eleições 2018
Folha de S. Paulo: Está havendo intolerância grande no Brasil, diz FHC
“Se eu pudesse reviver a história eu tentaria me aproximar não só do Lula, mas de forças políticas que eu achasse progressistas em geral.”
Mary Zaidan: Sempre eles
Lula e FHC são as vozes mais presentes no momento
Corre-se atrás do novo, busca-se um outsider, fingem-se mudanças. Mas, 24 anos depois da primeira vitória de Fernando Henrique Cardoso sobre Luiz Inácio Lula da Silva, o ativismo dos dois ex-presidentes é um dos poucos tônicos que animam a política. Para o bem ou para mal.
E não há aqui qualquer pretensão de comparar o incomparável. Só a de apontar o fato de que ambos são as vozes mais presentes no momento. Lideram a audiência em eventos, entrevistas, e no digladio enfadonho das redes sociais.
Lula, em exercícios tortuosos para manter seus fiéis, evitar a prisão e sustentar sua candidatura ameaçada pela condenação em segunda instância. E FHC, na tentativa de sacudir um centro apático, não raro volátil, que jura honrar princípios humanistas e por vezes flerta com a direita irracional.
Com impressionante lucidez ao analisar os desafios globais e nacionais diante das novas exigências da sociedade – e, portanto, da política –, FHC assusta correligionários quando se antagoniza com o mercado ou defende a descriminalização da maconha. E deixa seus pares tucanos enfurecidos com ações como a de apoio explícito à candidatura do apresentador Luciano Huck, abortada antes de existir.
Pré-candidato e com menor espaço de manobra depois de ser condenado a 12 anos e um mês por corrupção, Lula vai no caminho inverso. Praticamente só fala de si. De sua coragem, sua inocência, sua força, sua disposição para a briga.
Os demais agentes políticos – seus companheiros e até o golpista e agora corajoso presidente Michel Temer – só entram no discurso quando se encaixam na realidade paralela de Lula.
De fala fácil e grande habilidade para envolver o interlocutor, foi assim que agiu nas duas entrevistas exclusivas que concedeu em menos de 24 horas para a Folha de S. Paulo e a Agência France Press.
Cuidadosamente articuladas, as entrevistas tiveram pouco em comum além da alegação de inocência.
À France Press, Lula falou de futebol, das chances do Brasil na Copa da Rússia, dos conselhos ofertados a Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Talvez para não virar chacota internacional, não deu um pio quanto ao delírio conspiratório de interferência dos Estados Unidos em sua condenação, tema que detalhou à Folha.
A tese requentada corre solta nos blogs de aluguel, nas redes e nas bocas de pregadores da igreja lulista.
“Governos, quando não são fortes, apelam para os militares”, diz FHC, acertadamente, ainda que irritando muitos. Já ditadores e populistas de uma esquerda para lá de ultrapassada culpam o imperialismo dos Estados Unidos para escamotear suas fragilidades e esconder suas derrotas. Lula é só mais um.
* Mary Zaidan é jornalista.
Luiz Carlos Azedo: O candidato oficial
O Palácio do Planalto pressiona a cúpula do MDB para que a legenda assuma compromisso com uma candidatura própria. Esse é o desejo do presidente Michel Temer, que pretende mesmo ser candidato à reeleição se o ambiente econômico, social e político for minimamente favorável a que possa chegar ao segundo turno das eleições. A primeira condição está dada, com a queda dos juros e a inflação baixa. A segunda dependerá do nível de emprego e dos resultados da atuação do governo na área de segurança. A terceira está relacionada às outras duas e à operação em curso para montagem do novo ministério, cuja composição está sendo condicionada ao apoio a uma “candidatura oficial” do governo.
Temer não precisa se desincompatibilizar do cargo para ser candidato. E tem até o dia 15 de agosto para se decidir ou lançar outro candidato. Desse ponto de vista, leva vantagem em relação ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), que precisa se desincompatibilizar do cargo e entregar o Palácio dos Bandeirantes ao vice-governador Márcio França, sem nenhuma garantia de que será apoiado pelo PSB (uma hipótese cada dia mais improvável). No cronograma tucano, Alckmin será lançado no domingo, mas o governador paulista tem até o dia 7 de abril para se desincompatibilizar do cargo.
Para embaralhar as cartas da eleição, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), lançará sua candidatura a presidente da República na quinta-feira, quando o prefeito de Salvador, ACM Neto, assumirá o comando da legenda, no lugar do senador Agripino Maia (DEM-RN). As relações entre Temer e Maia andam muito agastadas por causa de sua movimentação agressiva. Além de se lançar candidato, ampliou a bancada na Câmara de 21 deputados para quase 40 parlamentares. A próxima adesão anunciada por Maia é do relator da reforma da Previdência, deputado Arthur Maia (PPS-BA), que estaria de malas prontas para trocar de legenda (a conferir). O presidente da Câmara também não precisa se desincompatibilizar do cargo para ser candidato.
A chave da estratégia de Temer é a montagem da nova equipe ministerial. O que acontece normalmente, quando os governos se aproximam das eleições, é as pastas serem ocupadas por secretários executivos, com o antigo titular mantendo forte influência nas decisões administrativas. É tudo o que Temer não pretende fazer. A permanência de Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) no Ministério das Relações Exteriores, de Blairo Maggi (PP) na Agricultura e de Raul Jungmann na Segurança Pública é comemorada no Palácio do Planalto como uma sinalização nessa direção. Temer abandonou a reforma da Previdência para evitar uma derrota que sinalizaria o fim do governo. A agenda da segurança pública deu nova vida ao que lhe resta de mandato, e pode ajudar a melhorar os índices de aprovação.
Hoje, a 135ª Pesquisa CNT/MDA será divulgada no final da manhã, com cenários de primeiro e segundo turnos de votação para as eleições de 2018. O levantamento também aborda a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo TRF-4 e a opinião dos entrevistados sobre a sua participação nas próximas eleições. Além disso, traz avaliações do governo federal e do desempenho pessoal do presidente Michel Temer; avaliações dos governos estaduais e municipais, bem como a opinião dos entrevistados sobre emprego e renda, saúde, educação, segurança e imigrantes venezuelanos. O cenário político entrou em movimento. Mas isso não significa vida fácil para o presidente da República. Ontem, o ministro Luís Roberto Barroso autorizou a quebra de seu sigilo bancário num inquérito que investiga o esquema de propina da Odebrecht.
Animal ferido
A quinta turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará hoje o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O recurso é contra a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, que condenou o ex-presidente a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado. Agora será julgado o mérito da ação, cujo pedido de liminar já havia sido negado pelo vice-presidente do STJ, Humberto Martins, em 30 de janeiro. O PT está pianinho, não convocou nenhuma manifestação; Lula trabalha nos bastidores do tribunal, por intermédio do ex-presidente do STF Sepúlveda Pertence, seu novo advogado, para evitar ser preso.
O coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, Guilherme Boulos, sentiu o cheiro de animal ferido. Filiou-se ontem ao PSol para ser candidato a presidente da República. Principal aliado do PT em São Paulo, incensado pelo líder petista como liderança emergente dos novos movimentos sociais, a candidatura de Boulos deve ser oficializada sábado, tendo como vice a líder indígena Sônia Guajajara.
O Estado de S. Paulo: Intelectuais de esquerda iniciam movimento a favor de Haddad
Grupo defende ex-prefeito como primeira opção do PT ao Planalto no lugar do ex-presidente Lula
Por Ricardo Galhardo, O Estado de S.Paulo
Um grupo de intelectuais ligados a esquerda – não necessariamente ao PT – manifestou apoio ao nome do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad não como plano B, caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja impedido pela Justiça de disputar a eleição, mas como primeira opção de uma frente ampla de centro-esquerda para a disputa presidencial do dia 7 de outubro.
A filósofa Djamila Ribeiro, o arquiteto Fernando de Mello Franco (ambos ex-integrantes da gestão Haddad), a historiadora Heloísa Starling, o sociólogo Jessé Souza e a psicanalista Maria Rita Kehl subscreveram o artigo Fernando Haddad, renovação e experiência, publicado na semana anterior pelo antropólogo Ricardo Teperman, o engenheiro Luiz Rheingantz e o economista André Kwak (ex-oficial de gabinete de Haddad na prefeitura) na Folha de S.Paulo.
++ Lula e o vácuo a ser preenchido
Teperman, Rheingantz e Kwak são os criadores do grupo “Eu voto no Haddad, me pergunte por quê”, formado em 2016 para alavancar a candidatura à reeleição do ex-prefeito e inativo desde a derrota para João Doria (PSDB) no 1.º turno da disputa municipal, em 2016.
O texto, feito à revelia do ex-prefeito, foi interpretado por setores do PT como uma tentativa de lançamento informal da pré-candidatura de Haddad à Presidência. Embora tenha sido publicado dias antes da Operação Cartão Vermelho, que teve como alvo o ex-ministro Jaques Wagner, também cotado para ser o eventual substituto de Lula na eleição presidencial, o artigo e o apoio dos intelectuais ganharam força depois que Wagner foi alvejado pela Polícia Federal. Wagner é acusado de receber propina da Odebrecht e da OAS.
++ Desaprovação de presidenciáveis se mantém elevada
Para muitos petistas, a ascensão de Haddad ao posto de principal alternativa do PT à Presidência, caso Lula seja declarado inelegível pela Justiça, é a principal consequência até agora da Operação Cartão Vermelho.
Procurados, nem os autores do texto nem Haddad quiseram se manifestar. Auxiliares do ex-prefeito disseram que ele não foi consultado sobre a articulação e não vai incentivar nem deixar de incentivar o movimento. “Está posto, apenas”, disse uma pessoa próxima a Haddad.
No decorrer desta e das próximas semanas, o “Eu voto no Haddad, me pergunte por quê”, que voltou a se reunir regularmente, vai anunciar novos textos e ações voltados para a construção de um “programa nacional”.
++ Marina Silva lidera corrida eleitoral em site de apostas internacional
Aos poucos, o nome do ex-prefeito deixa de ser citado apenas em conversas reservadas para ser defendido publicamente por lideranças petistas. Em entrevista à Rádio Eldorado, o ex-ministro da Justiça Tarso Genro torceu para que o PT insista na candidatura de Lula, mas caso ela seja inviabilizada, sugeriu o nome do ex-prefeito como candidato do PT. “Todo mundo sabe das ligações políticas, afetivas, de gestão pública que tenho com o ex-prefeito Fernando Haddad, que me parece um dos quadros possíveis nessas circunstâncias”, disse Tarso.
LULA VAI INDICAR EVENTUAL SUBSTITUTO
De acordo com ele, é Lula quem vai indicar o nome de seu eventual substituto. Cresce no PT a certeza de que o ex-presidente não vai deixar o partido naufragar com ele.
++ Para Ciro, 'é mais fácil um boi voar do que o PT apoiar alguém'
Petistas apontam várias pistas de que esse nome pode ser o de Haddad: o ex-prefeito foi o escolhido para o posto de coordenador do plano de governo, mais importante da pré-campanha; se recusou a ser candidato a qualquer outro cargo eletivo em 2018; com aval de Lula tem rodado o País e conversado com governadores e outras lideranças de partidos.
O apoio de Lula, no entanto, é a única chance de Haddad chegar à disputa. Hoje o ex-prefeito conta com a antipatia da maioria do PT que o considera distante da vida partidária, tal como a ex-presidente Dilma Rousseff
Gaudêncio Torquato: A vitimização de Lula
Lula vai vestir por inteiro a fantasia de perseguido por um juiz que, para ele, deveria “ser exonerado a bem do serviço público”.
A taxa de racionalidade no processo decisório da sociedade tem se expandido na esteira da contrariedade contra os políticos. Pesquisas mostram uma expressão dura – chegando ao baixo calão – por parte de grupos de todas as idades e classes. Impressiona o alto índice de votos em “nenhum” candidato nos pleitos estaduais. A indignação até pode indicar “emoção” nas respostas, mas o fato é que o voto sai cada vez mais do coração para subir à cabeça. O eleitor quer decidir de maneira autônoma, livre de ondas emotivas.
Vejamos o caso de Lula. Em entrevista ao jornal FSP (01/03/2017), diz que sua condenação pelo juiz Sérgio Moro e pela 2ª Instância produzirá uma vítima “desnecessária”. Lula vai vestir por inteiro a fantasia de perseguido por um juiz que, para ele, deveria “ser exonerado a bem do serviço público”. O cenário com o petista condenado está desenhado. O povo não foi chamado a ir às ruas, disse, mas poderá fazê-lo, o que criaria imensa balbúrdia pelo fato de que pode “ganhar até no primeiro turno”.
Luiz Inácio é, sem dúvida, um líder carismático. Escolhe o discurso adequado aos momentos, usa o timbre rouco de voz, movimenta-se no palanque como nenhum outro para gerar empatia com plateias. Essa é a síntese do que se tem dito sobre as qualidades de Lula, também conhecido por “esponja” e “teflon”, pois absorve tudo (números, informações, contexto) sem deixar que nada negativo cole nele. Há, porém, uma dúvida a ser respondida ao longo do ano: essa é a moldura atual ou uma fotografia antiga?
A verdade é que o PT e seus líderes não são mais pregoeiros da verdade. Desde o mensalão, descem a ladeira do precipício. José Dirceu, preso, vê seus bens indo a leilão; João Vaccari, ex-tesoureiro, continua preso; o ex-poderoso ministro Palocci está preso e, segundo Lula, “quem faz delação quer ficar com uma parte daquilo que se apoderou” (sobre seu ex-braço direito). O próprio ex-presidente tem seu nome envolvido diariamente na fogueira da Lava Jato. Será que nada cola nele? Ou será que o petismo ainda acredita ser o partido ético, revolucionário e distante da roubalheira na Petrobrás? Seria uma conspiração norte-americana para se apropriar do nosso petróleo? É o que garante Lula, quando diz que interessa a eles “o fim da lei que regula o petróleo”.
É fato que o ex-metalúrgico é líder nas pesquisas. A campanha nem começou, mas ele e Bolsonaro já iniciaram sua perambulação eleitoral. Pouco provável que mantenham os bons índices ante o bombardeio que virá. Mas as ruas poderão ser inundadas com bandeiras vermelhas se houver barreira à candidatura de seu ícone. Que poderá tentar acender o pavio de fogueiras nos Estados. Atenção: o carisma não é uma fonte inesgotável. Pode ser corroído pela rotina de escândalos.
O Brasil está mudando.
* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Míriam Leitão: Cenário eleitoral
Doador de dinheiro sujo sabe que agora CEO vai para a cadeia. O quadro eleitoral fica mais presente, ainda que não tenha nitidez. A semana terá lançamento de pré-candidaturas e julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no STJ. Isso depois de uma semana em que Lula deu a entrevista acenando para Michel Temer e o presidente passou a ser investigado em mais um processo, por pedido de sua escolhida Raquel Dodge e decisão do ministro Edson Fachin.
Há vários motivos pelos quais esta será uma eleição diferente das outras. Uma delas é o financiamento. A doação legal das empresas foi proibida, a ilegal está sendo constrangida fortemente. Hoje, as empresas sabem que o CEO vai pra cadeia, que dono e herdeiro de empresa podem passar uma longa temporada na prisão. Estão todos avisados. E isso, no mínimo, terá o poder de dissuadir muita gente que em outros tempos não hesitaria em encher malas de dinheiro e enviá-las para candidatos. Caso nada disso constranja o dinheiro sujo, quem fizer uma campanha cara ficará exposto.
Os dois partidos que têm o maior volume de dinheiro do fundo partidário e do fundo eleitoral são o MDB, com R$ 304,9 milhões, e o PT, com R$ 300,9 milhões, segundo estimativa feita pelo cientista político Jairo Nicolau. Desses, o MDB ainda não disse com que candidato vai. O PT aferra-se à candidatura de Lula, que muito provavelmente será declarado inelegível. Dois candidatos que têm pontuado bem em todas as pesquisas, Jair Bolsonaro e Marina Silva, terão apenas R$ 14,8 milhões (PSL) e R$ 14,6 milhões (Rede), 23º e 24º lugares na distribuição de recursos públicos. O Podemos receberá R$ 41 milhões. Os grandes partidos ficam com a parte do leão. Ao todo serão 35 partidos recebendo o valor de R$ 2,362 bilhões do dinheiro do contribuinte. Pela estranha legislação brasileira de recursos públicos para as eleições, até os muito nanicos ou que acabaram de se formar terão direito a um bom bocado. Os três últimos serão PCO, PMB e Novo, cada um com em torno de R$ 2 milhões. A lei concentra os recursos nas oligarquias partidárias, e distribui um cala-boca para partidos sem qualquer viabilidade eleitoral.
O MDB não tem candidato a presidente desde 1994, quando Orestes Quércia ficou com 4,4% dos votos, atrás de Enéas. Desta vez, o partido tem um poder inédito: o da máquina da Presidência. Além do maior volume de recursos públicos, num tempo de vacas magras de financiamento. Resistirá ao apelo de ter um candidato mesmo que seja Temer e sua terrestre popularidade?
A entrevista de Lula à Monica Bergamo esclareceu muitos pontos. Ele criou a versão fantasiosa de conspiração americana contra a Petrobras porque essa ginástica nos fatos talvez sirva para os palanques. Com um mínimo de honestidade não dá para explicar o ataque do PT e seus aliados aos cofres da Petrobras sobre o qual há evidências acima de qualquer dúvida. Melhor dizer que tudo é culpa da cobiça americana atrás das reservas do pré-sal. O outro delírio também tem um propósito. Quando ele diz que Temer resistiu ao que ele definiu como tentativa de golpe da Globo está evidentemente querendo construir uma ponte para o futuro com seu velho aliado nas últimas campanhas, o partido do Temer.
Na campanha de Jair Bolsonaro, o economista Paulo Guedes deu entrevistas longas para explicar seu pensamento. Continua sem solução o mistério de como as ideias liberais de Guedes serão colocadas na mente intervencionista do candidato. Já nas ideias políticas, parece haver mais harmonia. À “Folha de S. Paulo”, Guedes declarou: “O Ustra disse que não torturou ninguém. Quem está falando a verdade, quem não está?” Mais de quarenta pessoas que passaram pelo Doi-Codi, entre 1970 e 1974, então sob o comando de Ustra, não podem sequer dar suas versões, porque não saíram vivas.
A eleição cuja campanha oficialmente não começou é um tabuleiro em que as pedras se movem a cada dia, mas ainda está muito longe de se saber como será o jogo para valer.
* Em 2017, exceto por uma semana, passei o ano mergulhada no trabalho neste país intenso e esqueci das férias. Por isso, sairei agora por três semanas. Vocês ficarão com o talento dos colunistas Alvaro Gribel e Marcelo Loureiro.
Merval Pereira: Voluntarismo confronta tradição
Voluntarismo confronta tradição de grandes partidos. Os três pré-candidatos mais bem colocados atualmente nas pesquisas eleitorais, partindo-se do princípio de que o ex-presidente Lula está fora da disputa, não têm estruturas partidárias fortes. Jair Bolsonaro, a caminho do PSL, Marina Silva, da Rede, e Ciro Gomes, do PDT, superam até o momento potenciais candidatos dos dois partidos que dominam a política nacional nos últimos 25 anos, PT e PSDB.
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, perde para Bolsonaro em seu próprio estado, nicho tucano que vem sendo desmontado pelo voluntarismo do candidato da extrema-direita. Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste, onde os tucanos costumavam reinar, também Bolsonaro aparece bem votado, e um dissidente do PSDB abre caminho em outro pequeno partido, o Podemos.
O senador Álvaro Dias vem crescendo no Sul e crava sua liderança no seu estado natal, Paraná, berço da Operação Lava-Jato. Ciro Gomes domina o eleitorado nordestino na ausência de Lula, e não dá margem a que um candidato petista substitua o ex-presidente na preferência do eleitorado.
Já Marina Silva, com seu minúsculo partido que terá cerca de 1% do tempo de propaganda gratuita de rádio e televisão, e a menor verba partidária de quantos disputarão a eleição, mantém-se na memória afetiva da população e aparece sempre disputando uma vaga no segundo turno, mesmo quando Lula está na parada. Afinal, já teve 20 milhões de votos em duas eleições presidenciais seguidas, o que não é de se desprezar.
Mesmo diante de todas essas evidências de que a política tradicional está sendo atropelada pela indignação das ruas, políticos tradicionais como o próprio Lula, ou até mesmo o vereador e ex-prefeito do Rio Cesar Maia, acham que a disputa final se dará mais uma vez entre petistas e tucanos. Por isso Cesar Maia desestimula publicamente a tentativa de seu filho, o deputado federal e presidente da Câmara Rodrigo Maia, de abrir caminho próprio para disputar a Presidência da República pelo DEM.
Maia filho será lançado esta semana, e vê uma avenida aberta para candidatos novos diante da ausência de Lula e da falta de alternativas apresentadas ao eleitorado até o momento. Rodrigo Maia não acredita na competitividade do PSDB, e muito menos de Geraldo Alckmin.
O governador tucano, no entanto, se movimenta à moda antiga, o chamam de candidato analógico em tempos digitais, fechando acordos com outros partidos da política tradicional como PTB e PSD, da base do governo Temer. As negociações com outras legendas, como PPS e PV, estão avançadas. O objetivo é ter cerca de 25% do tempo de TV em cada bloco diário de 12 minutos, na certeza de que esse será o diferencial numa eleição em que estão em jogo cargos que dependem de acordos partidários amplos para garantir o número de votos necessários.
O único candidato fora das grandes estruturas partidárias que raciocina com elementos da velha política ainda é Ciro Gomes, que, embora descrente devido às divergências que vem tendo com a estratégia de Lula e do PT, ainda vislumbra uma aliança improvável mesmo antes do segundo turno.
O que está em disputa são duas visões distintas da política partidária neste momento por que o país passa: as grandes estruturas partidárias lutam por manter seu espaço tradicional, enquanto as lideranças carismáticas, seja por que motivo for, jogam nas redes sociais para fomentar dissidências, que desestruturariam os acordos estabelecidos historicamente. Ciro ainda acredita que a esquerda acabará vendo nele a salvação do projeto de poder. Lula, a única liderança carismática que tem uma estrutura partidária forte, mesmo que abalada pelos escândalos, não consegue transplantar para um poste essa dupla qualificação.
É o que Rodrigo Maia quer fazer com o DEM, um tradicional parceiro do PSDB que tenta alçar voo próprio na certeza de que o sinal será invertido: os tucanos, constatando a inviabilidade eleitoral de Alckmin, o cristianizariam em seu favor. É o que o PPS tentou fazer com Luciano Huck, comendo por dentro as bases tucanas.
O governador de São Paulo, por sua vez, trabalha seu estilo zen, acusado de anódino pelos adversários, na certeza de que ao final ele será o aglutinador das forças do centro nacional, incluindo aí o MDB do presidente Temer. Assim como Lula acha que, ao final, será o candidato do PT que lançará, e não Ciro Gomes, o destinatário dos votos da esquerda.
Eliane Cantanhêde: Meirelles vice de Alckmin
Ministro queria ser vice de Aécio e pode virar de Alckmin com apoio de Temer
Está em gestação a jogada mais pragmática de toda essa campanha eleitoral tão desajeitada: uma chapa com Geraldo Alckmin na cabeça e Henrique Meirelles na vice. Um pelo PSDB, outro pelo MDB, reativando a aliança entre os dois partidos interrompida nos anos do PT e agregando à candidatura Alckmin os êxitos econômicos do governo Temer, mas trazendo como contrapeso sua carga de denúncias e dívidas na Justiça.
As conversas avançam e podem ter evoluído na sexta-feira no encontro do presidente Michel Temer com o tucano Fernando Henrique Cardoso, já que uma costura assim só tende a evoluir com o aval de FHC e o patrocínio de Temer. Se FHC tem sido seguidamente azedo com o governo, vai ter que adoçar o tom.
A operação exige acordos delicados, mas não chega a ser tão complicada. Nem Meirelles é homem de partido, nem o seu partido, o PSD, deu a mínima bola para as pretensões presidenciais dele. Logo, o divórcio será amigável, com todos, ao final, participando da mesma campanha: a de Alckmin.
Se Meirelles é um candidato em busca de uma sigla, o MDB é uma sigla em busca de um candidato. Tenha os problemas que tiver, o MDB é precioso para Alckmin, pelo tempo de TV, ramificação nacional, bancadas no Congresso, governos estaduais e prefeituras. Bem... os emedebistas ajudam a manter o Brasil como a terceira maior população carcerária do planeta, mas que candidato despreza uma aliança assim mesmo?
De outro lado, o presidente do PSD, Gilberto Kassab, é um pragmático flexível e não tem do que reclamar. Tinha horror de Alckmin, mas encomendou a fantasia para ser vice de João Doria em São Paulo e, se “ceder” Meirelles para a coligação do próprio Alckmin ao Planalto, aumenta ainda mais suas fichas para 2019.
O sonho de Meirelles é ser político e a realidade é que ele sempre recua. Saiu do BankBoston para disputar a Presidência da República, mas se elegeu deputado pelo PSDB e virou mesmo foi presidente do Banco Central do PT. Desde então, colhendo troféus e reconhecimento no Executivo, nunca parou de sonhar com a adrenalina das campanhas.
Meirelles se lançou ao governo de Goiás em 2006 e 2010 e chegou a namorar a ideia de ser vice de Aécio Neves em 2014, mas não teve espaço. É natural que agora desça um degrau para trocar a própria candidatura pela vice de Alckmin, aliás, num País em que ser vice é uma aposta e tanto, que o digam Sarney, Itamar e o próprio Temer, em apenas trinta anos. E Meirelles não seria um candidato a vice qualquer, muito menos um vice qualquer.
A candidatura Alckmin tem sobrevivido de solavanco em solavanco, mas vai se afirmando em cima de uma constatação límpida: não apareceu ninguém melhor para unificar o tal “centro”. Doria queimou a largada e vai caminhando para seu Plano B, o governo de São Paulo. Luciano Huck era para valer (apesar do sarcasmo dos mal informados), mas amarelou na hora de acelerar. Rodrigo Maia mal engatou a primeira. E Álvaro Dias, um ex-tucano, não sai do Sul.
O projeto Alckmin avança e tem uma peça chave: Michel Temer. O presidente vive numa gangorra estonteante, ora lá em cima, com intervenção no Rio, dados econômicos, leve recuperação de empregos; ora lá em baixo, com decisões da PGR e do STF sobre o porto de Santos e as relações perigosas do MDB com a Odebrecht. Um fato, porém, é inquestionável: ele recuperou força política.
Temer tem o que mostrar, demonstrou capacidade de iniciativa e, com certeza, será “um player”. O beneficiário tem tudo para ser Alckmin, mas o apoio tem preço: a defesa do seu “legado”. É assim que, nem amado nem odiado, como os bons candidatos, Alckmin vai pela estrada largando concorrentes e colhendo aliados a partir de uma dura conclusão: “Se não tem tu, vai tu mesmo”.
Fernando Henrique Cardoso: A intolerância na política
Os ânimos políticos andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades
A democracia, além de ser um modo de determinar quem acede ao poder e por quanto tempo, de definir que o povo é soberano e, portanto, os eleitores escolhem quem manda, supõe uma cultura de convivência. Nesta se aceita como legítima a diversidade de pontos de vista, respeitadas a Constituição e as leis, e também se aceita a possibilidade de quem pensa de um jeito vir a pensar de outro. Noutros termos, na luta política há adversários, não gladiadores prontos a matar inimigos.
Infelizmente se está criando no Brasil uma cultura da intolerância. E assim em outros países, como em alguns europeus e nos Estados Unidos. Estamos vendo o renascimento da xenofobia, o horror ao “estrangeiro”, ao diferente. Entre nós os ânimos políticos também andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades. Por temperamento e convicção, procuro me comportar dentro das regras da civilidade democrática. Busco ouvir e respeitar não só os “nossos”, mas os “outros”. Ouvir não quer dizer concordar, mas prestar atenção ao ponto de vista do interlocutor.
Vi com bons olhos a formação da Rede. Enxergo em Marina Silva uma figura positiva na política brasileira. Procedi da mesma maneira na formação do (Partido) Novo, conversei com seu presidente, João Amoedo, como converso com muitos políticos. Dentro de minhas limitações procuro incentivar a entrada de jovens na vida pública. Apoiei o Vem pra Rua, participei de seminário da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), saudei o RenovaBR, assim como faço com o Agora. Manifesto-me positivamente quanto aos “novos”, procuro saber deles e se possível com eles conviver.
Tampouco deixo de me relacionar com adversários políticos. No auge do antipetismo paulista almocei na Prefeitura com Fernando Haddad e em outra ocasião assistimos juntos a uma ópera. Nem por isso aderi ao PT. Boateiros inventaram que em encontro mais recente com Fernando Haddad tratamos de que se Lula desistisse da candidatura o STF não o prenderia. Como se eu tivesse força para tanto...
Sendo assim, por que não haveria de saudar a predisposição de Luciano Huck de participar da vida política? Trata-se de pessoa próxima ao PSDB, a quem prezo e de quem sou amigo. A irritação causada em certos setores pelo simples fato de eu haver dito publicamente que sua entrada na campanha eleitoral era saudável e poderia atrair apoios, sobretudo dos mais jovens que buscam alternativas, mostra o grau de intolerância entre nós. Não disse que o apoiaria, disse que sua disposição de participar era positiva.
De repente, gente que nunca votou nem votará no candidato presidencial que vier a ser escolhido pelo PSDB reagiu com fervor, cobrando de mim o desnecessário, a fidelidade partidária, que nunca deixei de ter. Ela, contudo, não me desobriga de tomar em consideração que o País precisa de renovação política. A entrada de novos contendores – mesmo no PSDB – não me leva a preferi-los automaticamente, mas a reconhecer que eles podem ajudar os antigos a se renovar, e o País necessita de arejamento na política. Isso sem esquecer que a eleição presidencial se faz em dois turnos (Marina, por exemplo, mediante pontos programáticos, apoiou o candidato do PSDB no segundo turno em 2014).
Como Luciano desistiu, imediatamente inventaram que eu estaria mandando fazer pesquisas de opinião em busca de “alguém” (deram até nomes de pessoas com quem não tenho nenhuma proximidade política) porque, segundo leio nos jornais, eu estaria preocupado com o desempenho nas pesquisas eleitorais do eventual candidato do PSDB. E não adianta repetir que minha escolha está feita, Geraldo Alckmin, e que, no momento oportuno, as pesquisas registrarão sua ascensão. As maledicências, contudo, não diminuirão meu ímpeto de ajudá-lo a enfrentar a campanha e se apresentar com um discurso propositivo. O Brasil precisa, neste momento, de alguém que una as forças democráticas e, respeitando o funcionamento dos mercados e da economia, não só cuide de manter em ordem o Orçamento, mas olhe para as carências do povo e seja honesto. Diga-se o que se quiser, o PSDB no comando de São Paulo há 20 anos não se desviou desses preceitos e Alckmin governou o Estado durante quase três períodos administrativos.
As críticas e maledicências certamente continuarão. Uma vez postas na mídia, como pode o leitor separar o falso do certo? Haverá quem insista, utilizando frases minhas, tirando-as do contexto, em manter suas próprias opiniões e imagens como se fossem minhas. Transmitem “informações”, alegando dispor de fontes nunca mencionadas, para tirar as castanhas do forno com as mãos do gato.
É próprio do jogo do poder, sempre foi, construir imagens falsas dos adversários. Logo que comecei a participar de campanhas eleitorais, escrevi um artigo sobre o papel da infâmia, da má fama na vida pública, atribuída aos adversários. E isso muito antes de se falar em fake news, quando as mídias sociais ainda não existiam. Imagine-se agora...
Seria mais honesto, contudo, que quem põe em circulação tais boatos e intrigas assumisse o lado em que está no jogo do poder. Que se despisse do manto protetor de ser apenas um comentador e entrasse na arena política. E que, nesta, agisse como “adversário”, e não como “inimigo”. Sem desacreditar os “do outro lado” com informações falsas ou meias-verdades, para com elas mais facilmente ganhar a parada.
A imprensa deve precaver-se para não ser instrumento de quem está interessado na disseminação de rumores, e não da informação correta. Ser crítica é característica essencial da mídia nas democracias e a nossa imprensa tem cumprido o seu papel. Mas a crítica deve ser assumida por quem escreve, não atribuída a terceiros, sobretudo quando estes recusam o papel que lhes é dado.
* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República
Luiz Werneck Vianna: A vitória da Constituição
A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História
Para quem queria a ocupação das ruas pelo povo, o cenário deste carnaval que passou, com as multidões que mobilizou nos blocos e nas escolas de samba, principalmente na capital paulista, ainda sem tradição nesse tipo de manifestação carnavalesca, surpreendeu os mais céticos, que não esperavam a volta da alegria na vida popular. Embora sem perder a conotação de crítica social, o momento catártico foi o dominante entre a nova geração, que ainda não conhecia a experiência carnavalesca, em particular entre as jovens que acorreram em massa aos blocos, num movimento indisfarçável de afirmação de gênero.
Com esse registro, a que se deve acrescentar o do desfile das escolas de samba, a política conta com mais uma matéria para a reflexão nesta hora de seleção das candidaturas presidenciais, ainda sem definição. Relativizando o caso de alguns desfiles que optaram por uma crítica política contundente ao governo, uma vez não se pode evitar o comentário do jornalista Ancelmo Gois, ao lembrar que no Brasil “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e uma escola comandada por um bicheiro, a querida Beija-Flor, vence o carnaval que fala de corrupção” (O Globo 15/2).
Essa hora de escolha que já tarda, não só pelas dificuldades naturais ao momento que se vive, mas também porque a cultura do golpismo, essa segunda pele da nossa política, já encontrou uma nova modalidade de conspirar contra o processo eleitoral, a partir de uma declaração de um delegado de polícia sobre um inquérito de presumidas ações praticadas pelo presidente da República. O mais triste desse episódio está no fato de envolver um alto membro do Poder Judiciário, de quem sempre se esperam atos e palavras de concórdia, e esteja ele puxando a corda em favor do prolongamento da nossa agonia.
A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História, em mais uma tentativa de destituição por um processo judicial do chefe do Executivo, como está em curso, uma vez que não contam nem com as ruas nem com os quartéis. Nos seus cálculos malévolos maquinam que com o governo acéfalo caberia ao Poder Judiciário o exercício de um governo de transição que dirigiria, amparado pela Polícia Federal, o processo eleitoral. Tal solução, ou algo próximo a ela, talvez seja o que nos falta para nos converter num imenso manicômio em que todos os internos se apresentem como candidatos à Presidência da República.
Mas o mundo gira e a Lusitana roda, imprevistamente o cenário e o enredo se transfiguram com um movimento de peças desse jogo de xadrez ainda distante de encontrar um vencedor. Nessa nova disposição, provocada pela intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, o centro de gravidade da crise se desloca do tema da corrupção política para o da violência e da criminalidade organizada, cujo poder já ameaçava nacionalizar-se e se projetar no campo da política. Mudando o repertório, o peso dos atores envolvidos igualmente muda, com a depreciação do papel do Poder Judiciário, até então o principal protagonista da conjuntura, que cede lugar ao Poder Executivo, que trouxe a iniciativa para si e para a corporação militar, numa arriscada operação que se esforçou por se manter, malgrado alguns senões, nos trilhos constitucionais, a essa altura chancelada por esmagadora maioria nas duas Casas legislativas.
Um dos efeitos colaterais dessa intervenção foi o de revelar o tema da segurança como central para partidos e candidatos na formulação dos seus programas. Ao contrário da blague famosa, parece que aqui, pelos sucessos recentes, o tema da economia valerá na hora do voto menos do que se previa.
Confirma-se, mais uma vez, o desamor da política brasileira pela linha reta. Aos sobressaltos, dia após dia, avança-se para o momento eleitoral, quando o destino das urnas será selado pelo êxito ou fracasso da intervenção federal na política de segurança.
Os dados estão lançados. E ainda sujeitos à manipulação humana, que pode ser decisiva para a boa sorte da iniciativa de alto risco do Executivo. Muitos não a querem por cálculo eleitoral, ou pelo temor de que as Forças Armadas, peça central na intervenção sobre os aparatos de segurança, venha atropelar a ordem constitucional em nome de uma política de salvação nacional, pondo-se no lugar dos juízes que tinham como alvo o mesmo propósito. Neste tempo em que reina a suspicácia, conta contra a hipótese malévola o fato forte de que a corporação militar se tem comportado sob estritos padrões constitucionais e das normas que regulam seus princípios hierárquicos.
A competição eleitoral, tenha o resultado que tiver, importa mais por provocar a agregação de vontades e de programas do que pela candidatura vitoriosa, que, seja qual for, estará pautada pela agenda das questões discutidas exaustivamente ao longo destes três últimos anos. Será uma oportunidade, que não pode ser perdida, para uma recomposição partidária que nos emancipe do domínio das corporações que às nossas costas pretendem guiar nosso destino. Desde as magistrais lições de Pierre Bourdieu sobre o Estado se sabe que o segredo da força das corporações está em revestir os interesses particulares dos seus membros em pleitos públicos de caráter geral. No nosso caso, liberar a política transita pela limitação do poder das corporações, que com frequência impõe a todos a sua agenda de interesses particulares, em detrimento dos da maioria.
Mas, apesar de tanta confusão, neste país onde todos querem ser califa no lugar do califa, há algo a ser comemorado, qual seja, o fato de que todos os envolvidos nesse charivari nacional jurem estar agindo em nome da Constituição. E, de fato, se as aparências ainda contam, a sorte parece que vai sorrir para quem persuadir o maior número de eleitores de ser aquele que melhor representa o espírito do texto constitucional, que favorece a igualdade.
Alon Feuerwerker: As instituições não estão funcionando
“As instituições estão funcionando” é a platitude do momento. Num aspecto, é obrigatório reconhecer que elas funcionam bastante bem: nosso sistema de freios e contrapesos anda tão azeitado que o mecanismo travou. Em cada ação possível, há travas suficientes para impedir que qualquer coisa aconteça. O sistema político-institucional parece uma moto, ou um carro, sobre cavaletes e de motor ligado: queima combustível e não sai do lugar.
Mas nem tudo está perdido. As eleições vêm aí e teremos novos governantes em janeiro. É a boa notícia. E a má? Bem, o sistema brasileiro de freios e contrapesos produziu uma anomalia: quem é eleito não manda, e quem manda não é eleito. As intenções dos constituintes foram as melhores, mas o produto do trabalho deles acabou não sendo bom: na ânsia de enfraquecer o poder, erraram na dose e criaram uma engrenagem vocacionada à ingovernabilidade.
Só o papel não seria, porém, capaz sozinho de produzir o desastre. O definhamento da democracia brasileira é obra de múltiplas mãos desde o colapso das “Diretas já”, que obrigou a uma transição negociada, para a qual muitos torceram o nariz. Abriu-se então o longo período de apedrejamento que hoje colhe seus frutos mais carnudos. Três décadas de ataques à política, pela esquerda e pela direita, escancararam as portas do inferno para os salvadores da pátria.
Os políticos ajudaram bastante. Principalmente quando consolidaram um sistema rentável e imune à renovação e à alternância. E a coisa foi piorando a cada “aperfeiçoamento” exigido pela “opinião pública”. O resultado é uma política monopolizada por cartórios fossilizados. É impossível disputar com chances o comando desses cartórios. E eventuais desafiantes do establishment político precisam antes de tudo ter um cartório para chamar de seu.
Entre os fatores na raiz dos nossos impasses, um merece destaque especial. O descolamento entre os graus de liberdade e de democracia. Uma não se confunde com a outra. A saúde de uma democracia mede-se também por quanto a vontade da maioria influi na execução governamental e na produção congressual. E é bem possível conviverem por um tempo altas taxas de liberdade e graus apenas relativos de democracia.
O Brasil está meio assim. Convertido numa federação de déspotas supostamente esclarecidos e bem protegidos do voto. Por serem portadores da verdade e do bem, acumulam o poder de impor sua vontade de modo absoluto. Estão espalhados por todos os lugares, e não apenas na burocracia estatal. Legislam, julgam e executam de acordo apenas com o que decidiram ser o melhor para nós. São os mini-sovietes de si mesmos, mas para todos. O que isso tem a ver com democracia?
Toda obra política precisa de uma narrativa legitimadora. Gramsci explicou que sem algum consenso não há coação que dê conta. E a narrativa-candidata é, surpresa!, a “crítica ao populismo”. O “governo ideal” é o capaz de agir independente da, ou mesmo contra a, vontade popular. “Aproveite a impopularidade e faça o que tem de ser feito, presidente”. E se a esmagadora maioria for contra? “A situação é grave. Não é hora de ceder ao populismo.“
Há duas críticas do “populismo”. A primeira, mais elegante, usa a expressão para caracterizar um sistema totalizante. “Democracia não é só voto, é alternância. Se se bloqueiam todos os canais de alternância, accountability, pressão etc., a democracia degringola. E o populismo tende a fazer justamente isso.” Essa é a teoria. Na vida real, o termo é usado para carimbar políticos que governam de olho não no que é “certo e racional”, mas na popularidade.
E tudo estaria bem organizado a partir da “crítica ao populismo”, não fosse o probleminha incômodo: as eleições. Elas introduzem o desconforto de ter de convencer o eleitor. E se o eleitor não se convencer? Bem, então será o caso de fazer, mesmo que ele não esteja convencido. Para que servem então as eleições? Pergunta complicada. Talvez seja hora de chamar os especialistas em teorias igualmente complicadas sobre a “crise da democracia representativa”.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação