eleições 2020
Bernardo Mello Franco: Pancadaria entre Paes e Crivella resumiu a eleição do Rio
Levou apenas 24 segundos. Em sua primeira participação no debate da TV Globo, Marcelo Crivella disse que Eduardo Paes será preso. Ele repetiria a ameaça outras nove vezes até o fim do programa. Foi o último confronto entre os candidatos à prefeitura do Rio.
“Paes vai ser preso. Eu digo isso com o coração partido”, provocou o atual prefeito. “Ele é que morre de medo de ser preso”, devolveu o antecessor.
Com a rejeição nas alturas, Crivella apelou ao discurso moralista para desgastar o adversário. Além da dezena de menções ao xadrez, recitou sete vezes o mandamento “Não roubarás”. Paes começou acuado, mas passou a revidar na mesma moeda. Chamou o bispo quatro vezes de “pai da mentira”. Na Bíblia, a expressão é associada ao demônio.
Os dois candidatos foram alvo de operações policiais em setembro. Paes já virou réu, acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e caixa dois na eleição de 2012. Crivella teve o celular apreendido em outro inquérito, que apura o funcionamento de um balcão de propina na gestão atual.
Como esperado, o debate ofereceu um espetáculo de exploração da fé. O bispo insistiu na retórica da “ideologia de gênero” e disse que o adversário terá problemas com Deus no Juízo Final. Em nova fala homofóbica, afirmou, em tom de reprovação, que Paes fez do Rio a “capital mundial do turismo gay”.
O ex-prefeito reciclou a tática de bater na Igreja Universal, de olho em eleitores evangélicos de outras denominações. Ele aproveitou para lembrar que o bispo Edir Macedo, tio de Crivella, defende a legalização do aborto. Mais um tema que nada tem a ver com a gestão municipal.
Além de trocarem insultos, os dois travaram um duelo de más companhias. Crivella associou Paes a Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, ambos presos por corrupção. Paes ligou Crivella a Wilson Witzel, afastado do governo pelo mesmo motivo.
O presidente Jair Bolsonaro foi o grande ausente do debate. Nenhum dos candidatos quis citá-lo. Coincidência ou não, os dois também silenciaram sobre o combate às milícias.
Embora a segurança pública seja atribuição do estado, cabe à prefeitura coibir a construção ilegal e a invasão de áreas protegidas. Nas gestões de Paes e Crivella, os paramilitares ampliaram negócios e expandiram seu domínio sobre o território carioca. É preciso muito otimismo para crer que isso mudará em 2021, seja quem for o eleito.
A pancadaria de sexta à noite resumiu o tom da campanha no Rio. O eleitor foi bombardeado com muitas acusações e poucas propostas. Sobraram ofensas e faltaram ideias para tirar a cidade do buraco.
Não se falou em combate à desigualdade, geração de empregos, recuperação do centro ou despoluição de praias e lagoas. A cultura só foi lembrada num bate-boca sobre o financiamento do carnaval.
“Eles não discutiram minimamente os problemas da cidade. Espremendo muito, sai uma gotinha de limão seco”, lamenta o vereador eleito Chico Alencar, que declarou “voto crítico” em Paes.
Com ampla vantagem nas pesquisas, o ex-prefeito tende a vencer sem sustos. Como ele mesmo admite, menos por suas qualidades do que pelos defeitos do sucessor.
Fernando Gabeira: Um momento decisivo no Rio
Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um enorme desafio para o novo prefeito
As eleições de hoje são importantes em todas as 57 cidades em que há segundo turno. Mas, no Rio de Janeiro, parecem ser uma questão de vida ou morte porque a cidade vive um longo processo de decadência prestes a ultrapassar um ponto de não retorno.
Personalidades cariocas enfatizam que a cidade, bonita por natureza, ainda pode encontrar sua vocação no desenvolvimento sustentável, produção do conhecimento, turismo e cultura.
Segundo algumas pesquisas, mais da metade do território do Rio é controlado pelas milícias. Um entre quatro moradores do Rio vive em favelas, sem endereço legal, título de propriedade, serviços públicos, sobretudo saneamento básico.
Uma velha canção diz que quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar. Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um grande desafio para o novo prefeito.
As pesquisas indicam que Eduardo Paes tem 70 dos votos contra apenas 30 do atual prefeito Marcelo Crivella.
Tudo indica que as necessidades de uma metrópole cosmopolita chocaram-se com a estreita visão religiosa de Crivella que subestimou até o carnaval, ponto central do calendário turístico, ao lado de outros como o Rock in Rio.
Apesar da crise profunda, ou talvez por causa dela, a sociedade se move. Durante a pandemia, morros como o do Alemão criaram comitês de crise para angariar fundos e ajudar a população, algo semelhante ao que aconteceu em Paraisópolis, São Paulo, embora num nível menor.
Há mais de um ano, um grande grupo de profissionais e urbanistas foi constituído na internet: o Juntos somos +Rio.
No momento mais intenso da crise, os debates sobre o futuro da cidade abriram para ações, como por exemplo alugar hotéis para que funcionários da saúde descansassem sem colocar em risco suas famílias.
Eduardo Paes foi prefeito do Rio duas vezes. Parece sensível a todos os problemas. É um político, sobrevivente da era Cabral, e terá de provar que aprendeu com os erros e não apenas se adaptou ao novo momento para vencer as eleições.
As lagoas da Barra da Tijuca, bairro onde Paes vive, jamais foram recuperadas num projeto urbano que poderia reviver na área o movimento aquático de uma Veneza.
Da mesma forma, Paes contraiu covid-19 um pouco antes da campanha e teve sintomas leves. É importante que se organize para enfrentar a pandemia e preparar o caminho para uma vacinação em massa, o que pode viabilizar o carnaval remarcado para o meio do ano que vem.
Até o momento não se dedicou muito ao tema, sequer visitou a Fundação Oswaldo Cruz, onde a vacina será fabricada.
O final de campanha no Rio foi marcado pelo baixo nível. Crivella acusa Paes de ter o apoio o PSOL, que iria para o setor de educação promover a pedofilia. O padrinho de Crivella, Bolsonaro, fortalece essa acusação, revivendo a famosa mamadeira de piroca que foi uma das estrela de sua campanha de fake news.
Se conseguir realmente demonstrar maturidade, Paes pode mobilizar o potencial da sociedade assustada com o processo de decadência. Se quiser, por exemplo, além da qualidade de vida num território contido entre o mar e Mata Atlântica, poderá implementar os passos de uma cidade inteligente.
O conhecimento para esse passo revolucionário na administração já é desenvolvido na Universidade Federal do Rio e estaria à sua disposição.
Portanto, apesar de discretas, sob o impacto da pandemias, as eleições no Rio podem marcar o futuro, inclusive porque este ano está prevista uma revisão do Plano Diretor da cidade - decisões que envolvem praticamente tudo no cotidiano dos cariocas.
Merval Pereira: O futuro nas urnas
Se é verdade que as eleições municipais têm mais influência local do que nacional, seria também um erro recusar que delas emanam os ventos que movem a sociedade na direção do futuro político que se consolidará nas eleições de 2022 para presidente, deputados federais e senadores, essas, sim, reflexos da situação social e econômica.
Três disputas regionais transformaram-se em nacionais. No Rio, o prefeito Marcelo Crivella pendurou-se em Bolsonaro para tentar virar o resultado contra Eduardo Paes do DEM, mas tudo indica que só aumentou sua rejeição, já alta. Em São Paulo, a disputa entre o PSDB de Covas e a esquerda, representada por Boulos do PSOL, já dá uma boa indicação de que o PSOL pode vir a substituir o PT como protagonista.
Em Recife, a disputa familiar mais dramática também ganhou contornos nacionais. Ali está a única chance de o PT vencer em uma capital importante, e a esquerda rachou com o PSB.
A vitória na eleição presidencial depende muito da estrutura partidária montada a partir das municipais. Mas por vezes tivemos fenômenos pessoais, independentes dos partidos, que se impuseram nas urnas, como Jânio Quadros, Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso com o Real, mais recentemente Bolsonaro.
Lula não se pode chamar de um vencedor pessoal, pois já estivera nas urnas eleitorais por três oportunidades e tinha uma estrutura partidária que foi se consolidando ao longo dessa caminhada. Acabou maior que o PT, mas também a razão da debilidade do partido, seja pelas condenações por corrupção, ou pela incapacidade de permitir a ação de novas lideranças partidárias.
Bolsonaro é exemplar de um candidato que parecia um outsider mesmo depois de mais de 30 anos de mandatos parlamentares sucessivos, e demonstrou um faro político excepcional ao prever um espaço na direita nacional que, a partir de 2013, vinha se impondo nas manifestações políticas contrárias aos governos petistas.
Assim como o PT gosta de jogar todos seus adversários para a direita, também Bolsonaro jogou o PT para a extrema esquerda, propiciando uma polarização entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. A centro-direita teve que ir para Bolsonaro, pois não houve uma candidatura com capacidade de confrontar a extrema-direita com uma proposta que se mostrasse vencedora contra o PT.
Bolsonaro não tem espírito para ir para o centro. Lula era um líder sindical que sabia negociar, Bolsonaro é um líder que quer se impor na base do grito e da opressão do poder temporário que a presidência lhe dá.
Aquele momento de 2018, quando a prisão de Lula radicalizou o cenário político, foi superado pela realidade de um governo inepto que paralisou o país por dois anos devido a uma maneira de fazer política que destrói sem construir nada em seu redor.
O cansaço do cidadão comum com Bolsonaro e seus aloprados que tentam, ainda hoje, derrubar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), não deu margem a que a esquerda se fortalecesse, porém. A direita saiu vitoriosa, mas não a direita extremista. Os partidos que mais elegeram prefeitos foram MDB, PP, PSD, PSDB e DEM. Apenas três partidos tiveram mais de 10 milhões de votos: MDB, PSD e PSDB.
Apenas cinco partidos fizeram mais de 400 prefeitos e quatro mil vereadores: MDB, PP, PSD, PSDB e DEM. Se fizermos de conta, como fizeram assessores palacianos, que o presidente Bolsonaro é do Centrão, ele saiu vitorioso da eleição. Se formos para a realidade, ele saiu derrotado na maioria esmagadora de suas indicações e mais dependente ainda do Centrão.
Uma demonstração clara de que ele hoje depende mais dos partidos do Centrão do que o Centrão dele: o Republicanos, que filiou dois filhos de Bolsonaro e sua ex-mulher que não foi eleita, disse, através do presidente Marcos Pereira não haver hipótese de oferecer a Bolsonaro o controle do partido. O PSD já disse que não é da base bolsonarista nem do Centrão, mantendo uma independência que as urnas lhe deram. O PP tem dono, o senador Ciro Nogueira, assim como o PTB, do ex-deputado Roberto Jefferson.
Não conseguindo organizar seu partido, Bolsonaro depende do Centrão para se resguardar de um impeachment - garantia relativa essa - e montar um esquema partidário para a tentar a reeleição. Não é mais aquele fator fora da curva que hipnotizou o eleitorado.
Vera Magalhães: Segundona braba
Pós-eleições, decisões amargas sobre pandemia e economia aguardam governos
Ninguém estava muito aí para as eleições municipais pelo menos até outubro. Pouco se ouvia falar em propostas, mal se sabia quem eram os candidatos. Mas, ao fim e ao cabo, elas foram um breve momento de vigor cívico e esperança num ano marcado por mortes, renúncias e retrocessos.
Ao fim do dia deste domingo, se o supercomputador do TSE ajudar, já serão conhecidos os prefeitos em todo o Brasil, menos em Macapá, que recebeu uma dose extra e absurda de infortúnio no 2020 distópico.
O balanço dos ganhadores e perdedores finais ainda será feito, mas uma conclusão inequívoca é de que a democracia sai robustecida. Dito isso, há tarefas urgentes nesta segundona braba que bate à porta.
Jair Bolsonaro viveu a ilusão de que seria um sucesso eleitoral à base de auxílio emergencial e lives com uso de recursos públicos. Foi um retumbante fracasso. O presidente não entendeu algo que poderia ser compreendido com uma metáfora simples: o auxílio emergencial era aquela gasolina que você compra num saquinho e joga no tanque de combustível do carro para ele chegar até o posto. Mas o capitão usou a reserva, continuou rodando e a popularidade acabou antes de a eleição ou o posto chegarem.
Iludido com a possibilidade de eleger prefeitos aliados sem ter sequer um partido, o presidente mandou parar todas as decisões amargas. Paulo Guedes ficou de stand-by nas últimas semanas, vivendo de outra crença: a de que, passado o pleito, vai se abrir finalmente o caminho para o imposto sobre transações eletrônicas, que parece ser a única ideia na cabeça do ministro para financiar uma versão perene da transferência de renda que seja maior e mais potente eleitoralmente que o Bolsa Família.
Acontece que os fundamentos da economia, que Guedes disse que se recuperariam em “V”, estão em frangalhos. A inflação é um dragão que estava adormecido e acordou com fome, os empregos sumiram e a dívida pública explode, como o próprio Guedes já alertou. Bolsonaro tem asco dessa agenda, gostaria de passar batido por ela, e não tem nenhuma vocação para entender do que se trata ou decidir que caminho tomar.
O agravante é que a tempestade perfeita da economia vem conjugada com um previsível recrudescimento da pandemia, depois de um “libera geral” prematuro, quando não se tem ainda vacina aprovada para o novo coronavírus.
A segunda-feira será pródiga em anúncios de governadores e prefeitos de novas medidas restritivas, que foram irresponsavelmente seguradas por eles até que as urnas fossem fechadas.
Qual será a reação de empresários caso haja novo fechamento do comércio em diferentes lugares do Brasil às vésperas do Natal, chance de recuperação de vendas num ano praticamente perdido?
Para evitar uma onda de protestos que poderia ganhar contornos similares a 2013 é necessário que cessem as escaramuças políticas que nos levaram a uma das mais deploráveis respostas globais à pandemia e os diferentes níveis de governo articulem suas ações.
Plano de contingência para evitar uma nova onda, plano de logística para usar os recursos orçamentários para a calamidade que o governo Bolsonaro ainda não liberou, blitz antiburocracia para destinar os testes estocados que estão prestes a vencer, divulgação urgente de um Plano Nacional de Imunização que preveja insumos, gastos e procedimentos necessários para quando uma ou mais vacina vierem e adoção de medidas que contenham o avanço do vírus.
Esses são alguns passos fundamentais para que dezembro transcorra dentro de um mínimo de normalidade e com menor dose de sofrimento de um país que teve um breve respiro com a lembrança da normalidade trazida pelas eleições, mas que ainda não completou suas provações.
Marcus Pestana: Assim é, se lhe parece: a inconsistência dos partidos no Brasil
Amanhã teremos o 2º. turno das eleições municipais em 57 capitais e grandes cidades. Os resultados acentuarão as cores das interpretações e análises, mas diversas leituras já foram feitas a partir do que aconteceu no primeiro turno. Algumas delas tirando conclusões precipitadas sobre o “recado das urnas” e suas consequências em 2022.
Na última semana, procurei mostrar que é preciso ir “devagar com o andor” neste esforço de interpretação. Primeiro, porque as eleições municipais tem conteúdo eminentemente local e elementos ideológicos pesam marginalmente nas grandes cidades e principalmente na polarização de segundo turno, como é o caso dos confrontos entre Bruno Covas versus Boulos ou Eduardo Paes versus Crivela. A variação aritmética entre os resultados de 2016 e 2020 diz pouco ou quase nada sobre o futuro.
Por outra lado, chamei atenção para a diversidade presente entre regiões, municípios de diferentes portes e partidos razoavelmente programáticos e a maioria deles, pragmáticos.
Hoje temos 35 partidos registrados no TSE e 24 deles presentes no Congresso Nacional. Vejo análises que a partir da variação aritmética da votação e do número de prefeitos e vereadores eleitos por cada partido, começam a cravar: o “Centrão” saiu fortalecido, a esquerda caiu, Bolsonaro foi derrotado, MDB e PSDB perderam espaço. Nada mais enganoso.
Os partidos políticos brasileiros se dividem, grosso modo, em dois grupos: os que procuram ter alguma organicidade e identidade ideológica, e os que tem perspectiva pragmática, funcionando mais como cartórios para registro de candidaturas e como administradoras dos fundos eleitoral e partidário e sempre disponíveis a negociar apoio a governos díspares como os de Itamar Franco, FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro. Dos vinte e quatro partidos hoje presentes no Congresso têm perfil razoavelmente ideológico e projeto nacional PT, PSDB, DEM, PSOL, PcdoB, PDT, PSB, CIDADANIA, REDE, PV e NOVO. Os outros atuam conforme os ventos políticos conjunturais. Um caso a parte é o MDB, que é um partido importante, mas que oscila entre o pragmatismo e a consistência.
Há um problema central na maioria das análises: o fato de não se conhecer prefeitos de carne e osso e sua lógica. Os deputados, prefeitos e vereadores têm, em geral, baixíssima fidelidade às direções partidárias. Se a direção nacional do partido X apoiar Bolsonaro, Dória, Luciano Huck, Ciro Gomes ou Haddad não quer dizer que haverá alinhamento geral da estrutura partidária. Os prefeitos e vereadores no interior são espertos e pragmáticos, querem melhorias em seus municípios. Evitam partidos com identidade muito forte. Em Minas, nos 12 anos recentes em que houve a presença do PSDB no governo estadual e do PT no nível federal, era mais cômodo para as lideranças locais se refugiarem em legendas sem marca forte para buscar recursos nas duas esferas de poder. Imaginem os prefeitos da Bahia com o governo estadual em mãos petistas e Bolsonaro na Presidência. Na hora da eleição a história é outra.
Fica para outra oportunidade discutir o papel dos fundos, a repercussão dos “padrinhos” nas eleições locais, a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais e os sinais de esgotamento da polarização nos EUA e no Brasil.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Ascânio Seleme: O bispo e o voto evangélico
Eleitor evangélico provou que não vota unitariamente nem cai mais em lorotas tão facilmente
Difícil dizer se foi o voto evangélico que abandonou Marcelo Crivella ou se foi o velho bispo da Igreja Universal que o fez correr. O fato é que o eleitor evangélico, que até outro dia parecia apenas parte de um rebanho ideologicamente garroteado, provou que não vota unitariamente nem cai mais em lorotas tão facilmente. O sonho de Edir Macedo, que imaginava fazer uma cabeça de ponte no Rio para daí conquistar o país, virou vexame e ainda pode se tornar pesadelo.
O Rio não votou outra vez no bispo. Crivella ficou curto, apequenou-se. O resultado do primeiro turno da eleição municipal, que deve se repetir amanhã, desvelou uma novidade: os votos dos fiéis foram diluídos entre diversos candidatos. A ordem do pastor não vigora quando o candidato indicado pela igreja é ruim. Ou péssimo, como no caso em questão. Como essa verdade é comum em outros cantos do país, temos uma boa nova: o voto de cabresto religioso perdeu força.
O crescimento da população evangélica, ou a conversão de católicos em protestantes e evangélicos ao longo dos anos, produziu a sensação de que as igrejas dominariam em pouco tempo o cenário político nacional. Da mesma forma que se avalia hoje que em mais 30 anos os eleitores da Bélgica, por exemplo, serão majoritariamente de origem muçulmana. No Brasil, em dez anos, o número de evangélicos cresceu em média 61%. No Rio, seu aumento foi ainda maior, chegando a 64%.
A trajetória de Crivella mostra como foi importante e preocupante o que parecia ser a conformação de um curral eleitoral imbatível por ser administrado pela fé, que se imaginava blindada. O prefeito entrou na vida pública em 2002 se elegendo senador. Foi reeleito em 2010. No intervalo, concorreu sem sucesso a prefeito do Rio e a governador do estado, mas seus resultados foram melhorando. Em 2016, ganhou a prefeitura com 59,6% dos votos. Imaginou-se que o caminho estava consolidado, mas aí apareceu a inacreditável incompetência de Crivella.
Desde a posse, em janeiro de 2016, o capital político do bispo foi se deteriorando a ponto de ele ter hoje um dos maiores índices de rejeição entre todos os candidatos que concorrem neste segundo turno. Na primeira rodada das eleições, ficou com magérrimos 21,9% dos votos. Perdeu um oceano de sufrágios em quatro anos. Pelo que mostram as pesquisas, se Crivella fizer amanhã 30% dos votos válidos, terá perdido a metade dos eleitores que o elegeram em 2016. Dentre eles, incontáveis evangélicos.
A fé pode ser disciplinada e determinada, condescendente e tolerante, mas o fracasso eleitoral de Crivella prova que cega ela não é. O eleitor evangélico percebeu, como cada um dos 6,7 milhões de cariocas, que a gestão do bispo foi um desastre para a cidade. Seu governo sempre foi ineficiente, e não se pode culpar a pandemia pela agonia que a cidade atravessa. O eleitor evangélico também vê isso.
Vê, lê e ouve. A tecnologia da internet também ajudou a desidratar o monolítico voto evangélico. Além de perceber no seu dia a dia a desordem urbana, o eleitor fiel também foi informado pelas redes sociais. Muitas vezes desinformado, com certeza, mas sem dúvida estas ferramentas foram importantes para quebrar a “verdade” absoluta que se ministra nas igrejas evangélicas.
O voto orientado pelo pastor pode ainda dar resultado na eleição de vereadores e deputados, mas para cargo majoritário a iminente derrota de Crivella parece estar mostrando uma nova tendência que o tempo poderá confirmar. Por ora, Rio deve festejar o fim do mandato do bispo como uma benção. Crivella só vai fazer falta a Márcia e aos seus guardiões.
Derrota entre turnos
Jair Bolsonaro perdeu outra disputa política. Esta, depois do primeiro e antes de abrirem-se as urnas do segundo turno. Foi em Santa Catarina, onde o seu zero menor trabalhou incansavelmente para derrubar o governador Carlos Moisés. Bolsonaro e zerinhodespacharam para a capital catarinense a advogada da família, Karina Kufa, para conseguir que o governador fosse afastado e sua vice bolsonarista preservada depois de o governo ter equiparado os salários dos procuradores do estado com os da Assembleia Legislativa. Diziam que o reajuste era ilegal. Deu certo até ontem, quando a comissão que julgava o afastamento de Moisés teve de restabelecê-lo no cargo porque o Tribunal de Justiça do estado decidiu na véspera que ele não cometeu crime algum.
Defesa do Fla
O governo federal é tão desorganizado, atrapalhado e abilolado que lembra em muitos aspectos a defesa do Flamengo. Além de tremer de medo, quando o torcedor vê aqueles dois patetas do Léo Pereira e Gustavo Henrique trocando passes em frente à área, deve pensar imediatamente nos ministros Ricardo Salles e Ernesto Araújo. Com estas duplas, bola no pé do adversário e gol contra é questão de tempo.
Ministro da Logística
Se o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, conseguiu deixar estocado, sem uso, mais de seis milhões de testes de coronavírus em plena pandemia, imagina o que ele seria capaz de fazer se fosse general e cuidasse da logística de uma Força Armada durante uma guerra.
Aliás
A ampliação por mais 12 meses do prazo de validade dos testes esquecidos por Pazuello num galpão em São Paulo levantam uma lebre. Será que os laboratórios não estão estabelecendo validades muito curtas para seus medicamentos de maneira que eles vençam e o consumidor os descarte e compre um frasco novo? Tem alguma esperteza aí ou se trata do exclusivo cuidado com a saúde humana? Pelo preço dos remédios, é melhor que esta história seja muito bem explicada.
Acertos e desacertos
A chance de Guilherme Boulos de acertar se vencer a eleição de amanhã é tão grande quanto a de Bruno Covas. Sua chance de errar, entretanto, é maior. O programa de Boulos é mais ambicioso e muito mais caro do que o de seu adversário. Além disso, gerou uma expectativa entre os seus eleitores que pode se transformar rapidamente em frustração quando as pautas começarem a cair por falta de recursos ou adequações legais.
Boa surpresa
O ministro Luiz Fux devolveu grandeza ao posto de presidente do Poder Judiciário. Ao mandar para o plenário todas as ações penais e inquéritos, Fux resolveu que os casos da Lava-Jato voltarão a ser julgados e não apenas descartados sumariamente pela turminha. Boa também sua recomendação aos larápios de dinheiro público. Não adianta tentar esconder, “se tiver mala de dinheiro a imprensa vai descobrir”.
Carro usado
Aquela máxima “você compraria um carro usado do fulano de tal?” cabe muito bem agora ao ex-deputado, ex-secretário de estado e ex-presidiário Pedro Fernandes. O GLOBO noticiou na terça passada que Fernandes virou corretorde imóveis. O ex-secretário foi preso temporariamente por desvios em contratos na área da assistência social e responde a processo correspondente. Daí, vale perguntar: você compraria uma casa desse sujeito?
Não culpem o Leblon
Bares cheios você vê todos os dias em Ipanema, Laranjeiras, Botafogo, Barra da Tijuca, Taquara ou por onde quer que você ande. Em São Paulo, BH e Recife é assim também. Mas sempre que alguém quer fazer uma referência aos maus hábitos dos jovens baladeiros nesta pandemia cita a Rua Dias Ferreira, o Leblon. É uma injustiça. Não porque a garotada do bairro esteja trancada em casa, claro que não. Mas porque não são os únicos. Gilberto Bueno, leitor do GLOBO, mandou uma carta para o jornal dizendo que o Leblon estava fazendo escola. Será mesmo?
Crime eleitoral
É muito bom o livro “Uma terra prometida”, a autobiografia de Barack Obama, lançado na semana passada pela Cia das Letras com pompa e circunstância. Há inúmeros grandes momentos na narrativa da vitoriosa trajetória do ex-presidente americano. Mas há também dados do cotidiano, triviais. Um deles, que quase passa despercebido, explica como funcionam as campanhas eleitorais nos EUA. Na véspera do caucus de Iowa de 2007, a arrancada das primárias americanas, fazia muito frio e a neve poderia afastar eleitores das urnas. O que a adversária Hillary Clinton fez, como conta Obama, seria crime eleitoral no Brasil. A campanha da candidata distribuiu milhares de pás entre os eleitores alegando que com as ferramentas eles poderiam remover a neve acumulada em suas portas e ir votar.
Diego disse
“Tampouco morto encontrarei a paz. Me utilizam em vida e encontrarão um modo de fazê-lo estando morto”. A afirmação de Maradona, feita em 1996, faz parte de uma coletânea de 1.000 frases organizadaspor Marcelo Gantman e Andrés Burgo no livro “Diego dijo”. Ontem, dia seguinte ao velório, soube-se que os 11 filhos do jogador já iniciaram uma contenda pelo seu espólio.
Cristovam Buarque: Desculpas pelo atraso
Não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos
No dia seguinte ao pleito de 15 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pediu desculpas pelo atraso de algumas horas na divulgação dos resultados eleitorais. Surpreende que ninguém antes tenha pedido desculpas pelo atraso educacional de cem anos. Nem temos a quem responsabilizar: não há TSE da educação nacional.
Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.
Todos os presidentes e políticos, desde 1889, especialmente depois de 1985, devem pedir desculpas pelo atraso e pela desigualdade educacional no Brasil.
Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.
Reitero as desculpas por não ter convencido a opinião pública de que educação é o vetor do progresso e a estratégia para isso passa pela nacionalização do sistema municipal. A educação não será de máxima qualidade, nem será igual nas 200 mil escolas do Brasil, enquanto a responsabilidade pela educação das crianças brasileiras não for do governo federal.
Para isso cinco passos são necessários: 1) transformação do MEC em ministério com a responsabilidade exclusiva de cuidar da educação de base; 2) criação de uma carreira nacional do magistério, todos os professores com muito boa formação, avaliados permanentemente, com dedicação exclusiva e, para isso, muito bem remunerados; 3) prédios escolares com a máxima qualidade e instalações culturais e esportivas; 4) escolas com os mais modernos equipamentos da pedagogia, que permitam saltar das tradicionais aulas teatrais para as aulas cinematográficas com recursos da teleinformática, adotando métodos que desenvolvam a criatividade; 5) todas as escolas em horário integral.
Raríssimas cidades são capazes de financiar a execução dessa estratégia. Ela requer processo de nacionalização da educação de base ao longo de alguns anos, com adesão voluntária de cidades que queiram substituir seus frágeis sistemas educacionais por um robusto sistema nacional.
O custo para ter essa “escola ideal” é de R$ 15 mil/ano por aluno. Valor que permitiria financiar todos os gastos e investimentos e pagar salário de R$ 15 mil ao professor por mês, em salas com 30 alunos. Esse salário faria do magistério uma profissão atraente, permitindo que o selecionado aceitasse ir para a cidade que lhe fosse determinada, com dedicação exclusiva à sua escola e submetido a avaliações periódicas. Num ritmo de 300 cidades por ano, o novo sistema chegaria a todo Brasil em 20 anos. Se o PIB crescesse a um ritmo médio de 2% ao ano, o sistema nacional custaria cerca de 7% do PIB, para atender 50 milhões de alunos.
Considerando que o número de alunos deverá ser menor e que as novas técnicas permitirão diminuir o custo por aluno, a dificuldade dessa estratégia é política: convencer os ricos de que a escola com qualidade apenas para seus filhos amarra o progresso do País e limita o bem-estar e o futuro de todos; e os pobres, de que seus filhos têm direito a uma escola que ofereça muito mais do que merenda e seja tão boa quanto as melhores do país. Convencer também os políticos de que terão de enfrentar eleitores mais conscientes; e mostrar aos sindicatos que os interesses dos professores devem ser associados aos interesses das crianças, da educação e do futuro do país.
Não será fácil atrair a população para a ideia de que as escolas brasileiras poderão ser tão boas quanto as de países com educação de qualidade. E que crianças pobres devem ter escolas com a mesma qualidade das dos ricos.
No final do século 19 tivemos dificuldade para convencer que era possível o Brasil ser um país industrial e para isso era preciso abolir a escravidão. Agora o desafio é convencer que sem escola com a máxima qualidade para todos não completaremos a Abolição, nem avançaremos para o progresso com eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ecológica no mundo global da civilização que caracteriza o século 21. Antes não tínhamos futuro com a escravidão, agora não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos. E que nenhum cérebro seja deixado para trás. Enquanto isso não for feito, precisamos pedir desculpas pelo atraso a que condenamos o Brasil.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
El País: O efeito das eleições na (re)organização das forças políticas e em 2022
A fragmentação atual da esquerda não tem paralelo na experiência política brasileira das últimas décadas, e isso pode resultar em posição minoritária do campo na próxima eleição
Débora Gershon e Leonardo Martins Barbosa, El País
Nas eleições de 2020, partidos da direita tradicional reafirmaram sua importância na política brasileira e apresentaram crescimento expressivo, não apenas nos pequenos municípios, mas também no grupo de cidades com mais de 200.000 eleitores. A compilação dos resultados revela três aspectos relevantes para 2022, que desde já merecem atenção, embora as eleições municipais difiram, em termos de lógica e organização, das nacionais: a) a direita tradicional mostrou-se bastante competitiva tanto no agregado, quanto nas maiores cidades; b) partidos do chamado Centrão aprofundaram sua interiorização, aproximando-se do MDB, líder inconteste nos municípios nas últimas décadas, e c) o campo da esquerda acumulou perdas no total de municípios, mas mostrou vitalidade naqueles com mais de 200.000 eleitores, onde obteve crescimento. O encerramento das eleições nas 57 cidades que disputarão o segundo turno não deve alterar de maneira significativa esse quadro. Além disso, o segundo turno não revela tanto quanto o primeiro as preferências do eleitor, já que nele as maiorias são construídas mais artificialmente em função dos chamados votos úteis. Analisar, portanto, os efeitos dessas mudanças já é tarefa útil e absolutamente necessária para o desenho de cenários futuros.
No campo da direita ou, mais amplamente, da centro-direita, DEM e PP foram os partidos que mais cresceram nesse pleito, considerados os cargos de prefeito e vereador. O crescimento do DEM foi de mais de 70%, enquanto o do PP de cerca de 40%. É o PP, no entanto, que reúne o maior número de prefeitos eleitos em primeiro turno, atrás apenas do MDB, partido de tradição municipalista há décadas, cuja performance atual não constitui ponto fora da curva. O desempenho do PP foi ainda melhor do que o do PSDB, em termos de prefeituras conquistadas.
O PSDB manteve bom desempenho geral e nos grandes municípios, mas com sinais de concentração eleitoral cada vez maior em São Paulo. MDB e PSDB, diga-se de passagem, partidos estruturantes da política brasileira até então, foram os dois que mais perderam prefeituras e votos nessas eleições. Partidos da esquerda também o fizeram, mas em menor escala.
Mais importante, o crescimento de DEM e PP expressa a derrota da direita mais radical. Os dois partidos, oriundos da antiga Arena, adaptaram-se bem ao pluralismo partidário e ao sistema político do presidencialismo de coalizão. Em contraste, PSL e Novo, os mais alinhados ao Governo de extrema direita, consideradas as votações nominais no Congresso, tiveram resultado pífio nas eleições. O PSL cresceu, a despeito da enorme queda de popularidade sofrida pela ruptura de Bolsonaro com a legenda, mas dificilmente se recuperará para as eleições de 2022. Em suma, a direita que teve bom desempenho nas eleições de 2020 não é a mesma que venceu o pleito de 2018.
O desempenho do DEM, particularmente, merece olhar mais cuidadoso. Nas décadas de 1980 e de 1990, sob a denominação de PFL, o partido se tornou um dos maiores do país, com base na sua estatura no interior, particularmente na região Nordeste. No entanto, desde o início dos governos Lula e do consequente fortalecimento do PT na região, sofreu reveses sistemáticos. Seus movimentos de reorganização partidária dos últimos anos e sua aproximação a importantes setores do empresariado urbano são explicações prováveis para o resultado eleitoral obtido. Soma-se a esses fatores a posição atual do partido de relativa independência com relação à figura de Bolsonaro (a despeito da convergência em pautas econômicas), e cresce a possibilidade de que o partido apresente um projeto presidencial alternativo ao da extrema direita em 2022. Com um crescimento significativo e homogêneo, o DEM cria condições, inclusive, de reorientar, de forma inédita, sua dinâmica de usual parceria com o PSDB, assumindo maior centralidade em eventual coligação para as próximas eleições. Até lá, no entanto, considerada também a proximidade da troca de comando na Câmara dos Deputados, pode-se esperar aumento significativo do custo do seu apoio ao Governo. O mesmo pode se reproduzir com o PP, uma vez que suas quase 700 prefeituras aumentam seu poder de barganha. Mas, se mantida a estratégia atual de Bolsonaro de aproximação com o Centrão, um cenário de maior protagonismo congressual do partido pode vir a ser favorável ao presidente.
Sobre o chamado Centrão, valem alguns comentários. Apesar de certa indefinição sobre partidos que compõem esse grupamento informal, caracterizado por vínculos ideológicos irrisórios (embora pautado por comportamento à direita do campo político), as oito legendas mais atuantes do grupo alcançaram resultados positivos. Além do benefício trazido pela própria falta de identidade e visibilidade política do grupo, tendo em vistas as características de eleições locais, é bastante provável que o fim das coligações em eleições proporcionais tenha sido decisivo para isso. A nova legislação cria incentivos para que os partidos lancem candidatos às prefeituras, estimulando, assim, o aumento de suas bancadas de vereadores, embora seja de se esperar, que, nos próximos anos, esse efeito não intencional da legislação dê lugar a fusão de legendas, a depender da capacidade competitiva das pequenos e do poder de atração das maiores.
Dos oito partidos do Centrão, além do já citado bom desempenho do PP, vale destacar também o PSD e o Republicanos. O PSD foi o segundo partido com maior número de candidaturas este ano, atrás apenas do MDB, e o terceiro com mais prefeitos eleitos no primeiro turno (650). De 2016 para 2020, o crescimento do partido foi pouco expressivo, mas de grande valia no processo de sua consolidação como nova força política nacional.
Por fim, resta observar a performance nas urnas dos partidos mais à esquerda, que, no cômputo geral, perderam menos do que a extrema direita, com destaque especialmente para aqueles de viés ideológico mais previsível e consistente no campo, a exemplo do PT e do PSOL. No geral, contudo, todos tiveram bons resultados em câmaras municipais mais do que em prefeituras. PDT, PCdoB e PSB, por exemplo, fizeram menos prefeitos do que em 2016, mas o PDT está na disputa pelo segundo turno em duas capitais (Fortaleza e Aracaju), o PSB em três (Recife, Rio Branco e Maceió), e o PCdoB em uma (Porto Alegre). O PSOL teve cerca de 6% a mais de votos na comparação com 2016, embora grande parte de sua votação em 2020 deva-se à candidatura de Guilherme Boulos. Em número de prefeituras, o partido cresceu, mas mantém-se em patamar comparativo muito baixo ―são 4 prefeitos eleitos em 2020, ainda que existam chances de eleição de mais dois (Belém e São Paulo). O crescimento foi suficiente para deslocar o PT em poucas, porém importantes cidades, como Florianópolis, Belém, e mesmo São Paulo, com a consolidação, em paralelo, de nomes de projeção nacional.
O PT, por sua vez, partido da esquerda que reúne maior número de cadeiras eletivas e de filiados e tem presença ainda muito expressiva em movimentos sociais tradicionais, acumulou mais perdas do que em 2016, que já havia representado uma queda enorme com relação à 2012. Apesar disso, é a legenda que disputa mais vagas no segundo turno, estando no páreo em duas capitais (Recife e Vitória), bem como em grandes colégios eleitorais como Diadema, Contagem, Caxias do Sul, São Gonçalo e Juiz de Fora, entre outros. Do ponto de vista do total de votos, houve pequeno crescimento nessas eleições, fato significativo diante do aumento da abstenção eleitoral, pois revela que as perdas não foram distribuídas de forma homogênea. De modo geral, o partido perdeu espaço nos pequenos municípios, mas manteve vitalidade em grandes cidades, nelas permanecendo como principal força da esquerda.
Dada a conjuntura política atual, e o fato de que a esquerda nunca foi campo majoritário no Brasil, nem mesmo durante os governos de Lula e Dilma, quando MDB ou PSDB exerciam a liderança em prefeituras Brasil afora, os resultados atingidos por algumas legendas foram profícuos, inclusive do ponto de vista da inclusão de minorias sociais que, cada vez mais, exercerão pressão importante sobre o sistema político brasileiro. É preciso fazer a ressalva, contudo, de que a fragmentação atual da esquerda não tem paralelo na experiência política brasileira das últimas décadas. Os resultados municipais, nesse sentido, podem vir a impulsionar esforços para correção de rumos e produção de candidaturas coligadas competitivas nas próximas eleições. Caso contrário, a fragmentação excessiva tende a resultar em posição minoritária do campo em 2022.
Em resumo, 2020 nos revela um cenário de menor polarização, em que cresce a direita mais moderada, em detrimento da extrema direita mais do que da esquerda, com menor adesão do eleitorado a discursos e projetos antipolítica e antissistema. Tal resultado gera desafios adicionais ao Governo federal e, particularmente, a Bolsonaro. Faltam dois anos para as eleições presidenciais e uma série de variáveis, de maior ou menor controle, podem interferir nesse cenário, a economia sendo a mais importante delas. As eleições municipais, entretanto, ajudam a formar o quadro em que os arranjos políticos se darão daqui para frente.
Débora Gershon é cientista política na Poliarco Inteligência Política. Doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós-doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), onde atuou como pesquisadora visitante. É também pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).
Leonardo Martins Barbosa é cientista político na Poliarco Inteligência Política. Doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ. É pesquisador do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON) e do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), tendo ampla experiência em análise de cenários políticos, com foco em comportamento partidário e arena legislativa.
Alon Feuerwerker: E o que vem depois da eleição?
O dado óbvio a olhar daqui por diante, definido o quadro municipal, serão as pesquisas de popularidade do presidente da República. Não há como imaginar a sucessão de 2022 sem esse eixo de organização do pensamento. E sem base orgânica, o chefe do governo depende disso mais do que o normal. A outra variável? Como os partidos resolverão o dilema entre a necessidade de fazer bancadas de deputados e a vontade de ter candidaturas à Presidência.
O sistema partidário brasileiro funciona de modo peculiar. Talvez seja caso único no mundo em que uma constelação de legendas, nenhuma com massa crítica para construir sua hegemonia, migra da órbita de um personagem político para outro, e sempre submetidas à força gravitacional do poder. E depois das eleições submetem o poder à força gravitacional delas quando se reúnem no Congresso Nacional.
No campo governista, dos partidos que concordam no essencial com a agenda do Palácio do Planalto, é razoável supor que se Jair Bolsonaro chegar a 2022 competitivo nas simulações eleitorais terá uma possibilidade bem razoável de atrair boa parte das agremiações que se deram bem nacionalmente nesta eleição municipal, também e principalmente pelo acesso privilegiado de seus parlamentares ao Orçamento Geral da União.
Aliás, mesmo que o presidente esteja enfraquecido, essas legendas poderão aliar-se a ele para garantir as posições na máquina durante o período eleitoral, e conforme o andar da carruagem cristianizá-lo na campanha. Não chegaria a ser novidade. Esse poder de barganha dos partidos anda meio relativizado desde que o horário eleitoral no rádio e tv não se mostra tão vital assim, mas continua sendo uma variável a considerar com seriedade.
Inclusive porque cada partido que você atrai é menos um para engrossar as fileiras da concorrência.
A principal luta de Jair Bolsonaro nos ensaios para 2022, sabe-se, deve ser contra os que o apoiaram em 2018 mas preferem uma alternativa própria. E os segundos turnos municipais mostram que essa facção tem uma vantagem na disputa da pole-position antibolsonarista. Tem mais facilidade para receber o voto maciço da esquerda do que quando precisa retribuir.
Para a esquerda, a equação apresenta mais variáveis em aberto. Ao contrário da miríade das legendas da direita, ela precisa se preocupar seriamente com o atingimento da cláusula de desempenho na eleição para a Câmara dos Deputados. E, também ao contrário do campo oposto, chegará a 2022 sem o controle da máquina federal e desidratada de máquinas na maior parte do país. Qual será então a melhor fórmula para ela?
Uma possibilidade é buscar desde logo a convergência para lançar candidaturas majoritárias competitivas e ancorar os diversos partidos nesses projetos mais robustos. Ou vai ser o cada um por si, como foi na maioria das disputas municipais? É uma dúvida cruel. E os números finais deste novembro eleitoral precisarão ser analisados com lupa por quem, daqui a dois anos, terá como principal desafio não cair para a Série B da política.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja edição 2.715 de 2 de dezembro de 2020
Ascânio Seleme: A hora de Boulos
O perigo para ele é ser tutelado pelo PT
Uma grande novidade pode ocupar o cenário político nacional no próximo domingo. Guilherme Boulos, que há dois meses era apenas um dos diversos postulantes ao principal cargo em disputa nas eleições municipais deste ano, transformou-se na sensação da campanha e, em três dias, pode perfeitamente ser eleito prefeito de São Paulo. Votos para isso ele parece ter reunido, de acordo com as pesquisas. O importante a discutir agora é se esta é a melhor hora para Boulos.
A simples presença do candidato do PSOL nesta altura da campanha já areja o ambiente bastante intoxicado desde a eleição do presidente de extrema-direita. Embora o centro e a centro-direita tenham saído dominantes do primeiro turno, diminuindo o tamanho e o espaço de Jair Bolsonaro, a principal joia da coroa está em disputa entre um candidato de centro-esquerda e um de esquerda. Não há como negar, a prefeitura de São Paulo é a mais importante do país e tem orçamento e receita maiores que pelo menos uma dúzia de estados brasileiros.
Politicamente, o prefeito de São Paulo é mais visível e mais preponderante do que qualquer governador, mesmo os de Rio e Minas. Ou alguém acha que Cláudio Castro e Romeu Zema têm um futuro tão amplo quanto Bruno Covas? Tomem a trajetória de João Doria como exemplo. Por isso, o caminho que se abre para Boulos é enorme. Se vencer a eleição, ganha uma projeção que nem os maiores líderes de seu partido jamais conseguiram alcançar.
O problema é como administrar a vitória. Como governar a maior cidade do país mantendo relevância e sem queimar capital político. A primeira questão para Guilherme Boulos, no caso de ser eleito, é a montagem do governo. Quem ele trará para a administração municipal para encaminhar as propostas que apresentou ao eleitor durante a campanha. Como seu partido é pequeno, terá de buscar quadros fora do PSOL, principalmente no PT. E essa pode ser a primeira armadilha que vai enfrentar.
O perigo para Boulos é ser tutelado pelo PT, ou pelo menos ser visto de fora dessa maneira. O risco de ser considerado um braço político do partido de Lula e do próprio ex-presidente é enorme. Não há como governar sozinho, claro, não se toca uma cidade como São Paulo sem um imenso anteparo político. E daí pode nascer a percepção de que Boulos é apenas um novo líder do PT, desidratando o PSOL, que nasceu justamente porque um grupo de petistas discordou dos métodos do partido e se afastou da onda de escândalos daquela era.
A crise econômica que o mundo atravessa em razão do coronavírus é outro problema que pode fazer fracassar um hipotético governo Boulos. Se o programa de governo do candidato exige gastos muito acima do que o município pode arcar em tempos normais, imagine nesta época de vacas magras. E aí cresce a possibilidade de o novo prefeito acabar traindo, mesmo que involuntariamente, seus compromissos de campanha, suas promessas eleitorais, decepcionando os eleitores e enfraquecendo seu partido.
Talvez, e você pode discordar inteiramente, seja melhor para Boulos perder esta eleição. Da mesma forma que foi bom para Lula ter perdido para Fernando Collor em 1989, ele próprio já reconheceu isso. Se sair da eleição com 45% dos votos válidos, como mostrou a última pesquisa Datafolha, se cacifará para se tornar um grande nome em 2022. Como sua curva é ascendente, pode encostar ainda mais em Covas, fortalecendo e amadurecendo a si próprio e ao PSOL, como Lula e o PT também amadureceram.
Mas a alternativa da derrota também guarda um problema. Será que Lula vai permitir que uma luz brilhe mais forte que a sua ou do seu partido? Com todo o poder que tem sobre o PT, Lula não evitou a candidatura de Jilmar Tatto, mesmo quando Boulos já era a alternativa viável. Por quê? Porque não quis. Alegar democracia interna é bobagem. Em 2018, rifou Marília Arraes em Pernambuco, atropelando o diretório regional. Como não dá para confiar em Lula, quem sabe seja esta mesmo a melhor hora para Guilherme Boulos, apesar de todos os riscos.
Maria Cristina Fernandes: A contida expressão eleitoral do antirracismo
A intolerância, como o vírus, ainda paira no ar
As primeiras pesquisas depois da morte de João Alberto Freitas no supermercado Carrefour em Porto Alegre não confirmam a contaminação da disputa municipal pela brutalidade do episódio.
O precedente é o da invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), por tropas do Exército e da Polícia Militar. O episódio produziu três mortos e dezenas de feridos. Seis dias depois, elegeu-se uma bancada de prefeitos sindicalistas - do ex-metalúrgico de Volta Redonda, Juarez Antunes, a Luiza Erundina (São Paulo), passando por Olívio Dutra (Porto Alegre), Chico Ferramenta (Ipatinga) e Jacó Bittar (Campinas).
Desta vez, são escassos os sinais de que o fenômeno se repita. O primeiro Ibope do segundo turno em Porto Alegre, que colheu entrevistas ao longo do fim de semana depois do assassinato, mostrou que o líder, Sebastião Melo (MDB), distanciou-se ainda mais da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela d’Ávila.
Melo terminou o primeiro turno dois pontos percentuais à frente de Manuela, que havia liderado durante toda a campanha. Agora a distância aumentou para sete. O movimento sugere não apenas a continuidade da curva com a qual Melo terminou o primeiro turno, como a tradicional migração de votos do eleitorado de candidatos mais afinados ideologicamente com os finalistas. O crescimento de Manuela pouco supera a soma dos votos de Juliana Brizola (PDT) e Fernanda Melchionna (Psol).
Da mesma maneira, Melo cresceu com a adesão dos eleitores de todos os demais candidatos, do centro à direita, desde o atual prefeito Nelson Marchezan (PSDB) até mesmo o candidato do PSD, Valter Nagelstein, cuja declaração sobre a nova composição da Câmara (“muitos deles jovens, negros, sem nenhuma tradição política e com pouquíssima qualificação”) não foi rechaçada por Melo.
Foi a primeira vez que Porto Alegre elegeu vereadores negros (dois do Psol, dois do PCdoB e um do PT). Os dois que atualmente exercem mandato foram eleitos como suplentes. O Ibope, no entanto, indica que os dividendos eleitorais do antirracismo não invadiram o segundo turno.
Levantamento da Bites indica que nos cinco dias que se seguiram à morte de João Alberto Freitas, os 36 candidatos que disputam o segundo turno em capitais publicaram nas redes (Twitter, Facebook e Instagram) 5.213 “posts”. Desses, apenas 129 mencionaram racismo, Carrefour, João Alberto ou “vidas negras”. Quem mais tocou no assunto foi Manuela, com 45 “posts”, seguida de Guilherme Boulos, em São Paulo, com 30. Sebastião Melo publicou quatro e Bruno Covas, sete.
Ambos os finalistas de Porto Alegre mencionaram o episódio na sua propaganda eleitoral gratuita. Manuela chegou a ir para a passeata do dia da Consciência Negra, mas deixou o evento antes do confronto com policiais. Três dias depois, nova manifestação, em frente a uma outra unidade do Carrefour, também foi reprimida pela polícia. A candidata não estava lá, mas entre os que portavam adesivos nas camisetas, só se viam os de Manuela.
Para os jovens que lá estavam, como o vereador eleito pelo Psol, Matheus Gomes, que nem era nascido no massacre de Volta Redonda, a referência são as manifestações que pipocaram nos EUA e no mundo depois da morte do vigilante negro George Floyd em Minneapolis.
Se Manuela e Boulos foram os candidatos que mais indignação demonstraram, ambos foram cautelosos em demarcar distância dos conflitos com a polícia. Dos 97 “posts” sobre os protestos na unidade do Carrefour nos Jardins, bairro da zona sul de São Paulo, nenhum deles, na métrica da Bites, foi de autoria do candidato do Psol. O racismo, apesar da indignação nacional, não moveu o debate eleitoral. O total de “posts” dos 36 candidatos nas capitais nos cinco dias que se seguiram à morte geraram mais de 11 milhões de interações, sendo que apenas 2,5% delas trataram de racismo.
Marqueteiro da campanha de Boulos e daquela que elegeu Erundina em 1988, Chico Malfitani não usou o episódio 32 anos atrás nem pretende fazê-lo hoje. A única menção feita três décadas atrás foi nos segundos finais do último dia da propaganda eleitoral. O programa foi embalado por um tom de comemoração pela trajetória de Erundina na campanha. Ao final, ela dizia que a alegria nem sempre é completa e a dela havia sido abalada pela morte dos operários.
Se não explorou naquele momento em que ainda se tinha ódio e nojo da ditadura tampouco tem motivos para explorar hoje. Se, por um lado, Bruno Covas não é Paulo Maluf, o país hoje, diz, é mais reacionário: “O Brasil de 32 anos atrás estava ansioso por democracia. Agora tinha muita gente olhando o linchamento sem fazer nada”.
O marqueteiro de Boulos não atribui sua alavancagem entre homens negros com renda de até dois salários mínimos ao episódio, mas ao fato de o candidato hoje encarnar esse sentimento difuso de revolta que, dois anos atrás, beneficiou Jair Bolsonaro.
A canalização dessa revolta é pesada e medida porque o mote da campanha desde o início, na opinião de outra veterana em eleições, a diretora do Ibope, Márcia Cavallari, é a segurança. Aquela que indique ser possível sair da hecatombe que se abateu sobre o eleitor com a pandemia.
Em novembro de 2018, com a eleição de Bolsonaro ainda fresquinha, Márcia colocou uma pesquisa na rua para tentar identificar o perfil do eleitor. A fatia daqueles que se identificavam com a direita superava a soma dos eleitores de centro e de esquerda. Agora esta soma ultrapassa, com folga, os que se dizem de direita. Não porque a esquerda tenha crescido, mas graças ao centro, que se encorpou.
O racismo não é de esquerda, de centro ou de direita. É odiento. Mas este rechaço parece ter uma contida tradução eleitoral porque não é contra um candidato ou outro que se expressa, nem mesmo contra um presidente que o ignora, mas contra a intolerância que ainda paira no ar, como o vírus.
São tão grandes as incertezas da conjuntura que todos parecem movidos por um pacto de sobrevivência, guiado pela moderação. Há exceções, como a campanha do prefeito-bispo, no Rio, ou a lamentável disputa que sacode as tumbas ancestrais dos primos-candidatos no Recife. A batalha contra os fantasmas despertados em 2018 ainda demora.
Eliane Brum: Precisamos falar sobre o PSDB
Como o partido abandonou a social-democracia, migrou para a direita e deixou amplas digitais na destruição do processo democrático
Um dos principais riscos da polarização é justamente embaralhar o que é continuidade e o que é ruptura. Neste momento, em que o PSDB, hoje um partido de direita, tenta se vender como o “centro” que um dia foi, é fundamental recuperar a perspectiva do processo histórico. A falta de responsabilização do PSDB como um dos principais agentes de destruição da democracia é um dos enigmas da atual paisagem política brasileira. Ao embarcar no discurso do antipetismo, o PSDB colaborou fortemente para colocar na conta exclusiva do PT todo o desencanto com a política e os políticos, ao mesmo tempo em que se aproximou de tudo o que Jair Bolsonaro representa e defende. O partido deixou amplamente suas digitais na corrosão da democracia cujas consequências são Jair Bolsonaro. O PSDB não é apenas mais um que tem seu DNA na mais recente escalada autoritária do Brasil. O PSDB está em sua gênese.
Ao longo de suas primeiras fases, o Partido da Social Democracia Brasileira construiu uma fama de ficar em cima do muro, manter-se nem lá nem cá, nem à esquerda, nem à direita. Durante muitos anos foi o mais próximo de um partido de centro, ainda que mais para a esquerda do que para a direita, já que alguns de seus fundadores e principais expoentes, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, tinham sido exilados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Com o tempo, ser “tucano”, como eram chamados os pessedebistas, por conta do pássaro que simboliza o partido, passou a significar não tomar posição clara. A expressão valia para a política, mas ampliou-se e passou a valer, como gíria, também para qualquer pessoa que ficava no sim, só que não.
Os tucanos, majoritariamente homens brancos, eram vistos como gente culta, com diploma universitário e pós-graduação, de gestos educados e boas maneiras, mais afinados com os salões europeus e sua arrogância blasé do que com o exibicionismo explícito e movido por fortunas familiares dos Estados Unidos. Também se vendiam como modernos, urbanos e de mente arejada, o que os mantinha longe do coronelismo truculento da política brasileira, marcas de clãs como Sarney, Magalhães e Barbalho, que preferiam liderar partidos assumidamente de direita ou fincar seus bigodes no amplo guarda-chuva do PMDB, hoje MDB.
O quanto de verdade continha essa imagem de senso comum é algo a se discutir, mas o mais importante é perceber que hoje essa imagem não tem nenhuma correspondência na realidade. Dela ainda resiste, como a rainha da Inglaterra num rodeio de Barretos, a figura de Fernando Henrique Cardoso, às vezes chamado a dar um lustro na imagem externa do partido, mas que já pouca influência tem na vida cotidiana do PSDB.
O próprio Fernando Henrique Cardoso, duas vezes presidente do Brasil (1995 a 2002), ainda lida com a persistente suspeita de que, em 1997, o partido comprou os votos para aprovar no Congresso a emenda constitucional que permitiria —como permitiu— a sua reeleição. Os indícios de que houve compra de votos eram —e seguem sendo— fortíssimos, mas diferentes esferas do judiciário e do legislativo impediram o prosseguimento das investigações e engavetaram as denúncias. Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República, passou para a história como “engavetador-geral da República”. A mancha sobre a figura de FHC permanece até hoje e o assunto, como aqueles fantasmas com pendências a resolver no mundo dos vivos, volta de tempos em tempos, como agora. Os fatos são como os corpos sepultados em covas clandestinas: teimam em emergir por mais camadas de terra e silêncio que se empilhe sobre eles.
Fernando Henrique Cardoso fez uma transmissão bonita da faixa presidencial a Lula, em 2003. Ele estava visivelmente emocionado ao passar o bastão para o primeiro presidente de classe operária eleito na história do Brasil, como um seguimento natural e desejável ao seu próprio Governo. Lula foi um tanto ingrato neste sentido, incapaz de reconhecer o que havia de positivo no Governo do antecessor. E isso mesmo tendo continuado a política econômica de FHC tal e qual, o que causou estupor na ala mais à esquerda do partido.
No Governo durante mais de 13 anos, o PT se tornou mais parecido com um partido de centro. Em alguns campos, porém, como na política de imposição de grandes hidrelétricas na Amazônia e na aproximação crescente com o agronegócio, que chegou instalar a ruralista Kátia Abreu no Ministério da Agricultura no segundo mandato de Dilma Rousseff e um ex-diretor de manicômio ligado a torturas de pacientes na coordenação da saúde mental, foi francamente conservador. Parte da esquerda do PT deixaria o partido nos anos que se seguiram à primeira posse de Lula para fundar o PSOL, em 2004 —ou para fundar seu próprio partido, como fez Marina Silva ao deixar o Governo e depois o PT, durante o segundo mandato de Lula, por não compactuar com a política ambiental e para a Amazônia, cada vez mais influenciada pelo desenvolvimentismo predatório de Dilma Rousseff.
Não estou aqui a resgatar os fatos para fazer textão, mas porque é importante revisitar o processo e onde cada personagem nele se situa para compreender o que hoje está em jogo. Neste momento, o PSDB de Bruno Covas, assustado com a possibilidade de perder a Prefeitura de São Paulo, essencial para os planos de João Doria para disputar a eleição presidencial de 2022, tenta carimbar Guilherme Boulos, do PSOL como “radical”, o mesmo truque que era usado contra Lula quando o então sindicalista despontou na política partidária nos anos 1980. Naquele momento, o Brasil iniciava a redemocratização do país, depois de 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985), período em que 8.000 indígenas e centenas de opositores foram mortos por agentes de Estado que nunca foram responsabilizados e período também em que os atuais generais no entorno de Bolsonaro fizeram sua formação.
Resgato aqui um trecho do meu último livro —Brasil construtor de ruínas, um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago), para que não me acusem de plagiar a mim mesma. O nome do capítulo é sugestivo: “O tucano arrasta as penas na sarjeta”. Busco mostrar o papel que José Serra pode ter desempenhado nos acontecimentos que começaram a desenhar o abismo do Brasil. Um dos fundadores do PSDB, Serra foi ministro do Planejamento e depois da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, foi também prefeito e governador de São Paulo e ainda ministro de Relações Exteriores de Michel Temer. Hoje é mais um senador da República às voltas com denúncias de corrupção movidas pela Operação Lava Jato.
1) O PSDB, José Serra e o aborto como moeda eleitoral: o momento em que o vale-tudo faz sua entrada triunfal nas campanhas políticas
Há uma data marcando o momento em que um limite que jamais poderia ter sido ultrapassado foi rompido na política brasileira. O ato foi precursor das quebras que viriam depois. Aconteceu na campanha de 2010. Na ocasião, os caminhos de Eduardo Cunha se cruzaram com os de Dilma Rousseff e de seu adversário José Serra. O PSDB começava o declínio que o levaria a alcançar os dias atuais com o rosto de João Doria.
Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura civil-militar, a maioria dos candidatos costumava evitar abordar o tema do aborto. Nem enfrentar a questão, para evitar perder eleitores, nem usá-la como moeda eleitoral para ganhar apoio entre os mais conservadores. Se não havia coragem para enfrentar o tema a partir de um debate responsável, também existia pudor para não baixar o nível, fazendo proselitismo com uma das causas de morte de mulheres jovens no Brasil, a maioria delas negras e pobres. Fernando Collor de Mello ensaiou romper essa fronteira, ao usar a filha de Lula com Miriam Cordeiro para atacar seu principal adversário, em 1989. Mas uma espécie de acordo tácito foi mantido nas eleições que se seguiram.
Em 2010, ao constatar o potencial eleitoral dos evangélicos, em especial dos neopentecostais, que seguem crescendo e podem superar o número de fiéis católicos nas próximas décadas, políticos e marqueteiros perceberam que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores com escrúpulos de se tornarem crentes de última hora. Ninguém fez isso com maior afinco do que José Serra, na campanha eleitoral em que disputou a presidência com Dilma Rousseff.
No final do primeiro turno, a Internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos, e também parte dos bispos e dos padres católicos exortou os fiéis a desistirem de votar nela. Circularam suspeitas de que o ataque teria partido da campanha de Serra, mas a autoria não chegou a ser provada. O que se pode afirmar é que Serra se empenhou em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante.
Dilma Rousseff, por sua vez, correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nesta carta, Dilma comprometeu-se, caso vencesse a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava suas trajetórias. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos extremistas do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.
A campanha de 2010 marcou o momento mais baixo desde a redemocratização do país. Isso significa que foi o momento mais baixo em 21 anos de eleições presidenciais. E inaugurou o primeiro de uma série de momentos cada vez mais baixos que se seguiriam a ele, culminando com o discurso de ataque aos negros e aos indígenas, às mulheres e aos homossexuais e transexuais de Jair Bolsonaro em 2018.
O que se passou em 2010 escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas para trabalhar o respeito às diferenças e prevenir a violência contra homossexuais.
O kit Escola Sem Homofobia foi batizado pejorativamente de “kit gay” por pastores e políticos homofóbicos —ou apenas oportunistas— e lembrado em todas as campanhas eleitorais que se seguiram, inclusive a que deu a vitória ao declaradamente homofóbico Jair Bolsonaro, em 2018. Também vale a pena lembrar da retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.
A campanha de 2010 mostrou que rebaixar o tema do aborto à moeda eleitoral atingia dois propósitos: 1) fazer com que o adversário, liberal nos costumes, o que caracteriza a esquerda, de modo geral, e a direita genuinamente adepta do liberalismo, perdesse uma grande quantidade de votos entre as pessoas religiosas, em especial evangélicos neopentecostais e católicos carismáticos; 2) pressionar candidatos que, caso eleitos, poderiam levar adiante o debate do aborto como o problema de saúde pública que efetivamente é, assim como outras pautas relativas à sexualidade e à diversidade, de forma a se comprometerem a deixar tudo como está ou mesmo a retroceder.
A campanha de 2010 provou, principalmente, que o aborto e outros dos chamados “temas morais” são um eficaz instrumento de barganha política, quando não de chantagem. Desde então, parlamentares se agarraram a essa pauta, deram declarações públicas e lançaram projetos de lei marcados por um retrocesso que não parecia mais possível. Muitos desses oportunistas fizeram nome e ganharam importância na guerra moral assinalada pela imoralidade das práticas e pela desonestidade dos argumentos dos religiosos de ocasião.
O rebaixamento do nível da campanha de 2010 rompeu uma barreira ética no debate público do Brasil —e esse rombo nunca mais parou de ser escancarado. É necessário jamais esquecer que essa fronteira não foi derrubada nem pela parcela mais fisiológica do PMDB, hoje MDB, nem pelos líderes evangélicos mais inescrupulosos. Ela foi ultrapassada por José Serra, um representante do PSDB histórico, de raiz.
Este não é um detalhe. E sim um fato crucial para compreender o papel que o PSDB desempenhou para os rumos do Brasil. O modo de operação do MDB é muito mais pesquisado, esmiuçado e conhecido, tanto por intelectuais que se dedicaram a ele, caso da tese do “pemedebismo”, do filósofo Marcos Nobre, quanto pelo público que acompanha a política de Brasília. No campo da Justiça, a Operação Lava Jato mostrou muito mais claramente como o MDB e o PT atuavam do que o PSDB.
O PSDB desempenhou um papel determinante para a ampla e múltipla crise vivida hoje pelo Brasil —e esse papel precisa ser iluminado. Não foi por acaso, nem sem a responsabilidade dos tucanos mais emplumados, que o rosto do PSDB deixou de ser o de FHC para se tornar o de Doria, com uma transição pela face de Geraldo Alckmin.
É também em 2010 que Eduardo Cunha enxerga uma brecha para ampliar seu poder de influência. Com o aval de Lula, esse personagem nebuloso vai peregrinar por templos evangélicos para afirmar que Dilma Rousseff é contra o aborto. É este novo “aliado” que lidera o contra-ataque e pede votos para Dilma nos redutos do evangelismo neopentecostal. Por pragmatismo eleitoral, ao se ver atacada, Dilma capitulou diante de seus princípios. Naquele momento, nem ela nem ninguém poderia saber, mas se iniciava ali, mesmo antes de Dilma se eleger para o primeiro mandato, sua triste marcha rumo ao impeachment.
Nos anos seguintes, Eduardo Cunha se tornaria o rei do “centrão” —grupo de parlamentares ligados menos à direita ou a qualquer ideologia e bem mais a seus interesses pessoais e privados, que tem como característica o apoio a qualquer Governo, em troca de cargos e favores. Em resumo: se elegem para se colocarem à venda. Eduardo Cunha uniria também as bancadas conservadoras da Câmara dos Deputados para barrar, na prática, o aborto legal. A partir de 2015, já como presidente da Câmara, tornou-se o principal ator do impeachment de Dilma Rousseff, depois de concluir que o PT não impediria a investigação de seus atos de corrupção. O impeachment foi movido por muitas razões e também paixões, entre elas a vingança do vilão.
2) O PSDB, Aécio Neves e o pré-bolsonarismo ou pré-trumpismo: a estratégia nojenta de duvidar do processo eleitoral
A cena produzida em 2010 marca a derrocada ética do PSDB, assim como assinala o ponto aparentemente sem retorno em que o partido se desliga do que existia de progressista em sua história. O momento em que o corpo das mulheres virou moeda eleitoral no Brasil tem seu impacto na história recente minimizado, até porque a maioria dos analistas é composta por homens.
Tucanos-pena-longa se omitiram ao testemunhar José Serra arrastar as asas —as suas e as do partido —nos esgotos, em 2010. E se omitiram mais uma vez quando outro membro do PSDB histórico, Aécio Neves, desferiu o ataque mais grave à democracia desde o fim da ditadura civil-militar. Aqueles brasileiros que hoje torcem a boca de indignação, ao acompanhar o estrago que Donald Trump tem feito na até então aparentemente sólida democracia dos Estados Unidos, deve olhar com mais atenção para o seu próprio quintal.
Aécio Neves, neto do ícone Tancredo Neves, teve a irresponsabilidade criminosa de duvidar do resultado eleitoral, sem uma única prova, abrindo espaço para toda a corrosão da democracia que veio depois. Quando Aécio Neves perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff, ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis e eficientes sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia. E negá-la, como hoje faz Donald Trump, para assombro do mundo, e fez Aécio Neves, em 2014, é um ataque inaceitável ao voto de todos os eleitores.
Aécio iniciava ali uma nova crise, e isso já num cenário grave para o país, marcado por dificuldades econômicas crescentes e pela perda acelerada do apoio à presidenta reeleita. Naquele ato, abriu um precedente mais do que perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio afirmando que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para a história não só pelos seus crimes de corrupção, mas por esse gesto contra o país. Aécio Neves e José Serra devem ser lembrados como políticos que praticaram gestos determinantes para a destruição da democracia brasileira.
Quatro anos depois, em 2018, mais uma eleição. Durante a campanha, de dentro do hospital, onde se recuperava de um atentado a faca, Jair Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que poderia não aceitar o resultado do pleito, em caso de derrota. Seu vice, o general Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. Bolsonaro e os generais anunciavam ali que não aceitariam a derrota. A democracia, pelo visto, só valia se o resultado fosse positivo. O que planejavam não foi usado, já que Bolsonaro venceu a eleição de 2018 pelo voto. E, como venceu, suas suspeitas sobre as urnas eletrônicas desapareceram de imediato.
Nas recentes eleições municipais de 15 de novembro, perfis bolsonaristas nas redes sociais atuaram fortemente para lançar suspeita sobre o processo de apuração eleitoral, já sinalizando o que planejam para 2022. Bolsonaro, porém, não inventou esse truque absolutamente repugnante. No Brasil, o responsável atende pelo nome de Aécio Neves —e, ainda assim, o playboy de Minas conseguiu se eleger deputado federal em 2018, apesar de toda a ficha corrida, da qual faz parte a literalidade de uma mala cheia de dinheiro da corrupção.
3) O PSDB acelera rumo ao botox: tardia autocrítica de Tasso Jereissati, nenhum efeito concreto sobre o partido engolido por João Doria
O PSDB desempenhou um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff e participou do Governo de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso, como logo descobririam.
Em setembro de 2018, um dos tucanos de plumagem grossa, Tasso Jereissati, afirmou, em entrevista ao jornalista Pedro Venceslau, no jornal O Estado de S. Paulo: “O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte [à eleição]. Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no Governo Temer. Foi a gota-d’água, junto com os problemas do Aécio. Fomos engolidos pela tentação do poder”.
Autocrítica importante, ainda que tardia. E além de tardia, sem efeito, porque o PSDB apenas acentuou sua guinada às piores práticas com João Doria. Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Serra quanto Aécio e o PSDB são hoje muito menores do que no passado, em todos os sentidos.
Pior do que não ter ressonância, porém, é perder o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa. Que coisa é essa, o presente já está mostrando. O PSDB atual tem o rosto, o estilo e a estética de Doria, um milionário exibicionista, esteticamente muito mais parecido com Trump do que com Bolsonaro, mas sem nenhum ponto de contato com Joe Biden, o moderado recém-eleito para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo. É fácil imaginar como a face, o estilo e a estética devem horrorizar os tucanos ainda “finos” que sobrevivem como decoração nas prateleiras empoeiradas da história do partido. Mas se calaram demais diante de tantas atrocidades ao longo dos anos e hoje só lhes resta engolir sem cuspir.
Não se pode esquecer de Geraldo Alckmin, o padrinho traído de Doria no partido, que ao governar São Paulo mostrou que era tudo menos picolé de chuchu. É difícil trabalhar com a hipótese de “e se”, mas também faz sentido imaginar o que teriam sido os protestos de 2013, que mudaram o Brasil, não fosse Alckmin ter despachado sua Polícia Militar para bater em manifestantes e jornalistas, expulsá-los das ruas com gás lacrimogênio e spray de pimenta, num nível de violência que revoltou até mesmo a classe média, sempre tão conservadora.
Alckmin e uma das mais assassinas polícias do mundo —que também morre muito, é preciso dizer— foram protagonistas às avessas dos protestos. Mesmo assim, Alckmin não aprendeu. Em 2015 colocou a mesma truculenta PM para bater em crianças e adolescentes que protestavam contra uma reforma imposta à comunidade escolar sem suficiente consulta e debate, alunos de escolas públicas apanhando como se o país vivesse numa ditadura e como se manifestações não estivessem contempladas na Constituição. João Doria, o afilhado de Alckmin, se elegeu prefeito em 2016 fazendo discurso contra a política e os políticos e autoproclamando-se “gestor”, em mais um ataque à democracia.
Em 2018, Doria deixou sem pena a Prefeitura de São Paulo, depois de uma coleção de maldades como demolir um prédio do que chamam “Cracolândia”, ferindo pelo menos três moradores. João Doria elegeu-se governador literalmente colado a Jair Bolsonaro, no slogan “BolsoDoria”. Agora, de olho na disputa pela eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo descolou-se do atual presidente e desde então busca se apresentar, e também o partido, como o último reduto da moderação. Algo como “Doria, o pacificador”.
4) Bruno Covas e o vice-problemão: a prefeitura foi deixada para os vices nos últimos dois mandatos do PSDB
Para distanciar-se de Bolsonaro e da extrema direita, o PSDB precisa mostrar que ainda guarda na alma uma lembrança carinhosa do tempo em que era centro político. Neste sentido, apostar na eleição de Bruno Covas para a prefeitura de São Paulo foi uma jogada esperta. Covas tem o sobrenome certo, na medida em que é neto de Mário Covas, ex-governador de São Paulo e fundador do PSDB, portanto herdeiro de uma espécie de aristocracia do partido, hoje tomado por novos ricos com a cara cheia de botox. Se há várias críticas a se fazer a Bruno Covas no comando de São Paulo, é preciso reconhecer que ele está ainda longe de poder ser equiparado ao trio Doria-Aécio-Serra.
Espertamente, Bruno Covas tentou se afastar de Doria e de Bolsonaro para chegar ao segundo turno, mas a realidade acaba sempre se impondo. Além de outros partidos e figuras de direita, Covas tem hoje o apoio formal de Celso Russomanno (Republicanos), candidato derrotado no primeiro turno, declaradamente apoiado por Bolsonaro. O maior complicador, porém, atende pelo nome de Ricardo Nunes (MDB), seu candidato a vice. Ricardo Nunes foi imposto a Bruno Covas por João Doria, em sua articulação para que o MDB apoie o seu nome para a eleição presidencial de 2022. Nunes é um sapo de um tamanho difícil de passar na garganta para alguém que se anuncia como “centro” e como “moderado” e como “responsável”. Covas o defende e até afirma que Ricardo Nunes foi escolhido por ele mesmo, mas o sapo só aumenta de tamanho.
Em 2011, o vice da chapa de Covas foi acusado pela mulher de violência doméstica e um mês mais tarde ele mesmo acusou-a de lesão corporal. Hoje eles vivem juntos. Vereador influente na zona sul de São Paulo, Ricardo Nunes é alvo de um inquérito policial que investiga corrupção nas relações de políticos com entidades gestoras de creches conveniadas, caso conhecido como a “máfia das creches”. Na Câmara de vereadores de São Paulo atua contra os direitos das mulheres e dos homossexuais e transgêneros e apoia o ultraconservador projeto Escola Sem Partido, que busca criminalizar professores, dinamitar a educação sexual e reescrever a história do país.
Seria possível alegar que um vice influi pouco nos rumos do Governo, mas, no Brasil, apenas dois presidentes não foram substituídos pelo vice desde a redemocratização do país. Em São Paulo, dois vices viraram prefeitos porque o titular, do PSDB, resolveu concorrer a um cargo de mais poder. O próprio Bruno Covas era vice de João Doria, que deixou a prefeitura para concorrer ao cargo de governador, o que até hoje é pouco perdoado por seus eleitores. Antes dele, em 2006, foi a vez de José Serra deixar a prefeitura para concorrer ao Governo do Estado, e então assumiu um quase desconhecido Gilberto Kassab. Hoje, Kassab é um dos principais líderes dessa praga política que atende pelo nome de “centrão”, mas que é muito mais à direita do que próxima a qualquer ideia de centro ideológico.
Vale a pena observar que tanto Serra quanto Doria assinaram compromissos de que jamais fariam o que efetivamente fizeram. Serra assinou um documento afirmando que cumpriria o mandato até o fim. Mais tarde, ao ser cobrado por trair a própria assinatura, disse que era só um “papelzinho”. E Doria, durante a campanha, também assinou um documento a pedido do portal Catraca Livre: “Eu, João Doria, comprometo-me a cumprir integralmente meu mandato nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 caso seja eleito prefeito de São Paulo em 2016”. Bem, o que aconteceu todos sabem.
Diante do histórico do PSDB na prefeitura de São Paulo, faz bastante sentido o eleitor paulistano se preocupar que o prefeito acabe se tornando Ricardo Nunes. Com a biografia embrulhada e sob investigação, Nunes foi orientado —ou talvez proibido— de participar de debates com a vice da chapa opositora, Luiza Erundina. Uma das mais experientes políticas brasileiras, ex-prefeita de São Paulo, atual deputada federal, Erundina tem uma biografia de absoluta coerência, uma história pessoal fascinante e, para aumentar os pesadelos do PSDB, é uma debatedora afiada. A campanha para o segundo turno já começou com uma intensa campanha nas redes, com o título de “Exigimos o debate dos vices”, mas Ricardo Nunes e o PSDB deram uma de Jair Bolsonaro e fugiram da raia pelos fundos, o que também diz bastante a um eleitor minimamente atento.
Desde que Guilherme Boulos e Luiza Erundina chegaram ao segundo turno, o PSDB joga sujo, apostando no discurso sacana da suposta “radicalidade” de Guilherme Boulos. Considerar “radical” a luta por moradia, no sentido pejorativo, e buscar criminalizar movimentos sociais são gestos muito mais ligados à extrema direita truculenta de Bolsonaro do que a qualquer aceno de “moderação”. O antipetismo quase patológico apresenta o PT como o principal responsável pela crise múltipla vivida pelo Brasil nos últimos anos. Sem tirar a responsabilidade do PT, que é grande, o que hoje vive o Brasil está longe de ter um único responsável e muito menos exime a direita que se rearranja durante toda a história republicana para seguir no poder e não perder privilégios de raça e de classe. As ruínas construídas pelo Brasil ao longo dos séculos são um bem-sucedido trabalho de longo prazo das elites conservadoras.
5) Uma eleição municipal que é nacional: o que está em jogo no voto de São Paulo diz respeito ao futuro de todo o Brasil
O antipetismo dos últimos anos permitiu que o PSDB fosse menos cobrado pelos seus ataques à democracia. Por isso é urgente refletir sobre o papel do PSDB no momento em que está em curso mais um rearranjo da direita que apoiou Bolsonaro e hoje se descola quase vergonhosamente dele para disputar 2022 se vendendo como “pacificadora” e “moderada”. Doria é o expoente deste movimento. Era BolsoDoria há menos de dois anos, hoje é anti-Bolsonaro desde bebezinho. João Doria, como Geraldo Alckmin aprendeu duramente ao ser traído pelo afilhado, é como Jair Bolsonaro: só tem um partido, que é ele mesmo.
A surpreendente chegada de Guilherme Boulos e do PSOL ao segundo turno da maior, mais rica e mais influente cidade do país foi um susto para o projeto de poder de João Doria e de seus mais novos sócios. Nos últimos meses, o atual governador de São Paulo, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da TV Globo Luciano Huck tentam costurar uma candidatura com o mote da “moderação” e da “união do país”. Uma candidatura proposta como sendo de centro.
Doria e seus amigos da direita travestida de centro estão muito preocupados com o que dirão as urnas no próximo domingo, 29 de novembro. Eles davam a esquerda por enterrada, com boas razões, já que até esse momento os partidos de esquerda e de centro-esquerda não conseguiam se entender para fazer oposição real a Bolsonaro. A consolidação de um novo líder, fora do guarda-chuva do PT, aponta que a esquerda pode chegar a 2022 com uma frente ampla e chances reais de disputar a sucessão de Bolsonaro —ou de pelo menos atrapalhar bastante os acertos da direita consigo mesma. O apoio de expoentes como Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB), mostram que uma frente ampla à esquerda se tornou realidade no segundo turno da eleição de São Paulo e já está no campo das possibilidades também para a sucessão de Bolsonaro.
Mesmo que o PSOL perca, o cenário político mudou no Brasil. Se Guilherme Boulos e Luiza Erundina vencerem, São Paulo é uma força poderosa. No próximo domingo, os eleitores paulistanos vão determinar muito mais do que o futuro da cidade de mais de 12 milhões de habitantes. É o futuro do Brasil e de mais de 210 milhões de pessoas que já está sendo tecido no presente.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum