o Brasil não aparece no ranking e é classificado como livre de perseguição.
Segundo o sociólogo Clemir Fernandes, pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e pastor da Igreja Batista, o discurso em torno da cristofobia sequer faz sentido em um país como o Brasil, onde 86,8% da população se identifica como cristã, entre católicos e evangélicos, segundo dados do censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
"Não é possível falar de perseguição a um grupo que não só é majoritário numericamente, como também tem grande representação nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e na cultura brasileira", diz.
Ainda de acordo com o pesquisador, o ambiente de confiança criado em torno das igrejas evangélicas e os laços formados entre os fiéis facilita a difusão dos conteúdos falsos nesse ambiente.
"Muitas pessoas podem julgar as informações passadas nos grupos evangélicos como verdadeiras porque não verificam a sua veracidade, mas também porque elas foram repassadas por irmãos de fé", diz Clemir Fernandes.
Mas há preconceito?
Embora não haja evidências de perseguição concreta a cristãos no Brasil, pesquisadores afirmam que há "arrogância" e "preconceito", especialmente por parte da elite de esquerda, ao falar sobre evangélicos.
No segundo turno da eleição de 2018, o então candidato do PT à Presidência, Fernando Haddad, chamou o pastor Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, de "representante do fundamentalismo charlatão".
Para o historiador e antropólogo Juliano Spyer, isso custou votos a Haddad e deu munição a segmentos evangélicos que defendiam um apoio formal de suas igrejas a Bolsonaro.
"As camadas médias e altas do Brasil têm uma visão fora de foco do Brasil popular e ignoram esse fenômeno [evangélico]. Isso é problemático, porque generaliza a imagem de um grupo de brasileiros com imensa importância cultural, econômica e política", diz Spyer, que é autor do livro O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam.
"Ao tratar os evangélicos de forma desrespeitosa, arrogante, desinformada e com uma série de críticas por serem religiosos, estamos abrindo mão do diálogo com as pessoas que têm valores conservadores".
'Realmente acho que pode acontecer aqui no Brasil'
Luciana Casa Grande, de 40 anos, frequenta uma Igreja Batista em São José dos Campos, São Paulo. Assim como muitos outros evangélicos no país, ela vem sendo exposta nas redes sociais a conteúdos que alardeiam uma ameaça à liberdade religiosa dos cristãos.
"Leio com frequência postagens e notícias nas redes sociais que falam sobre invasões, incêndios e atentados em igrejas ou assassinatos de cristãos na África e em outros lugares", afirmou a arquiteta à BBC News Brasil. "Pela intolerância que vejo, principalmente dos partidos de esquerda ou daqueles que se autodenominam socialistas ou comunistas, realmente acho que pode acontecer aqui no Brasil."
Luciana afirma acompanhar com frequência o perfil de alguns dos aliados de Jair Bolsonaro citados pela reportagem, como Nikolas Ferreira e a vereadora Sonaira Fernandes (PL-SP), outra aliada de Jair Bolsonaro que dá voz ao discurso desinformativo de perseguição religiosa.
Em um post na página do Instagram de Fernandes, em que a vereadora que se autodenomina cristã fala sobre a possibilidade de ataques ao cristianismo no Brasil a partir de um vídeo de uma homilia de um bispo católico, Luciana expressou sua apreensão: "Deus é maior! É hora dos cristãos se posicionarem e se colocarem à disposição de Nosso Senhor Jesus Cristo!", escreveu a paulista nos comentários.
Em nota enviada à reportagem, a vereadora Sonaira Fernandes disse que é cristã "antes de ser qualquer outra coisa, e tenho todo direito de expressar minhas convicções religiosas, conforme prevê a Constituição".
"Diz o filósofo Luiz Felipe Pondé que o único preconceito ainda socialmente aceito no Brasil é contra evangélicos e católicos. Isso fica evidente quando uma declaração minha, que reflete minha cosmovisão cristã, é demonizada e criminalizada", afirma.
Luciana já tem seu candidato à presidência definido: "Vou votar no Bolsonaro, principalmente porque ele defende as coisas em que eu acredito", diz.
"Gosto da defesa que ele faz pelo fim da sexualização das crianças. A questão do aborto também, eu sou contra o aborto".
Algumas informações que circulam nas redes sociais sobre o ex-presidente Lula também influenciaram Luciana no momento de escolher seu candidato. "Temos ouvido falar que o Lula vai colocar os padres e os pastores em seu devido lugar. Sempre faz um ataque nesse sentido", diz a arquiteta.
"Vi na internet e em cortes de vídeos, mas não me lembro onde exatamente. Leio muita coisa, não fico catalogando."
*Texto publicado originalmente no portal da BBC News Brasil.
Movimentos populares lançam carta-compromisso sociambiental para as eleições 2022
Redação*, Brasil de Fato
Nesta segunda-feira (12), será lançada a Carta Compromisso Socioambiental para as Eleições de 2022. Articulada por dezenas de movimentos populares, coletivos, organizações da sociedade civil e partidos políticos, a carta apresenta um conjunto de propostas e alternativas para superar a crise socioambiental que o Brasil atravessa.
São 16 propostas, organizadas em três eixos: Fortalecer a atuação do Estado, que inclui ações como recompor e fortalecer órgãos públicos socioambientais, valorizar servidores e ampliar a participação popular; Combater vetores de degradação sociambiental, que passa por reverter desmatamento e reflorestar unidades de conservação, proteger a fauna e combater o uso de agrotóxicos; e Construção do presente e futuro, que inclui implantar a transição ecológica justa, promover educação ambiental, universalizar o saneamento básico, entre outras propostas.
“Entre os elementos importantes, estão o cuidado com o solo, com a água, com todos os recursos naturais, cuidado com a alimentação saudável, a agroecologia", explica Gilmar Mauro, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), um dos movimentos que assina a carta.
“O cuidado com o saneamento, com geração de emprego, combate à fome e miséria. Porque, afinal de contas, somos natureza, o ser humano é parte da natureza e cuidar do ser humano é cuidar da natureza.”
A intenção é dialogar com candidaturas aos diversos cargos em disputa nessa eleição para que "assumam coletivamente conosco o compromisso com essas propostas”, explica Mauro.
“Mas também outras organizações populares estão conclamadas a assinar essa carta e fazermos uma luta para que os novos eleitos possam assumir esse compromisso. Mas, mais que isso, que essas organizações assinantes assumam esse compromisso pra lutar para que esses problemas e essa questões sejam resolvidas no próximo período”, afirma o dirigente do MST.
Candidaturas podem aderir à carta por meio deste formulário on-line.
O evento de lançamento acontece às 19h, no auditório do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep/SP), na Rua da Quitanda, 101, região central da capital paulista.
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Simone Tebet apresenta principais pontos de seu programa de governo
João Rodrigues, da equipe da FAP
A senadora Simone Tebet, oficializada na última quarta-feira (27/7) como candidata à Presidência da República pelo MDB, é a entrevistada especial da edição número 45 da revista Política Democrática Online, lançada nesta semana pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). A conversa foi conduzida pelo diretor-geral da FAP, Caetano Araújo, pelo consultor legislativo do Senado Arlindo Fernandes, pelo jornalista Eumano Silva e pelo tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques.
Neste episódio especial, o podcast Rádio FAP apresenta os principais pontos de programa de governo de Simone Tebet. Antes de ser eleita senadora pelo Mato Grosso do Sul, em 2014, Tebet foi deputada estadual, duas vezes prefeita de Três Lagoas (MS), sua cidade natal, e vice-governadora do estado.
O combate à pobreza, as oportunidades da economia verde e o orçamento secreto estão entre os temas da entrevista. O fim da reeleição, os riscos de um golpe de Estado em meio à tensão eleitoral e a importância do investimento em educação pela União também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios do SBT News, Morning Show, Jornal Hoje, da TV Globo, e Roda Viva.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Anchor, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.
RÁDIO FAP
Revista online | “Resultado das urnas tem de ser defendido com unhas e dentes”
Equipe da RPD e, como convidado especial, Arlindo O. Rodrigues | (43ª edição: maio/2022)
Doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università deli Studi Roma Tre, o advogado Marco Marrafon ressalta a capacidade de as redes sociais influenciarem nas eleições. Por outro lado, vê com bons olhos a tentativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de “tentar coibir” as fakes news, uma questão que, segundo ele, deve receber enfrentamento global.
“As redes sociais têm, de fato, hoje, o condão de modificar eleições e moldar comportamentos”, afirma Marrafon, que é professor de Direito e Pensamento Político na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e entrevistado especial desta 43ª edição da revista Política Democrática online (maio/2022). Ele observa, ainda, que a inteligência artificial avançada já torna possível o deep fake, ou “fake sofisticado”.
Para se ter uma ideia, como o entrevistado exemplifica, “você vai ver um videoclipe com o candidato falando, com a voz dele, o sotaque dele, a língua dele, mas é um vídeo totalmente falso, feito por computação gráfica”. “Fica difícil discernir o que é falso do que é verdadeiro, o virtual do real”, acentua.
Ex-secretário de Planejamento (2015-2016) e de Educação (2016-2018) no Governo do Estado de Mato Grosso (gestão 2015-2018), Marrafon observa, também, que “as urnas eletrônicas têm sofrido ataque maciço, já há algum tempo”, mas é enfático ao dizer que são totalmente confiáveis e descarta “risco de fraudes eleitorais”.
Ele, que também é ex-presidente executivo e membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), aborda o caso de Elon Musk e Twitter, o capitalismo de vigilância, o ciberpopulismo e o papel da educação como “chave da transformação e da liberdade”. A seguir, confira os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD): Os analistas políticos parecem coincidir na teoria de que, hoje em dia, os eleitores mais influentes são as redes sociais. Ilustram com um voto a favor do Brexit e a eleição do Trump. Essa teoria, se procedente, poderá afetar as eleições no Brasil? E, em caso afirmativo, que modificação ou distorção teria no processo democrático brasileiro?
Marco Marrafon (MM): Essa é uma questão muito relevante. As redes sociais têm, de fato, hoje, o condão de modificar eleições e moldar comportamentos. Trata-se de um modelo que está se desenhando no contexto da sociedade de controle: é o que se chama no mundo ocidental de capitalismo de vigilância, que é, na verdade, o velho capitalismo com uma atualização para instrumentalização dos dados pessoais para a manipulação das pessoas. A professora Shoshana Zuboff cunhou o termo e escreveu um livro sobre capitalismo de vigilância, para, justamente, denunciar esse processo de uma nova corrida do ouro. Uma corrida do ouro que seria uma corrida por dados. Quando o Elon Musk compra o Twitter por 44 bilhões, ele não está comprando a infraestrutura do Twitter; está comprando os dados dos usuários do Twitter e o que se pode fazer com isso. Captam-se dados em todos os lugares e constrói-se uma espécie de avatar humano virtual. A partir daí eles têm uma base muito grande para manipular o comportamento das pessoas, inclusive fisicamente, fazendo as pessoas irem a diversos lugares. A experiência primeira que demonstrou esse processo foi aquele joguinho chamado Pokémon Go, onde se consegue levar, por exemplo, mil pessoas para a frente de um McDonald's, se quisessem.
Na primeira década deste século XXI, tínhamos uma perspectiva da construção das redes sociais e da internet como uma nova ágora virtual porque a lógica das redes era para ser dialógica: sou receptor de conteúdo, mas, ao mesmo tempo, sou produtor de conteúdo. Essa dialogia é diferenciada e não se confunde com a indústria cultural que se constrói com o rádio, com a TV, porque ali o telespectador era mesmo espectador, tinha uma postura mais passiva de recepção de conteúdo. Com o advento das redes sociais, os usuários passam a ser também produtores: dão opiniões e produzem e divulgam vídeos, como no Youtube.
Com o capitalismo de vigilância e os desenvolvimentos dos últimos dez anos, ou seja, de 2010 a 2020 – agora de maneira muito forte, insidiosa, esse grande número de informações que as grandes redes possuem não serve mais para a pessoa produzir conteúdo autônomo; serve para a pessoa produzir conteúdo que ela já está pré-disposta a produzir. Não tem mais liberdade e autonomia nessa produção. Na verdade, torna-se de novo um espectador passivo e obediente. Ele está repetindo frases, espalhando memes que as redes querem que ele espalhe porque elas já possuem a informação suficiente para manipular, forjar ideias e reforçar os pré-conceitos dos usuários. É uma forma de círculo vicioso, em que não há mais autonomia e liberdade. O usuário deixou de ser produtor livre de conteúdo e agora produz conteúdo em cima da manipulação que as redes promovem. Logo, o potencial de manipular eleições é enorme.
Veja, a seguir, galeria de fotos
RPD: Mesmo depois das reuniões que o TSE promoveu com todas as mídias, Telegram, inclusive?
MM: Entendo que sim. A grande questão é que questões globais – e falo de uma questão que envolve redes sociais internacionais e um movimento que não se restringe ao Brasil – se resolvem com políticas globais. Ao que assistimos, é um movimento muito importante do TSE de tentar coibir, de amenizar os danos, mas é impossível, hoje, com a tecnologia, que se elimine a influência. Todos os movimentos de tentativa de controle de fake news, de controle da manipulação, são muito bem-vindos, porque são processos auxiliares, na tentativa de atenuar riscos e diminuir influência, mas isso é uma questão global, e, portanto, o enfrentamento também tem que ser global.
RPD: Penso que as primeiras interpretações das redes sociais como ágoras virtuais foram excessivamente otimistas. Referiam-se às manifestações em massa convocadas por redes sociais, que se revelaram eficazes e explosivas em diversos contextos, como a Islândia, a Espanha, os Estados Unidos e a Primavera Árabe. Parece, porém, que, depois de um certo ponto, houve uma inflexão, e as redes deixaram de se combinar com as manifestações de massa e passaram a se dedicar mais às eleições. Talvez o Brexit possa ilustrar a inflexão desta tendência. Você acha que houve realmente uma mudança de uma ênfase nas manifestações de rua para as eleições, e a grande capacidade de manipulação de dados se demonstrou mais intensa?
MM: É um argumento com que concordo porque justamente nesse processo, quando se pensa na primeira fase, se pensa num processo de liberdade e autonomia, com as pessoas produzindo conteúdo e expressando seus anseios a partir de suas necessidades, suas demandas: demandas por mais democracia, demandas por mais direitos. As redes absorvem, assim, esse conteúdo e lhes dão grande potencial. Além do Brexit, pode-se ser mencionada a eleição americana do Barack Obama, que refletiu essa tendência da ágora virtual, de um debate democrático, de "nós podemos"; na sequência, após o mandato do Obama, a eleição de Trump significa um turning point, a mutação de todo processo, quando já havia estudos da Cambridge Analítica, da Inteligência Russa, de como utilizar esse instrumental não mais para uma manifestação voluntária, mas para uma manifestação manipulada, inclusive direcionada e individualizada, o que eles chamam na comunicação de microtargeting. Por exemplo: se uma pessoa gosta de determinado sanduíche ou é torcedora de um time de futebol, irá receber propagandas alusivas a esse tema. Na esfera política, pode-se até relacionar isso com as preferências por esse ou aquele candidato
O processo que se delineia na segunda década deste século XXI tornou-se super incisivo e potente. Falamos de um momento em que nós já temos o deep learning, uma inteligência artificial muito avançada e com grande capacidade de processamento, que torna possível o famoso deep fake que não existia cinco, seis anos atrás. O que é o deep fake? Literalmente é aquele fake profundo, sofisticado, em que você vai ver um videoclipe com o candidato falando, com a voz dele, com o sotaque dele, com a língua dele, mas é um vídeo totalmente falso, feito por computação gráfica. Fica difícil discernir o que é falso do que é verdadeiro, o virtual do real.
No início desta terceira década, a manipulação e o controle social se tornaram dramaticamente eficazes.
RPD: Com relação ao processo eleitoral brasileiro deste ano, o TSE enfrenta dois problemas em dois planos. Luta pela validação do sistema eleitoral pela internet e, também, pela lisura das urnas eletrônicas que não estão no sistema. As teorias que combatem essas bandeiras visam a desmoralizar a democracia via desqualificação da urna eletrônica?
MM: Chama-me a atenção a excessiva horizontalidade nos debates na rede, ou seja, não importa se a pessoa é um professor doutor, especialista na área, ou é uma pessoa que meramente pratica um achismo, uma opinião. Tudo isso tem levado a quê? A um modelo de produção de "supostos saberes", que é um modelo muito mais reativo, instintivo, baseado em gritos, em memes, em slogans, um modelo que chamo de democracia de slogans, usando microelementos que fazem falsas comparações que são impulsionadas pelas redes sociais e seus instrumentos de comunicação.
Nesse contexto, as urnas eletrônicas têm sofrido ataque maciço, baseado em informações distorcidas, já há algum tempo. Os cidadãos acabam acreditando nesses fakes e reagem em sua defesa. Isso não chega a surpreender porque o modelo de transmissão de conhecimento das redes sociais é um modelo que cada vez mais leva a níveis instintivos de reação e menos de reflexão. As pessoas não têm tempo para refletir sobre os problemas com profundidade, a fazer comparações, a distinguir que muitas das fake news são incoerentes em si, têm problemas de lógica, não fecham logicamente. O problema é que tudo isso é embrulhado no estilo teoria da conspiração, três ou quatro elementos que possuem alguma veracidade são reunidos para construir uma conclusão falsa.
A história registra que a urna eletrônica é totalmente confiável. É possível aprimoramento? Sempre é possível aprimorá-la, mas isso não significa que haja risco de fraudes eleitorais. Tenho, particularmente, plena confiança no processo das urnas eletrônicas, inclusive fui candidato, fui derrotado, fiquei de primeiro suplente de deputado federal da eleição passada e aceito o resultado com muita tranquilidade. Também, agora, no dia 2 de outubro, qualquer resultado tem de ser defendido pelos brasileiros com unhas e dentes.
RPD: Tem-se desenvolvido no Brasil algo à la Goebbels, no sentido de que quanto mais se repete uma tese, mais verdadeira ela se transforma. Felizmente, com relação à vacina, apesar dos esforços ingentes do governo para desacreditá-la – o chefe de Estado imitando pessoas sufocadas pela falta de oxigênio ou assegurando que tem tomasse a vacina viraria jacaré, ou comprometeria seu desempenho sexual –, a vacina firmou-se como instrumento indiscutivelmente eficiente no combate à covid-19. Mas a mesma atitude negacionista continua desmerecendo o uso das urnas eletrônicas, a proteção do meio ambiente, a relevância das universidades para o desenvolvimento do país, as atividades culturais de modo geral, sempre sob a aleivosia de que são expedientes para alimentar focos subversivos de comunistas. A que se pode atribuir essa pregação? É fruto de ignorância, ou se trata meramente de fanatismo?
MM: O que mais tem sido pernicioso no âmbito das novas tecnologias é o processo de emburrecimento humano, no sentido de tornar as pessoas muito mais instintivas do que reflexivas, deixando de raciocinar com profundidade sobre os problemas. Temos questões complexas sendo tratadas de maneira absolutamente leviana com base em memes e slogans. O objetivo é que as pessoas reajam àquilo e se convençam, sem muita argumentação de base, sem olhar, sem levar em conta a complexidade das questões, o que exige tempo e vontade para refletir. A reflexão exige debruçar-se sobre o tema em debate, voltar-se a ele com frieza e razão para só então auferir conclusões.
Problema é que as pessoas sequer leem. Falando apenas dos jornais, há pesquisas que revelam que os leitores de artigos leem apenas quatro parágrafos de um texto mais longo. A expectativa é resumir a tese no primeiro parágrafo e na manchete, de preferência. Tudo bem, só que serão os outros parágrafos que abordarão o sentido e o alcance do texto. As pessoas não leem mais artigos de jornal, quanto mais grandes livros.
A culpa histórica também é nossa. Tivemos oportunidade política para mudar, diante da melhoria das condições econômicas do primeiro decênio deste século. Só que a inclusão se deu na lógica de uma cidadania de shopping center, de consumo, de ostentação – lembra os rolezinhos? Basta notar as músicas que estão fazendo a cabeça da maioria dos jovens. A inclusão não se deu pela construção de uma cidadania assentada na educação política, de uma educação também clássica, saberes que fazem muita diferença na produção de conhecimento. A humanidade está perdendo logos, entendido, desde os gregos, como razão e como capacidade de linguagem. E é isso que nos distingue, em tese, dos outros seres sencientes. Estamos perdendo essa capacidade de reflexão, de fala e de sua representação simbólica. Hoje abrevia-se tudo, deturpa-se a linguagem. As pessoas não suportam mais a erudição, a cultura se torna algo que não mais valoriza o trabalho e o esforço. É muito difícil compor uma sinfonia. Aprender a tocar violino exige disciplina.
Vivemos o que se tem chamado de era das narrativas combinadas com movimentos fortemente anti-iluministas, isto é, anticiência e anticultura, no sentido erudito do termo. Eu não estou falando de cultura popular, favorecendo o populismo. Somos ainda culpados por não ensinarmos um português decente, por não ensinarmos lógica para as pessoas aprenderem as contradições dos argumentos, por não exigirmos aprovação em matemática para que as pessoas aprendam a raciocinar.
São saberes clássicos que continuam fazendo sentido, e esse movimento anti-iluminista deita raízes no niilismo Nietzschiano, do antimodernismo que vem crescendo no século XX como um movimento contra verdades filosóficas, num movimento que vai desembocar no século XXI como a era das narrativas, ou da pós-verdade, como se não fosse possível nenhuma verdade. Se não é possível nenhuma verdade, então, nós estamos vivendo um novo tempo sofístico onde o predomínio é de quem melhor argumenta. O sofista Górgias dizia que o homem é a medida de todas as coisas justamente por não acreditar em verdade ou falsidade ontologicamente falando. Quando Platão e Aristóteles resgatam Parmênides e instauram as hipóteses essencialistas, eles percebem que a democracia ateniense está em decadência e é preciso uma noção de verdade, uma noção de justiça para que os cidadãos possam, minimamente, balizar padrões de comportamento socialmente aceitáveis.
De certo modo, movimentos, não só da extrema direita, mas da esquerda também, contribuem para esse niilismo antirracionalista que está na raiz da pós-verdade: se tudo é narrativa, não existe verdade e falsidade e, logo, não há limites na ação humana. Somos seres individualistas em uma era sem limites: gostamos de ter a Netflix sem limites. Não posso esperar mais o capítulo da novela ou da série no dia seguinte, eu tenho que maratonar tudo numa noite.
Esse contexto tem dado ensejo a um novo modelo mental no qual, especialmente as novas gerações, têm tido muita dificuldade de aceitar o não, de compreender as dificuldades e o sofrimento positivo. Vamos dizer assim, aquele sofrer que leva ao crescimento, de você estudar e sentir dores físicas de tanto estudar, de reflexão, para poder construir um saber autêntico. Por outro lado, a horizontalidade faz com que pessoas que assistem a videozinhos na internet e dancinhas achem que sabem tanto quanto um erudito de determinado tema. É um movimento antirracionalista que se origina já no final do século XIX e se expande no século XX, cujos efeitos mais evidentes se fazem sentir atualmente. O modelo de ensino que construímos, nos últimos 15, 20 anos, contribui para aquilo que os italianos chamam de “estultice”, um pouquinho de arrogância dos jovens ao supor que já sabem demais, desprezando a experiência, o conhecimento, privilegiando a referida horizontalidade. Professores que, como eu, estão em sala de aula vivem isso diariamente, testemunhando as mudanças no modelo mental das novas gerações.
RPD: Se pudesse influir no combate a esses fenômenos, com vistas a devolver a relevância do respeito à cultura, à reflexão, à capacidade de comunicação, ao primado da inteligência, enfim, o que proporia?
MM: Na filosofia, a superação do antirracionalismo já começou há algum tempo. Muitos autores da filosofia da linguagem que embarcaram nas máximas nietzschianas - por exemplo, não existem fatos, apenas interpretações - hoje reconhecem que se foi longe demais com isso e que existem, sim, fatos. Maurizio Ferraris, professor de hermenêutica da Universidade de Turim, chega a afirmar que basta você trocar um F pelo G para colocar o niilismo em um problema lógico: "não existem gatos, apenas interpretações?". A verdade metafísica talvez não seja algo cognoscível para o humano já que tudo que se conhece se aprende e se compreende pela mediação da linguagem. Mas isso não leva a negar a existência de verdade, ainda que inserida no contexto de uma ontologia social como propõe John Searle. A filosofia já começou a mudar. Há um novo ciclo paradigmático de combate à pós-verdade, de combate ao niilismo filosófico.
Agora, isso é um tempo que talvez a vida cotidiana não vai incorporar imediatamente, diante de problemas que exigem solução de curto prazo, como a liberdade de expressão. Aliás, a liberdade de expressão é uma questão seríssima: porque nenhum de nós defende a censura, até porque quem controlará o sensor? Quem é o dono da verdade que controla o conteúdo? De um lado, somos democratas e defendemos a liberdade de expressão, mas, de outro lado, vemos um universo em que robôs, nas redes sociais, espalham os maiores absurdos e atuam destruindo aquilo que chamamos de civilização.
O que se tem pensado a curto prazo? Políticas de regulação em rede para diminuir a amplitude da capacidade de impacto social das fake news. Por exemplo: você limita a possibilidade do WhatsApp encaminhar mensagens para 20, 30 grupos; atacam-se, de maneira formal, as infraestruturas. Essa é uma tendência de regulação mundial.
Outro ponto de política imediata efetiva, que não é a política do tempo filosófico, trata da identificação da origem de financiamento. Cumpre identificar quem está financiando esse processo e utilizar os meios legais para coibi-lo. São, portanto, medidas imediatas que devem ser fomentadas e debatidas para a construção de um modelo de regulação que vai atenuar impactos. É o que o TSE está fazendo ao tomar necessárias medidas regulatórias imediatas, com as próprias redes se abrindo ao diálogo. Até o Telegram, que era muito reticente, aceitou cumprir as determinações legais.
Em plano mediato, é preciso, sim, um câmbio educacional em prol da cidadania política. A educação é a chave da liberdade e a chave da transformação pessoal. Sou um estudante que fez o ensino fundamental em uma escola pública em Juara, no interior de Mato Grosso, uma cidade que, à época, não possuía nem asfalto. Fui aprovado em Direito na Universidade Federal de Mato Grosso, mestrado e doutorado na Universidade Federal do Paraná com estudos doutorais em Roma. Meu pai, médico, pôde me dar condições de chegar lá, mas também teve um esforço pessoal porque muitos filhos de médicos não conseguem. A educação foi a chave do crescimento, e o ensino que tive em Juara me preparou para o mundo.
A educação é, pois, a chave da transformação e da liberdade porque, com educação, se pode exercer responsabilidade; não há liberdade sem responsabilidade. Falar o que quiser, sem responder sobre o que se fala, é muito fácil.
RPD: Você mencionou, no começo da nossa conversa, diversos instrumentos que estão em uso há relativamente pouco tempo. Gostaria que informasse quais seriam as fronteiras da mudança tecnológica hoje e os possíveis riscos que cada uma delas possa trazer consigo para nós.
MM: São inúmeros instrumentos que estão fazendo uma verdadeira revolução. Diria que, seguindo as lições de Yuval Harari, estamos vivendo talvez o último estágio do Homo Sapiens, tal como conhecemos. Nós estamos vivendo no mundo do Big Data – da mega captação de dados pessoais, de compreensão e formação de avatares – que será impulsionado por um grande motor que é o 5G, com uma hiper tecnologia de conexão, capaz de promover uma super regulação para o bem e para o mal. O incrível desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) e da robótica e, enfim, o fortalecimento da realidade virtual com o Metaverso indicam que ingressaremos em uma nova era civilizacional.
As dotadas de alta capacidade de aprendizagem (deep learning) já estão aptas a substituírem humanos em inúmeras tarefas operacionais, ainda que trabalhem apenas no nível sintático da linguagem e com base em uma lógica de probabilidades. Há cerca de 20 anos, o humano já não tem a mesma capacidade de processamento de dados que as máquinas. As máquinas não possuem o que chamamos de consciência hermenêutica – essa dimensão existencial que nos dá a sensibilidade de compreensão do mundo que a gente vive em torno da linguagem. Mas está chegando o momento em que não vamos mais conseguir diferenciar, no plano prático, se estamos interagindo com uma máquina ou com um humano.
O avanço de processamento de dados pelas máquinas é extraordinariamente intenso. Quem é auditor fiscal, por exemplo, sabe do que estou falando. A capacidade de estabelecer relações e cruzamento de dados de maneira quase instantânea é impossível ao Homo Sapiens. Na área da comunicação política já existem pessoas lidando com redes de dados numa escala inimaginável, incluindo, praticamente, todos os eleitores cujos desejos e aspirações são mapeados e estudados.
A que levará tudo isso? De novo seguindo o raciocínio de Harari em sua obra Homo Deus, é possível antever que através de mecanismos artificiais, como um chip, será possível potencializar a capacidade humana de processamento de dados, como tenta, por exemplo, a empresa Neuralink, de Elon Musk. Quando isso for bem-sucedido, entraremos na era do transhumanismo. Essa simbiose humano-máquina indica que já não será possível falar em Homo Sapiens em sua forma originária.
Com os chips, a tendência é que a capacidade de manipulação de massas se torne assustadora. Primeiro porque aumentará ainda mais a captura de dados, incidindo até mesmo sobre nossa última fronteira da privacidade, que é a leitura de nossos pensamentos. Aparelhos que monitoram nossa saúde e enviam dados já estão disponíveis e presentes no cotidiano. Logo, a mesma tecnologia que permite captar impulsos cerebrais e dar comandos a pernas mecânicas, por exemplo, vai permitir que mentes sejam lidas. Se o cérebro estiver “chipado”, então, mais ainda.
Além dos dados, a manipulação pode ocorrer de maneira direta, com fomento de desejos e até mesmo com a imposição de comandos ao cérebro conectado com chip.
Todo esse contexto nos assusta, pelo que pode significar manipulação humana. No campo da política, basta imaginar o movimento que chamamos, hoje, de ciberpopulismo, que consiste justamente na utilização irrestrita da tecnologia de bots, memes etc., para levar ao máximo o populismo em sua maneira mais rasteira, com discursos de ódio às instituições e celebração da ignorância em torno de pautas que nos tentam convencer ao regresso do passado, a essência dos discursos autoritários.
O ciberpopulismo se nutre da deslegitimação de toda autoridade, da perda de poder, do repúdio e rejeição às instituições, de discursos fáceis dos líderes e, ao mesmo tempo, da simplificação exagerada de questões complexas, aproveitando-se da falta de interesse em parar para pensar a complexidade dos problemas e do frontal ataque à cultura e à ciência.
Para que esse discurso alcance o alvo, o líder populista, na pior acepção do termo, vai em geral buscar na metáfora de futebol ou em caricaturas de casamento, os atrativos para se comunicar com as massas de maneira imediata. Isso deslegitima o pensamento institucional, o pensamento que respeita as diferenças e valoriza a já comentada horizontalização à base da seguinte ideia: "ah, todos somos iguais para falar qualquer besteira na internet".
É o mesmo raciocínio que se esticaria para justificar que nós, estudiosos das humanidades, tivéssemos, por isso, condições de nos metermos na física nuclear e opinar sobre os procedimentos de segurança de uma usina nuclear, ou mesmo um estudioso de filosofia supor estar habilitado para opinar sobre a pilotagem de um jato em pleno ar. A horizontalidade cultural é, sem dúvida, muito perniciosa para o desenvolvimento do conhecimento humano.
RPD: Seus comentários esclarecem, em parte, a propensão contraintuitiva da ciência. Como poderia ser traduzido, por meio de veículos de massa como a internet, o consenso praticamente universal de que a vacina é a mais poderosa arma contra a covid-19, para desmontar a visão simplista e negacionista de suas benesses para qualquer programa sério de saúde pública?
MM: O primeiro obstáculo seria combater a irresponsabilidade de quem faz propagandas irrestritas de oposição à vacinação. É irresponsável tomar um problema complexo e dele extrair um possível aspecto, em geral negativo, que sempre chama mais a atenção e construir uma comunicação distorcida, falsa, mas eficaz, talvez por, de alguma maneira, dirigir-se aos instintos e preconceitos humanos. Para agravar o quadro, nosso processo educativo não nos deu instrumentos para perceber essas diferenças porque não se trata de educação meramente formal, se trata mesmo de educação política, análise lógica e sabedoria para a vida. É um processo que não atinge somente pessoas analfabetas ou que não tiveram acesso à escola. Atinge universitários, doutores, a classe média bastante bem formada. Daí porque é fundamental que a cultura e a ciência apresentem seus argumentos de maneira mais acessível. Mas isso, por si, não resolve. É necessário que haja uma mudança e amadurecimento educacional para que as pessoas coloquem em xeque as milhares de informações que recebem e possam investigar com maior profundidade a veracidade ou não das mensagens recebidas.
Sobre o entrevistado
*Marco Aurélio Marrafon é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Inteligência artificial pode antecipar cenários para as Eleições 2022
João Rodrigues, da equipe da FAP
Há menos de cinco meses das eleições, a inteligência artificial reforça que o processo eleitoral deste ano será novamente marcado pela polarização. O monitoramento de dados na internet também indica os principais temas do debate eleitoral e como os candidatos devem reagir aos assuntos de maior repercussão na sociedade.
Para entender como mecanismos de acompanhamento das redes sociais podem antecipar cenários para as Eleições 2022, o podcast Rádio FAP desta semana recebe o jornalista Sergio Denicoli.
Sergio Denicoli será um dos palestrantes do curso de formação política para candidatos, candidatas e suas equipes, que começa na próxima semana. Pós-doutor em comunicação digital, pesquisador da Universidade do Minho, em Portugal, CEO da AP Exata Inteligência Digital, é foi professor da Universidade Federal Fluminense e também em Portugal, na Universidade Lusófona e na Universidade do Minho.
O crescimento da extrema direita no ambiente virtual, o papel das redes sociais nas eleições deste ano e os riscos das fake news para a democracia brasileira estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornal da Band, Rádio Brasil Atual, Programa ND Notícias, Código Fonte TV, TV Cultura, Assembleia de Minas Gerais e Jornal da Globo.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Anchor, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.
RÁDIO FAP
Confira o vídeo oficial do curso para candidatos, candidatas e suas equipes
João Rodrigues, da equipe da FAP
Foi lançado nesta quinta-feira (12) o vídeo oficial do curso de formação política para candidatos, candidatas e suas equipes. As aulas serão ministradas de 23 a 30 de maio e as inscrições seguem abertas.
Clique aqui e saiba mais sobre a a programação.
Confira o vídeo.
Nas entrelinhas: Autoritarismo e corrupção são naturalizados no pleito
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Por suas convicções, declarações e atitudes, o presidente Jair Bolsonaro (PL) é considerado pela oposição uma ameaça à democracia no Brasil. Sua visão de mundo, a compreensão sobre o papel do Estado na vida nacional, seus métodos de atuação, tudo corrobora o seu perfil político autoritário. Em decorrência disso, e da postura negacionista e da falta de empatia com as vítimas da pandemia de covid-19, disseminou-se uma grande rejeição na opinião pública à sua reeleição, que se reflete nas pesquisas.
Em contrapartida, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aparecia como franco favorito nas pesquisas eleitorais, gerando grande expectativa de poder, uma vez que já não estava preso e suas condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Diante de um cenário de 660 mil mortos, 11 milhões de desempregados, alta da inflação e estagnação econômica, a volta de Lula ao poder parecia apenas uma questão de tempo e não, como seria necessário ser, de uma estratégia bem-sucedida para consolidar o isolamento de Bolsonaro.
O presidente parecia fadado a ser enxotado do poder pelo eleitor. Com fim da pandemia, a situação mudou completamente. A principal preocupação da população já não é com a saúde. Passou a ser com a economia, cujos problemas relatados acima estão sendo mitigados pelo governo. O programa de transferência de renda Auxílio Brasil substituiu o Bolsa Família, uma herança do governo Lula. Outras medidas estão sendo adotadas, como mudanças na tabela do imposto de renda, subsídios para o gás de cozinha, adiantamento de 13º salário, liberação do fundo de garantia etc.
O governo opera de forma aberta em favor da reeleição. Bolsonaro exibe a competitividade que parecia perdida e reduz a distância em relação a Lula nas pesquisas. Como são muito conhecidos, esses votos estão sendo consolidados antes da campanha eleitoral de rádio e tevê. Isso ocorre em meio a um choque de narrativas, em quatro chaves: 1) as condições de vida da população durante os governos Lula e Bolsonaro; 2) a disjuntiva democracia x corrupção; 3) a mudança dos costumes, ou seja, as chamadas pautas identitárias; e 4) o tema do desenvolvimento, tendo como eixo a globalização e a questão ambiental.
Voto útil
A primeira chave tem uma base muito objetiva. Para o cidadão comum, as perguntas são: está empregado ou não, consegue serviço ou não, recebe ajuda do governo ou não, dá para pagar as contas, comprar a comida e chegar ao fim do mês com a dinheiro da passagem? O que ameaça Bolsonaro e favorece Lula nesse quesito é a inflação, que está fora do controle. O peso da economia nas eleições costuma ser fundamental, embora possa ser decidida em razão de outros fatores.
Do ponto de vista institucional, porém, a segunda chave é mais preocupante. Não é somente a corrupção na política que está sendo naturalizada com a liquidação da Lava-Jato e anulação de processos e condenações, entre os quais os de Lula. Diga-se de passagem, a aliança de Bolsonaro com o Centrão está tendo um papel determinante para isso, inclusive para livrar o governo de investigações sobre seus escândalos.
Também está havendo, em contrapartida, a naturalização do autoritarismo de Bolsonaro, cujo projeto de reeleição embute propósitos já bastante conhecidos, como subjugar o Judiciário, verticalizar o poder do Executivo e transformar a democracia brasileira num regime “iliberal”. Setores que haviam se afastado do governo, com a desistência de Sergio Moro e a crise instalada na chamada terceira via, na qual os partidos se digladiam internamente — a começar pelo PSDB —, estão começando a tratar o autoritarismo de Bolsonaro como um mal menor, diante da volta de Lula ao poder.
O debate sobre a agenda dos costumes, a terceira chave, consolida a polarização esquerda x direita, num ambiente social em que o conservadorismo vem levando a melhor. O tema do desenvolvimento, no eixo da globalização e da questão ambiental, que seria o verdadeiro debate sobre o futuro do país, está sendo tratado de forma subalterna, quando Lula e Bolsonaro se reverenciam nas ações e realizações de seus respectivos governos, que já fazem parte do passado.
Falta uma candidatura robusta que possa cumprir esse papel de pautar o futuro no debate eleitoral e, assim, oferecer uma alternativa nova para o país. Essa possibilidade está cada vez mais difícil, a ideia de uma candidatura única dos partidos de centro corre contra o tempo. As pesquisas estão dando sinais de que o “voto útil” no primeiro turno pode abduzir a candidatura da terceira via.