eleições 2020
Fernando Pessôa: Guilherme Boulos, o velho no novo
Seu frescor lembra o PT dos anos 1980, ótimas intenções, nenhum pragmatismo
O jovem candidato à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos é articulado, se expressa com clareza e aparentemente traz frescor à cidade.Tem uma história bonita. De classe alta, cedo foi viver e conhecer a vida e as dificuldades dos paulistanos carentes. Com interesse, portanto, ouvi a sabatina do jornal O Estado de S. Paulo da semana passada.
Repercutiu muito nas redes sociais a afirmação infeliz de que o problema do déficit da previdência é que a prefeitura não faz concurso. Segundo Boulos, novos servidores públicos contribuiriam para o sistema, reduzindo o déficit. Trata-se de um despropósito: contrata-se um servidor por 100, ele contribui com 20, reduz o déficit da previdência em 20 e eleva o gasto do município em 100!
Boulos quer trocar trabalhadores terceirizados por concursados. Para ele, os terceirizados são mais caros que os concursados. A informação está errada. Há inúmeras evidências de que o salário do servidor público é superior ao do setor privado para as mesmas ocupações.
Há iniciativas cujo custo não convence. Por exemplo, alega que fará unidades habitacionais, por meio de mutirão, por R$ 41 mil cada uma. Não parece possível. Um imóvel deteriorado no centro de São Paulo não sai por menos de R$ 1.500 o m². Também parecem subestimados os R$ 4.600 por ano para uma vaga em creche. Bem como R$ 5.700 para o salário bruto de um médico concursado pela prefeitura.
Também parece subestimada a estimativa de 437 mil passagens de ônibus gratuitas, que considera ida e volta, em cada dia útil, para gestantes, mulheres com criança de colo e estudantes.Os R$ 14 bilhões que separou para o combate à pobreza parecem bem calibrados.Independentemente das estimativas de gasto, várias subestimadas, é na parte da receita que o candidato se perde.
Segundo Boulos, haverá três fontes de receita para financiar esses gastos, que são da ordem, nas suas contas, de R$ 29 bilhões em quatro anos: o caixa da prefeitura, o aumento do investimento e o aumento da eficiência na execução da dívida ativa do município.
Dinheiro em caixa não é receita. O caixa da prefeitura é receita já acontecida e é uma reserva financeira para gastos futuros. Certamente parte está comprometida com contas a pagar que cairão ao longo do tempo. E certamente toda prefeitura precisa de um caixa para fazer frente às oscilações naturais da receita e despesa que ocorrem ao longo do ciclo econômico. Boulos eleito em 2020, se reeleito for em 2024, iniciará seu segundo mandato sem nenhum recurso no caixa?
A segunda fonte de recursos será a normalização do investimento da prefeitura. Segundo o candidato, na gestão Fernando Haddad, a prefeitura investia R$ 20 bilhões por ano, e, na atual, o investimento caiu à metade. Assim a “normalização” do investimento produzirá receita adicional de R$ 10 bilhões em quatro anos.
Não ocorreu ao candidato que a queda do investimento não foi uma decisão política, mas fruto de uma queda generalizada do investimento de todo o setor público brasileiro desde a grande crise de 2014-2016. Vivemos em crise fiscal permanente. Foram a queda da receita e a elevação do gasto obrigatório (principalmente previdência) que produziram a queda do investimento, e não o inverso.
A terceira fonte de receita será o ganho de eficiência na execução da dívida ativa. A hipótese é que as administrações anteriores não quiseram arrecadar mais. Não se esforçaram.O frescor de Boulos lembra o PT dos anos 1980. Ótimas intenções, nenhum pragmatismo e visão meio conspiratória das demais administrações. É a ideia equivocada de que fazer o bem é fácil, e não se faz pois falta vontade política.Samuel Pessôa
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Época: O horizonte da extrama-direita após o baque das eleições municipais
Como o bolsonarismo se reorganizará depois do fracasso nas urnas de 2020
Natália Portinari e Naira Trindade, de Brasília, e Gustavo Schmitt e Guilherme Caetano, Revista Época
O sábado 14, um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, foi quando o presidente Jair Bolsonaro caiu em si. Apesar de ter passado a última semana fazendo lives em prol dos candidatos que apoiaria no dia seguinte, já sabia que o desfecho que se desenhava não era promissor. Suas principais apostas, Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro, amargavam números desanimadores, segundo as últimas pesquisas. Sem muita modéstia, atrelou o mau resultado dos aliados a sua própria ausência da corrida eleitoral — já que suas lives se tornaram frequentes apenas às vésperas do pleito. Mas reconheceu estar preocupado mesmo com outra coisa: o desempenho de seu filho Carlos Bolsonaro, candidato à reeleição para vereador no Rio de Janeiro.
Não se tratava, obviamente, do medo de que o zero dois não se elegesse. Carlos tinha sido o vereador com mais votos em 2016, e sua recondução ao cargo estava assegurada. O que deixava o presidente tenso era a possibilidade de sua votação ser abaixo do esperado. Bolsonaro atingiu em setembro o maior índice de aprovação numa pesquisa do Ibope desde que assumiu — 40% —, mas o respaldo dos eleitores ao filho serviria como um termômetro atualizado da popularidade do pai no reduto eleitoral da família. Abertas as urnas, ficou claro que os temores do presidente tinham, sim, fundamento. Carlos, que o acompanhou em carro aberto no dia da posse, acabou saindo menor do que entrou na campanha municipal. Em 2016, obteve 106 mil votos. Neste ano, não passou de 71 mil, uma queda de 33%. E, de quebra, o filho perdeu o posto de vereador mais votado da cidade para Tarcísio Motta, do PSOL.
Esse foi o pior recado do pleito, mas não o único. Russomanno, que contou com o apoio expresso do presidente, largou na frente nas pesquisas. No começo da campanha, isso encheu de esperança o Palácio do Planalto, que anseia fincar raízes no reduto eleitoral de seu adversário, João Doria, governador de São Paulo. Na tarde nublada de 3 de outubro, na Zona Sul de São Paulo, após um evento de campanha de Russomanno, Fabio Wajngarten, secretário executivo da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), era só otimismo. A bordo de um jipe Mercedes preto, disse a ÉPOCA, sorridente: “Ele (Russomanno) já está eleito”. E prosseguiu em sua análise: “De um lado, a esquerda está acabada por causa da Lava Jato. De outro, tem o PSDB desgastado em São Paulo. Ninguém aguenta mais. Foi assim em 2018”, apostou o secretário. Russomanno amargou o quarto lugar, com apenas 560 mil votos (10,5% do total), enquanto o adversário do tucano Bruno Covas no segundo turno será Guilherme Boulos, do PSOL — cenário que configura dupla derrota para o presidente, que há dois anos venceu na capital paulista com 60% dos votos.
Em todo o país, dos 44 candidatos que ganharam o aval do presidente, apenas nove se elegeram. Entre esses poucos sortudos não estão parentes de sobrenomes considerados ilustres no bolsonarismo, como o irmão da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). Ela tem 1 milhão de seguidores no Twitter e 2,2 milhões no Facebook. Ele atraiu apenas 12 mil votos, abaixo da linha de corte para conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. O pai de Zambelli, candidato a vice-prefeito em Mairiporã, no interior paulista, tampouco prosperou. Edson Salomão, líder do Movimento Conservador e aliado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o zero três, ficou de fora da Câmara de Vereadores de São Paulo. No Rio de Janeiro, Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, não foi eleita, apesar do sobrenome e do empenho, principalmente de Carlos.
Antes de dormir, no dia 15, Bolsonaro tentou minimizar a contagem de mortos e feridos. Escreveu em sua conta no Twitter que sua “ajuda a alguns poucos candidatos a prefeito resumiu-se a 4 lives num total de 3 horas”, que a esquerda saiu derrotada e que a “onda conservadora chegou em 2018 para ficar”. Dois dias depois, ao se reunir com alguns parlamentares empenhados na criação de seu (ainda inexistente) partido, o Aliança pelo Brasil, compartilhou uma análise mais realista sobre o pleito. Para o presidente, a direita foi prejudicada em razão da pulverização partidária: “Quem saiu ganhando foi o pessoal do (Luciano) Huck”, vaticinou. A preocupação exposta naquela conversa não demorou a migrar para dentro do grupo de WhatsApp do Aliança pelo Brasil, onde deputados, senadores, ministros e integrantes do governo Bolsonaro debatem a criação do novo partido.
O sentimento geral, segundo um membro do grupo relatou a ÉPOCA, foi de um “choque de realidade” diante do que a cúpula da legenda reconhece ser uma derrota da extrema-direita. Sem um partido que abarcasse toda a direita radical, seus candidatos haviam ficado dispersos por várias siglas nas eleições municipais. “A direita bolsonarista aprendeu uma lição nesta eleição, a de que existe um eleitor de direita não necessariamente bolsonarista”, disse Alexandre Borges, analista político e proveniente de antigos círculos de estudo de Olavo de Carvalho. “É uma descoberta dura para o bolsonarismo, que se achava dono desse campo político.”
Entre os que aproveitaram o fraco desempenho dos aliados do Planalto nas urnas para criticar o presidente, ninguém se compara aos que o ajudaram a se eleger em 2018 e depois romperam. “O grande derrotado dessas eleições é o bolsonarismo. O presidente virou o Mick Jagger. Ele apoiava alguém e o cara morria (nas pesquisas) no dia seguinte”, disse o Major Olimpio, senador do PSL por São Paulo, referindo-se à fama de pé-frio do vocalista dos Rolling Stones. O senador defende um “expurgo” de bolsonaristas do PSL e cita a deputada Zambelli como alvo. “A direita, na verdade, por princípio, respeita o indivíduo e a individualidade. O autoritarismo não convive com uma filosofia direitista. A lógica bolsonarista é muito mais próxima de Stálin, que perseguiu seus principais apoiadores”, disse a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), convidada para ser a vice na chapa de Bolsonaro em 2018 e hoje uma feroz crítica. Mesmo dentro do bolsonarismo não faltou virulência.
Parafraseando a máxima do escritor russo Tolstói, quando vencem, todos os grupos políticos se parecem, mas, quando perdem, cada um perde a sua maneira. Isso ficou evidente após a eleição. Os apoiadores do presidente deram início a um processo de busca de causas e explicações com características bem bolsonaristas. Não faltaram dissimulações e uma facção apontando o dedo contra a outra. O presidente logo engatou uma segunda marcha e passou a defender a interlocutores que o pleito municipal não serve como previsão do que ocorrerá na eleição presidencial de 2022. Mas a tentativa de baixar a temperatura não evitou uma lavagem de roupa suja e o fogo amigo.
Mateus Colombo Mendes, diretor do Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais da Secom, escreveu uma longa análise e desabafo em sua rede social. “Chega do pensamento mágico de confiar apenas na imagem do presidente e de se ficar sempre esperando que o presidente resolva tudo sozinho, enquanto o restante fica resmungando nas redes, cada um na sua.” Filipe Martins, assessor especial da Presidência, compartilhou a postagem, logo depois de fazer sua própria reflexão, expondo indiretamente seu chefe. “Muitos se perguntam por que candidatos apoiados por cabos eleitorais de peso foram derrotados. A resposta é simples: perderam porque eleição municipal é base, é construção, não é improviso. Não adianta chegar às vésperas da eleição e dar carteirada nem tentar levar no grito”, escreveu.
O guru de Martins e do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, aproveitou o momento de fragilidade para endurecer as críticas aos alvos de sempre: os militares, que ele acredita terem um projeto próprio de poder que não inclui necessariamente Bolsonaro e o núcleo ideológico de seu governo. “O péssimo desempenho dos bolsonaristas na eleição não tem mistério nenhum. Ludibriado pela conversa mole de generais-melancias, o presidente confiou demais no sucesso inevitável da sua liderança pessoal, sem perceber que ela não passava, precisamente, disso: uma liderança pessoal sem respaldo militante e incapaz, por isso, de transmitir seu prestígio a qualquer aliado.” “Melancia”, no vocabulário da direita extremada é sinônimo de quem é vermelho (comunista) por dentro.
Para a fúria ainda maior dos mais radicais da extrema-direita, Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e, aparentemente, um dos “melancias” na visão de Carvalho, foi às redes comemorar o desempenho do centrão nas eleições. Ramos disse que o PT foi mal e frisou que PSD, PP, DEM e MDB vão governar mais prefeituras do que o partido do ex-presidente Lula. Para os olavistas, o centrão é o problema, não a solução. Para a ala mais pragmática do governo, o caminho após o fracasso eleitoral é mais, e não menos, centrão. A aposta é que, nas eleições presidenciais de 2022, a base de sustentação da campanha de Bolsonaro será formada por partidos tradicionais, os mesmos que o apoiam hoje no Congresso.
Como num roteiro de série de TV, os principais atores do bolsonarismo vivem um drama que envolve passado e futuro. Muitos apoiadores não acreditam que Bolsonaro conseguirá se firmar como um candidato competitivo à reeleição seguindo a fórmula adotada em 2018, com foco quase que exclusivo nas redes sociais. Para os defensores dessa tese, as eleições municipais deram algumas evidências favoráveis ao mostrar que forças de diferentes pontos do espectro político acordaram para a necessidade de ocupar espaços nas redes sociais. WhatsApp, Facebook, Instagram e Twitter já não são uma raia exclusiva do bolsonarismo. Isso aconteceu, por exemplo, na campanha para a prefeitura de São Paulo. Trabalhar nas redes sociais foi o que fizeram tanto Guilherme Boulos como Arthur do Val, o Mamãe Falei, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), que atraiu 10% dos votos. “Nós trabalhamos bem com a rede. O PT apanhou e perdeu espaço para o PSOL porque ainda está na lógica ‘meio acadêmico, sindicato e Igreja’. O PSOL fez uma campanha virtual boa”, reconheceu o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), um dos fundadores do MBL.
Enquanto o campo virtual tem sido povoado por diferentes nuances partidárias, o mundo real ainda carece de ser compreendido pelos políticos da nova direita advinda do bolsonarismo — fraqueza que muitos enxergam como a principal ameaça à continuidade de um projeto conservador no Brasil. Estrategistas políticos que trabalharam em campanhas de candidatos ditos conservadores nestas eleições relataram a ÉPOCA as dificuldades em convencer seus clientes da importância de articulação política e dos atos de rua. “Eu disse a eles: ‘Saiam da internet’. Mas eles não entendiam. Diziam que o Jair Bolsonaro tinha sido eleito pela força das redes sociais e que em 2020 seria assim de novo. Diziam que não precisavam de coligação porque o PSL não havia feito isso em 2018”, afirmou Rodrigo Morais, que trabalhou no governo de transição de Bolsonaro e hoje tem uma consultoria política.
No entorno do presidente, é ruidoso o grupo que, ao contrário do general Ramos, defende que o bolsonarismo precisa de um partido para chamar de seu. Daí as tentativas, até agora infrutíferas, de criar o Aliança pelo Brasil. Bolsonaro nunca foi dirigente partidário, tampouco seus filhos. A dinâmica maçante da formação de uma sigla e seus diretórios é o que garante musculatura para que candidatos disputem cargos a cada dois anos. Sem isso, não surpreende que o presidente não tenha conseguido engajar eleitores para o pleito municipal. A burocracia partidária e seus dissabores — incluindo divergências políticas — foi o que ajudou a azedar a relação de Bolsonaro com sua legenda anterior, o PSL. Mas quem apoia o presidente hoje diz que, quando ele tiver seu próprio partido, tudo será diferente. “A eleição municipal deixa claro a desvantagem da direita em relação à esquerda, já que falta estrutura partidária. Fora isso, a esquerda tem ONGs, centro de estudo e de formação de pensamento. A direita também tem de ter isso”, disse o empresário Otávio Fakhoury, aliado de primeira hora de Bolsonaro e hoje investigado nos inquéritos das fake news e da promoção de atos não democráticos.
Um ano depois de sua concepção, o plano de fundar o Aliança não conseguiu reunir nem 10% das 492 mil assinaturas necessárias para o registro da legenda junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E as trocas de farpas entre bolsonaristas durante todo o processo denota que a concordância ideológica não se converte em harmonia na hora de dividir o poder. Integrantes do grupo rivalizam entre si por protagonismo e sofrem com uma ausência de definição, da parte de Bolsonaro, de quem é o verdadeiro responsável pelo Aliança. Quem vem assumindo as rédeas do projeto é o advogado Luis Felipe Belmonte, que coordenou viagens e eventos em prol da sigla nos últimos meses. Mas o futuro do Aliança é ainda incerto. Parte da base de apoiadores nos estados se voltou contra os organizadores, como Belmonte e os também advogados Karina Kufa e Admar Gonzaga. As brigas dificultam ainda mais a criação da legenda e a coleta de assinaturas. Oficialmente, porém, o grupo atribui à pandemia e às eleições municipais a demora do registro dos apoiamentos no TSE.
Depois dos desentendimentos passados com Luciano Bivar, presidente do PSL, o presidente parece estar reticente diante da possibilidade de “entregar” seu partido às mãos de alguém que não seja um de seus filhos. Bolsonaro também teme que o gesto de alavancar o Aliança desagrade ao centrão, que hoje é a base de seu governo, sobretudo diante da possibilidade, cada vez mais concreta, de que ele se filie a um partido tradicional para concorrer em 2022, como o PP, o PL e Republicanos, que é onde estão abrigados seus filhos Carlos e Flávio Bolsonaro. Sem a onda antipolítica alimentada pela Operação Lava Jato e com poder de fogo das redes sociais reduzido, o caminho para a direita bolsonarista a partir de 2021 é incerto porque requer diálogo — item escasso por aquelas bandas.
Vera Magalhães: João Alberto e as urnas
Casos de grande comoção às vésperas de pleitos podem influenciar o voto
Casos como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, por espancamento seguido de asfixia numa loja do Carrefour em Porto Alegre, ocorrido na última quinta-feira, quando acontecem próximos de eleições, costumam ter o condão de virar tema das campanhas e mobilizar setores do eleitorado.
O exemplo recente mais rumoroso vem dos Estados Unidos e tem muitos pontos de contato com o caso João Alberto: foi o assassinato de George Floyd por asfixia por policiais em Minneapolis, em maio. Lá como aqui, a ação dos assassinos foi filmada. A frase repetida por Floyd, “I can’t breath”, que significa “Eu não posso respirar”, virou mote de manifestações que cobriram o país.
O movimento Black Lives Matter, ou Vidas Pretas Importam, surgido anos antes, ganhou dimensão nacional e deu força a grupos locais, que tiveram grande engajamento nas eleições presidenciais e peso real na vitória de Joe Biden sobre Donald Trump em Estados como a Geórgia.
No Brasil, os casos mais conhecidos de comoção nacional às vésperas de pleitos são a greve da siderúrgica CSN em Volta Redonda, em 1988, e o massacre do Carandiru, em 1992, em que 111 presos foram chacinados pela Polícia Militar para conter uma rebelião.
No primeiro, operários da Companhia Siderúrgica Nacional, ainda estatal, entraram em greve por reajuste salarial e redução de jornada e tomaram a planta de Volta Redonda (RJ). Quatro dias depois do início da greve, em 9 de novembro, o Exército e a PM invadiram a empresa e três grevistas foram assassinados.
As eleições municipais nas capitais ocorreram no dia 13 e, em São Paulo, venceu Luiza Erundina, feito inédito do PT numa capital. As pesquisas até as vésperas apontavam vitória tranquila de Paulo Maluf, e cientistas políticos e historiadores veem grande peso de Volta Redonda na virada.
Quatro anos depois, o massacre do Carandiru ocorreu na noite de 2 e outubro, a sexta-feira anterior à eleição. Ali, no entanto, a tragédia não teve influência no pleito, porque a Secretaria de Segurança Pública abafou os dados. Paulo Maluf venceu e o candidato do governador Luiz Antonio Fleury Filho, Aloysio Nunes Ferreira, ficou em terceiro lugar.
E agora, como o caso João Alberto vai ecoar nas urnas? Em Porto Alegre, onde ocorreu o assassinato, Manuela D’Ávila (PC do B) enfrenta uma eleição dura, em que foi, ao longo de toda a campanha, alvo de ataques ferozes dos adversários e agora aparece nas pesquisas em desvantagem em relação a Sebastião Melo (MDB). Ela se engajou de imediato nos protestos pela morte de João Alberto.
Em São Paulo também pode haver influência do crime. Foi aqui que ocorreu o maior protesto depois do assassinato, com o quebra-quebra numa loja do Carrefour nos Jardins. Guilherme Boulos não participou. O candidato do PSOL tem lutado na campanha contra a pecha de “radical”. As urnas mostraram que candidaturas em defesa de direitos civis, equidade e diversidade encontraram um eleitor disposto a investir nessas agendas, antes tachadas pejorativamente de “politicamente corretas” ou “identitárias”.
A sanha com que Jair Bolsonaro oprimiu minorias, ou mesmo maiorias sem representatividade política, provocou reação oposta dois anos depois de sua eleição. No caso João Alberto, o presidente só se manifestou 24 horas depois, para negar racismo no ocorrido e sem mencionar o nome da vítima nem se solidarizar com sua família.
Os próximos dias vão mostrar se o caso João Alberto vai virar tema central da campanha ou se os protestos vão perder fôlego. E o que terá mais peso: o voto de protesto contra a recorrência de fatos como esse ou a reação maior de parte da sociedade ao que ela chama de “vandalismo” que ao assassinato em si?
Alon Feuerwerker: As dúvidas sobre o frentismo em 2022
Confirmou-se que o primeiro turno das eleições municipais trouxe a capilarização dos partidos da base do governo, e que por isso tinham, e aproveitaram melhor, o acesso ao orçamento federal. Viu-se também um certo movimento de continuidade, natural e esperado em meio a uma pandemia. Notou-se ainda a resiliência da esquerda, fenômeno facilmente detectável na manutenção dos votos para vereador e na votação significativa nos grandes centros.
O debate agora é sobre o que o resultado de 2020 projeta para 2022. Com os necessários cuidados, pois não há transposições mecânicas. E falta muito tempo político. Feitas as ressalvas, a dúvida que fica é sobre os possíveis blocos e alinhamentos. E para esse debate é útil a observação do que vai se dar no segundo turno, daqui a uma semana. Pois ficará claro o estágio atual da disposição dos diversos atores para alianças e formação de coalizões. Informação essencial para definir a tática.
Já está explícito, por exemplo, que mesmo as frações mais resistentes a alianças e frentismos na esquerda estão dispostas a votar em qualquer candidato não bolsonarista para derrotar o bolsonarismo. A opção do presidente da República por manter o discurso e a prática alinhados ao que podemos chamar de núcleo ideológico facilita um agrupamento quase automático de forças contrárias quando só há duas opções.
Mas, atenção, desde que o adversário seja palatável aos que em 2018 votaram Bolsonaro ou se abstiveram, e agora procuram outro caminho.
E se em 2022 o presidente for ao segundo turno contra alguém da esquerda? Neste momento, não é excessivo supor que ele deverá arrastar de volta pelo menos uma parte dos arrependidos. Ou será que não? Duas das disputas neste segundo turno são um termômetro para tirar a dúvida. Vitória (ES), onde a o PT está no segundo turno, e Belém, onde o adversário do candidato bolsonarista é do PSOL.
Em Fortaleza, o cirismo parece ter formado com facilidade a frente antibolsonarista. Veremos o resultado na urna. Mas, e em Vitória e Belém, o autonomeado centrismo ficará de que lado?
De todo modo, 2022 projeta forte pulverização de candidaturas majoritárias, pelos menos das forças com pouco acesso a orçamentos públicos. Porque o voto majoritário é uma ferramenta preciosa para puxar o voto proporcional, e não custa lembrar sempre que daqui a dois anos a cláusula de desempenho na votação para a Câmara dos Deputados estará colocada alguns centímetros acima do que em 2018.
E a votação para deputado federal, além de definir se o partido fica na Série A ou cai para a B, acaba também definindo quanto a legenda terá de espaço no horário eleitoral e verba do fundo eleitoral em 2024 e 2026. Não é pouca coisa em jogo.
Portanto, é ilusão imaginar alianças muito amplas na largada. Cada um precisará caminhar com suas próprias pernas. Talvez haja alguma convergência entre MDB, PSDB e Democratas, notam-se ensaios. E entre as legendas do chamado centrão, estrito senso, e talvez em torno do presidente da República. O que dependerá, obviamente, da popularidade de Jair Bolsonaro quando chegar a hora de tomar as decisões.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
O Estado de S. Paulo: Nas eleições 2020, 6,3 mil mulheres recebem um ou zero voto
Analistas alertam para risco de que candidatas tenham sido utilizadas por partidos apenas para alcançar a meta de gênero de 30%; parte delas recebeu R$ 877 mil do Fundo Eleitoral
Camila Turtelli, Rafael Moraes Moura e Bruno Ribeiro, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA, SÃO PAULO - Das 173 mil mulheres aptas a disputar o cargo de vereador no domingo, 15, 6.372 tiveram apenas um ou nenhum voto, segundo levantamento do Estadão. A ausência de votos e o fato de nem a candidata ter votado nela mesma provocaram suspeitas de que essas mulheres tenham sido usadas como “laranjas” para que partidos pudessem driblar a lei e cumprir a cota de 30% de candidaturas femininas. Parte delas recebeu R$ 877 mil do fundo eleitoral, dinheiro público usado para financiar gastos de campanha.
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A verba na conta de mais de 500 candidatas causa estranheza, já que todas tiveram desempenho pífio nas urnas, e pode ser mais um indício do “laranjal partidário”, com o lançamento de concorrentes “de fachada”. Desde 2018, partidos devem destinar, no mínimo, 30% do fundo eleitoral para campanhas femininas. Quem não cumprir a regra pode ter as contas rejeitadas, os repasses suspensos e ser obrigado a devolver o dinheiro.
Em Vargem Grande Paulista, interior de São Paulo, a candidata Marjory Piva teve apenas um voto, mas recebeu R$ 17 mil do Republicanos. Não declarou nenhuma receita à Justiça Eleitoral. O presidente municipal da legenda, vereador Zezinho Tapeceiro, disse que Marjory teve um problema pessoal e desistiu de concorrer. “Ela não é candidata laranja, porém ela teve de desistir e esse recurso dela está sendo todo devolvido”, afirmou.
Em Santa Rita, na Paraíba, Edivania Carneiro viveu situação semelhante: recebeu R$ 15 mil do fundo eleitoral do PSL, mas obteve apenas um voto. Marjory e Edivania foram as mulheres que mais ganharam verba do fundo eleitoral de seus partidos. Há indícios de que as duas tenham sido “laranjas”.
Francielle Avila (PSD), candidata em Espigão Alto do Sul (PR), conseguiu R$ 10 mil do partido e, segundo sua prestação de contas, gastou R$ 7 mil com material de campanha. Em sua página do Facebook, no entanto, não há qualquer menção à candidatura, mas, sim, à do postulante a prefeito pelo PSDB, Hilário Czechowski. A reportagem não conseguiu contato com a candidata ou com a direção municipal do PSD.
Em Cabo Frio, no Rio, a comerciante Rita das Empadas (PSL) recebeu R$ 10 mil do fundo eleitoral na disputa por uma cadeira na Câmara Municipal, mas teve um voto. “Todo mundo me conhece em Cabo Frio, muita gente falou que ia votar em mim. Mas, na hora, só tive um voto”, disse Rita ao Estadão. O comando nacional do PSL informou que cada candidato teve de emitir um recibo, comprovando o recebimento dos recursos. “No caso das candidatas mulheres, estas ainda tiveram que assinar uma carta, de próprio punho, afirmando que estavam se candidatando por livre e espontânea vontade”, declarou o partido, em nota.
Questionada se foi “candidata laranja”, Rita respondeu: “Tá ficando doido? Eu sou uma mulher responsável, não sou candidata laranja, não. Tive vários santinhos, eu panfletei. Não tenho culpa se meus votos sumiram ou não votaram em mim”.
O mapeamento do Estadão também identificou que, na lista de mulheres com nenhum ou apenas um voto, predominam candidaturas de pretas ou pardas (59%), enquanto brancas representam 39% e indígenas, 1%.
Raça
O fato vem na esteira de decisão do Supremo Tribunal Federal, que determinou o critério racial na destinação de recursos para financiar candidaturas. Os partidos são obrigados a dividir os recursos do fundo eleitoral, que alcançou R$ 2 bilhões, segundo a proporção de negros e brancos de cada sigla.
“O expressivo número de candidaturas femininas sob suspeita de serem fictícias revela que ainda há nas estruturas partidárias resistência à inclusão das mulheres”, disse a advogada Maria Claudia Bucchianeri, da Comissão de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB. “As eleições de 2020 ainda trazem outro número preocupante, a sensível concentração dessas supostas candidaturas fake entre negras. Há, portanto, dupla recusa de inclusão: a de gênero e a de raça”, completou ela.
Em município da Bahia, três candidatas e um voto
São Paulo, Bahia e Minas são os Estados com o maior número de mulheres que tiveram zero ou um voto na disputa municipal de vereador. Na Bahia, o município de Condeúba, com apenas 17 mil habitantes, viu três mulheres entre os candidatos a vereador com o menor número de votos. Segundo o TSE, as donas de casa Xuxu e Nice, ambas do PSD, foram ignoradas pela população local – sem nenhum voto, nem o delas mesmas, e nenhum gasto eleitoral.
Sem qualquer despesa informada até agora, Izenilde (PL) teve melhor sorte que as rivais: um voto. A candidata, no entanto, utilizou as redes sociais para fazer campanha para outro nome – Helton da Lagoinha, seu companheiro, que disputou uma vaga na Câmara Municipal de Condeúba pela mesma legenda. À Justiça Eleitoral, Izenilde se declarou solteira, mas no Facebook avisa que está casada com Helton. “Meu vereador arretado”, postou ela, no dia 9. Helton obteve 128 votos.
“A representação feminina é indispensável para uma democracia de qualidade. Mas as candidaturas fictícias ainda são uma realidade”, disse Marilda Silveira, professora de Direito Eleitoral do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). “A investigação, nesses casos, é indispensável e a conclusão de fraude muitas vezes se dá pela soma de indícios, como votação zerada, gastos irrelevantes, campanha inexistente.” Procurados, Izenilde e Helton não responderam até a conclusão desta edição. O PL informou que “lamenta o mau desempenho” das estreantes, mas “cabe a cada candidato responder pela prestação de contas e uso dos recursos recebidos”.
Marcus Pestana: Fatos e análises: devagar com o andor
Já conhecemos os resultados das eleições em 5.276 municípios. Restam 57 disputas que ficaram para serem decididas em segundo turno. Como acontece, de quatro em quatro anos, cientistas políticos, analistas da imprensa, articulistas e lideranças políticas começam imediatamente a tentar interpretar qual é o “recado das urnas”. Como se as eleições municipais fossem uma espécie de antessala ou prefácio das eleições gerais seguintes.
É evidente que os resultados realçam um determinado espírito reinante na opinião pública nacional. Mas “devagar com andor que o santo é de barro”. É preciso perceber o caráter contraditório dos números; decifrar a essência escondida atrás das aparências; entender que as eleições municipais têm predomínio de temas locais; atentar para as diferenças entre pequenas, médias e grandes cidades; observar que a matemática política é diferente da lógica aritmética; e, que a realidade histórica é dinâmica e mutante. Há na maioria das análises um verdadeiro “tour de force” para construir ilações a partir dos resultados eleitorais locais sobre quem são os vitoriosos e os derrotados no plano nacional. Mais uma vez, “prudência e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.
O primeiro equívoco central desta armadilha analítica é, além de traços gerais do sentimento da sociedade no momento, tentar enxergar tendências avançadas sobre o cenário para 2022. Como se as eleições municipais tivessem alta carga ideológica, o que só é verdade marginalmente nas grandes cidades, e que candidaturas presidenciais ou de governadores dependessem de uma sólida base municipalista previamente consolidada. Nada melhor para testar teses políticas que confronta-las com a realidade. Não é preciso ir longe: qual era a base municipal que tinham Collor, Bolsonaro, Witzel ou Zema? Como explicar que o PSDB tenha tido em 2016 seu melhor resultado em eleições municipais e seu pior resultado nacional em 2018? Não é preciso dizer mais. Como disse certa vez Ulysses Guimarães: “Vossa Excelência, o fato”.
Outro erro fundamental: não perceber que a realidade é dinâmica e muda e raciocinar com a simples aritmética e não com a análise política-histórica. Cansei de ver tabelas e análises que tiravam suas conclusões a partir da variação percentual entre 2016 e 2020. E aí prevalece a análise de elevador: tal sigla ou líder sobe, outros descem. Ledo engano. Será que é difícil enxergar que entre 2020 e 2016 existiram 2017 e 2018? Ou não houve uma escalada crescente com o impeachment de Dilma, recessão, desemprego, Lava Jato, JBS, intensa cobertura da mídia, que desmoralizou o quadro partidário que sustentou a Nova República e catapultou Bolsonaro de 7% para 22% nas pesquisas de opinião e resultou numa eleição disruptiva? A variação aritmética de desempenhos partidários não registra isso.
O Brasil tem quase 148 milhões de eleitores. Apenas três partidos tiveram mais de 10 milhões de votos (MDB, PSDB e PSD). Ou seja, em torno de 6,7% dos votos nacionais, o que é pouco e revela uma inequívoca pulverização. Apenas cinco partidos fizeram mais de 400 prefeitos e mais de quatro mil vereadores (MDB, PP, PSD, PSDB e DEM). Aí, juntas e misturadas, Serra da Saudade em Minas Gerais com seus 941 eleitores e São Paulo com mais de 8 milhões de eleitores. O presidente da República sequer tem partido. Portanto, todo o cuidado é pouco com análises precipitadas. Voltarei, por sua relevância, ao assunto na próxima semana.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Demétrio Magnoli: Boulos representa a restauração do lulismo
Candidato do PSOL, representa uma renovação de fachada: a restauração do lulismo
Bruno Covas obteve 32% dos votos no primeiro turno, um resultado fraco que reflete tanto sua falta de brilho quanto a elevada rejeição de João Doria, seu padrinho político. Covas é um gerente cinzento da cidade que existe —ou seja, de uma metrópole cuja riqueza contrasta com níveis intoleráveis de exclusão social e segregação urbana. Mas tem a sorte de enfrentar um adversário que pretende fazer a história girar em círculos, reincidindo no discurso de uma esquerda congelada no tempo.
Guilherme Boulos representa uma renovação de fachada: a restauração do lulismo. O PSOL nasceu como cisão à esquerda do PT, como sonho de recuperação do “PT das origens”. O pacto entre Boulos e Marcelo Freixo, firmado há dois anos, colocou ponto final na aventura, convertendo o partido em legenda auxiliar do PT. Hoje, o partido menor ecoa as sentenças básicas do maior e sua existência reflete, exclusivamente, os benefícios estatais ligados à proliferação de legendas partidárias. Não é casual que, no início da campanha, as celebridades carimbadas petistas tenham oferecido apoio a Boulos, em detrimento do “apparatchik” Jilmar Tatto.
O “PT das origens” desponta, como fantasia, na seleção de Luiza Erundina para vice da chapa. O discurso lulista emerge, como realidade, em cada uma das declarações de Boulos.
A paixão estatista, que caminha junto com o desprezo pela sustentabilidade das contas públicas, espraia-se por todo o programa. Há pouco, iconicamente, os traços gêmeos manifestaram-se na forma de um desatino financeiro. Esquecendo-se de insignificantes detalhes como custos salariais e aposentadorias futuras, Boulos sustentou sua proposta de contratar incontáveis novos funcionários municipais com o argumento de equilibrar a balança previdenciária. “Como é que ninguém pensou nisso antes!? Gênio! Se dobrarmos o número de funcionários, eliminaremos o déficit; imagina se decuplicarmos…”, ironizou Alexandre Schwartsman.
O passado esmaga o presente, enterrando na ravina do descrédito uma plataforma necessária de reformas de cunho social. A gestão Covas, como tantas precedentes, governa para uma cidade miniaturizada, que quase cabe na moldura dos rios Pinheiros e Tietê. Boulos tem razão quando fala em corredores de ônibus, nos contratos municipais com as empresas de transporte, no desamparo dos entregadores de aplicativos, na violência policial cotidiana nas periferias, na desapropriação legal de imóveis privados abandonados. São, porém, apontamentos corretos dissociados de planos abrangentes viáveis.
Covas aponta um dedo acusador para o suposto radicalismo de seu adversário. De fato, porém, falta a Boulos o tempero radical da reforma urbana. O candidato promete construir 100 mil casas populares, retomando a meada conservadora do Minha Casa Minha Vida, um programa imobiliário de criação de guetos urbanos que propicia a constituição de currais eleitorais. Nesse passo, circunda o imperativo de renovar o centro expandido por meio de arrojados projetos público-privados destinados a erguer áreas de uso múltiplo compartilhadas por diferentes faixas de renda.
“Radical é você”, retrucaria um Boulos utópico ao prefeito que, abraçado ao governador semibolsonarista, reitera infinitamente a cidade da gentrificação, do apartheid urbano e da violência. Mas o Boulos realmente existente não aprendeu nenhuma das lições emanadas do longo percurso do lulismo.
Sobretudo, como seu partido, não entendeu o valor da pluralidade política. “Eu não sou Jair Bolsonaro; trato a democracia, os Poderes, com diálogo”, respondeu Boulos diante de uma indagação sobre suas eventuais relações com a Câmara de Vereadores. “A Venezuela não é ditadura, Cuba não é ditadura, o governo Maduro foi eleito”, exclamou o mesmo Boulos em 2018.
O problema é que um Bolsonaro de esquerda continua a ser um Bolsonaro.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Ascânio Seleme: Filhos e netos se apropriam do capital político da família para pedir votos
Em Recife, onde uma neta e um bisneto de Miguel Arraes disputam o segundo turno
A história eleitoral brasileira está repleta de casos de filhos e netos que se apropriam do nome e do capital político do patriarca da família para pedir votos e quem sabe passar o resto da vida pagando suas contas com dinheiro público. Quanto mais próximo do primeiro político, melhor. Foi assim com os três zeros pouco qualificados de Bolsonaro, que se elegeram vereador, deputado e senador. Nas eleições municipais deste ano, há um caso que não chega a ser inédito, mas prova que as pessoas apostam mesmo no nome da família para ganhar um cargo. Trata-se de Recife, onde uma neta e um bisneto de Miguel Arraes disputam o segundo turno.
A neta, a deputada petista Marília Arraes, já tem um pouco de estrada e tentou uma outra vez ocupar um cargo executivo. Em 2018, mesmo liderando as pesquisas, teve sua candidatura abortada pelo diretório nacional do PT. O bisneto, João Campos, tem apenas 26 anos. Além de ser neto de Arraes, ele é filho do falecido governador Eduardo Campos. Ungido por dois sobrenomes, foi o deputado federal mais votado em 2018, aos 24 anos, e agora quer ser prefeito. Sua qualificação? É engenheiro, mas nunca exerceu a profissão. Graduou-se em 2016, mas aí já era secretário do governador que sucedeu seu pai dois anos antes.
Em São Paulo, outro neto disputa a eleição. Bruno Covas, neto do ex-governador Mario Covas, está no segundo turno e pode acabar eleito para um mandato inteiramente seu. No primeiro, foi vice de João Doria, que saiu para se candidatar a governador. Bruno foi deputado estadual, deputado federal e secretário estadual de Meio Ambiente no governo de Geraldo Alckmin. Mas aí, nenhum mérito. Até o nefasto Ricardo Salles foi secretário de Meio Ambiente de Alckmin. No Rio, o sobrenome Garotinho não rendeu votos para Clarissa, que chegou em 11º lugar com apenas 12.178 votos. No caso, o sobrenome mais atrapalha do que ajuda a deputada filha de dois ex-governadores encrencados.
Muito raramente os filhos e netos são tão eficientes ou bons quanto a quem deu origem à estirpe política. Há um caso emblemático no Brasil que mostra ser possível passar qualidade política geneticamente. Estou falando do presidente Tancredo Neves e de seu neto, o deputado Aécio Neves. Tancredo foi político de habilidade incomum e tornou-se um dos mais importantes brasileiros de todos os tempos. Artífice da redemocratização do Brasil em 1985, morreu sem tomar posse, virando quase um mártir político. Seu neto elegeu-se deputado, governador e senador. Muito eficiente e quase tão hábil quanto o avô, conseguiu ser eleito presidente da Câmara, o que não é trivial, e foi candidato a presidente. O problema é que seu futuro desapareceu quando descobriu-se que ele era um escroque.
Há diversos casos de transmissão familiar de prestígio político no país. Exemplos: Nelson Marchezan e Nelson Marchezan Jr., no Rio Grande do Sul; Esperidião Amin, Angela Amin e João Amin, em Santa Catarina; José Richa e Beto Richa, no Paraná; Antônio Carlos Magalhães, Eduardo Magalhães e ACM Neto, na Bahia; Jader e Helder Barbalho, no Pará; Renan Calheiros e Renan Filho, em Alagoas; Nelson e Nelsinho Trad, no Mato Grosso do Sul; os incontáveis Alves de Melo, no Rio Grande do Norte; e os inacreditáveis Iris e Iris Rezende (marido e mulher), em Goiás. E no Rio há ainda os Maia, o pai Cesar e o filho Rodrigo.
Embora a prática se espalhe pelo Brasil de maneira incontrolável, a herança política não é uma jabuticaba genuína. Nos Estados Unidos, desde a mais tenra idade da maior democracia da terra, pais já passavam prestígio para seus filhos. John Adams, um dos fundadores da pátria, foi o segundo presidente dos EUA sucedendo George Washington. Seu filho John Quincy Adams foi o sexto presidente americano. A dinastia Kennedy foi forjada pela tenacidade do patriarca da família e emancipada pelo lendário presidente John F. Kennedy. Até os Bush fizeram escala familiar, com George e George W. E os Clinton, Bill e Hillary, também tentaram, mas foram malsucedidos.
Filhos, netos e outros familiares têm o direito de exercer cargos eletivos depois que o patriarca fez sucesso na política? Legalmente, sim, porque a todos é dado o acesso a uma função pública, desde que cumpridos os requisitos de idade e idoneidade e que tenham concorrido democraticamente para o cargo. Moralmente, não, porque a beleza da democracia é que ela deve dar a todos as mesmas chances e oportunidades, e os que vão para uma disputa ocupando orgulhosamente o papel de filhinho do papai ou de netinho do vovô, já saem na frente e quase sempre com vantagem que todos os demais concorrentes não têm.
O Estado de S. Paulo: 'Vou apoiar qualquer coisa contra Bolsonaro em 2022', diz Felipe Neto
Youtuber afirma ainda que indiciamento do qual foi alvo é uma ‘tentativa de silenciamento por parte da extrema-direita'
Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo
RIO - Indiciado pela Polícia Civil do Rio por supostamente divulgar material impróprio para menores, o youtuber Felipe Neto afirmou que, em 2022, pretende ir “para a luta como nunca antes na vida”. O objetivo, disse, é impedir uma reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Para ele, o “Brasil precisa derrotar o bolsonarismo como os Estados Unidos derrotaram o trumpismo”, após a vitória do democrata Joe Biden.
O youtuber atribuiu seu indiciamento por corrupção de menores a “pressões” que, segundo ele, passou a sofrer após se declarar como opositor do governo federal. “Vou apoiar qualquer coisa que chegue ao segundo turno contra o Bolsonaro”, declarou Neto ao Estadão. “Seja (Luciano) Huck, (Fernando) Haddad, Lula, Marina (Silva), Ciro (Gomes), (João) Doria ou Tiririca.”
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Aos 32 anos, Neto tem 40 milhões de assinantes em seu canal no YouTube e 11 milhões de seguidores no Twitter. Fez um editorial e um vídeo para o New York Times no qual critica Bolsonaro e entrou na lista da revista Time como uma das personalidades do ano (juntamente com o presidente brasileiro) em 2020.
O sr. é considerado a principal voz da oposição ao presidente Jair Bolsonaro no mundo digital. Por isso, tem sido alvo de ataques de grupos bolsonaristas. Acha que seu indiciamento é parte desse processo de pressão?
Sem sombra de dúvidas. Todo jurista que analisou tecnicamente o indiciamento ficou em estado de choque. Juízes, advogados criminais, procuradores. É só qualquer um procurar pela internet para ver a reação. Eu fui acusado de “corromper menores” por um delegado que não mostrou qualquer menor corrompido como prova de sua investigação. O caso do indiciamento é uma tentativa nefasta de silenciamento por parte de fundamentalistas da extrema-direita. Eles só querem que as pessoas espalhem que fui indiciado, mesmo sabendo que não dará em nada na Justiça.
O Ministério Público do Rio devolveu o procedimento, com o indiciamento, à Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática para “diligências”.
Recebi essa informação com enorme satisfação, pois o promotor não aderiu à precipitação do delegado, ao contrário, determinou que fizesse as investigações que não fez, e inclusive, em sua manifestação, chamou a atenção para o fato de que ainda irá apurar para analisar se há crime ou não. Estou absolutamente tranquilo e confiante que o Ministério Publico vá compreender que esse indiciamento é um absurdo.
O senhor se arrepende de ter se tornado uma voz de oposição ao governo?
Não, apenas não queria ter ficado tão isolado. Realmente acreditei que, em algum momento, outros comunicadores com o meu tamanho de influência, ou maiores que eu, fossem se engajar na mesma intensidade. Isso não aconteceu.
Teme ser vítima de algum tipo de violência?
Tenho um forte sistema de segurança implementado para mim e minha família.
Como avalia as fake news a seu respeito?
Todas as pautas de pseudomoralidade são cortinas de fumaça. A extrema-direita está sempre levantando teorias da conspiração e elegendo inimigos que vão contra a “moral e os bons costumes”. Sem isso, eles não conseguem formar base. Na época da Hillary (Clinton, candidata democrata à Casa Branca, derrotada por Donald Trump em 2016), do que a acusaram? Pedofilia. Nas eleições do Biden, do que o acusaram? Pedofilia. Do que me acusaram? Pedofilia. É sempre a mesma ladainha, as mesmas teorias conspiratórias contra os opositores, transformando-nos em demônios para pessoas influenciáveis.
Uma articulação está sendo costurada pelo apresentador Luciano Huck, o ex-ministro Sérgio Moro, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, o governador João Doria, entre outros, como um caminho para derrotar Jair Bolsonaro em 2022. Apoiaria esse movimento?
Não. Porém, vou apoiar qualquer coisa que chegue ao segundo turno contra Bolsonaro. Seja Huck, Haddad, Lula, Marina, Ciro, Doria, Tiririca.
A esquerda é sempre acusada de não se unir. Foi apontada, inclusive, como parte da ascensão do bolsonarismo. Concorda com essa análise?
Temos que colocar o PT e o PDT em um cercadinho e falar: “Vocês só saem daí quando acordarem para a realidade”. A desunião da esquerda não foi a grande causa da ascensão do bolsonarismo, mas sem dúvida contribuiu significativamente. Basta olharmos o que aconteceu no Rio de Janeiro (nas eleições municipais) para entendermos o quanto a situação está problemática. PT, PDT e PSOL lançaram candidaturas próprias. Conclusão? (O atual prefeito Marcelo) Crivella foi para o segundo turno com 21% dos votos (contra Eduardo Paes, que teve 37%) e ninguém chegou nem a ameaçar o pastor bolsonarista.
Por que resolveu se envolver na campanha de São Paulo? Não acha que a atitude de não querer falar com Bruno Covas ajuda a agravar a polarização que critica no caso do Rio?
Bruno Covas fez parte de todo o movimento BolsoDoria (aliança informal de Bolsonaro com Doria nas eleições de 2018, contra a esquerda). Bruno Covas tirou selfie com um sorriso de orelha a orelha ao lado do Bolsonaro. Bruno Covas tem como vice um sujeito que compõe a bancada religiosa, que foi acusado de violência doméstica e é investigado como possível envolvido na máfia das creches. Não dialogo com esse tipo de político.
Como avalia os resultados das eleições municipais?
Foi uma derrota contundente do bolsonarismo. As eleições serviram como termômetro da insatisfação do povo brasileiro com essa extrema-direita doentia e autoritária.
Qual será o seu papel e o impacto da sua posição política nas eleições presidenciais de 2022?
Não consigo dimensionar, mas eu vou para a luta como nunca antes na minha vida. O Brasil precisa derrotar o bolsonarismo como os Estados Unidos derrotaram o trumpismo.
Na sua opinião, qual será o impacto do governo de Joe Biden no governo de Jair Bolsonaro?
A credibilidade internacional do Bolsonaro é zero. Ele é visto como um bobalhão que nunca sabe o que está falando. Somente um sujeito com Q.I. de batata faria uma ameaça brasileira de pólvora aos EUA, tanto que não obteve sequer uma resposta. A questão agora é como o Biden vai lidar com esse presidente bobalhão que comanda o País que controla a Amazônia. Não tenho conhecimento suficiente para fazer essa previsão.
César Felício: Esteios da governabilidade
Partidos que crescem não vão disputar Presidência
As eleições municipais registraram crescimento dos seguintes partidos na malha de prefeituras espalhada pelo país: PP (de 495 para 682), PSD (de 537 para 650), DEM (de 266 para 459), PL (de 294 para 345) e Republicanos (de 103 para 208). Estes cinco partidos somaram 1.695 conquistas em 2016. Foram 2.344 agora, ou 38% a mais.
Em comum, estes partidos têm a característica de estarem vocacionados para as eleições de caráter local e parlamentar. Não são legendas para disputar a Presidência, salvo às vezes fornecendo o nome para vice em alguma chapa, como fez o PP em 2018 e o DEM em 2010, acompanhando os candidatos tucanos. O PP não lança candidato próprio à Presidência desde 1994, quando ainda se chamava PPR. o DEM não o faz desde 1989, ocasião em que era o PFL. PSD, PL e Republicanos jamais o fizeram. São, portanto, coadjuvantes, e não protagonistas do jogo presidencial.
Os partidos que tradicionalmente são atores da eleição maior tiveram encolhimento de malha. O MDB (candidaturas próprias em 1989,1994 e 2018) caiu de 1.035 para 773. O PSDB minguou de 785 para 512. O PDT deslizou de 331 para 311. O PSB despencou de 403 para 250. E o PT saiu de 254 para 179. Somados, recuaram de 2.808 para 2.025, queda de 28%. A conta pode mudar um pouco com o segundo turno, mas nada que altere o eixo da Terra.
Sem legenda, Bolsonaro não fixou em lugar algum o bolsonarismo. Esta foi uma eleição em que o coração governista ficou de fora, salvo uma ou outra incursão desastrada do presidente por alguma eleição local.
O resultado da eleição tomado pelo atacado, ou seja, pela soma da quantidade de prefeituras conquistadas pelas grandes siglas, mostra uma diminuição da polarização e do efeito nacional sobre as eleições locais, que já não era lá muito grande.
Mesmo sendo bastante tênue, a polarização nacional ainda assim se refletia na competição pelas prefeituras. PT e PSDB viveram ciclos de crescimento nas bases municipais enquanto monopolizavam as eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Agora não há mais o corte entre bolsonarismo e antibolsonarismo. Nem como efeito da eleição de 2018, nem como projeção do que pode ser a escolha para o Legislativo e a presidencial em 2022.
Essa desideologização do pleito de 2022, em linhas gerais, indica uma tendência importante de PP, PSD, DEM, PL e Republicanos terem bancadas muito grandes depois da eleição que acontecerá dentro de dois anos. Passarão com louvor pelo teste da cláusula de barreira e darão cartas no próximo governo.
É no sentido de facilitar a governabilidade e o de darem alguma musculatura a quem tem pouca que estes cinco partidos serão muito disputados para alianças na próxima eleição presidencial.
PP e Republicanos já indicaram de forma claríssima a possibilidade de apoio a uma candidatura presidencial de Bolsonaro. É comentada a hipótese do presidente se filiar a um desses dois partidos.
A adesão ao bolsonarismo é muito menor em relação ao DEM e PSD. O DEM herdará o governo de São Paulo caso o tucano João Doria dispute a Presidência, o que não é pouco. O presidente da sigla, ACM Neto, sequer coloca à mesa um nome próprio para negociar alianças de 2022, o que é sugestivo. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, coloca alguns, para valorizar o passe, e daí citou em entrevista à “Folha” os senadores Antonio Anastasia e Otto Alencar.
Os partidos que mais amealharam prefeituras podem dar ossatura para Bolsonaro e Doria na eleição presidencial de 2022, mas obviamente não lhes fornecem os votos para se elegerem. A dinâmica presidencial é outra. Permitem antever apenas, no caso de vitória de um ou de outro, base parlamentar relativamente tranquila para governar.
Pode-se perguntar onde está o MDB nesta análise. O MDB é um esteio da governabilidade que esmaece. Tinha 1.194 prefeitos depois das eleições de 2008, às vésperas de fechar a parceria Dilma/Temer vencedora de duas presidenciais. Era 35% maior do que hoje. O MDB hoje é mais uma entre as legendas que se candidatam a fiel de balança.
O jogo da esquerda é disputado nas grandes cidades. Guilherme Boulos mudou de patamar na política nacional, ainda que perca a eleição paulistana, como é provável. O PT não poderá olhar mais o Psol com a condescendência de um irmão mais velho, como faz hoje. Se José Sarto ganhar em Fortaleza, o PDT e Ciro Gomes se preservam do vexame das apostas erradas no Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo.
O duelo entre Marília Arraes (PT) e João Campos (PSB) pela Prefeitura do Recife terá consequências na eleição presidencial de 2022. A vitória de Marília tende a ameaçar a hegemonia do PSB no governo de Pernambuco e deste modo situar a sigla de modo definitivo no antipetismo. Pode ser uma boa notícia para Ciro.
Ganhando ou perdendo em Porto Alegre, Manuela d’Ávila será uma estrela a brilhar com força no PCdoB, partido condenado a morrer pela cláusula de barreira. É provável que o PCdoB, com o governador do Maranhão Flávio Dino à frente, procure uma incorporação branca a alguma sigla de esquerda ou centro-esquerda mais capacitada a sobreviver. PT parece o caminho mais natural, mas de nenhum modo é a única saída que resta.
E Luciano Huck? O apresentador de TV e candidato a ser um presidenciável pouco ou nada tem a ver com as eleições municipais. Sua possível candidatura dependerá do fracasso de outros atores. Huck se viabiliza caso tudo ou quase tudo dê errado para Doria e Bolsonaro. Vencida esta peneira, ele procurará os esteios da governabilidade já mencionados.
Fernando Abrucio: Lições para além da vitória do centro
Muitos creem que as eleições, nos EUA e aqui, apontam um novo caminho de centro para 2022. Faz sentido, porém, é preciso destacar que moderação política não significa inação
Marco Maciel, um dos políticos mais experientes do país, já dizia que uma eleição começa quando acaba a outra. No momento atual, o debate brasileiro multiplica esse provérbio: duas eleições recentes estão alimentando a discussão política, a presidencial americana e a municipal daqui. Inspirados pelo enredo e resultados de ambas, muitos acreditam que elas apontam um novo caminho para o pleito de 2022, no qual um novo centro teria grande espaço para conquistar a Presidência da República. A ideia faz sentido, mas é preciso evitar que ela não se transforme numa fácil e falsa fórmula eleitoral.
Inspirar-se efetivamente nessas duas últimas eleições seria buscar o seu sentido mais profundo, e não ficar na superfície do fenômeno. Se isso for feito, as descobertas irão além de um receituário para o novo centrismo, em contraposição ao Centrão e à polarização Bolsonaro versus Lula. Trata-se de entender os contextos, atores e projetos que deram materialidade à vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos, bem como as razões do triunfo dos políticos pragmáticos vencedores das eleições municipais de 2020.
De maneira sucinta, cinco elementos advêm dessas duas experiências eleitorais como lições para os que pretendem vencer o presidente Bolsonaro. O primeiro deles é que o desempenho do governante de plantão é a baliza básica do jogo político, especialmente quando ele busca a reeleição. No caso americano, a principal escolha estratégica de Biden foi mirar nos principais erros de Trump, colocando-se como o seu oposto nestes pontos, algo que foi facilitado pelo rotundo fracasso federal no combate à covid-19.
Para quem quiser seguir essa trilha, dois passos são necessários: definir quais são os pontos mais frágeis de Bolsonaro, centrando o foco neles, e começando a se construir como oposição a eles. Parece uma obviedade, mas o debate sobre novo centrismo brasileiro fala pouco de oposicionismo. Lembra-se muito da característica moderada de Biden - o que é verdade -, porém se esquece que sua moderação veio a serviço de uma oposição que não foi montada às vésperas da eleição.
Colocar-se mais claramente e o mais rápido possível como oposição, especialmente centrando a crítica nos pontos certos, é fundamental para se definir como um dos projetos alternativos ao governo Bolsonaro. Provavelmente haverá mais de uma proposta política em 2022, de modo que quem ficar esperando e apenas dourando a pílula não terá identidade política junto ao eleitorado. Definitivamente, moderação política não é inação.
Um bom exemplo da necessidade de contrapor claramente ao poder vigente vem de um dos mais brilhantes políticos de centro da história brasileira: Tancredo Neves. Ele só conseguiu o apoio da sociedade que queria acabar com a ditadura e, ao mesmo tempo, dos dissidentes do regime porque marcou sua posição contra o então governante, fez críticas certeiras durantes meses, sem que isso o impedisse de conversar com todos os lados. Cabe ressaltar que se Bolsonaro perder popularidade (e isso tem boas chances de ocorrer), mais a população e os políticos (inclusive governistas) vão começar a buscar alternativas. Qualquer novo centrismo tem que se mexer, o mesmo valendo para os opositores à esquerda.
Uma segunda lição que vem das eleições americanas e das disputas aos governos locais no Brasil é que o desempenho eleitoral depende muito das políticas públicas, mais fortemente quando há um candidato à reeleição. Muitas razões explicam a derrota de Trump, um dos poucos presidentes do pós-guerra que não se reelegeu. Mas é inegável que, quando analisadas as pesquisas de opinião, fica evidente o fracasso de seu governo. Segundo os eleitores, sua atuação na pandemia foi desastrosa, a política educacional foi ruim, a criação de empregos e de um colchão de proteção social diante da crise foi modesta. No computo final, a maioria do eleitorado preferiu votar olhando para resultados, em vez de se definir por guerras culturais.
De maneira inversa, os vitoriosos das eleições nas capitais brasileiras que buscavam a continuidade do governo tiveram seu sucesso muito atrelado à aprovação de suas políticas públicas. Daí que quem quiser usar essas lições eleitorais para pavimentar o caminho contra Bolsonaro precisa definir o atual governo como um fracasso de políticas públicas - na Educação, Saúde, Meio Ambiente, Direitos Humanos etc. - e apresentar alternativas simultaneamente críveis e desejáveis pela população. Esse debate é o terreno mais difícil para o bolsonarismo.
Dentro da agenda de políticas públicas, é preciso entender quais são as tendências que mais vão mobilizar os eleitores. Essa é outra lição, a terceira, para quem quiser vencer em 2022. A dupla Biden-Harris concentrou-se nas principais questões que poderiam engajar a maioria dos cidadãos: pandemia, desigualdades, questão racial, uma política menos polarizada, entre as principais, captando o espírito da época, o que foi expresso numa diferença de cerca de 5 milhões de votos.
Quais serão as principais tendências da eleição de 2022? É muito difícil cravar com certeza uma lista de prioridades porque em dois anos muita coisa pode acontecer. Mas parece que o espírito da época que vai marcar a próxima eleição presidencial vai ter na desigualdade, em suas várias facetas (de renda, regional, de gênero, racial e de acesso aos serviços públicos), o seu aspecto central. Além disso, a questão ambiental, ainda mais com a pressão externa, deve crescer de importância. Por fim, todo mundo quer que a economia ande, pois ninguém aguenta mais uma estagnação tão longa. Em outras palavras, pauta de costumes perde força quando o básico falta para a população.
Qualquer projeto oposicionista vai ter de dizer que com Bolsonaro o Brasil piorou. As qualidades da moderação centrista podem se sobrepor à polarização, mas esse grupo precisa estar antenado com as principais preocupações da população, trazendo respostas aos problemas que afligem à maioria do eleitorado. Em síntese, um novo centro só vai ganhar do bolsonarismo e da esquerda se interpretar melhor o espírito da época que vai alimentar as eleições de 2022. Não basta vender o bom-mocismo.
Além da compreensão do espírito da época, o sucesso da campanha presidencial no Brasil vai depender do grau de engajamento de setores estratégicos do eleitorado. A quarta lição aqui vem mais forte do caso americano, embora o caso paulistano recente tenha mostrado como Boulos foi muito sagaz em mobilizar o eleitorado jovem num momento de pouca participação das pessoas em comícios e afins. Quem quiser ter melhor sorte em 2022 precisará construir uma estratégia de comunicação envolvente, que atinja os grupos que podem decidir a eleição. Aliás, é neste ponto que o bolsonarismo tinha vantagem sobre as outras forças político-partidárias, como ficou claro em seu triunfo em 2018, apesar da dúvida que há hoje após o fiasco nas eleições municipais.
A dupla Biden-Harris foi capaz de fazer uma campanha que se colocou contra o histrionismo de Trump, ao mesmo tempo em que foi criativa e engajadora dos três grupos mais relevantes para a vitória democrata: os mais jovens, as mulheres e os negros. Ficam as perguntas: quais serão os setores decisivos na eleição presidencial de 2022? Como mobilizá-los, tanto na forma como no conteúdo? Essas duas questões são essenciais para todos os aspirantes à Presidência da República, sejam de esquerda, direita ou centro. Ser centrista não é uma forma óbvia de dar conta desses desafios. Criatividade, pluralismo e inserção social mais profunda serão muito mais importantes.
A construção das alianças será essencial, por isso fica aqui como a lição que finaliza o artigo. Entretanto, é engraçado que o debate brasileiro tenha começado neste ponto, quando deveria lidar com os quatro primeiros para desaguar neste último. De qualquer modo, a questão central é a seguinte: uma candidatura fora dos extremos precisa unir candidatos diferentes numa mesma chapa. Ou seja, se o presidenciável vem do centro ou centro-direita, tem de ter um vice mais à esquerda, e se vem da centro-esquerda, tem de ter uma companhia mais ao centro (ou centro-direita). Essa foi a fórmula democrata, que aliás também procurou construir uma parceria entre dois atores políticos com características distintas - um homem e uma mulher, um branco e uma negra, um da costa Oeste e outro da Leste. Isso tem de ser adaptado para as circunstâncias brasileiras, encontrando que tipos de coisas diferentes devem ser unidas para produzir uma chapa competitiva.
Em suma, encontrar uma estratégia para se organizar como oposição ao bolsonarismo, focar no debate das políticas públicas (calcanhar de Aquiles de Bolsonaro), entender quais são as tendências predominantes que importam aos eleitores, construir um modelo de engajamento e comunicação que atue sobre grupos estratégicos do eleitorado, e, por fim, montar uma aliança presidencial entre diferentes, são as peça-chave para se ter uma candidatura bem-sucedida em 2022. Ser de centro ou ter apoio de parcelas importantes do centrismo são características que podem ajudar nesta tarefa, mas com certeza isso não é suficiente. Biden entendeu isso, bem como os pragmáticos que venceram as eleições municipais de 2020.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Bernardo Mello Franco: Duelo em família no Recife
Para quem gosta de acompanhar uma disputa em família, a eleição do Recife é diversão garantida. Os primos João Campos e Marília Arraes travam uma batalha renhida pela prefeitura. Eles duelam pelo espólio político de Miguel Arraes, governador de Pernambuco por três mandatos.
O filho de Eduardo Campos é candidato pelo PSB. Ele encarna o papel do príncipe herdeiro. Sua coligação reúne uma dúzia de partidos e conta com as máquinas do estado e da prefeitura.
Marília, a ovelha desgarrada, rompeu com o pai do rival em 2014. Acusava Eduardo de controlar a legenda com “mão de ferro” e de fazer tudo pelo poder. Ele se aliou a adversários históricos do avô e chegou a governar praticamente sem oposição.
Depois do acidente que matou o presidenciável, a dinastia acelerou a preparação do sucessor. Aos 22 anos, João virou chefe de gabinete do governador Paulo Câmara. Aos 24, tornou-se o deputado mais votado do estado. Aos 26, tenta se eleger prefeito.
A escalada pode ser interrompida por Marília, que migrou para o PT em 2016. Aos 36 anos, ela já mostrou que é boa de briga. Desafiou a direção regional do partido e se lançou com o aval do ex-presidente Lula, que havia vetado sua candidatura ao governo na eleição passada.
Ontem os primos se enfrentaram no primeiro debate do segundo turno. Quase saiu faísca. João acusou Marília de prometer cargos a figurões do PT sem mandato. Marília chamou João de “imaturo” e sugeriu que ele cumpre ordens da mãe. “Quem é que vai mandar na prefeitura? Comigo, as pessoas sabem. Com você, a gente fica sempre na dúvida”, provocou.
Os dois trocaram estocadas sobre alianças à direita. “Causa estranheza você estar se aliando com aqueles que chamam Lula de ladrão”, disse ele. “O palanque salada russa é o seu, tem do PCdoB ao partido dos filhos de Bolsonaro”, devolveu ela.
O candidato do PSB foi o mais votado no primeiro turno. Ontem o Datafolha informou que o vento virou no Recife. Marília ultrapassou João e agora lidera com dez pontos de vantagem: 55% a 45% em votos válidos.