eleições 2018
Elio Gaspari: Lula tenta a velha mágica do medo da rua
Manipulador do medo, Lula bota gente na rua e se oferece como pacificador. Desde que entrou na política, Lula mostrou-se um hábil manipulador do medo que o andar de cima tem da rua. Ele põe sua gente na praça, estimula bandeiras radicais e se oferece como pacificador. Quando os radicais passam a incomodá-lo, afasta-se deles. Essa mágica funcionou durante mais de 30 anos, mas mostrou sinais de esgotamento a partir de 2015, quando milhões de pessoas foram para a rua gritando “Fora, PT!”. Ele quis reagir mobilizando o que supunha ser seu povo, mas faltou plateia.
Agora o mágico reapresentou o truque. Ele informa que não tem “razão para respeitar” a decisão do TRF-4. Sabe-se lá o que isso quer dizer. Se é uma zanga pessoal, tudo bem. Pode ser bravata, pois ele cancelou a viagem à Etiópia e entregou o passaporte à polícia. Isso é coisa de quem respeita juízes.
Enquanto Lula é vago em suas ameaças, João Pedro Stédile, do MST, é mais direto: “Aqui vai o recado para a dona Polícia Federal e para a Justiça: não pensem que vocês mandam no país. Nós, dos movimentos populares, não aceitaremos de forma nenhuma que o nosso companheiro Lula seja preso”. A ver.
Em 2015, Lula defendia a permanência de Dilma Rousseff dizendo que era um homem da paz e da democracia, mas “também sabemos brigar, sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas.” Viu-se que o temível exército de Stédile não existia. Na parolagem catastrófica da época, o presidente da CUT, Vagner Freitas, dizia que “se esse golpe passar, não haverá mais paz no país.” Houve. (A CUT remunerava seus manifestantes. Um deles, imigrante da Guiné, tinha o boné da central, mas não falava português. Estava na Avenida Paulista porque recebera R$ 30.)
Nas recentes manifestações dos Trabalhadores Sem Teto em São Paulo, a via Dutra e a Marginal Pinheiros foram bloqueadas com o incêndio de pneus. Eram mais de 50 pneus em cada bloqueio. Ganha um fim de semana em Pyongyang quem souber como se conseguem 50 pneus sem uma infraestrutura militante e incendiária.
O truque é velho mas, desta vez, apareceram dois personagens surpreendentes. Primeiro veio Gleisi Hoffmann, presidente do PT: “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar.” Na quarta-feira, diante da condenação de Lula, ela avisou: “A partir deste momento, é radicalização da luta”.
Gleisi Hoffmann não é uma liderança descartável. Foi Lula quem a colocou na cadeira. Admita-se que ela exagerou na primeira frase e foi genérica na segunda. É nessa hora que entra o comissário Luiz Marinho: “Se condenarem o Lula vão apagar fogo com gasolina. Depois, arquem com as consequências. A toda ação corresponde uma reação. Nós não estamos falando em pegar em armas, mas não vamos aceitar uma prisão para tirar Lula da disputa”.
Marinho é o herdeiro presuntivo de Lula e candidato ao governo de São Paulo. Presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e a CUT. Foi ministro da Previdência e defendeu correções nos benefícios de aposentados e pensionistas. Confrontado por um protesto que lhe bloqueava o caminho, o motorista do seu carro oficial avançou e feriu três manifestantes. Dias depois, o ministro comentou o episódio: “O pessoal veio agredir o carro”. Em 2008, Marinho elegeu-se prefeito de São Bernardo com uma campanha de barão, orçada em R$ 15 milhões. É um dos comissários petistas que podem ser encontrados com frequência na copa ou na cozinha de Lula. Antes do julgamento, no entristecido café da manhã de Lula com sua família, só havia dois amigos: Marinho e o advogado Roberto Teixeira.
Os sinais dados por Marinho e Gleisi indicam que há um flerte de Lula com os radicais que bloqueiam a Dutra com 50 pneus. Esse poderá ser mais um dos seus erros num processo que começou há muito tempo, quando ele decidiu alisar o pelo de petistas corruptos. Desta vez, tentando se colocar como vítima de um pacto sinistro, Lula queima o filme do coitadinho, inocente e perseguido. Alguns dirigentes petistas já compreenderam o risco e trabalham para aquietar o “Momento Nero” de Lula, até porque esse é um Nero de baile de carnaval.
Merval Pereira: Ambições liberadas
Lula condenado faz com que alianças saiam do armário. A virtual inelegibilidade do ex-presidente Lula, que depende apenas de tempo, não de interpretações jurídicas sobre a Lei da Ficha Limpa, que é inequívoca, está levando a que forças partidárias comecem a remontar suas alianças políticas para a eleição presidencial de 2018, fazendo com que saiam do armário ambições até agora reservadas. Entre elas estão candidaturas de partidos historicamente caudatários do PT e a de Marina Silva, da Rede, que está perdendo a cerimônia em relação ao partido que ajudou a fundar e a suas lideranças, inclusive Lula, a quem sempre preservou.
Até mesmo o PSDB ensaia passos mais ousados, como o seu presidente e candidato oficial à Presidência da República, governador Geraldo Alckmin, sugerir que o partido pode deixar de ter um candidato próprio ao governo do estado de São Paulo para apoiar seu vice, Márcio França, do PSB, em troca do apoio nacional dos socialistas à sua candidatura.
O PSB, que já apoiara o candidato do PSDB na última eleição presidencial, voltaria a estar longe do PT de Lula, especialmente diante do impasse jurídico existente. Se não der certo essa manobra, que é de difícil execução pois os tucanos governam São Paulo há 20 anos e não querem abrir mão disso, o PSB pode apoiar o ex-presidente do STF Joaquim Barbosa.
O mesmo acontece com o PDT, que já tem seu candidato próprio, o ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes. PCdoB já lançou Manuela D’Ávila e o PSOL pode lançar Guilherme Boulos, o líder do MTST, que já começou a atacar Marina Silva por sua postura de apoiar a inelegibilidade de Lula, caso seja confirmado o veredicto do TRF-4 após os embargos nos tribunais superiores.
Ela ontem rebateu, com ênfase não habitual, as críticas de que não teria posições políticas claras. “Esta é uma percepção autoritária. Os partidos tradicionais de direita e de esquerda não defendem a Lava-Jato, e eu defendo a Lava-Jato. Defendem o foro privilegiado, e eu sou contra. Tentaram aprovar a anistia para o caixa dois, e eu fui contra. Isso é ter uma posição diferente ou não ter posição?”, contestou.
(...) “PT e PSDB, que nunca estão unidos, se uniram nesse propósito. Tanto que juntos apresentaram a ‘lei do abuso da autoridade,’ para tentar intimidar a Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal, tentaram apresentar o projeto de lei para anistiar o caixa dois, se mantêm firmes na defesa do foro privilegiado, o que é uma afronta ao povo brasileiro”.
Para não deixar dúvidas no ar, Marina colocou no mesmo patamar PT e PSDB, classificando com exagero os sociais-democratas de “direita”, e defendeu que, após o julgamento de Lula, “é fundamental que tenham andamento os demais processos”, citando especificamente o do senador Aécio Neves, a quem apoiou na eleição anterior.
Marina, no entanto, continua mantendo proximidade com economistas ligados historicamente ao PSDB do Plano Real, mas que se desiludiram ultimamente com o partido. É o caso de André Lara Resende, que já esteve mais próximo da candidata da Rede e voltou a ser contatado agora, por insistência de Marina, que teve um encontro com ele na semana passada em São Paulo.
Outros economistas tucanos apoiam candidatos fora do partido, como Armínio Fraga, que segue conversando com o apresentador Luciano Huck, que pode voltar à disputa pelo PPS. Mas Pérsio Arida será o coordenador da candidatura de Geraldo Alckmin.
A possibilidade de que Marina Silva aumente sua força eleitoral com a saída de Lula faz com que ela se torne alvo de petistas e outros grupos de esquerda. O pré-candidato do PSOL à Presidência da República, Guilherme Boulos postou recentemente em seu perfil no Facebook um print de Marina Silva em que ela diz apoiar o trabalho da Justiça e as investigações da Operação Lava-Jato, insinuando que estaria ao lado dos adversários da esquerda.
Apoiadores de Marina responderam, também pelo Facebook, lembrando características da candidata que serão destacadas na campanha: mulher, negra, índia, nortista e filha de seringueiros. Que não responde por nenhum processo na Justiça, que não fez fortuna na política e cujos familiares permanecem tendo uma vida simples e dedicada ao trabalho honesto.
Com apoios à esquerda, de ex-companheiros que, como ela, se desiludiram com o PT, e com os tucanos também em crise de identidade, Marina defende que a campanha seja feita à base de ideias e programas. É uma boa proposta, mas resta saber qual será o seu programa. Temas delicados, como a reforma da Previdência, terão que ser debatidos, e certamente não são populares.
Eliane Cantanhêde: Guerra insana
Ao bombardear a Justiça, PT corre o risco de se isolar e virar grupelho radical
O Judiciário brasileiro avançou ao máximo no combate à corrupção, ao começar a investigar e prender políticos ilustres, mas só agora vira alvo ostensivo de um bombardeio, ao condenar, em primeira e segunda instâncias, o líder mais popular desde a redemocratização, ninguém menos que Luiz Inácio Lula da Silva. Petistas se armam até os dentes e conclamam aliados e militantes para uma guerra insana contra juízes, magistrados e procuradores.
Já no mensalão, as baterias focaram o Supremo, até mesmo contra o ex-ministro Joaquim Barbosa, que foi nomeado por Lula e pode ser tudo, menos tucano ou adversário histórico do PT. Depois, na Lava Jato, voltaram-se para Sérgio Moro, de uma nova geração de juízes, desconhecido e fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília.
Barbosa foi atacado enquanto presidia o STF e condenava José Dirceu e outros nomes de peso do PT. Moro passou a personalizar o “mal”, o juiz que persegue politicamente Lula, depois de corajosamente se debruçar sobre a implosão da Petrobrás.
Quem não tem defesa parte para o ataque. Se os advogados de Lula e líderes do PT, MST e MTST não conseguem uma linha de defesa mais consistente do que um refrão – “o triplex não era dele” –, partem para cima do Judiciário e ameaçam incendiar o País. Aliás, com o eco, perigosíssimo, até de ministro do Supremo.
Como não são só o PT e Lula que têm “divergências” com a lei, mas, entre outros, também o MDB, parceiro de chapa e hoje adversário dos petistas e presidindo o País, que tal o PT montar seu exército com Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Geddel Vieira Lima e Henrique Alves no ataque à Justiça?
Afinal, se Lula pode ser preso após condenação em segunda instância (caso do TRF-4), essa turma do PMDB já foi toda parar na cadeia, preventivamente, antes da própria condenação. E o PT pode ainda recrutar Renan Calheiros, líder em processos no Supremo, dissidente do governo Temer e já aliado a Lula.
Passada a ironia, é assim que a Lava Jato avança sobre governadores, ministros, prefeitos, os maiores empreiteiros, os reis da carne e grandes executivos das estatais, com uma penca de presos “ilustres”, mas só agora, diante da condenação de Lula, se arma uma guerra contra o Judiciário.
Uma bravata do emedebista Romero Jucá – “estancar a sangria” –, dita num encontro-lamentação de emedebistas, a portas fechadas, virou um escândalo e gerou até processo, lembram? E o que dizer das ameaças bem mais concretas, feitas pela cúpula e por parlamentares do PT em público?
É uma estratégia perigosa, porque atiça os monstros, e arriscada, porque ataques geram defesa. Quanto mais Lula e o PT ameaçarem juízes e desembargadores, mais eles se unirão. E a sociedade, espectadora, não vai pegar em armas, incendiar nem morrer por um condenado por corrupção, seja ele quem for.
Em nome de uma guerra pró-Lula e contra a Justiça, o PT pode estar jogando fora de vez a sua história, a opinião pública e os fundamentais apoios que colheu para eleger Lula em 2002 e torná-lo o presidente mais popular após a redemocratização.
Ok, o PT gosta de se contrapor teoricamente ao mercado, mas os bancos nunca tinham lucrado tanto neste País como nos governos Lula e, agora, a Bolsa bate recorde e o dólar cai após o aumento da pena de Lula. A perda dos bancos, sempre tão pragmáticos, pode indicar que o PT se isola e caminha para se tornar um grupelho de esquerda raivosa.
Isso é péssimo. A democracia brasileira precisa de um contrapeso e uma alternativa como aquele PT que subiu a rampa com a “Carta ao povo brasileiro”, não desse PT que quer explodir rampas e pontes e, diante de tantos alvos, apontar a artilharia logo para a Justiça e o maior combate à corrupção da história.
Alon Feuerwerker: Abre-se o espaço para um líder político rumo a 2019. E quem ganha com a saída de Lula da corrida
Lula está fora da candidatura presidencial. A chance de ele ser autorizado a participar é 1%. Os adversários trabalharão para que fique fora também da campanha. Se for preso, não poderá subir em palanques, articular apoios ou gravar. Será uma baixa de peso para seu campo, ao menos no curto prazo. Sem Lula na operação, cresce o risco (ou esperança) de dispersão.
Até 24 de janeiro, a esquerda vinha trabalhando a disputa eleitoral com parâmetros algo normais. Lula esticaria o enredo até quase o final, daí escolheria um estepe, os nomes alternativos teriam cada um sua votação, e se juntariam todos no segundo turno. Mas o ambiente da decisão do TRF-4 fez cair a ficha: usar padrões de normalidade em épocas anormais tem custo.
A novidade na conjuntura pós-TRF-4 é que a esquerda passou a compartilhar o principal problema da direita: a dificuldade de convergir rapidamente para um nome e ganhar massa crítica antes do outro campo. Quem junta massa crítica primeiro passa a exercer força gravitacional sobre possíveis dissidências do lado inimigo. Assim se ganham, e se perdem, as eleições.
Se antes o maior risco da esquerda era Lula ser definitivamente impugnado a menos de vinte dias da urna, quando a lei já não permite substituir, agora isso se inverteu. Lula está na prática inviabilizado eleitoralmente e não se vislumbra uma solução rápida de substituição. E a tática “Eleição sem Lula é fraude” será um ruído adicional na hora de vender um possível substituto.
Se a eleição estava mais ou menos desenhada de um lado, mas algo bagunçada do outro, agora a bagunça espalhou-se. E quem vai se dar bem no novo cenário? As pesquisas vão mostrar, mas é legítimo projetar que a vantagem estará com o nome que exibir capacidade de exercer liderança política. Se um líder sai, é razoável acreditar que haverá espaço para outro.
A rigor, até 24 de janeiro havia dois líderes: Lula e Bolsonaro, e não me refiro a líderes de pesquisa. Agora, só resta por enquanto um: Bolsonaro. Não é totalmente fora de propósito especular, inclusive, que o deputado ultraconservador herde um pedaço do espólio lulista. Assim como é possível Marina recolher uma fatia. Essa deve ser a configuração provisória imediata.
Que será chacoalhada se e quando aparecer um novo líder pela esquerda, ou um líder “por transferência”, e/ou quando e se surgir um desafiante musculoso para Bolsonaro na direita. Não precisa ser imediato. Mas os dois lados tampouco têm todo o tempo do mundo. E, de novo, quem chegar antes no riacho vai beber água limpa. Para isso terá de trabalhar. E já.
A demanda pelo líder cresce à medida que se frustram as expectativas de uma recuperação econômica vistosa. Disso dependeria a força gravitacional da continuidade. E o apelo eleitoral do “gestor”. Sem isso, a mudança prevalece. E a demanda por mudança anaboliza precisamente o cacife dos líderes, gente especializada em materializar a esperança de um bom futuro.
Assim, chegamos à hora em que a competência política separará os homens, ou as mulheres, dos meninos, ou meninas. No vácuo pós-TRF-4, largará na frente quem aparecer com uma solução que acenda antes a fagulha da esperança e, ao mesmo tempo, tenha os pés no chão da governabilidade. A configuração ótima. Mas sem o ótimo haverá sempre mercado para o bom.
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Debate-se muito sobre o próximo presidente, na ilusão de que chegando ao Planalto com a força do voto ele terá músculos para “fazer o que precisa ser feito”. Só que não. Prestar atenção na composição do próximo Congresso e em como vai evoluir até lá a relação entre o Judiciário e os demais poderes talvez seja tão importante quanto.
O principal risco político de 2019 não está na possível eleição de A ou B, mas na quase certa extrema dificuldade que B ou A terão para exercer o poder numa Brasília feudalizada e onde pululam centros alternativos de força, que só estão de acordo entre si na manutenção dos próprios privilégios. Uma democracia progressivamente disfuncional, tendente à paralisia.
Feliz 2018 a todos.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Eliane Cantanhêde: Candidatura Lula, uma ficção
Logo Lula vai perceber que politizar suas dificuldades na Justiça dá munição a sua tropa, mas não muda a realidade
O relator João Pedro Gebran contou uma história com princípio, meio e fim para comprovar que o ex-presidente Lula ganhou o triplex da OAS em troca de desvios na Petrobras. O revisor Leandro Paulsen discorreu do mensalão ao petrolão para concluir que Lula foi responsável pelos esquemas de corrupção e se beneficiou deles. E o desembargador Victor Laus já abriu sua fala deixando evidente um acórdão por unanimidade.
Foi assim que o TRF-4 ratificou a condenação de Lula pelo juiz Sérgio Moro e ampliou sua pena de 9 anos e meio para 12 anos e um mês, tornando a candidatura Lula à Presidência praticamente uma ficção. Condenado em segunda instância, réu em seis outros processos e indiciado em mais três, Lula não tem a mínima condição de se candidatar nem a ministro do Trabalho na vaga da deputada Cristiane Brasil, quanto mais a presidente.
Como previsto, houve manifestações tímidas a favor da condenação e protestos ruidosos, e vermelhos, contra. Mas o mundo não acabou, o país não parou e a vida continua, com a previsão de recursos na Justiça e uma frenética rearticulação das campanhas, a começar, claro, no PT.
Lula esgotou uma das suas armas mais poderosas tentando “sensibilizar” o TRF-4: a pressão dos movimentos alinhados. Logo vai perceber que politizar suas dificuldades na Justiça dá munição a sua tropa, mas não muda a realidade. Se há sobrevida, é à custa dos recursos no próprio TRF-4, no STJ e no Supremo, mas eles não reabrem a discussão do mérito, do conteúdo do inquérito, apenas possibilitam questionamentos de forma. Esticam a agonia, mas não mudam os fatos e Lula deve concentrar energias para não parar na cadeia.
A grande dúvida é se muitos que apoiam Jair Bolsonaro por medo de Lula se sentirão liberados para opções menos radicais e se os que votam no PSDB pela polarização com o PT buscarão novos caminhos. A saída inevitável do líder das pesquisas mexe bastante o tabuleiro eleitoral, mas o resultado era profundamente incerto com Lula e continua profundamente incerta sem ele.
Merval Pereira: Mais próximo do fim
O Brasil novo que luta para nascer dos escombros da velha ordem patrimonialista se pronunciou ontem em Porto Alegre. A situação do ex-presidente Lula, depois da confirmação unânime de sua condenação pelo TRF-4, pode ser resumida da seguinte maneira: hoje ele está mais próximo da cadeia do que do Palácio do Planalto. Mas, como ainda é a velha ordem que predomina, tudo pode acontecer.
O efeito colateral do julgamento de ontem é que o ex-presidente Lula poderá ser preso nos próximos poucos meses, pois o único recurso que lhe resta, o embargo de declaração, não altera o conteúdo da sentença. A defesa tem que entrar com embargos de declaração até dois dias depois da decisão final publicada.
Geralmente, no TRF-4, os embargos de declaração são resolvidos em 30 dias. A partir daí, a defesa do ex-presidente recorrerá aos tribunais superiores para tentar reverter a decisão de segunda instância, mas, sobretudo, para obter um efeito suspensivo do cumprimento da pena.
Ele provavelmente conseguirá um efeito suspensivo da prisão e da inelegibilidade enquanto recorre simultaneamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), mas seu prazo está cada vez mais curto.
A decisão do STF sobre prisão em segunda instância a torna consequência necessária, e só os tribunais superiores podem liberar o condenado, por meio de habeas corpus ou medida cautelar. A lei vale para todos, e não há regra específica sobre ex-presidentes. Se não fosse assim, haveria discricionariedade e seletividade para decidir quem vai preso.
Se o STF achar que é muito grande a probabilidade de reversão da decisão, pode sustar a prisão. Ao mesmo tempo, a condenação em segunda instância torna o réu inelegível. Existe a previsão, na lei das inelegibilidades, de recurso, que deve ser feito no mesmo momento em que for impetrado no STJ o recurso contra a decisão do TRF-4.
De posse das duas liminares, Lula continuará solto e podendo dizer-se pré-candidato à Presidência da República. O processo sobre a inelegibilidade, no entanto, deve ter prioridade sobre todos os demais no Superior Tribunal de Justiça, e se confirmada a inelegibilidade, Lula poderá ainda recorrer ao Supremo.
Os prazos não são tão curtos que permitam afirmar que ele não poderá registrar sua candidatura. Mas a decisão unânime da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal de Porto Alegre (TRF-4), reafirmando a condenação do ex-presidente Lula e aumentando sua pena para 12 anos e 1 mês em regime fechado, tem um significado fundamental: fica muito difícil um tribunal superior reverter condenação tão contundente, ou mesmo permitir que Lula se candidate subjudice.
Diante de uma decisão tão enfática do TRF-4, o julgamento deve ser uma tarefa dos colegiados dos tribunais superiores, que terão em mente a necessidade de dar ao cidadão-eleitor e ao país segurança jurídica na campanha eleitoral, realizando-o em tempo hábil para que ela transcorra sem dúvidas jurídicas. E dificilmente os tribunais superiores aceitarão desmoralizar uma lei como a da Ficha Limpa, uma ação popular, para beneficiar um candidato.
Nos próximos cinco meses os tribunais terão tempo suficiente para definir a situação de elegibilidade do ex-presidente Lula, antes da realização de convenções partidárias para indicação oficial dos candidatos, prazo que se esgota em 5 de agosto.
Também as alianças partidárias para apoiar a candidatura de Lula perderão a inevitabilidade que pareciam ter. Como se aliar a um candidato que pode ser impugnado mesmo tendo seu nome na urna? Como fechar um acordo com o PT sem saber quem será o candidato do partido, se Lula ou outro poste? E se for um poste, Lula ainda terá força para eleger mais um, depois do fracasso do governo Dilma?
O Brasil parece disposto a bater seus próprios recordes negativos. Nunca na História houve um presidente no exercício do cargo sendo acusado de crimes comuns, como aconteceu com Michel Temer. Mas também nunca antes neste país um ex-presidente esteve nessa situação atual de Lula, e por isso não se sabe como reagirão os tribunais superiores, que mais uma vez decidirão os destinos do país.
Os tempos jurídicos e os políticos podem se desencontrar, a favor ou contra Lula.
O Globo: colunistas analisam o presente e o futuro de Lula
Equipe faz um balanço do julgamento do ex-presidente, condenado a 12 anos e um mês
A equipe de colunistas de O GLOBO faz um balanço do julgamento e analisa o futuro político de Lula.
Lauro jardim: Lula perdeu. E agora?
O TRF-4 foi acachapante. Mas, a partir da decisão destaquarta-feira, nasceu um fantasma que vai assombrar poderosamente a eleição de outubro. O fantasma, naturalmente, é Lula. Sua candidatura recebeu um tiro no peito. Seu protagonismo na eleição, não. Até onde a vista alcança, continuará a comandar o espetáculo. Ao menos nos próximos meses. Ao menos enquanto as pesquisas eleitorais sorrirem para ele.
O PT vai lançá-lo hoje mesmo à Presidência, a despeito de sua condenação unânime — e com “provas fora de qualquer dúvida razoável”, como destacou o desembargador Leandro Paulsen.
Os petistas trabalharão com afinco a estratégia da vitimização, sempre explorada com maestria por Lula. Insistirão no argumento da “falta de provas” — assim como até hoje batem na tecla do “foi golpe”. Nada que tenha consistência. Não importa. A luta política nem sempre se ancora em fatos. O que interessa é arranjar uma palavra de ordem para unir a militância e seguir em frente.
Na estratégia petista, é fundamental que as próximas pesquisas eleitorais o mantenham como líder absoluto. Ainda que perca pontos, não faz sentido crer que sua densidade eleitoral murche a ponto de torná-lo irrelevante. Há um tipo de simpatizante de Lula que não está nem aí para o julgamento de ontem: simplesmente, avalia que todos os políticos são ladrões e que, no tempo de Lula como presidente, vivia melhor. Esse eleitor de Lula não vai às ruas quando ele é condenado, como não foi ontem. Mas quer votar nele. Seus adversários têm que trabalhar duro para desconstruí-lo diante desse eleitorado.
Na dianteira nas pesquisas, Lula deverá rodar o Brasil carregando pelo braço um vice que ele pode tornar popular. Um poste que, no momento certo, pode colocar de pé para receber o voto do seu eleitor. Ou simplesmente apoiar outro candidato à esquerda, como Ciro Gomes.
Nem Lula nem o PT assumirão que serão obrigados a trabalhar um plano B. Seja um vice de Lula ou um candidato de outro partido. Mas é disso que vão ter que tratar a partir de agora, ainda que não assumidamente.
Miriam Leitão: O labirinto eleitoral
O ex-presidente Lula se lançou candidato como parte da estratégia no processo criminal. A ideia é que, se ele ficasse forte politicamente, estaria protegido da Justiça. Nesta quarta-feira, ele foi condenado em um órgão colegiado e por unanimidade. Se Lula puder ser candidato, por alguma brecha legal, ou pelo tempo dilatado do julgamento de recursos, o país estará no seguinte labirinto: um réu não pode ser presidente da República, mas um condenado — e réu em diversas ações — pode se candidatar ao cargo. E, caso vença, todos os processos são suspensos porque os crimes foram anteriores ao mandato. Então quebra-se o princípio constitucional. Se a Justiça eleitoral for lenta, leniente ou falha, o país estará em situação perigosa.
A candidatura do presidente Lula tem agora poucas perspectivas. O PT disse que vai mantê-la, mas, se não acionar logo um plano B, é o grupo político que estará numa armadilha. O cenário possível é de prisão de Lula, ao fim dos embargos de declaração, que, como se sabe, são apenas para esclarecer pontos obscuros. São poucos e mais rapidamente julgados. A ordem do desembargador Leandro Paulsen já foi dada ontem: assim que forem esgotados esses recursos, o juiz de primeira instância deve expedir a ordem de prisão. O PT diz que vai “radicalizar” e que não reconhece as decisões da Justiça. Qual o próximo passo? O partido precisa ter a resposta para essa pergunta, por estratégia de sobrevivência.
Os desdobramentos desse caso colocam em questão muito mais do que o futuro do Partido dos Trabalhos ou o destino do ex-presidente Lula. O Judiciário terá que desatar o nó criado por desencontros legais. Parece óbvio que um réu em diversas ações não pode concorrer à Presidência. A Lei da Ficha Limpa socorre em parte esse imbróglio por estabelecer que o réu que for condenado em segunda instância não pode ser candidato, após todos os recursos. Mas os tribunais superiores precisam ser mais efetivos na proteção da Presidência da República. Ela não pode ser o esconderijo perfeito de um condenado da Justiça.
Gabeira: O momento da verdade
A esquerda sofre o primeiro grande baque na sua tática de contornar os escândalos revelados, em vez de buscar o caminho mais longo e doloroso de reconhecimento dos fatos e uma tentativa de renovação.
Foi uma escolha voluntarista. Saltar a montanha de evidências — milhões de dólares devolvidos, delações, ruína da Petrobras — só era possível através da politização nebulosa. O grande processo de corrupção foi narrado como uma conspiração da Justiça e articulada com uma imprensa manipuladora
O segundo passo Lula tomou ao se declarar candidato. Agora a conspiração da Justiça e da imprensa não era mais do que uma tentativa de barrar sua candidatura.
Mas os fatos estavam aí. A previsão otimista da tática era despertar um grande processo popular, através da pré-campanha, de apoio ao líder perseguido. Isso não aconteceu. Só foi possível reunir militantes e movimentos sociais a partir de um estímulo vertical.
Na medida em que isto não acontecia, a tendência foi a de elevar o tom, de radicalizar verbalmente. A senadora Gleisi Hoffmann chegou a afirmar que muita gente ia morrer. Quem ia morrer? O porteiro do TRF-4?
O senador Lindbergh Farias disse também que era preciso uma esquerda de combate, e que aqueles que defendiam a condenação de Lula iriam encontrá-los preparados para a luta na rua.
Quando José Dirceu afirmou que era preciso bater o adversário nas urnas, visava a um adversário específico, tanto que Mário Covas foi a vítima.
Mas como realizar esse combate, se as pessoas que querem a condenação de Lula estão vivendo sua vida normalmente, alheias ao roteiro dramático de Lindbergh. A única maneira seria sair por aí, nos bares, nas praças, perguntando quem é a favor da condenação de Lula e, aí então, sair na pancada.
Esse movimento de fé acabaria, como quase todos, em visões dessas que aparecem quando desejamos muito.
A senadora Gleisi Hoffmann viu um defensor de Lula na torcida do Bayern de Munique. Era apenas um cartaz dizendo “Forza, Lucca”, um torcedor ferido num estádio europeu.
O deputado José Guimarães viu num comboio de sacoleiros rumo à fronteira os ônibus de apoiadores de Lula.
E a deputada Maria do Rosário usou a previsão de um tsunami nos Estados Unidos, marcado em vermelho no mapa meteorológico, com ondas gigantes que chegariam ao Guaíba. Neste caso, estava sonhando através da ironia.
Para quem apontou em inúmeros artigos o desvio da política para a defesa religiosa de um líder, isso não é uma surpresa. O choque da realidade chegou. Vamos ver como reage a torcida do Bayern.
Casado: As vítimas da Lava-Jato
Foi uma jornada singular: mais de nove horas de cenas explícitas (ao vivo) de julgamento de um ex-presidente da República, dois ricos empreiteiros e um antigo burocrata do sindicalismo, num caso criminal que é notável exceção na tradição judiciária brasileira: não há réus pobres na Lava-Jato. O juiz relator Pedro Gebran Neto lembrou: “Não estamos tratando de pobres, miseráveis ou descamisados que usualmente são os destinatários das ações penais no Brasil”.
Os processos da Lava-Jato contrariam o senso comum sobre a velha ideia de Justiça no Brasil. Nele, as vítimas são os pobres, ampla maioria da população — a quem os governantes têm o dever constitucional de servir e defender, principalmente na gestão dos negócios públicos.
Nesta quarta-feira, a Petrobras estava na bancada de acusação em Porto Alegre. Seus representantes evocaram o histórico de 64 anos da companhia, incensado num nacional-estatismo em nome dos pobres, que ainda hoje alimenta sonhos de poder de grupos autoproclamados de esquerda.
A empresa estatal declarou-se “vítima” de um ex-presidente, dono de uma biografia épica de migrante pernambucano que chegou ao Sul e ascendeu à elite nacional como ex-operário e sindicalista, depois de se arriscar na liderança de greves em desafio à ditadura, a empresas e à burocracia sindical cevada na tesouraria governamental desde a era Vargas. Ele se moveu como um líder ungido para renovar o modo de fazer política no país. A Petrobras apoiou o Ministério Público, que assim resumiu a acusação: “Lamentavelmente, Lula se corrompeu”.
O ex-presidente acorda hoje como um “ficha-suja” na política. É a consequência jurídica prática da condenação unânime no tribunal federal, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro de propina da construtora OAS em troca de negócios favorecidos com a Petrobras.
Seu futuro como candidato do PT na eleição de outubro é tão incerto quanto o início do cumprimento da pena que recebeu (12 anos e um mês de prisão).
É como Lula dizia na sua primeira campanha presidencial, em 1989: “A corrupção e a existência de concorrências ilícitas não são novidade. Novidade acontecerá no dia em que alguém for para a cadeia”.
Ancelmo Gois: Lula e seus demônios
Boa parte da plateia que vai assistir a “Caravanas”, a nova turnê de Chico Buarque, tem cantarolado “Olê, olê, olê, olá/Lula, Lula”. Sempre se pode dizer — e é verdade — que aquele público que pagou ao menos R$ 220 para assistir ao grande artista e simpatizante petista não é representativo da sociedade brasileira. Mas é verdade também que Lula, desde que resolveu politizar o julgamento no TRF-4, tem conseguido recuperar um pouco dos corações e das mentes de sua militância, notadamente da classe média. Ainda assim, essa militância não conseguiu, ontem, encher as ruas, como ocorria em outros carnavais.
Vamos combinar que Lula não tinha muita saída. Ele, como todo mundo que acompanha a Lava-Jato, sabia de antemão que muito dificilmente seria absolvido. Afinal, Porto Alegre vem referendando nove em cada dez decisões de Curitiba. Desde que foi marcado o julgamento de ontem, Lula tinha, então, duas opções. Uma era ir calado para o matadouro gaúcho. A outra, que prevaleceu, foi botar o bloco na rua. Vem daí a volta das caravanas por todo o país e a montagem de uma rede de apoio à sua causa aqui e no exterior. Essa mobilização não deve refluir com a condenação de ontem. Talvez até aumente a partir de hoje.
Ou seja: Lula conseguiu fazer as pazes com a militância. Falta fazer as pazes com sua biografia.
O que ficou claro nas mais de nove horas de julgamento desta quarta-feira, em Porto Alegre, é que o nosso maior líder popular, e que tem uma admirável capacidade de sobrevivência, é, entretanto, promíscuo, para dizer o mínimo. Nomeou para a Petrobras uma diretoria cheia de gatunos.
Também impressionou no voto dos três desembargadores como Lula era queridinho e íntimo de Léo Pinheiro, da OAS, assim como de outros empreiteiros. Aceitou favores mesmo sabendo que essa turma não tem amigos políticos. Tem interesses.
É esse tipo de fantasma do passado que Lula terá de carregar pelo resto da vida.
Eugênio Bucci: A Justiça obscura e sua tragédia
Ao confirmar a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no processo do tríplex do Guarujá, o TRF-4 enveredou por uma retórica obscura e aprofundou o abismo entre o Judiciário e o povo. O brasileiro médio não entendeu nada, o que é uma tragédia. Quando soa incompreensível para o senso comum, com decisões baseadas em circunvoluções processualísticas e pouco lastreadas em fatos evidentes, a Justiça ganha ares de lâmina idiossincrática e as instituições perdem credibilidade.
A conduta criminosa atribuída ao ex-presidente, no caso, não se traduziu na vida prática. Aí está o problema. Lula teria sido agraciado com uma promessa de propina imobiliária (numa improbabilíssima forma de suborno), mas — atenção — a promessa não se cumpriu: ele nunca recebeu ou usou o imóvel, que nunca foi transferido para o seu nome ou de seus parentes. Que ato ilícito ele praticou, então, se não tomou posse do tríplex? Haja hermenêutica.
Não que o líder petista esteja acima de qualquer suspeita. Não está. Basta lembrar o sítio de Atibaia, embelezado por empreiteiras dirigidas por agentes corruptores, do qual Lula usufrui sem pejo. Refestelado em sua “dacha” tropical, ele incorreu, se não em crime, num conflito de interesses que o descredencia aos olhos de quem preza a ética pública.
O tríplex é um imbróglio diferente, sem amparo em fatos tão clamorosos. Daí resulta a tragédia. Na falta de outra explicação plausível, o cidadão é levado a crer que o que condenou Lula não foi um julgamento jurídico, mas uma conspiração política de nervuras kafkianas, efetivada em tempo recorde.
Agora, o Lula condenado vai brilhar mais que o Lula candidato. A narrativa de que o PT é vítima de um golpe de Estado vai crescer. Lembremos que o impeachment de Dilma Rousseff padeceu do mesmo vício de obscuridade: o alegado “crime de responsabilidade”, descrito por meio de tecnicalidades indecifráveis, nunca foi entendido pelo público. Pior: desconfianças muito mais graves pairam sobre Michel Temer — e este, não obstante, segue incólume. A sensação de que a Justiça brasileira tem lado se alastra.
Ricardo Rangel: 4 a 0
A Justiça seguiu seu curso e condenou um criminoso. Deveria ser banal, mas é um assombro, porque o réu foi, por duas vezes, presidente da República; porque é o candidato favorito a presidente; pela profusão de ameaças e intimidações contra os juízes; pela tradição nacional que, até ontem, garantia a impunidade a ricos e poderosos; porque o réu é, para tanta gente, um mito.
A condenação de Lula é exemplar e indiscutível: o tribunal foi unânime e ainda majorou a pena. E vale lembrar que, como Moro, foi cauteloso e reconheceu apenas dois dos 71 crimes imputados a Lula pelo MP. Lula foi condenado por quatro juízes em duas instâncias: a tese de que o ex-presidente é uma vítima não é apenas risível: é surreal.
A condenação de um criminoso, no país da impunidade, é motivo de comemoração, mas a condenação de um ex-presidente é motivo de pesar. Como pudemos nos enganar tanto, a ponto de reelegê-lo depois do mensalão? Como pudemos lhe dar incríveis 80% de aprovação? Como pudemos eleger uma presidente incapaz só porque foi indicada por ele?
Olhando para frente, Lula está acabado. Ninguém no Supremo vai se dispor a criar uma crise institucional só para salvar uma candidatura ilegal e que não interessa a quase ninguém. Sem a candidatura, é difícil impedir sua prisão.
Tancredo Neves dizia que político acompanha o cortejo fúnebre até o fim, mas não entra na sepultura junto com o defunto. Todos os políticos sabem que Lula está moribundo, e cada um vai seguir com seu projeto pessoal: em breve, não sobrará ninguém ao lado do ex-presidente.
Do ponto de vista de saúde da democracia, é positivo que Lula esteja fora. Era um escárnio que alguém tão suspeito fosse candidato. A ausência de Lula na cédula confere respeitabilidade ao pleito.
Do ponto de vista prático, a ausência de Lula na disputa diminui muito as chances do anti-Lula. Tudo sugeria, até ontem, que o segundo turno deveria se dar entre Lula e Jair Bolsonaro. Sem Lula, o candidato moderado, seja quem for, tem uma boa chance. O que é ótima notícia.
Cora Rónai: Feito pessoas comuns
Nesta quarta-feira, manifestantes pró-Lula fecharam estradas em São Paulo, ocuparam Porto Alegre, fizeram comícios. Todos diziam lutar “pela democracia”, o que prova que mesmo as palavras mais claras e inequívocas podem ter o seu significado distorcido ao sabor das conveniências. A verdade é que ontem a democracia saiu fortalecida do tribunal onde, pela primeira vez na História deste país, um ex-presidente da República viu confirmada a sua condenação por atos de corrupção. Por mais que a defesa e o PT tenham politizado o julgamento, por mais que intelectuais e políticos estrangeiros participem de abaixo-assinados a favor de Lula, o fato é que ele foi condenado pela falta de lisura da sua relação com o famigerado tríplex, um crime sem qualquer tintura — ou grandeza — ideológica.
Lula não foi condenado por ser Santo Lula, o representante máximo dos despossuídos; foi condenado porque continuou com as práticas pouco democráticas que se repetem no Brasil desde os tempos coloniais, práticas que ele tanto atacou antes de chegar ao poder.
É essencial para o bom funcionamento de uma democracia que todos sejam iguais perante a lei, assim como é essencial que todos os funcionários públicos, do mais humilde ao mais graduado, percebam que servem aos cidadãos que pagam os seus salários, e não a si mesmos, a seus amigos ou correligionários. Lula, cuja vida prática sempre esteve envolta em mistérios e incongruências, de apartamentos e jatinhos emprestados a sítios suspeitos e familiares que enriqueceram do nada, se esqueceu completamente disso, se é que algum dia soube.
Não é o único, nem a sua eventual prisão vai, sozinha, endireitar o país. Há muita gente solta que já devia estar presa há tempos, e há, ainda, a excrescência que é o foro privilegiado, que de ferramenta de proteção contra o autoritarismo se transformou em garantia de bandidos. Mas a decisão do TRF-4 aponta para um futuro melhor, para um Brasil sem cabeças coroadas, onde os poderosos responderão pelos seus atos como todos nós, mortais comuns, respondemos — ou deveríamos responder.
Diego Escosteguy: Rumo ao cárcere
Tornou-se altamente provável — quase uma certeza jurídica — a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E ela não tarda. Salvo uma reviravolta processual sem precedentes no passado recente, a prisão do petista, uma consequência do cumprimento provisório da pena após a condenação em segunda instância, transcorrerá em, no máximo, dois meses. É o tempo previsto para a análise do último recurso à disposição da defesa de Lula perante o TRF da 4ª Região.
Entre a cúpula da Lava-Jato e juízes do caso em diversas instâncias, não há dúvida de que esse recurso, os chamados embargos de declaração, não mudará, em nenhum sentido, a decisão unânime e severa tomada ontem pelos desembargadores. Ao avaliar esse último recurso, os desembargadores devem seguir o padrão acolhido em casos semelhantes — e decretar o início do cumprimento provisório da sentença. Essa decisão inclui a prisão imediata do condenado. No caso, de Lula.
É o relógio da análise sobre os embargos de declaração que passa a contar o tempo para a provável prisão de Lula. Caso essa decisão se confirme, a defesa do petista tem um percurso dificílimo para revertê-la. O ministro Felix Fisher, relator do caso no Superior Tribunal de Justiça, costuma manter as decisões das instâncias inferiores.
Sobraria a Lula recorrer, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal. Eis a última barreira do petista: o ministro Edson Fachin, relator do caso dele no tribunal. Qualquer recurso, o que inclui um habeas corpus, cairá com ele. E Fachin também tem sido rigoroso. O ministro já manteve, em numerosas ocasiões, o entendimento do STF de que vale o cumprimento provisório da pena após condenação em segunda instância. O que vem a ser precisamente o caso de Lula.
Restaria ao petista uma última tentativa, ao plenário do STF. É o recurso do recurso do recurso — do recurso. Se os ministros mantiverem a posição da Corte e não identificarem alguma violação aos direitos do ex-presidente, não haverá mais apelação. Lula estará encarcerado. E não será candidato.
Míriam Leitão: A tese da República
O centro da decisão de ontem do TRF-4 foi que o crime de corrupção é mais grave quando cometido pela pessoa que ocupa ou ocupou a Presidência. O que o ex-presidente Lula colocou em risco foi mais que o “patrimônio da Petrobras”, mas “o Estado Democrático de Direito”. Essa foi a tese do desembargador João Pedro Gebran Neto, reafirmada pelos desembargadores Leandro Paulsen e Victor Laus.
Quem preside a República enfeixa sonhos e esperanças, tem poderes concedidos pelos cidadãos através do voto, a autoridade de conduzir a Nação. É por isso que, se cometer crimes, ele tem “culpabilidade extremamente elevada”. Isso fez subir a pena de Lula. Num país com democracia em construção, em que dois presidentes sofreram impeachment no espaço de 24 anos, esse é um ponto fundamental.
A grande pergunta é o que acontece agora? A ordem do desembargador Leandro Paulsen foi a de que o juiz Sérgio Moro, assim que se esgotarem os recursos, determine o cumprimento da pena, ou seja, a prisão em regime fechado do ex-presidente. Fontes da área judicial, que acompanham o processo, acham que o STJ pode manter esse entendimento, mas o STF pode ser levado a reabrir a questão da prisão em segunda instância. O tema ronda o Supremo. A ministra Cármen Lúcia não colocou o assunto de volta porque a decisão foi tomada muito recentemente. Mas o ministro Gilmar Mendes quer que o assunto volte ao plenário. É mais uma ironia, da sempre surpreendente história brasileira, que Gilmar Mendes se transforme na esperança do PT.
Um ponto central do debate em torno do julgamento do caso do Triplex do Guarujá foi a existência ou não de provas. Os defensores de Lula sempre disseram que não havia provas, já que não haveria documentos da propriedade. Os desembargadores disseram que, ao contrário, existem provas abundantes, diretas, indiretas, materiais e testemunhais de que o apartamento estava destinado a Lula, foi reformado para atender às demandas da família e que estava no nome da OAS por um pedido para se esconder a propriedade. O que aconteceu ontem fortaleceu o trabalho do juiz Sérgio Moro, porque a sua sentença foi confirmada pelos três desembargadores que analisaram o recurso do ex-presidente. Toda a sua linha de raciocínio e suas decisões foram mantidas.
A estratégia da defesa, durante o processo, foi construída em cima de três movimentos. Primeiro, afirmar que não havia provas, segundo, arguir a suspeição do juiz Sérgio Moro e a falta de competência da 13ª Vara. Terceiro, apresentar Lula como uma vítima de perseguição política. Essa politização estimulou manifestações de militantes. A campanha antecipada aumentou as intenções de voto. Tudo parecia estar dando certo. Mas ontem ficou claro que a politização não melhorou a chance no tribunal. Como disse Gebran Neto, houve um momento em que Lula teve o direito de falar por vinte minutos diante do juiz Sérgio Moro e ele escolheu fazer afirmações “sem qualquer utilidade jurídica”.
Gebran começou seu voto derrubando todas as preliminares da defesa, e neste ponto mostrou os erros da estratégia dos advogados do ex-presidente. Cristiano Zanin insistiu em questões já julgadas pelo mesmo tribunal, em recursos que ele mesmo havia movido anteriormente. A queda das preliminares foi confirmada pelos outros juízes. Gebran Neto mostrou exemplos de falta de sentido nas teses da defesa. Um deles: os advogados, certa vez, quiseram recusar documentos da Petrobras alegando que foram fornecidos por meio eletrônico e não em papel. “Todo o processo aqui é eletrônico”.
Na discussão de mérito, além de derrubar as alegações de falta de provas, não foi considerado o argumento de que faltou um ato de ofício. Isso foi exaustivamente discutido no mensalão, o entendimento majoritário do Supremo neste caso é que não é necessária uma decisão específica que beneficie a empresa corruptora, mas o conjunto de decisões de quem tenha poder.
O grande princípio consagrado ontem foi o de que quem ocupa a Presidência da República tem que zelar com mais rigor para que não ocorram desvios de recursos públicos. “Sua excelência em algum momento perdeu o rumo”, disse Laus. Que isso sirva de aviso aos governantes.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Valor Econômico: "O jogo começa agora", afirma FHC
Encerrado o julgamento do ex-presidente Lula pelo TRF da 4ª Região, com surpreendente unanimidade na condenação e na extensão da pena para 12 anos e um mês a ser cumprida em regime fechado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comentou: "O jogo começa agora". Referia-se à composição das forças políticas para as eleições presidenciais de outubro.
Por Claudia Safatle
FHC falou ao Valor sobre o futuro da política sem a eventual presença da figura quase mitológica de Luiz Inácio Lula da Silva na disputa. Antes, porém, lamentou a situação em que se enredou o maior líder dos trabalhadores que o país já conheceu, condenado por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, sob risco de ser levado à prisão ou de ter que pedir asilo a algum outro país.
Sem a candidatura de Lula, é bastante provável que murche a do seu extremo oposto, deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), e que o centro se organize melhor para concorrer, seja com Geraldo Alckmin, governador de São Paulo pelo PSDB, ou com algum outro candidato.
Fernando Henrique não vê espaço para "outsiders" na disputa da Presidência da República. Também não considera o apresentador de TV Luciano Huck definitivamente fora do páreo. "Luciano não desistiu", disse FHC, de quem é amigo. Para se colocar na disputa, porém, o apresentador terá que mostrar-se capaz de sensibilizar os outros partidos mais alinhados com o centro, a exemplo do PPS, presidido por Roberto Freire.
Fernando Henrique está ciente da falta de preparo do apresentador para enfrentar as artimanhas e ardis dos políticos profissionais do Congresso. "Gosto do Luciano, sou amigo da família, mas ele é muito cru para ser presidente da República", salientou. "Não acho que ele seja a maior possibilidade". O ex-presidente, no entanto, avalia que se a candidatura de Alckmin não se firmar abre-se espaço para o apresentador de TV concorrer.
O fato é que, para FHC, após o resultado do julgamento de Lula, ontem, "as forças políticas vão se acomodar à nova realidade". Até então, não havia certeza sobre qual seria a decisão dos três desembargadores da 8ª Turma do TRF da Região Sul.
Para além das implicações no cenário eleitoral deste ano, porém, Fernando Henrique enxerga em todo o processo que culminou com a condenação de Lula a possibilidade de engendrar mudanças, levando o país a alterações mais profundas nas regras políticas que permitem, por exemplo, a existência de mais de trinta partidos políticos. "Não há como governar com essa quantidade de partidos", atesta ele, com a experiência de quem governou por oito anos e também se incomodou com denúncias de compra de votos no Congresso.
Há uma crise de representação no mundo ocidental. As economias vão bem, mas a tecnologia não gera, ao contrário, destrói empregos e cria um grande e complicado problema distributivo. "Os políticos fecham os olhos" para essas questões, disse FHC. No Brasil são 5.700 municípios sem dinheiro, o Rio de Janeiro está se desmilinguindo. "Pode ser otimismo meu, mas a crise que vivemos sem muita comoção social vai deixar resultados", disse ele.
Míriam Leitão: Dúvida derruba a tese
Não há perseguição a Lula: país luta contra a corrupção. A incerteza que cerca o julgamento de hoje derruba, por si só, a tese central da defesa do ex-presidente Lula, a de que existe uma guerra jurídica contra ele. O que o país tem é uma Justiça independente, e ele sabe disso. As inúmeras possibilidades de recursos, e que permitem construir os mais diversos cenários para desdobramento desta ação, mostram que não há uma perseguição judicial contra Lula.
O fato de que adversários históricos, ou aliados circunstanciais, estejam vivendo situações semelhantes à do líder do PT mostra que o país está diante de um processo de luta contra a corrupção e não uma perseguição a um indivíduo ou a um partido. Entre seus antigos aliados estão o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, agora presos. Entre seus adversários, o senador Aécio Neves. A lista de políticos investigados por corrupção é enorme, nos mais variados campos políticos. O que acontece no Brasil é um processo maior e mais profundo do que está sendo simplificado pela retórica política. Os líderes do PT sabem disso, mas disputam, como sempre, a narrativa mais conveniente.
A narrativa terá que ser repetida muitas vezes. Ele tem outros processos a responder, como o do apartamento que usa ao lado do seu, ou o do sítio de Atibaia. Isso em Curitiba, mas em Brasília, ele foi denunciado em outros processos como os investigados na Operação Zelotes. No caso atual, o do apartamento do Guarujá, um dos argumentos da defesa é que o imóvel nunca foi dele, e que Lula o visitou como um potencial comprador. Por esse raciocínio, teria que ter havido a ocupação para então ficar claro que o apartamento fora dado a ele. O artigo 317 do Código Penal define corrupção de forma bem mais ampla. É “solicitar ou receber para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumila, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
Se aquela foi uma visita apenas de um pretendente comprador, que depois desistiu, é preciso explicar muita coisa. Por que a OAS refez todo o projeto, e apenas para aquele apartamento, indicando a personalização do imóvel? Por que os móveis da cozinha vieram da mesma loja que forneceu para o sítio de Atibaia e pagos da mesma maneira? Qual a origem da escritura rasurada? Havia uma conta-corrente, em cada empreiteira com negócios com a Petrobras, para pagar aos políticos e aos funcionários em postos estratégicos. A acusação diz que foi daí que saiu o dinheiro para o apartamento.
Há muitas outras dúvidas razoáveis. E sobre elas os juízes do TRF-4 construíram seus votos que vão divulgar hoje. A defesa, ao lado do argumento político, de guerra judicial, construiu também uma argumentação técnica para responder à acusação. No dia de ontem, ninguém tinha certeza da decisão final dos três juízes que vão julgar o caso. E isso é bom. Palpites, havia muitos. Mas essa dispersão de possibilidades dá a certeza de que a Justiça está fazendo seu papel e julgando segundo os autos. Se eles forem fracos, a sentença será reformada.
No dia 26 de setembro, o tribunal de Porto Alegre absolveu pela segunda vez o ex-tesoureiro do PT João Vaccari. Ele estava condenado a nove anos, numa ação, e 15 anos, em outra. O PT soltou uma nota em que disse que “a segunda absolvição do companheiro João Vaccari no TRF-4 mostra que o Judiciário pode sim corrigir as arbitrariedades da Vara de Curitiba”. Quarenta e dois dias depois, em outra ação, a sentença contra Vaccari foi reformada. Para mais. Em vez de dez anos de prisão, a pena foi para 24 anos. O desembargador Leandro Paulsen, um dos julgadores de hoje, que havia votado pela absolvição nas duas ações anteriores, disse que condenou porque pela primeira vez havia provas.
É dessa incerteza, das dúvidas, das possibilidades de recursos e das mudanças de sentenças que se faz uma Justiça independente. O dia de hoje é importante não pelo resultado do julgamento, mas porque o Brasil tem uma democracia forte o suficiente para investigar, denunciar, julgar políticos suspeitos, de qualquer partido. Até mesmo um líder popular e que por duas vezes ocupou a Presidência do país. Ninguém está acima da lei.
Marco Aurélio Nogueira: Um julgamento para flertar com a História
Desçam todos, por favor. Faremos uma pausa. Passado o dia de hoje, 24 de janeiro, não haverá novo tempo nem outra época. A vida será a mesma. Com ou sem condenação, a democracia permanecerá, as regras do jogo não serão alteradas, as liberdades não falecerão, eleições continuarão a acontecer. Entre choros, palmas e velas, a institucionalidade jurídico-política prevalecerá, radicalismos à parte, que fazem parte do jogo. A viagem seguirá, após a parada obrigatória. Passageiros continuarão inquietos e divididos, mas seguirão em frente, refrescados uns, pilhados outros. O destino ainda não será vislumbrado, mas todos saberão que ele está logo ali, nas urnas de outubro.
Passado o julgamento, alguma redefinição terá de se impor, ainda que o clima de dramatização persista. Não mais o crime, a culpa ou a inocência, mas o futuro dos personagens, seu potencial e sua razão de ser. Reiterada a condenação de Lula, o PT judicializará a política, concentrando-se numa discutível batalha jurídica a ser travada nos tribunais. Absolvido o ex-presidente, o partido será vitaminado e voltará a ter chances de mostrar o que propõe para o país, além de Lula.
A tese partidária é que, com a condenação, “não teremos mais normalidade institucional no Brasil”, como diz Gleisi Hoffmann, sem se dar conta do tamanho das labaredas que carregam suas palavras. A perspectiva é tão burra politicamente que não é de se acreditar que todos os petistas pensem do mesmo jeito. Afinal, se as eleições serão uma “fraude”, como reza a cartilha, o certo seria ignorá-las. O partido, porém, nem pensa nisso.
O fato, mal processado sobretudo pelos petistas, é que Lula é só a ponta de um gigantesco iceberg, no qual se abraçam políticos de praticamente todos os partidos brasileiros, de centro, direita e esquerda. Todos estão sujos, mas só Lula estaria a pagar o pato? O problema é que sem Lula a esquerda não sabe se orientar. A direita tem vários nomes, além de ter, também, fortalezas muito mais poderosas para resistir ao cerco da Lava Jato.
A esquerda não pode cometer deslizes de corrupção, nem falcatruas, nem levar vantagens pessoais, nem trambicar com os poderosos, nem manter relações promíscuas e não transparentes com quem quer que seja. Se faz isso, deixa de ser esquerda, converte-se numa vertente degenerada da esquerda, tendo ou não consciência dessa opção.
A esquerda dominante não admite isso. Minimiza a sujeira que acumulou quando esteve no poder. Alegar que não há provas suficientes nem crimes é fazer como o avestruz. É desrespeitar a inteligência alheia.
Não se trata somente de Lula. Ele está no centro, domina a planície, é tratado como um semideus imune a críticas. É visto como um raro talento político e os mais empolgados a ele se referem como “o maior líder popular da história”. Lula não se constrange de ser mitificado, talvez na expectativa de que a idolatria ajude a iluminar o caminho da salvação. Não admite ter errado e dormido no ponto no caso do tríplex: como então, uma pessoa rica não pode comprar um apartamento de 1 milhão de reais? Sua opção por não ter propriedades imobiliárias à altura de suas rendas e posses levanta mais suspeitas que aplausos, e seus advogados erraram feio ao não alertá-lo para isso.
O problema é que os que patrocinam e endeusam Lula comprometem parte importante do campo progressista. Não se dão conta disso. Engajam-se, PT à frente, numa viagem de destino impreciso, mas que não poderá seguir roteiros já pisados anteriormente. Ficam paralisados, como a rã diante da luz. Mas se mexem sem cessar, sem um foco claro e sem uma mensagem sintonizada com as carências do pais.
Deixam de perceber que, se não souberem ir além das idiossincrasias e agruras do líder, se não forem maiores do que ele, perderão autoridade e força moral.
Dilemas existenciais
Seria então o momento ideal de se pôr a mão na consciência e resolver alguns dilemas de tipo existencial. Há perguntas incômodas, que não querem calar.
Não haverá mesmo opção melhor, em termos políticos? Não valeria a pena virar o disco e ouvir as canções do lado B? Quem ganhará e quem perderá com a insistência em manter tremulando o estandarte da redenção? Do que necessita o País real? De que homens e mulheres, de que ideias, valores e programas, de quais compromissos? Vamos permanecer pendurados no mesmo mastro, alegando que nele se decide o futuro da Humanidade, que nele estaria inscrito o segredo da democratização brasileira? É isso que chamamos de Esquerda do século XXI?
O principal dilema de Lula e do PT é saber o que fazer no dia seguinte. Não há plano alternativo se Lula for impedido de concorrer. A estratégia é esticar a corda até o limite, manter o mito vivo e sensibilizar o eleitorado para, eventualmente, receber de braços abertos o ex-presidente sofrido e calejado, ou um seu sucessor, fresco de tinta. O espectro de uma segunda Dilma passeia pelo campo petista, mas nem o partido nem a militância parecem preocupados com isso. Para eles, a política deixou de ser praticada com os olhos no interesse mais geral. O importante é salvar o patrimônio acumulado, mantê-lo como um trunfo, um recurso para batalhas vindouras. “O PT vai para o tudo ou nada com Lula”, falou Jilmar Tatto, vice-presidente do partido em São Paulo.
Não se trata de defesa ou solidariedade ao velho chefe cansado de guerra. Mas de estratégia política. Com seus limites, sua frieza e sua indiferença pelas consequências. O PT não delineia qualquer alternativa e nem ela surge a partir de fora dele.
Há outro dilema, não exclusivo do PT e ainda mais decisivo. Quem pode determinar se Lula é ou não culpado? Nas democracias, é o sistema judicial quem decide isso. Sim, Moro, os tribunais, o TRF-4, o STF – essas instituições mesmas, que estão sendo postas em dúvida pelos defensores do ex-presidente. O dilema, aqui, é se se deve ou não aceitar tal prerrogativa institucional. Elas só seriam legítimas se prendessem todos os larápios ao mesmo tempo, de uma só vez? Ou também é razoável que se hierarquizem investigações e penas? Pessoas especiais devem ter tratamento especial? Devemos ou não respeitar a Justiça, ou ela está irremediavelmente maculada pela “direita” e pelo “grande capital”?
A melhor condenação que Lula poderia receber seria mesmo nas urnas: o povo desconstruindo o mito, mostrando ter assimilado a mensagem da Lava Jato, fazendo livremente suas escolhas. Mas, caso venha a concorrer estando condenado judicialmente, o precedente será complicado demais: mostrará que a Justiça não tem força moral e institucional para controlar os demais poderes, que não há mais o império da lei, que a própria lei não vale para todos.
Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Mas é o que se tem para hoje, na conturbada área da esquerda dominante. Tema para ser considerado com atenção.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política na Unesp
Eliane Cantanhêde: Terra, água e ar
No filme da Porto Alegre sitiada, quem é ‘o bem’, quem é ‘o mal’?
Isso é tudo o que o ex-presidente Lula queria: o centro de Porto Alegre sitiado por terra, água e ar, com atiradores de elite por toda parte e cenário de filmes de ação, para que os três desembargadores do TRF-4 possam dar um veredicto amanhã, pela sua condenação ou absolvição. Imaginem as imagens!
Com esse grau de dramaticidade, Lula vai tentar mostrar não só ao Brasil, mas ao mundo, o quanto ele é poderoso e “vítima” de uma elite que domina até o Judiciário e só pensa em riscar seu nome das cédulas de outubro. No filme lulista/petista, Lula é “o bem”, o juiz Sérgio Moro é “o mal”.
Se é capaz de culpar a Lava Jato pela falência do Rio e de passar a mão na cabeça de Sérgio Cabral, acusado de roubar da educação, da saúde e de tudo o que dependia de sua caneta de governador, imagine-se do que Lula é capaz para se safar ele próprio...
Assim como o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato fez de tudo para convencer as instituições e a sociedade na Itália de que correria o risco de morrer nas penitenciárias brasileiras, Lula faz agora o que pode e o que não pode para se dizer alvo do mesmo sistema torpe e de uma justiça contaminada.
Bem, a Itália mandou Pizzolato de volta, ele passou um tempinho na cadeia e já está livre, vivinho da Silva e sem um arranhão. O mesmo pode acontecer com Lula: sair dessa como qualquer réu, condenado ou absolvido, aguardando as outras ações. Ele não vai morrer por isso. Nem ele e tomara que ninguém, apesar do aparato de segurança e da ameaça da presidente do PT.
Soa estranho quando intelectuais não se horrorizam com a necessidade de aviões, navios e tanques para a segurança dos desembargadores, mas se metem a falar sobre autos que não conhecem, para inocentar Lula com a mesma sofreguidão com que seus adversários exigem a condenação.
Em sua condenação, Moro concluiu, grosso modo, que empreiteiras ofereciam o triplex a Lula com uma mão enquanto roubavam dinheiro público com a outra. Sob outro ângulo, que Lula negociava vantagem pessoal para deixar as empresas roubarem em paz. O TRF-4 vai julgar se há ou não provas e evidências disso.
Os opositores de Lula dispensam provas (?!). Os defensores alegam que ele tem o direito de comprar apartamento e alugar sítio. Ora, ora! Se ele tivesse comprado o triplex ou alugado o sítio de Atibaia não haveria nenhum problema, nenhum processo, nenhum fuzuê, nem aviões e tanques amanhã. O problema é justamente o contrário: ele não comprou nem alugou e é acusado de tê-los ganho num troca-troca entre corruptores e corruptos.
Outros defensores de Lula sugerem algo ainda mais bizarro: que os desembargadores anulem tudo, porque, afinal, Lula é Lula e eles devem jogar a Constituição, as leis e a responsabilidade no lixo para atender à pressão de quem? Dos intelectuais! Dos intelectuais do Direito ao menos? Não, de qualquer um que seja tratado como intelectual.
Muita calma nessa hora! O debate irascível, a guerra e a parafernália em Porto Alegre desrespeitam a Justiça e, repita-se, servem para endeusar ainda mais Lula, que conduz corações e almas e conspira contra a racionalidade, de um lado e de outro.
De nossa parte, o que se pode desejar é que o TRF-4 faça justiça. Como? Os três desembargadores, que estudaram Direito a vida toda, estão lá por concurso e se debruçaram sobre cada página da condenação de Lula, saberão como, para mantê-la ou não. O importante amanhã não é o que ocorrerá fora, mas dentro do TRF-4. Deixem os homens trabalhar!
As eleições são outra história: se é praticamente unânime que Cristiane Brasil não pode assumir o ministério por multas na Justiça do Trabalho, por que Lula deveria assumir a Presidência depois de tantas complicações na Justiça?