eleições 2018
Cora Rónai: O Facebook no divã
Maior rede social do mundo começa a se dar conta do tamanho de sua responsabilidade. Felizmente
O Facebook tirou este início de ano para discutir seu papel no mundo e, na medida do possível, fazer as pazes com os usuários. Depois das mudanças no newsfeed anunciadas por Mark Zuckerberg na semana passada, seus executivos vêm discutindo, à exaustão, a influência das redes sociais na política e nas eleições, e o perigo que podem representar (ou não) para a manutenção das democracias. Parte dessas discussões está na página de imprensa do Facebook, em posts escritos tanto por diretores da casa quanto por comentaristas convidados. O primeiro deles é de Cass Sunstein, especialista em direito constitucional que trabalhou com Barack Obama, escreveu vários livros sobre as relações entre sociedade e governo e, atualmente, é professor em Harvard. Outros posts a serem publicados em breve têm como autores Toomas Hendrik Ilves, ex-presidente da Estônia e especialista em mídias sociais, e Ariadne Vromen, professora de participação política da Universidade de Sydney, na Austrália.
É uma conversa interessante e necessária, e pode ser encontrada na categoria “Hard Questions” em newsroom.fb.com. É um pouco difícil chegar lá, já que o sistema insiste em jogar usuários brasileiros para a página br.newsroom.fb.com (onde ainda não há “perguntas difíceis”); indo via bit.ly/2F2RZmP tudo se resolve. O material está em inglês, mas o tradutor do Google faz um trabalho razoavelmente aceitável com textos assim, sem maiores nuances literárias. O resumo da ópera é simples: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, e o Facebook começa a reconhecer isso.
“Se existe uma verdade fundamental sobre o impacto das redes sociais na democracia, é que elas amplificam a intenção humana — seja para o bem, seja para o mal” — escreve Samidh Chakrabarti, diretor de engajamento cívico do Facebook. “No seu melhor, elas nos dão voz e permitem que atuemos. No seu pior, permitem a divulgação da desinformação e corroem a democracia. Eu gostaria de poder garantir que os aspectos positivos estão fadados a superar os negativos, mas não posso.”
Pois é: ninguém jamais vai poder garantir que um dia o bem triunfará sobre o mal, porque não é assim que acontece na vida real. Redes sociais são reflexos das sociedades que as utilizam, e, por mais que tantos usuários se empenhem em criar mundos ideais nas suas páginas, o ser humano continua sendo o ser humano, descendente daquele hominídeo que, ainda nas cavernas, já fazia uso de ferramentas para liquidar com os vizinhos.
Fico feliz em ver o Facebook finalmente empenhado nessa discussão, porque uma empresa com o seu alcance tem que ter a perfeita compreensão de como é utilizada e do mal que pode eventualmente vir a causar.
Mas, dito isso, não acredito, pessoalmente, que as notícias falsas tenham tido um papel tão relevante nas eleições nos Estados Unidos quanto a imprensa local supõe. Notícias políticas falsas reforçam posições e ódios, mas não mudam opiniões. Em política, pelo que temos visto por aqui, nem notícias verdadeiras conseguem mudar opiniões: basta ver a quantidade de petistas convencidos da inocência de Lula ou, inversamente, a quantidade de fãs do Bolsonaro crentes que o seu herói é a alma mais honesta do Brasil.
Ah, isso foi o outro que disse? Tanto faz, dá na mesma.
Merval Pereira: Tentativas vãs
A última tentativa da defesa é pedir, alternativamente à absolvição, a prescrição dos crimes, que teriam acontecido em 2009. No entanto, na sentença condenatória, o juiz Sergio Moro argumentou expressamente, nos itens 877 e 888, que parte dos benefícios materiais foi disponibilizada em 2009, quando a OAS assumiu o empreendimento imobiliário, e parte em 2014, quando das reformas e igualmente, quando em meados daquele ano, foi ultimada a definição de que o preço do imóvel e os custos das reformas seriam abatidos da conta-corrente geral da propina, segundo José Adelmário Pinheiro Filho. Foi, portanto, escreveu Moro, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente.
Nessa linha, o crime só teria se consumado em meados de 2014, e não há começo de prazo de prescrição antes da consumação do crime. A tentativa de sustar o julgamento do recurso contra a condenação do ex-presidente Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro devido à penhora do tríplex do Guarujá, determinada por uma juíza de Brasília, é exemplo da forma como o caso está sendo politizado pela defesa.
A juíza Luciana Corrêa Tôrres de Oliveira, da 2ª Vara de Execuções de Títulos Extrajudiciais do Distrito Federal, apresentada pelos blogs petistas como apoiadora nas mídias sociais do PSDB e, portanto, isenta na decisão que supostamente dava uma prova inconteste de que o tríplex não era de Lula, e sim da OAS, teve que divulgar uma nota oficial para colocar as coisas em seus devidos lugares.
Começou esclarecendo que “a penhora do imóvel tríplex, cuja propriedade é atribuída ao ex-presidente da República na Operação Lava-Jato, atendeu a pedidos dos credores em ação de execução proposta contra a OAS Empreendimentos SA e outros devedores”.
Ela ressalta em sua nota “(...) que cabe ao credor, e não ao Judiciário, a indicação do débito e bens do devedor que serão penhorados e responderão pelo pagamento da dívida, conforme o atual Código de Processo Civil.”
Esse procedimento, evidentemente, não pode ser desconhecido pelos advogados de Lula, que mesmo assim decidiram levar adiante a farsa como se a juíza tivesse escolhido, entre os imóveis da construtora OAS, aqueles que seriam penhorados.
A juíza explicou em sua nota que “tal decisão não emitiu qualquer juízo de valor a respeito da propriedade, e nem poderia fazê-lo, não possuindo qualquer natureza declaratória ou constitutiva de domínio. Trata-se de ato judicial corriqueiro dentro do processo de execução cível, incapaz de produzir qualquer efeito na esfera criminal”.
Esse também é um esclarecimento que não precisaria ser dado a advogados minimamente competentes. Além de tudo, o imóvel não é nem mais da OAS, pois foi confiscado na sentença de condenação do expresidente pelo juiz Sergio Moro, está sequestrado criminalmente, sequer poderia ter sido penhorado. Por isso, já foi retirado da lista de imóveis passíveis de penhora.
Como se sabe, a acusação contra o ex-presidente não é de que a propriedade formal do tríplex seja dele, e sim que, ao contrário, ele seria o proprietário de fato, com situação encoberta por artifícios justamente para esconder o produto de um crime. Daí a condenação por lavagem de dinheiro.
Mesmo assim, os advogados do ex-presidente apresentaram o termo de penhora e a matrícula atualizada do Cartório de Registro de Imóveis do Guarujá, onde consta certidão sobre o empenho, como se esses documentos reforçassem a tese de que a “propriedade do imóvel não apenas pertence à OAS Empreendimentos — e não ao ex-presidente Lula —, como também que ele responde por dívidas dessa empresa na Justiça”.
Outra prova (sem trocadilho) de que os apoiadores de Lula estão tontos, em busca de uma saída contra a condenação, é a mudança do mantra que vinham repetindo há meses. Agora, em vez de “cadê as provas?”, histericamente brandido como argumento irrefutável, afirmam simplesmente que “não há crime”.
Deram-se conta tardiamente de que argumentar que não há provas implicitamente é uma admissão da possibilidade de que Lula não seja inocente, apenas não se consegue apanhá-lo por falta de provas.
Rubens Barbosa: A candidatura Lula
Vencido politicamente, o espectro petista que ronda o Brasil poderá ficar afastado de vez
A decisão do tribunal de Porto Alegre (TRF-4) sobre a manutenção ou não da condenação do ex-presidente Lula, a ser conhecida amanhã, não põe um ponto final numa das incertezas políticas do quadro eleitoral. Ao contrário, começa um longo processo de judicialização que não deverá terminar antes das eleições de outubro. Segundo vozes experientes e abalizadas nas tecnicalidades processuais, apesar da confirmação da condenação, Lula – sempre amparado por decisões judiciais – poderá ser indicado como candidato na convenção do PT, ser registrado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em agosto e estar com seu nome nas urnas eletrônicas. Comitês populares que se atribuem a defesa da democracia e o direito de Lula ser candidato, criados pelo PT, somados às declarações radicais de lideranças petistas poderão estimular um clima de insegurança e violência no País.
A partir do resultado do julgamento, o Brasil viveria uma situação paradoxal. Um candidato condenado pela Justiça, com registro eleitoral obtido por decisões judiciais, poderá ser votado e eventualmente eleito, não podendo, contudo, ser empossado, por força da lei das inelegibilidades (Lei da Ficha Limpa), a menos que haja decisão do STF em contrário.
Sempre fui favorável a que Lula pudesse ser candidato este ano, de modo a evitar que o líder petista tenha sua imagem de mito reforçada e continue com seu discurso de vítima de um golpe e impedido de disputar a eleição presidencial pelas forças de direita. E possa repetir o mantra da ilegitimidade do novo governo eleito, porque este teria ganho “no tapetão”, por pressão das elites rentistas contra os pobres e oprimidos, abrindo espaço para mais quatro anos de paralisia do governo e do Congresso Nacional.
Nesse contexto, a entrevista concedida por Lula no dia 20 de dezembro, apesar da grande repercussão na mídia escrita, passou sem uma análise mais detida. Em duas horas de conversa com a imprensa, dizendo-se não radical, criticou fortemente ex-aliados que votaram pelo impedimento de Dilma Rousseff e, em especial, as novas políticas do governo Temer. Populista, Lula defendeu a valorização do salário mínimo, o forte papel do Estado investidor e indutor do crescimento, a expansão do crédito, a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos e a federalização do ensino médio, como se sua política econômica não fosse novamente quebrar o País. Acusou o programa de privatização de venda irresponsável do patrimônio público, condenou duramente a reforma trabalhista e não apoiou as da Previdência e a tributária, como estão sendo discutidas agora. Criticou sem muita convicção o combate à corrupção, dizendo que o dinheiro no exterior não foi recuperado, foi apenas legalizado, e defendeu a tese bolivariana do referendo revocatório. Na política externa, propôs retomar todas as “iniciativas altivas e ativas” que isolaram o Brasil e fizeram com que a voz do País deixasse de ser ouvida nos organismos internacionais. Em linhas gerais, defendeu de forma enfática as políticas dos 15 anos dos governos petistas e apresentou-se mais uma vez como o salvador da Pátria, com uma prometida carta aos brasileiros com as mesmas políticas dos últimos anos.
Minha convicção de que Lula deve ser candidato foi reforçada por essa entrevista, verdadeira plataforma e programa de governo. Alguns viram em tais declarações, muito radicais para uma eleição presidencial, o reconhecimento de que sua candidatura deverá ser impedida e que se trataria de plataforma política para eleger uma bancada petista no Congresso. Não creio que suas declarações tenham sido uma jogada tática, sinalizando ter jogado a toalha para a eleição presidencial. Minha percepção é a de que quis, mais uma vez, delimitar seu campo de ação, confiando na estratégia do “nós contra eles” e mostrando aos seguidores que, apesar das acusações de corrupção, ele e o PT mantêm todas as políticas que, na visão do partido e do candidato, deram certo.
Será importante que Lula possa concorrer para que a sociedade brasileira se manifeste sobre seu programa de forma definitiva. São inegáveis alguns avanços, nos governos petistas, na área social. Mas, sobretudo no segundo mandato de Lula e no governo Dilma, políticas econômicas equivocadas foram responsáveis pela profunda crise econômica e social em que o Brasil foi lançado. Não se podem ignorar os 14 milhões de desempregados, a grave crise fiscal e a maior recessão da História. Derrotadas politicamente, as propostas e atitudes divisivas de Lula ficarão superadas de forma legítima e não abrirão nenhuma possibilidade de contestação. O espectro petista que ronda o País poderá ficar afastado de vez.
Se Lula ganhar, poderemos ter uma nova e excitante experiência petista de governo e o Brasil estará comprando uma passagem direta para a Grécia (aonde, aliás, já chegou o Estado do Rio de Janeiro).
Ganhando um candidato de centro com uma agenda de reformas, o Brasil poderá voltar a olhar para a frente, com uma agenda de modernização que passe pelo aprofundamento das reformas e da revisão do papel do Estado, e com o enfrentamento das desigualdades e dos privilégios para tornar o País mais justo, mais democrático e mais sustentável, ou seja, justamente melhor e de forma mais permanente para os desfavorecidos. Com isso o País se tornará mais bem preparado para enfrentar as rápidas transformações em todos os campos do cenário internacional, que desafiam as instituições, os trabalhadores e os empresários.
As eleições de outubro de 2018 serão um divisor de águas para as futuras gerações. O voto definirá a volta às políticas do lulopetismo ou a visão do futuro. O Brasil terá de optar entre dois caminhos bastante distintos. Esse é o dilema que deve ser enfrentado para que o Brasil possa definir um rumo claro a ser seguido.
*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e de Comércio Exterior (Irice)
Denis Lerrer Rosenfield: A batalha de Porto Alegre
O divórcio entre o PT e a democracia representativa se revela na imagem da ‘morte’
Longínqua é a época em que o PT se vestia de defensor de outra forma de participação política, procurando seduzir não somente os incautos do Brasil, mas também os do mundo. A soberba já naquele então desconhecia limites, mas apresentava-se com as sandálias da humildade.
Era o mundo da dita “democracia participativa” e da mensagem, no Fórum Social Mundial, de que um “outro mundo era possível”. Porto Alegre tornou-se o símbolo que irradiava para todo o País, e para além dele, transmitindo a imagem de uma grande solidariedade, de uma paz que o partido encarnaria.
Para todo observador atento, contudo, a farsa era visível. Porém foi eficaz: levou o partido a conquistar três vezes a Presidência da República. Mas deixando um rastro de destruição, com queda acentuada do PIB, inflação acima de dois dígitos, mais de 12 milhões de desempregados e corrupção generalizada. Dirigentes partidários foram condenados e presos a partir do “mensalão” e do “petrolão”. Antes, o partido tinha um currículo baseado na ética na política; hoje, uma folha corrida.
No dito orçamento participativo das administrações petistas de Porto Alegre já se apresentavam o engodo, a enganação e, sobretudo, o desrespeito à democracia representativa, tão ao gosto dos petistas atuais. Reuniões de 500 pessoas em bairros da cidade, nas quais um terço dos participantes era constituído por militantes, decidiam por regiões inteiras de mais de 150 mil ou mesmo 200 mil habitantes. Impunham uma representação inexistente, numa espécie de autodelegação de poder. O partido tudo instrumentava, arvorando-se em detentor do bem, o bem partidário confundido com o público.
Num Fórum Social Mundial, os narcoterroristas das Farc foram recepcionados no Palácio Piratini, sob o governo petista de Olívio Dutra. Lá, numa das sacadas do prédio, em outra ocasião, discursou, com sua arenga esquerdizante, Hugo Chávez, líder do processo que está levando a Venezuela a um verdadeiro banho de sangue, com a miséria e a desnutrição vicejando como uma praga – a praga, na verdade, do socialismo do século 21.
Eis o “outro mundo possível”, louvado pelos atuais dirigentes do PT. A vantagem hoje é a de que a máscara caiu. O partido, pelo menos, tem o benefício da coerência.
A máscara caindo mostra com mais nitidez que a democracia representativa nada vale e que a violência é o seu significante. A mensagem de paz tornou-se mensagem de sangue. A presidente do partido não hesitou em afirmar que a prisão de Lula levaria a “prender” e a “matar gente”. A tentativa de conserto posterior nada mais foi do que um arremedo.
Conta o fato de ter ela expressado uma longa tradição marxista-leninista de utilização da violência, da morte, acompanhada, segundo essa mesma tradição, de menosprezo pelas instituições democráticas e representativas, na ocorrência atual, sob a forma de desrespeito aos tribunais. A democracia, para eles, só tem valor quando os favorece. Desfavorecendo-os, deve ser liminarmente deixada de lado. Mesmo que seja sob a forma jurídica de pedidos de liminares, para que a luta continue.
Não sem razão, contudo, o PT e seus ditos movimentos sociais consideram este dia 24 como decisivo, o de seu julgamento. Para eles, tal confronto se exibe como uma espécie de luta de vida e morte. Nela, ao jogar-se a candidatura de Lula à Presidência da República e caindo, em sua condenação, o ex-presidente na Lei da Ficha Lima, está em questão a “vida” do candidato e do seu partido. Este, aliás, escolheu identificar-se completamente com seu demiurgo, selando com ele o seu próprio destino. O resultado é uma batalha encarniçada, o seu desenlace constituindo-se numa questão propriamente existencial.
A imagem da “morte”, segundo a qual os militantes fariam sacrifício por seu líder, por não suportarem a prisão dele, nada mais faz do que revelar o profundo divórcio entre o partido e a democracia representativa, com as leis e suas instituições republicanas. Pretendem sujar a Lei da Ficha Limpa com o sangue de seus seguidores.
Assim foi na tradição leninista: os líderes mandavam os seguidores para o combate e a morte, permanecendo eles vivos; e depois, uma vez conquistado o poder, usufruindo suas benesses. O sangue do ataque ao Palácio de Inverno e a vitória da revolução bolchevique levaram aos privilégios da Nomenklatura, dominando com terror um povo que veio a ser assim subjugado.
Segundo essa mesma lógica “política”, sob a égide da violência, Lula e os seus dividem apoiadores e críticos nomeando os primeiros como “amigos” e os segundos, “inimigos”. Sua versão coloquial é a luta do “nós” contra “eles”, dos “bons” contra os “maus”, dos “virtuosos” do socialismo contra os “viciados” pelo capitalismo. Ora, tal distinção, elaborada por um teórico do nazismo, Carl Schmitt, é retomada por esse setor majoritário da esquerda, expondo uma faceta propriamente totalitária. Lá também a morte, o sangue e a violência eram os seus significantes.
O desfecho do julgamento do dia 24, estruturante da narrativa petista, será vital para o destino do partido. Em caso de condenação, o que é o mais provável, o partido continuará correndo contra o tempo, numa corrida desenfreada por meio de recursos jurídicos, procurando esgotar os meios à sua disposição do Estado Democrático de Direito.
Assim fazendo, tem como objetivo produzir uma instabilidade institucional que venha a propiciar-lhe a reconquista do poder, produzindo um fato consumado numa eventual eleição sub judice. Seria consumar a morte da democracia representativa, solapando seus próprios fundamentos.
Resta saber se o partido conseguirá, para a concretização de seu projeto, realizar grandes manifestações de rua. Se lograr, a democracia representativa correrá sério risco. Se malograr, o partido estará fadado a divorciar-se ainda mais da sociedade. A narrativa soçobraria na falta de eco.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS
El País: O plano do Agora para chegar ao poder
Ilona Szabó explica as bases do movimento ao qual Huck se juntou. Grupo diz que combate à desigualdade é uma das metas e que foco para outubro será o Legislativo
Por Mariana Rossi
Sobre uma mesa em Medellín, durante um encontro regional do Fórum Econômico Mundial em junho de 2016, um grupo de três jovens rabiscava alguns nomes em um guardanapo. Queriam lembrar das figuras que poderiam se juntar a eles para formar um movimento capaz de “juntar a geração e se aproximar da política”, como descreve Ilona Szabó, que integrava o trio naquele dia. Com ela, Leandro Machado e Patrícia Ellen criavam o Agora! (eles escrevem com exclamação ao final: Agora!).
O movimento se autodefine como apartidário, plural e sem fins lucrativos. Formado em grande parte por profissionais técnicos e acadêmicos – são 90 membros no total, sendo 50 cofundadores – um dos seus objetivos é “renovar a política”, termo que já não tão novo assim no desgastado cenário político brasileiro.
Ganhou maior visibilidade nas últimas semanas, quando o apresentador global Luciano Huck anunciou no programa Domingão do Faustão, da Globo, que era membro do movimento. Só isso já seria suficiente para que os holofotes se voltassem ao Agora. Mas junta-se a este anúncio o fato de o apresentador ter sido fortemente cotado como pré-candidato à presidência no ano passado. Embora tenha anunciado sua desistência da candidatura no dia 27 de novembro, no programa dominical ele aparece com ares de candidato ainda, dizendo querer “um Brasil melhor” e “o que o destino e o que Deus esperam para mim, eu vou deixar rolar”. O programa foi ao ar no dia 7 de janeiro, mas fora gravado em 11 de novembro, antes, portanto, do anúncio da desistência de Huck.
De qualquer forma, Ilona Szabó rejeita o carimbo de movimento do Luciano Huckpara o Agora. “Luciano é um membro como outro qualquer”, diz. “Todos os membros trazem alguma coisa para o Agora.” No caso do apresentador, ela afirma que ele é um “membro chave” para a estratégia de comunicação. “A gente sabia que para o movimento ganhar as ruas a gente precisava ter tradutores, pessoas que tenham mais capacidade e experiência de conversar com a população, e o Luciano tem muita capacidade e experiência para isso”, diz. "Se não tivesse uma figura pública como ele, certamente demoraria mais para a gente ser compreendido, mas a gente não vai decepcionar", diz.
Por outro lado, ela reconhece que o movimento restringiu a ampliação do leque de figuras públicas porque Luciano Huck ganhou muita visibilidade. O apresentador foi anunciado como membro do movimento em outubro do ano passado, após “um namoro longo”, segundo Ilona. “Ele viu a nossa agenda e disse “nossa, mas eu concordo com isso tudo”.
A entrada de Huck levou à primeira crise pública do Agora, na época com pouco mais de um ano de vida. Alexandre Youssef, que participou da criação da Rede, de Marina Silva e era um dos fundadores do movimento, anunciou sua saída assim que o apresentador chegou oficialmente ao grupo. “A escolha do Alê tem a ver com a escolha de vida dele e cada membro vai ter que fazer essa pesagem. Cada um tem o direito de entrar e sair, mas o grupo tem uma essência muito clara”, explica Ilona.
Os demais membros do Agora embora não sejam apresentadores, podem ser perfilados com características muito comuns às do global. Estão na faixa entre os 30 a 40 anos, são em sua grande maioria brancos, que fazem parte da elite intelectual e econômica do país. Tiveram acesso à educação e oportunidades, como estudar no exterior. Todos já eram engajados em outras frentes antes de entrar para o Agora. Talvez a maior exceção a essas regras seja Anapuaka Tupinambá, líder indígena.
Ilona Szabó, por exemplo, é presidenta do Instituto Igarapé, que atua na área de segurança pública e drogas. É próxima ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e foi uma das roteiristas do filme Quebrando o Tabu. Leandro Machado é cientista político, criador do Cause, consultoria que apoia marcas e organizações na gestão de causas, e foi assessor da campanha de Marina Silva (Rede) em 2010. Fechando o trio de Medellín, Patrícia Ellen liderou a Prática de Setor Público e Social da McKinsey. Além do engajamento, os três têm um título em comum. “Fazemos parte de uma rede, cujo nome é bastante esnobe, que é a rede de jovens líderes globais [Young Global Leader, do Fórum Econômico Mundial], seja lá o que isso signifique”, diz Ilona, rindo. “Mas para nós é um espaço interessante de troca”.
Foco no Legislativo
Ilona explica que inicialmente a ideia era que os membros do Agora entrassem em cargos do Executivo, como assessores ou consultores, por exemplo, e contribuíssem por meio das propostas tiradas em conjunto no grupo. Mas, com o longa duração da crise política, “percebemos que o buraco era mais embaixo e que teríamos que entrar também em cargos eletivos”.
Por não ter configuração jurídica de partido, o Agora não pode lançar candidatos oficialmente. “Não somos partido e não queremos perder essa característica de movimento”, diz Ilona. Como a legislação brasileira não permite candidaturas independentes, o movimento pretende então “explorar parcerias com partidos que nos deixassem manter a nossa identidade”. Na prática, os membros do Agora que queiram disputar a eleição estão livres para escolher em qual partido querem se filiar. “Mas eles devem saber que uma vez sendo do Agora, o compromisso é com a nossa agenda”, diz Ilona. “Com um partido com uma agenda antagônica à nossa, o militante vai ter que se desligar”.
Apesar da liberdade de escolha, Ilona afirma que realizou conversas com partidos que “tinham interesse em nos oferecer um espaço legítimo de autonomia, de independência e de troca”. São eles a Rede, de Marina, e o PPS. “Queremos ter voz e voto em decisões do partido, porque queremos de alguma maneira influenciar o programa do partido, mas queremos ser livres enquanto movimento", diz. "Se houver divergências de agenda, por exemplo, somos livres para votar conforme a nossa agenda”.
Ela diz que, por enquanto, o foco é no Legislativo. “Não vamos lançar candidatos porque não somos partido”, diz Ilona. “Mas estamos apoiando e é óbvio que vai ficar claro que são os candidatos do Agora porque eles estarão usando a bandeira do movimento". A expectativa é apoiar de 15 a 20 pessoas, concorrendo entre seis e dez estados. Ela e os três demais fundadores não estão nesta conta, por enquanto.
Sobre a presidência, a grande polêmica que envolve o movimento, Ilona é categórica: “Não temos cacife para disputar a presidência”, diz. “No primeiro turno vamos oferecer as nossas propostas, no que estamos chamando de carta de mandato, para todo mundo. Será de domínio público, não importa o partido, se você é candidato vinculado ao Agora! ou não”, explica. Já no segundo turno, ela diz que não descarta apoiar alguém, “se tivermos um candidato que tiver muitas afinidades com nossas propostas. Mas isso será discutido com o grupo a cada passo”.
Posicionamentos
Por enquanto, o movimento é sustentado com a contribuição dos seus próprios membros. As contas ainda não estão abertas, mas estarão em breve, segundo Ilona. A forma organizacional se constitui em onze grupos de trabalho com temáticas como sustentabilidade, cultura e reforma do Estado. Já organizaram algumas reuniões com simpatizantes para ouvir o que a população tem a dizer sobre temas sensíveis ao país.
As boas intenções do grupo, porém, ficarão à deriva se não se posicionarem diante de questões fundamentais para o país em ano eleitoral. Questionados sobre o que pensam em relação a temas como descriminalização do aborto, regulamentação das drogas, redução da maioridade penal, reforma da Previdência e reforma trabalhista, informam que o movimento é “um grupo muito plural e reúne pessoas com visões variadas. Embora os membros individualmente tenham suas posições, o movimento ainda está debatendo esses temas e vai lançar suas diretrizes de políticas públicas a partir do segundo trimestre”.
Entre se posicionar como liberal ou progressista no campo econômico, o movimento parece ficar no meio do caminho também. "Queremos um Estado mais eficiente, menos burocrático, mais próximo das pessoas e responsável", diz Ilona. "Os serviços públicos essenciais tem que ter muita qualidade para quem não pode pagar".
Outro ponto muito debatido em todo o mundo e que pode ser sensível para um grupo situado tão no topo da pirâmide é a questão tributária. A taxação das grandes fortunas é uma proposta defendida até mesmo pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). "A redução da desigualdade é a principal causa do grupo. E quando falamos em redução de desigualdade não tem como não falar na questão tributária", diz Ilona. "Isso não é um tabu para o grupo. Pelo contrário, é um tema que certamente estará na nossa agenda. Não é a única proposta que teremos, mas é uma delas".
Ao encerrar a entrevista, Ilona, que não se esquiva das perguntas embora não deixe clara todas as respostas, pede para falar um pouco da história dos membros do Agora!: "Óbvio que a gente faz parte de uma elite, mas a maior parte dos nossos membros vem de famílias de classe média ou baixa. Tem gente que vem de comunidade. São pessoas que batalharam muito, tiveram acesso à educação, mas por conta desse desnível (de oportunidades) se encontram na classe A e B", diz. "Temos poucos membros com perfil de famílias ricas, mas mesmos fizeram a sua própria história".
Merval Pereira: Sem protelações
Se condenado, Lula não pode protelar recurso. O ex-presidente Lula pode não ter tanto tempo para recorrer contra a inelegibilidade, caso sua condenação seja confirmada pelo TRF-4, quanto sugere a legislação eleitoral. A Lei da Ficha Limpa não fala em recursos, considerando que a segunda condenação é suficiente para impedir uma candidatura. Um de seus autores, Marlon Reis, que na época era juiz, diz que houve inclusão da possibilidade de recurso com prioridade através do artigo 26C da Lei das Inelegibilidades a fim de que não alegassem que o direito a uma medida liminar para suspender os efeitos da lei fora retirado dos condenados.
O artigo foi escrito com a intenção de, ao mesmo tempo em que garante o direito ao recurso, não permitir ações protelatórias. Diz lá que o órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso (no caso de Lula, o Superior Tribunal de Justiça) poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
Segundo o Código de Processo Civil, preclusão é a perda de direito de se manifestar, por não ter feito atos processuais na oportunidade devida ou na forma prevista. A lei prevê que “conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)”.
Mantida a condenação da qual derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010). A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo (incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
Isso quer dizer que, quando os advogados de Lula entrarem com um recurso no STJ contra a decisão do TRF-4, terão também que pedir a suspensão da inelegibilidade. Se não o fizerem, para esperar até agosto, depois da convenção partidária, terão perdido o prazo para anular a inelegibilidade. Prevalecendo essa interpretação, o STJ decidirá simultaneamente o recurso contra a condenação e também sobre a inelegibilidade de Lula, afastando a possibilidade de que o recurso se prolongue até a convenção partidária. Muito antes de 5 de agosto, portanto, a situação de Lula estará definida e, confirmada a sentença condenatória, seu nome não poderá nem mesmo ser apresentado na convenção do PT.
O presidente Michel Temer foi mais um político a dizer que prefere que Lula seja derrotado nas urnas a impedido de se candidatar à Presidência da República este ano. O raciocínio, que aparenta ser uma defesa da democracia, peca pela base e segue a mesma linha do mantra petista de que “eleição sem Lula é golpe”.
Se o ex-presidente for impedido de se candidatar, terá sido em decorrência de uma lei, e não há possibilidade de uma legislação em vigor valer para uns e não para outro, mesmo que esse outro seja um líder popular e ex-presidente da República. Ao contrário, esses atributos só fazem aumentar sua responsabilidade diante da sociedade e, consequentemente, a gravidade de sua culpa.
Condenado em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro, os petistas e Lula resolveram denunciar não apenas uma suposta parcialidade do juiz de Curitba, como também dos desembargadores do TRF-4, que julgarão seu recurso na próxima semana. Se para Lula não há juízes isentos, ou se apenas sua absolvição demonstrará que no Brasil a Justiça é independente, estaríamos diante de um impasse institucional grave. É o mesmo que dizer que somente as urnas podem condená-lo, como sugere o presidente Michel Temer.
Como se sabe, as urnas não absolvem ninguém, pois se assim fosse diversos deputados hoje envolvidos na Operação Lava-Jato, alguns condenados como Eduardo Cunha, teriam um salvo-conduto como vencedores de eleições.
A Lei da Ficha Limpa, projeto de lei de iniciativa popular que reuniu cerca de 1,6 milhão de assinaturas, teve o objetivo de impedir que candidatos já condenados por um colegiado de juízes (segunda instância) pudessem disputar a eleição, adequando as regras de elegibilidade à necessidade de moralidade dos agentes públicos.
Não é uma legislação autoritária. Foi concebida pela sociedade, apoiada por parlamentares que assumiram a autoria da proposta, aprovada pela Câmara e Senado e sancionada pelo então presidente Lula.
Luiz Sérgio Henriques: A difícil identidade do petismo
Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo
Mesmo sem nunca ter tido a carga antissistêmica dos antigos partidos comunistas, o petismo, surgido essencialmente de um núcleo sindical moderno, vocacionado simultaneamente para o confronto e para a negociação trabalhista, continua a responder por boa parte das turbulências da vida brasileira nestes 30 anos de País redemocratizado. Por isso, constitui para intérpretes e comentaristas um desafio que se torna ainda mais agudo em momentos de espesso nevoeiro, como este que temos atravessado, com os fatos relativos a seu maior dirigente, novamente candidato presidencial contra todo e qualquer empecilho legal que lhe possa ser oposto, segundo a vontade reiterada dos organismos partidários e de sua “sociedade civil”.
Em vão procuramos a identidade daquele partido, pouco nítida mesmo após os sucessivos períodos à frente do Poder Executivo, interrompidos por um impeachment traumático. O controle de inúmeros governos municipais e estaduais, bem como as amplas bancadas legislativas, para não falar no lastro eleitoral consistente, parecem não ter trazido aquele mínimo de cultura de governo que caracteriza os agrupamentos conscientes de sua própria força e capazes, por esse motivo, de dirigir todo um país, cumprindo uma função nacional que só se alcança com a superação de vícios de origem, limites programáticos e sarampos ideológicos. Traços, em suma, que os leninistas de antes, com todo o pathos revolucionário que os abrasava, chamavam de doença infantil, cuja irrupção os isolava e criava, à direita, um virulento espírito reacionário de massas.
A comparação sempre imperfeita com os comunistas – porque, repetimos, quando falamos de PT, de comunismo não se trata, sem contar que hoje nem sabemos delinear minimamente qualquer ordem anticapitalista – serve ao menos para afirmar que tais distantes antepassados, em certos casos, desenvolveram um certeiro e valioso sentido institucional. Não se conta a história da Itália moderna sem o PCI, permanece digna de respeito a cautela estratégica do PC chileno nos tempos de Allende, deu provas de serenidade o partido espanhol na transição pós-franquista. E o pequeno e clandestino PCB, durante o regime militar, abriu-se para o liberalismo político e a democracia representativa, que alguns de seus setores, em certo momento, passaram a considerar patrimônio de qualquer esquerda que viesse a se firmar a partir daí.
E nem nos aprofundemos na trajetória social-democrata, o outro ramo dos partidos de origem operária que poderia servir como termo de comparação. Aqui, a plena adesão ao programa reformista foi menos acidentada e mais em linha com o Ocidente político, resultando na construção de algumas das mais interessantes sociedades de que até hoje se tem notícia. Mesmo que o primeiro desses ramos da esquerda do passado tenha desaparecido e o segundo atravesse dificuldades cuja extensão não conhecemos, o fato é que se trata de um legado teórico-político a ser cuidadosamente avaliado na nova configuração que o mundo assumiu neste início tumultuado de século.
O petismo não parece ter-se preparado para esta crucial avaliação, que não é só conceitual, mas envolve modos de ser e agir na sociedade, requisitos de lealdade institucional e compromisso firme com a renovação de hábitos e costumes. Bem mais organizado do que os partidos tradicionais, provincianos e com escassa vitalidade interna, pôs essa sua capacidade organizativa a serviço de uma subcultura sectária, voltada para a cisão e o confronto. Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo. Muitos de seus intelectuais se soldam à massa dos militantes nesse mesmo plano, abdicando de qualquer esforço de educação democrática. Ao ver e ler uns e outros, podemos ter o sentimento de estar a bordo de uma máquina do tempo: um intelectual comunista dos anos 1950, treinado no catecismo mais elementar, não faria diferente, com a denúncia repetida contra agentes do imperialismo, oposições antinacionais e traidores da pátria, que certamente não teriam lugar na democracia popular que então se propunha com fé e agora retoricamente se quer atualizar.
O trauma comunista do “culto à personalidade” não está superado. Em vez de grupos dirigentes amplos, capazes de autorrenovação constante e porosos ao surgimento de novas elites partidárias, seguem intactos os mecanismos daquilo que mestre Graciliano, ele mesmo contraditoriamente prisioneiro do culto de Prestes, uma vez chamou de “canonização laica”. E, agora, os problemas judiciais em torno do líder canonizado nada mais seriam do que a continuação do golpe que teria vitimado o governo popular de Dilma Rousseff, ainda que o PT e vários de seus intelectuais “orgânicos” tenham requerido o impedimento de todos os presidentes, de Sarney a Fernando Henrique, sem exceção. Tertium non datur: ou bem o impeachment é golpe, e nesse caso o petismo deve admitir um golpismo renitente, ou bem é um remédio amargo, com danos consideráveis, mas plenamente integrado aos dispositivos legais.
Nesse mesmo sentido, estamos por todos os títulos longe do apregoado “estado de exceção” – cuja denúncia em foros internacionais, falsa e artificial, denota a persistência do desprezo que a parte atrasada da velha esquerda votava às liberdades civis e políticas, sob as quais, depois de árdua travessia, vivemos desde 1988. Como se dizia de Weimar e podemos dizer de nós mesmos, impossível ter uma democracia sem democratas. O legado a ser mantido, inclusive e principalmente pela esquerda, é o assinalado pelos valores de um patriotismo de novo tipo: o patriotismo constitucional. Ele é que nos ensinará a nutrir sempre, de modo imperturbável, nojo e horror por todas as ditaduras, como queria um grande liberal. Mesmo as que, por aí, mal e toscamente se disfarçam de progressistas.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci
Demétrio Magnoli: Para subverter a lei do Face
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assumiu a dianteira na discussão sobre uma legislação destinada a coibir as fake news na próxima campanha eleitoral. É um erro de abordagem, que deriva de uma série de equívocos conceituais.
Na sua essência, as fake news não são um problema eleitoral, mas uma ameaça à democracia. Nos EUA, as correntes de notícias falsas tiveram por alvo a candidatura de Hillary Clinton, mas a meta dos propagadores não era eleger Trump, um resultado inesperado, e sim desacreditar as instituições democráticas, pintando-as como ferramentas da "elite globalista". Na Catalunha, ao longo da turbulência separatista recente, os maiores fabricantes de notícias falsas foram, como na campanha americana, as agências russas de inteligência. O discurso que disseminaram replicava a narrativa da esquerda independentista catalã que descreve a Espanha democrática como uma versão atualizada do regime franquista.
Dia sim, dia também, Trump vale-se do Twitter para bombardear os veículos de imprensa, acusando-os, paradoxalmente, de difundir fake news. A regra simples, quase infalível, é a seguinte: na dúvida sobre a veracidade de algo noticiado nas redes sociais, verifique se apareceu na imprensa profissional. A velha imprensa ("golpista" no inevitável adjetivo repetido pelo PT), com seus parâmetros de contextualização e suas regras de apuração, é um dos pilares da democracia representativa. Os populistas, de direita ou de esquerda, precisam destruir a reputação de credibilidade do jornalismo.
As torrentes avassaladoras de notícias falsas nas redes sociais servem para borrar a fronteira que distingue a verdade factual da mentira. O TSE não entende isso, pois ocupa-se do direito de candidatos e eleitores, não de algo mais fundamental, que é o direito dos cidadãos.
Vamos mal. Luciano Fuck, secretário-geral do TSE, avisa que "o foco" não está "na punição, mas na prevenção" e que os gigantes da internet, como Google, Facebook e Twitter revelam-se "interessados em contribuir". Provou-se que, nas eleições americanas, o Facebook não foi enganado pelos russos. A veiculação de notícias falsas dá dinheiro -e, sobretudo, é inerente a um modelo de negócios assentado no princípio de que a notícia não custa nada. O interesse supremo dos gigantes da internet não é "contribuir" com o TSE ou a democracia, mas preservar esse princípio. A disposição deles para sentar à mesa de discussão decorre de uma contraofensiva em curso na Europa, cujo "foco" é a punição financeira.
A lei do Face é produzir a expansão geométrica do tráfego virtual, às expensas do controle sobre a verdade factual. A nova legislação alemã prevê multas vultosas contra as empresas de internet que não eliminarem notícias falsas devidamente denunciadas. O "foco" no bolso funciona, mas o conceito está errado, pois articula-se ao redor da ideia de censura. As correntes de fake news tendem a se multiplicar em ritmo muito superior ao das denúncias e supressões. Facebook e congêneres descartam os anéis para salvar os dedos. Montam equipes destinadas a reagir às denúncias, enquanto seguem dando sinal verde às linhas de montagem da mentira.
Na era digital, a combinação de velocidade com anonimato inutiliza as leis sobre calúnia, difamação e injúria. Uma nova legislação é necessária, mas sua eficácia depende da capacidade de educar os cidadãos sobre a diferença entre fato e ficção. A lei alemã não deveria obrigar os gigantes da internet a remover notícias falsas, mas impor-lhes o dever cívico de assinalá-las, esclarecer o conteúdo da mentira e expor a fonte de sua propagação. Todos os dias, os rostos dos "guerrilheiros da informação", que são Estados, partidos e movimentos, apareceriam sem máscara diante do grande público. Passa da hora de subverter a lei do Face. Mas não será o TSE a fazer isso.
*Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado
Merval Pereira: A farsa está completa
Era só o que faltava para completar a farsa histórica que está se repetindo este ano na eleição presidencial, depois da tragédia de 1989, confirmando o que dizia Marx. O hoje senador Fernando Collor de Mello, responsável pela primeira tragédia com seu impeachment, acaba de anunciar que será candidato à Presidência da República este ano.
Caminhamos para uma eleição tão radicalizada quanto a de 1989, a primeira direta após o regime militar. A esquerda naquela ocasião tinha dois representantes, Lula e Brizola, que disputaram voto a voto a ida para o segundo turno contra o representante da centro-direita, Collor de Mello. Populismo de direita contra populismo de esquerda.
Lula derrotou Brizola por 0,67%, foi para o segundo turno contra Collor e perdeu a eleição. Hoje, passados 29 anos, os populistas Lula e Collor estão do mesmo lado do espectro político e não poderão, portanto, repetir a radical disputa de 1989, pois os dois estão envolvidos em denúncias de corrupção.
Hoje, tão radical quanto em 1989, Lula pretende adotar a política que o fez reconhecer-se despreparado para a Presidência naquela época. O representante do pedetismo será Ciro Gomes, que não pretende fazer aliança com Lula ou o PT no primeiro turno, assim como Brizola não reconheceu Lula como o representante da esquerda naquele ano e morreu afirmando que houve trapaça para que Lula, e não ele, fosse para o segundo turno, pois o petista seria um adversário mais fácil de ser batido por Collor.
O representante da extrema direita hoje é Jair Bolsonaro, muito menos preparado do que aquele Collor de Mello que surgiu em 1989. Pela radicalização que domina o cenário político, figuras como o governador Geraldo Alckmin, com seu espírito moderado, estão com dificuldades para se encaixar na preferência dos eleitores, que buscam novidades e rejeitam a política tradicional.
A vantagem que Alckmin tem sobre seus potenciais concorrentes no centro político, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, é que a todos falta carisma. Mas, numa disputa radicalizada, essa não chega a ser uma vantagem competitiva contra os adversários de outras tendências.
Em 1989, figuras como Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves e Mário Covas foram abandonadas pelo eleitorado. Hoje, ao contrário daquela época, a eleição é casada, isto é, estarão também em campanha candidatos à Câmara, 2/3 do Senado e 27 governadores. As máquinas partidárias terão um peso eleitoral preponderante, pelo menos em teoria, e por isso a disputa para ser o candidato de centro que tenha o apoio da base parlamentar do governo, mesmo que este seja impopular, como era o de Sarney em 1989.
O presidente Temer ainda alimenta a ilusória ambição de ser um player importante na sua sucessão ou, no limite do delírio, ser ele mesmo o candidato do centrão político. Nada indica que seja possível esse sonho, que parece um pesadelo à maioria, se concretizar.
E para dar um toque especial à repetição, a candidatura de Luciano Huck volta e meia é especulada, assim como em 1989 Silvio Santos surgiu do nada à última hora. Mas para que a farsa fique mais complexa, quem traça uma estratégia semelhante à de Silvio Santos é Lula, que pode aparecer na urna sem ser candidato.
Em 1989, Silvio Santos acabou sendo impugnado pelo TSE porque o partido que o acolheu estava irregular. Mas chegou a fazer campanha na televisão mostrando aos eleitores que votando no 26, que estava representado na cédula com o nome de Corrêa (naquele tempo ainda de papel), estariam votando em Silvio Santos.
A legislação mudou, e já não é possível acontecer essa substituição depois que o nome estiver na urna eletrônica. Neste caso, os votos dados a Lula serão anulados se, ao final dos recursos, a condenação estiver confirmada. Mas se Lula decidir tomar uma atitude de respeito democrático e indicar um substituto, ele poderá dizer que votando em Jaques Wagner ou outro qualquer estarão votando nele.
Murillo de Aragão: Sobre culpas e omissões
A questão da segurança pública até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece
As crises na segurança pública repetem-se periodicamente no Brasil. Ainda que os índices melhorem aqui e ali, em 2016, por exemplo, registraram-se quase 70 mil mortes por homicídio e latrocínio no País. Rebeliões em presídios são recorrentes. Greves de policiais também, assim como o pedido de participação das Forças Armadas na segurança dos Estados.
A sequência de eventos, que só pioram a cada ano, alimenta o debate sobre de quem seria a culpa por esta situação. União e Estados acusam-se mutuamente. Já especialistas dizem que ambos erram, ou seja, a responsabilidade seria de todos. É verdade. A culpa é de todos, e não só dos Estados e da União. A culpa também é, portanto, das elites brasileiras, que tratam o tema de forma episódica.
Quem pode contrata segurança privada e usa carro blindado. Quem não pode sofre. E o tema não chega às mesas de decisão por indiferença das elites e omissão da classe política. As próprias categorias profissionais envolvidas em geral só se mobilizam para tratar de interesses da corporação, pouco contribuindo para o aprimoramento das políticas de segurança no País. Só em Brasília, mais de dez delegados de polícia devem se candidatar a deputado distrital e federal neste ano. A agenda preferencial, porém, é equiparar salários com a Polícia Federal, e não melhorar a segurança pública.
Ao permitirem que o corporativismo prevaleça sobre as agendas do bem comum, nossas elites assumem culpa grotesca. Semelhante à culpa das elites venezuelanas, que fracassaram e deixaram o país chegar às mãos de Hugo Chávez. A Venezuela paga até hoje pela omissão das elites. Quando o Brasil flerta com Jair Bolsonaro, está trilhando um caminho semelhante ao percorrido pelo país vizinho.
Paradoxalmente, temos uma imensa responsabilidade e um cuidado extremo com o sistema financeiro. Nosso Banco Central é um dos melhores do mundo, assim como o sistema adotado é um dos mais lucrativos e seguros do planeta. Caso levássemos para a segurança pública 30% da competência aplicada às finanças, a situação no País seria muito melhor.
Nossas elites se omitem quando não percebem o dano que a insegurança pública causa à economia. Nosso turismo é ridículo perto de nossas potencialidades. Pessoas deixam de sair de casa por medo de assalto. Empresários dos ramos relacionados ao turismo deveriam ser os primeiros a se mobilizar para melhorar a segurança no Rio de Janeiro, por exemplo.
Existem ainda duas tradições gravíssimas: a apologia da cultura do crime e a criminalização da atividade policial. O policial, em princípio, é considerado um problema, até que se precise dele. Há um enorme preconceito, em especial em relação à Polícia Militar. É verdade que quase todos os dias se noticiam mortes acidentais de cidadãos por causa de confrontos com policiais, mas desqualificar a atividade é ser contra o Estado de Direito.
As autoridades tampouco cumprem o seu papel. A polícia prende, a Justiça solta. E milhares de presos aguardam julgamento há anos: em um terço das prisões 60% dos presos estão nessa situação. E não há a devida indignação a esse respeito. O debate é enviesado, como no recente episódio do indulto de Natal.
A distribuição de salários dentro do sistema é absolutamente desproporcional. Compare-se o salário médio de um policial militar com o de um promotor. O Ministério Público, como defensor da sociedade, deveria ser mais atuante no que diz respeito a essas distorções. Verbas postas à disposição pelo governo federal não são usadas pelos Estados por falta de planejamento e excesso de burocracia. Apenas 4% dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional foram utilizados em 2016. É incrível a omissão e incompetência dos Estados, que não sabem administrar seus respectivos sistemas prisionais nem sequer utilizar as verbas federais disponíveis para a segurança pública.
A Força Nacional, cuja concepção é muito boa para a nossa realidade, carece de recursos, de pessoal e de maior institucionalização. Iniciativa para melhorar esse quadro foi arquivada pelo Congresso. Tampouco há investimento significativo no sistema de inteligência, apesar de avanços recentes, com maior engajamento dos serviços de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal no combate ao crime organizado.
O Congresso demora a dar a devida resposta à questão. Temos iniciativas que deveriam ser postas em votação, como a proposta de emenda constitucional que estabelece para a segurança pública competência comum da União, de Estados e municípios. Deveríamos refletir sobre a unificação das Polícias Militar e Civil. Outra iniciativa é a criação de um sistema único de segurança pública, nos moldes do SUS, que integraria políticas, recursos e ações sob a supervisão do Ministério da Justiça ou de um Ministério da Segurança Pública. Tais propostas tramitam lentamente.
Devemos ir além e envolver municípios e comunidades em iniciativas como as que se veem, por exemplo, no Chile. Destaco a Segurança Ciudadana da Municipalidad de las Condes, que recentemente começou a utilizar drones para ampliar a vigilância da região. O desperdício de recursos do Fundo Penitenciário Nacional é uma prova de que não falta dinheiro. O que falta é planejamento e vontade política. Mas falta, sobretudo, participação da sociedade civil no debate e na alocação das verbas tanto da segurança pública quanto das Forças Armadas.
Vivemos tempos de guerra civil. E não é de hoje. Na guerra civil da Síria morreram, em 2016, cerca de 60 mil pessoas, menos do que no Brasil no mesmo período. A imagem das balas traçantes nos morros do Rio na virada do ano nos remete à guerra que estamos vivendo. E combatê-la é responsabilidade de todos. A questão, sob todos os pontos de vista – cultural, econômico, social e político –, até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece.
* Murillo de Aragão é advogado, consultor, cientista político, professor, é doutor em sociologia pela UNB
Cristovam Buarque: A luz do diálogo
Não há democracia sem respeito à legalidade
Se fosse um corpo celeste, o Brasil estaria ingressando num buraco negro, de onde nem a luz consegue escapar. O ano começa com o julgamento de Lula na segunda instância. Ele poderá ser absolvido da condenação na primeira instância ou, se confirmada, ele terá sua candidatura suspensa, por força da Lei da Ficha Limpa, sancionada por ele próprio em junho de 2010.
Se a sentença na primeira instância for rechaçada, as outras condenações da Lava-Jato ficarão sob suspeição. A população vai entender como uma volta ao tempo das propinas como prática aceita na política. Entraremos na escuridão da descrença na Justiça.
Mas a suspensão do direito do ex-presidente a se candidatar não vai diminuir a escuridão política. Apesar de tantos depoimentos, parte da opinião pública ainda não está convencida de que ele seja o dono do apartamento recebido em troca de propina. Os que conhecem o ex-presidente Lula têm sérias críticas à sua prática populista, ao aparelhamento que ele fez do Estado, desestruturando estatais e fundos de pensão.
Criticam sua responsabilidade na escolha da candidata Dilma, como também na escolha de Michel Temer para vice-presidente, sabendo das suspeitas que pairavam sobre ele; a subordinação que ele fez da educação aos interesses eleitorais, substituindo a Bolsa Escola pela Bolsa Família e iludindo o povo com mais vagas no ensino superior sem o correspondente esforço na educação de base.
Criticam seu uso, antes do Trump, de narrativas falsas para apresentar um Brasil que não era verdadeiro. Mas, ainda que acreditando no depoimento de Antônio Palocci sobre o “pacto de sangue”, muitos desses críticos não têm certeza das provas de que ele se corrompeu por um apartamento na praia.
Se for condenado, tudo indica que o ex-presidente usará o direito legal de apelar para instâncias superiores, mantendo a candidatura sub judice. Poderá ser candidato, vencer a eleição e a Justiça Eleitoral diplomar o segundo colocado, que tomará posse, conforme a lei.
A eleição com candidatos cassados pela Justiça é legal e democrática, mas tira parte da credibilidade que a democracia exige na escolha de um presidente capaz de liderar o país. Sobretudo quando o povo percebe que notórios corruptos não serão cassados pela Justiça. Mesmo assim, não há democracia sem respeito à legalidade; e a Lei da Ficha Limpa em vigor condena cassando.
Isso não ocorreria se no debate sobre a Lei da Ficha Limpa tivesse sido aceita a sugestão de condenar o político corrupto, obrigando-o a usar em todas suas mensagens e aparições a marca de ficha suja, deixando ao eleitor o direito de votar, mesmo sabendo da condenação. Como se faz com o cigarro: em que se informa que faz mal à saúde, mas ao fumante é deixado o direito de consumir. Agora não há como evitar o buraco negro político em que o Brasil entrou.
A escuridão vai demorar, porque a luz estaria no diálogo, e isso não parece possível hoje. O sectarismo, essa energia perversa que impede a luz na política, não aceita debate, inclusive o proposto por este artigo.
Marco Aurélio Nogueira: Liberalismos
Manifesto que defende discurso liberal na economia e conservadorismo nos costumes trava a evolução do liberalismo político
Não é de hoje que se sabe que existe liberalismo na economia, na política e no plano dos costumes. Há muitos modos de ser liberal.
Nem sempre esses três focos estão em sintonia coerente. Como há ramos distintos no campo liberal – desde sempre dividido entre um liberalismo democrático e um liberalismo conservador, passando por um liberalismo liberal –, os liberais se distribuem num gradiente flexível, que muitas vezes surpreende e confunde, levando-os ora a flertar com modalidades suavizadas de socialismo, ora a pender para um conservadorismo vetusto, mais próximo da direita.
Os que se proclamam liberais podem, por exemplo, pensar a economia segundo os dogmas da doutrina (livre-mercado, afastamento do Estado, desregulação, privatização) e ficarem abertos a políticas igualitárias de distribuição de renda, direitos e autonomia individual. Nesse registro, podem ser favoráveis à atenuação da propriedade privada e à taxação das grandes fortunas. No polo oposto, podem ser liberais em economia mas “egoístas” socialmente e conservadores em termos morais, sacrificando a autonomia individual no altar da “ordem social”.
Um dos critérios empregados (por exemplo, por Norberto Bobbio) para resolver o enigma e organizar o campo liberal é a maneira como os liberais se relacionam com a democracia política. De modo simplificado, podemos tratar a democracia em termos mais substantivos ou mais formais, isto é, mais como igualdade ou mais como regras do jogo. Historicamente, foi assim que a democracia emergiu no mundo moderno, fato que levou a que todas as doutrinas se posicionassem diante de suas duas faces. Os liberais que se associam ao componente mais igualitário da democracia tendem a caminhar para a esquerda, os demais compõem o que se costuma de chamar de “centro liberal” ou caminham para a direita. Todos os liberais, porém, aceitam o princípio da igualdade perante a lei, a igualdade dos direitos, a igualdade das oportunidades e a igualdade na liberdade, ou seja, a liberdade que não colida com a liberdade dos demais ou que não ofenda a liberdade dos outros.
Democratas e liberais convergem, também, no que diz respeito à reiteração da soberania popular, cuja tradução histórica mais bem acabada é o sufrágio universal masculino e feminino. As ideias liberais encontraram assim no método democrático o critério para se aproximarem da democracia política, o que fez da democracia parte decisiva da evolução do liberalismo propriamente dito. Nasceram assim o liberalismo radical, liberal e democrático, e o liberalismo conservador, liberal mas não democrático. E, por extensão, surgiram democratas liberais e democratas não liberais, os primeiros mais preocupados em limitar o poder e os segundos, em distribui-lo.
Lembro tudo isso, esquematicamente, para dizer que não basta alguém se proclamar liberal para que o liberalismo flua de sua mente como água pura da fonte. Há diversos liberalismos.
Manifestação típica disso pode ser encontrada no “Manifesto” que o presidente do grupo Riachuelo, Flávio Rocha, lançou em Nova Iorque propondo uma candidatura presidencial que “tenha a coerência de um discurso liberal do ponto de vista econômico” e seja “conservador nos costumes”. O empresário afirma que sua intenção é sugerir que “chegou a hora de uma nova independência: é preciso tirar o Estado das costas da sociedade, do cidadão, dos empreendedores, que estão sufocados e não aguentam mais seu peso. Chegou o momento da independência de cada um de nós das garras governamentais”.
Ele vai além, criticando os candidatos até agora surgidos que, na sua opinião, até conseguem defender políticas liberais na economia, mas “tropeçam nas questões sociais”, mostrando-se reféns do que o empresário chama de “marxismo cultural”, uma formosa jabuticaba que floresce abundantemente no Brasil do conservadorismo.
Não sobra nem sequer para Bolsonaro, que na visão de Flávio Rocha se apresenta como conservador socialmente e “de esquerda na economia”. Também Luciano Huck não é bem visto pelo empresário, por não ser suficientemente conservador nos costumes.
Rocha preside o Movimento Brasil 200, que defende uma agenda aberta para o porte de armas e fechada para questões de gênero.
A manifestação demonstra a disposição de parte do empresariado brasileiro de se envolver mais diretamente na disputa política de 2018. Mas, ao misturar alhos com bugalhos e não separar adequadamente o joio do trigo, fazendo chegar ao público uma proposta nominalmente liberal mas de fato muito pouco liberal e quase nada democrática, o manifesto de Flávio Rocha contribui para aumentar a confusão em que o país está mergulhado. Trava, em vez de impulsionar, a evolução do liberalismo político entre nós.
Afinal, se há algo de que o Brasil necessita é de clareza de propósitos. De que liberalismo estamos mesmo falando? De qual democracia? Os doutrinadores de plantão precisam assumir plenamente os postulados de suas doutrinas perante os desafios da hora presente e do estágio civilizacional em que nos encontramos.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política na Unesp