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Merval Pereira: O Bolsonaro dos EUA

A gravidade dos acontecimentos em Washington, onde militantes a favor de Trump cercaram e invadiram o Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, impedindo a formalização da eleição de Joe Biden como novo presidente, tem repercussão no mundo ocidental como um todo, e entre nós, que temos um presidente da República que já se mostrou capaz de estimular a tentativa de desacreditar instituições democráticas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Veio imediatamente à mente a possibilidade de os mesmos ataques acontecerem no Brasil caso Bolsonaro seja impedido de continuar suas loucuras antes do término do mandato, ou perca a eleição presidencial do ano que vem, como aconteceu com seu ídolo Donald Trump. Bolsonaro já denunciou fraude na eleição presidencial que ele mesmo venceu, e diz que a urna digital é sujeita a manipulações. Pois ele não gosta de ser chamado de “Trump dos Trópicos”?

Ao mesmo tempo em que, na capital, a democracia americana era desafiada por uma horda incentivada pelo próprio presidente da República, na Geórgia, um estado confederado, pela primeira vez na história um senador negro era eleito, o pastor Raphael Warnock, que atua na mesma igreja do Reverendo Martin Luther King. Essa vitória uniu-se a outra, de Jon Ossof, um jornalista e produtor de cinema.

A garantia da maioria no Senado para o partido de Biden foi uma resposta clara do eleitorado americano de apoio a uma mudança radical do novo governante, que terá nos primeiros dois anos as duas Casas do Congresso com maioria para aprovar as reformas que pretende.

As disputas na Geórgia eram fundamentais para ambos os partidos, e ficou claro que Trump não tinha mais forças para vencer no Estado em que ele garante ter vencido a eleição por uma margem grande, quando na verdade a derrota num reduto republicano refletiu a derrota nacional, mesmo que apertada.  

O ainda presidente Trump estimulou desde dias atrás a manifestação de ontem, e, mesmo diante da catástrofe que seus militantes promoveram no Capitólio, levou tempo para enviar mensagem para que voltassem para casa. Mesmo assim, reafirmou que a eleição foi roubada e se solidarizou com a dor de seus militantes. Uma maneira de insistir no erro.

Foi uma tentativa de golpe, que aproximou os Estados Unidos das “Repúblicas de Bananas” que explorou historicamente. Honduras é o país inspirador do termo, cunhado pelo escritor americano O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, que passou a designar um país atrasado e dominado por governos corruptos e ditatoriais, geralmente na América Central. O principal produto desses países, a banana, era explorado pela famosa United Fruit Company, que teve um histórico de intromissões naquela região, especialmente em Honduras e Guatemala, para financiar governos que beneficiassem seus interesses econômicos, sempre apoiada pelo governo dos Estados Unidos.  

Desta vez, para espanto dos americanos que defendem a democracia, foi o próprio governante dos Estados Unidos quem batalhou durante meses para alterar o resultado eleitoral, apelando para todos os métodos, legais e ilegais, para não sair da Casa Branca. Faltam duas semanas para que o presidente eleito Joe Biden seja empossado, e Trump ainda tenta transformar a derrota em vitória.

Nesse período, Trump usou medidas dignas de uma “República das Bananas”: demitiu mais um secretário de Defesa, Mark Esper. Todos, de uma maneira ou de outra, recusaram-se a adotar planos políticos de Trump. Em uma reunião na Casa Branca, discutiu-se a possibilidade de colocar o país sob lei marcial, para refazer as eleições nos Estados em que Trump afirmava ter vencido.

O uso militar para fins políticos esteve nos cálculos de Trump, tanto assim que vários ex-secretários de Defesa assinaram um manifesto onde afirmam que a eleição acabou e que os militares deveriam ficar de fora do embate político. Muito parecido com o que acontece entre nós, onde um presidente oriundo das Forças Armadas, praticamente expulso por atos de indisciplina, manipula os diversos escalões militares sendo o que sempre foi, um deputado do baixo clero que vive de atender as demandas corporativas dos militares.


El País: Congresso dos EUA confirma vitória de Biden após revolta instigada por Trump

Ao final de um dia caótico, que deixou quatro mortos, presidente republicano se compromete com uma transição “ordenada”

Amanda Mars, El País

As urnas e as instituições deram o tiro de misericórdia na era Trump, na madrugada desta quinta-feira, após uma jornada lamentável para a história dos Estados Unidos. O Congresso confirmou a vitória do democrata Joe Biden horas depois de ser invadido por uma turba de seguidores do presidente republicano, agitados por suas acusações infundadas de fraude eleitoral. Os graves distúrbios, que deixaram quatro mortos, obrigaram à suspensão da sessão e à mobilização da Guarda Nacional, mas os parlamentares voltaram a se reunir ainda na noite de quarta-feira, numa sólida exibição de firmeza, e cumpriram a Constituição. Às 3h40 horas (5h40 em Brasília), o vice-presidente Mike Pence ―que pela Constituição é também o presidente do Senado― declarou a vitória do candidato democrata, após dias de pressões do seu chefe, que lhe pedia para se rebelar. Imediatamente depois, Trump emitiu um comunicado em que continuava protestando pelo resultado mas, pela primeira vez, se comprometia a uma transição de poderes “ordenada” em 20 de janeiro.

Nesse dia Biden tomará posse e iniciará um mandato que terá ampla margem de manobra, pois os democratas controlarão a Casa Branca, a Câmara de Representantes (deputados) e também o Senado, após a eleição de dois democratas ―Raphael Warnock e Jon Ossoff― no Estado da Geórgia. Começará então o duro trabalho de curar feridas, estender pontes e reparar reputações. Líderes de todo o mundo condenaram o ocorrido nos EUA (uma das poucas exceções foi o brasileiro Jair Bolsonaro), país visto como referência de democracia e solidez institucional, e que há 200 anos não vivia algo assim.

“Vamos terminar exatamente o que começamos e certificaremos o vencedor das eleições presidenciais de 2020. O comportamento criminal nunca dominará ao Congresso dos Estados Unidos”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell. Ele qualificou a revolta como “insurreição fracassada” e proclamou com orgulho: “Os Estados Unidos e este Congresso já confrontaram ameaças muito maiores que a turba perturbada de hoje. Não nos dissuadiram antes e não nos dissuadirão agora. Tentaram romper nossa democracia e fracassaram”. O vice-presidente Mike Pence havia reaberto a sessão, pouco antes, dizendo que “vocês não ganharam, a violência nunca ganha, a liberdade ganha.” Os discursos tinham algo de terapia de grupo.

Após quatro anos acolhendo a retórica incendiária de Donald Trump, os republicanos se depararam neste nublado dia de janeiro de 2021 com um monstro de aspecto muito feio, uma multidão que quebrava vidraças do seu grande templo democrático, escalava suas paredes, irrompia nos plenários e se sentava na poltrona da presidência do Senado. A democracia se impôs, mas o sistema ficou abalado.

O pavio havia sido aceso pela manhã por Trump num comício em frente à Casa Branca, justamente por ocasião da sessão parlamentar que certificaria a vitória democrata nas eleições presidenciais. “Depois disto, vamos caminhar até o Capitólio e vamos incentivar nossos valentes senadores e congressistas”, disse a uma multidão formada por milhares de pessoas vindas de todo os EUA. “A alguns não vamos incentivar muito, porque vocês nunca irão recuperar o país de vocês com fraqueza, têm que mostrar força”, acrescentou. Ao final, os trumpistas partiram para o Capitólio e, depois de romper o cordão policial, desencadeou-se a violência.

Os legisladores correram para se refugiar, e Mike Pence foi retirado, enquanto os manifestantes zanzavam pelo interior do edifício, alguns com bandeiras confederadas e outros fantasiados, deixando uma nota tragicômica na jornada. Um deles se sentou na poltrona do presidente do Senado; outro, no gabinete da presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, a quem, segundo a Associated Press, deixou uma mensagem que dizia: “Não recuaremos”. Quatro pessoas morreram, segundo a polícia: uma mulher atingida por um tiro, e outras três por emergências médicas. A cifra de detidos chegava a 52, o que parecia muito pouco para o espetáculo vivido, e a polícia encontrou duas bombas caseiras e uma geladeira com coquetéis molotov nas imediações. O escasso preparativo do dispositivo de segurança diante de uma manifestação que já se previa monumental e a lentidão da resposta fizeram as perguntas se multiplicarem, sobretudo depois da ostensiva presença das forças da ordem durante os protestos contra o racismo em meados deste ano.

“O que aconteceu aqui é uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”, denunciou o senador republicano Mitt Romney, de Utah. “Assim é como se discutem as eleições em uma república bananeira, não em nossa república democrática”, afirmou em nota o ex-presidente republicano George W. Bush. Mas é nessa rica república onde esta tempestade foi se formando dia a dia desde a derrota eleitoral de Trump em 3 de novembro, com a conivência de uma parte dos políticos conservadores.

Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.
Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.

Um grupo de senadores e deputados republicanos planejava torpedear a sessão de confirmação de Joe Biden com o argumento das supostas irregularidades nas urnas, embora inúmeros tribunais tenham concluído que não havia base para essas suspeitas, e de exaustivas recontagens não terem levado a resultados diferentes. O Congresso deveria contar os votos certificados pelos Estados em dezembro passado, numa sessão conjunta da Câmara de Deputados e do Senado, um último trâmite exigido pela Constituição antes da posse do novo presidente, em duas semanas. Os legisladores insubmissos tinham preparado uma bateria de objeções aos escrutínios dos Estados que foram decisivos para a derrota de Trump, embora elas não tivessem perspectiva de prosperar, já que seria necessário o aval da Câmara de Representantes, de maioria democrata, e do Senado, onde apenas uma dúzia de republicanos apoiava a manobra. O objetivo, portanto, era fazer barulho, mas o estrondo afinal veio do lado de fora.

O cômputo das cédulas era feito em voz alta, território por território, por ordem alfabética, e o primeiro protesto chegou cedo, na vez do Arizona, um Estado que, ao se inclinar por Biden em 3 de novembro, escolheu um presidente democrata pela primeira vez desde 1996. Quando o debate sobre essa objeção começou, a confusão se instalou às portas do Capitólio e a sessão teve que ser suspensa. Mike Pence foi retirado, os legisladores se refugiaram sob suas mesas, e foram observadas cenas de grande violência no Capitólio. Depois do ocorrido, pelo menos quatro dos políticos que pretendiam lançar as objeções mudaram de opinião, como a senadora georgiana Kelly Loeffer – que acaba de perder a reeleição –, alegando problemas de “consciência”. A objeção foi derrubada e o cômputo em voz alta continuou, com outra longa interrupção ao chegar à Pensilvânia.

De Trump não se ouvia nada a essas horas. A rede social Twitter tinha decidido bloquear sua conta durante 12 horas, e o Facebook, durante 24, depois de apagar as mensagens em que desculpava a violência de seus seguidores e insistia nas teorias conspiratórias da fraude eleitoral. “Estas são as coisas e acontecimentos que ocorrem quando se tira uma vitória sagrada e esmagadora de grandes patriotas, que foram tratados de forma má e injusta durante muito tempo. Vão para casa em paz e amor. Recordem este dia para sempre”, tinha publicado em sua conta. Em uma declaração em vídeo, chegou a dizer aos participantes dos distúrbios: “Vão para casa, amamos vocês, vocês são muito especiais, mas precisam ir para casa”. Por causa dos incidentes, quatro funcionários graduados da Casa Branca se demitiram, segundo a Bloomberg, entre eles o subassessor de Segurança Nacional, Matt Pottinger, e Stephanie Grisham, chefa de gabinete da primeira-dama.

Ao todo, o drama se prolongou por quase 15 horas. O ataque da quarta-feira não foi o primeiro sofrido pelo Capitólio, pois em 1954 um grupo de nacionalistas porto-riquenhos disparou na Câmara de Representantes e feriu vários deputados, e em 1998 um homem matou dois policiais. Mas a última vez que o prédio havia sido sitiado por uma turba foi durante o ataque britânico liderado pelo general Robert Ross, em 1814, depois da batalha de Bladensburg.

Apesar do tumulto, intuía-se que a invasão não configurava um golpe de Estado, já que a Bolsa de Nova York subiu 1,4%, mais atenta aos estímulos econômicos prometidos pelo novo Senado do que aos tumultos que os investidores viam pela televisão. Mas morreu gente, passou-se medo, e Washington debruçou-se sobre o abismo. E agora, até 20 de janeiro, restam duas semanas com um Trump na Casa Branca que ninguém no seu círculo parece capaz de frear.


Bernardo Mello Franco: Diplomacia da desinformação

O Brasil foi o último país do G20 a reconhecer a vitória de Joe Biden nas eleições americanas. A birra não se limitou ao presidente Jair Bolsonaro e ao chanceler Ernesto Araújo. Os dois contaram com o aval do embaixador em Washington, Nestor Forster.

Em telegramas enviados a Brasília, o diplomata se comportou como tiete de Donald Trump. Em vez de aconselhar o governo a cumprimentar o democrata, endossou a falsa versão de fraude contra o republicano.

“Ele comprou o discurso trumpiano quando a vitória de Biden já era inquestionável. Isso demonstra uma falta de profissionalismo no trabalho de informação”, critica o embaixador Roberto Abdenur, que representou o Brasil nos EUA entre 2004 e 2007.

O dever de um diplomata no exterior é retratar os fatos de modo sereno e objetivo, explica Abdenur. “Ele não pode deformar o fluxo de informações por se identificar com a linha ideológica do presidente”, ressalta.

O embaixador conta que tinha “certo respeito” por Forster, que já esteve sob seu comando em Washington. “Confesso que agora fiquei muito decepcionado”, lamenta, referindo-se aos telegramas revelados ontem pelo jornal “O Estado de S. Paulo”. “Ele era um profissional sério e correto. Não dava a impressão de ser um fanático de extrema direita”.

Forster apresentou o atual chanceler ao ideólogo Olavo de Carvalho, guru da família presidencial. No fim de 2019, foi recompensado com o cargo mais disputado entre diplomatas brasileiros no exterior.

“Há uma seita fanática na essência do governo Bolsonaro. A política externa atual está enraizada nesse extremismo”, diz o embaixador Abdenur. “O Brasil se desmoralizou e se isolou no mundo. Estamos hostilizando a China e agora vamos ficar mal com os EUA”, alerta.

Na terça, o Senado rejeitou a indicação do diplomata Fabio Marzano a um cargo em Genebra. Ele é apontado como um dos líderes do núcleo olavista do Itamaraty. Apesar da recusa, Abdenur não vê sinais de mudança no comando da diplomacia brasileira.

“Acho que ainda vamos permanecer como párias por muito tempo”, prevê.


O Estado de S. Paulo: Pessimistas sobre luta jurídica, aliados de Trump já falam em volta em 2024

Assessores admitem privadamente que batalha judicial é uma miragem e oficialização da vitória de Biden é uma questão de tempo; para arrecadar fundos, presidente criou comitê que deve ser usado para manter o Partido Republicano em suas mãos 

WASHINGTON - Enquanto o presidente eleito dos EUAJoe Biden, recebe ligações de líderes mundiais e monta seu gabinete, Donald Trump segue encastelado na Casa Branca. Após seis dias sem ser visto publicamente, ele foi ontem a um evento no Cemitério de Arlington, no Dia do Veterano, mas não falou com a imprensa. Privadamente, seus aliados mais próximos admitem que a batalha legal é uma miragem e muitos já falam em lançá-lo como candidato em 2024

Trump desafia sua derrota na Justiça em seis Estados – até agora, nenhuma ação relevante foi adiante. O fracasso levou seus principais aliados, entre eles Ronna McDaniel, presidente do Partido Republicano, Corey Lewandowski, ex-chefe de campanha, e Mark Meadows, seu chefe de gabinete, a reconhecerem, em conversas privadas, que a oficialização da vitória de Biden é menos uma questão de “se” do que de “quando”.  

Por isso, alguns republicanos importantes já apoiam a ideia de uma nova candidatura em 2024, apesar de insistirem publicamente que a eleição “não acabou”. A 22.ª Emenda da Constituição diz que um presidente só pode ser eleito duas vezes. Na história recente, dois perderam a reeleição, mas não se candidataram de novo: Jimmy Carter, em 1980, George Bush pai, em 1992. 

Após Joe Biden ser declarado vencedor das eleições, Trump criou um comitê de ação política, uma espécie de fundação autorizada a arrecadar fundos que podem ser gastos em viagens, pesquisas e propaganda política. O objetivo é garantir sua influência e manter o Partido Republicano em rédeas curtas, mesmo fora da Casa Branca. 

“O presidente sempre planejou fazer isso, ganhando ou perdendo”, afirmou Tim Murtaugh, porta-voz de sua campanha. “A ideia é apoiar candidatos e questões que lhe interessam, como o combate à fraude eleitoral.”

Muitos aliados já sugerem abertamente que Trump concorra novamente. “Eu o encorajaria seriamente a pensar no assunto”, disse o senador Lindsey Graham à Fox News Radio. Mick Mulvaney, ex-chefe de gabinete da Casa Branca, disse não “ter dúvidas” de que ele será candidato em 2024. “Acho que o presidente continuará envolvido na política e estará na lista de candidatos que concorrerão em 2024”, disse. Segundo o site de notícias Axios, dois assessores teriam ouvido do próprio Trump a intenção de se candidatar outra vez. 

O desafio, no entanto, é grande. Paul Waldman, colunista do Washington Post, acredita que Trump deixará sempre subentendida a chance de se candidatar para não perder a atenção da mídia e da base de eleitores. No entanto, ele precisará vencer vários obstáculos. 

O primeiro é a Justiça. O presidente enfrenta investigações criminais em Nova York por fraude e sonegação. O segundo são as dívidas. Ele tem centenas de milhões de dólares em empréstimos que vencem no ano que vem – e suas empresas devem precisar de dinheiro. Por fim, haverá concorrentes dentro do partido, esperando para herdar o espólio de Trump, que terá 78 anos em 2024. / W.Post 


Demétrio Magnoli: Mito da conspiração mundial sempre andou junto com a extrema direita

Estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios do Sião

Na sua reta final, a campanha de Donald Trump à reeleição entrelaça-se ao culto online QAnon. O fenômeno inscreve-se numa longa história e descortina as tendências evolutivas do discurso da extrema direta, nos EUA e mundo afora.

O QAnon nasceu como narrativa conspiratória singular. Segundo ela, o Partido Democrata americano é o núcleo de um complô de líderes pedófilos que organiza o sequestro de crianças para escravizá-las a redes de exploração sexual. Sob o comando de figuras como Joe Biden, Hillary Clinton e Barack Obama, operam Angela Merkel, Emmanuel Macron, Xi Jinping e outros “globalistas” engajados no negócio diabólico da pedofilia. Nessa moldura, Trump ocuparia o papel de salvador providencial das famílias, o derradeiro escudo protetor da cristandade ameaçada.

O mito da conspiração mundial sempre andou junto com a extrema direita. A estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios do Sião, fabricada pela polícia secreta da Rússia czarista para impulsionar o antissemitismo. Os Protocolos contam a história de um complô multissecular dos judeus destinado a assumir o controle dos bancos, das escolas e dos veículos de comunicação, o que propiciaria a conquista dos poderes estatais. A lenda, inventada em 1903, fez seu caminho até o movimento nazista e, mais tarde, foi adotada pelos negacionistas do Holocausto.

Nos Protocolos, os judeus encarnam o cosmopolitismo, o liberalismo, o agnosticismo e a depravação. O QAnon simplesmente substitui os judeus pelos “globalistas”. Os judeus dos Protocolos imolariam crianças para extrair o sangue usado no cozimento do matzá da Páscoa; os “globalistas” sacrificariam crianças puras nas engrenagens da luxúria.

A novidade está na plasticidade do QAnon —isto é, na sua natureza agregadora. Ao longo de poucos anos, o mito original foi incorporando outras lendas difundidas no ciberespaço. Obama não nasceu nos EUA e é um muçulmano disfarçado como cristão. Osama Bin Laden não morreu, mas foi escondido pelo governo americano. A Terra esférica é uma mentira carimbada pela Nasa. O coronavírus foi produzido num laboratório chinês e exportado ao Ocidente com a cumplicidade dos “globalistas”, que querem destruir as economias e submeter as nações a perversas instituições multilaterais. A “vacina chinesa” é um vetor de controle biológico dos indivíduos.

Acostumados a um universo extremo de fantasias, os seguidores do QAnon tendem a assimilar as sub-teorias conspirativas adventícias. Já os crentes dessas sub-teorias nem sempre compram o complô dos pedófilos, mas não se importam em consumir seletivamente as teses delirantes que circulam nas mesmas praças discursivas.

A lenda mais recente está adaptada à hipótese realista do fracasso de Trump na disputa pela Casa Branca —e é proclamada pelo próprio presidente americano. O resultado adverso decorreria de vasta fraude eleitoral e anunciaria uma ofensiva avassaladora do “Estado profundo”, por meio de uma “revolução colorida” que confiscaria as armas e as liberdades dos cidadãos.

Como qualquer discurso conspiratório que se preze, o QAnon triunfa nos dois cenários. Se Trump perder, a profecia cataclísmica realizou-se, impondo uma resistência ilimitada contra o governo dos pedófilos. Se, no fim das contas, Trump vencer, a exposição do maligno complô evitou o pior, provando a necessidade de uma guerra inclemente diante do ardiloso inimigo.

Há outra distinção relevante. No tempo dos Protocolos, a narrativa da conspiração movia-se exclusivamente de cima para baixo, ou seja, das lideranças políticas rumo ao grande público. Hoje, na era das redes sociais, ela transita nas duas direções, que se retroalimentam. Engana-se quem pensa que a “guerra da vacina” é, apenas, uma expressão da rivalidade eleitoral de Jair Bolsonaro com João Doria.​

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Vera Magalhães: Vacina em novembro

Erradicação da loucura que assola o mundo tem de começar pela eleição dos EUA

Parecia impossível que algum líder mundial fosse superar o festival de loucuras que Jair Bolsonaro protagonizou durante a pandemia do novo coronavírus, subindo em lombo de cavalo, promovendo aglomerações, indo a atos antidemocráticos, mostrando cloroquina para as emas, etc.

Mas aconteceu. Desde que foi diagnosticado com covid-19, na semana passada, Donald Trump deixou o pupilo brasileiro no chinelo em termos de impostura e inadequação não apenas ao cargo que ocupa e ao qual se agarra com unhas e dentes, mas também aos princípios básicos de civilidade e convívio público no curso de uma emergência sanitária.

O homem mais poderoso do planeta foi internado na sexta-feira com muitas dúvidas pairando quanto à data exata de seu diagnóstico, se ele promoveu eventos já sabendo que estava doente ou a gravidade do quadro antes e depois de ser hospitalizado.

À falta de transparência inimaginável para um País que se gaba de ser o berço e o guardião da democracia ocidental se somou a boçalidade desvairada.

Desesperado diante do revés da doença quando fazia questão de zombar dela, vender tratamentos mandrakes e defender e praticar comportamentos sociais irresponsáveis, Trump quis se mostrar forte.

Para isso, expôs assessores, seguranças e equipe do hospital a risco de contaminação. O carro em que ele fez o desfile patético é blindado inclusive para ataques químicos e biológicos, o que significa dizer que, se nada entra, tampouco sai. A carga viral de um presidente doente ficou toda concentrada no interior do carro, sujeitando os demais ocupantes a riscos.

A diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existem menos puxa-sacos e lambe-botas que aqui. E, quando um presidente se comporta como um moleque, há quem, mesmo entre os que o circundam, com coragem para dizer em voz alta. Foi o que fez o médico James Phillips, do hospital Walter Reed. “Eles podem ficar doentes. Eles podem morrer. Por teatro político”, atestou.

Lá como aqui este teatro que se prolonga já cobrou muito em termos de corrosão dos valores e dos marcos civilizatórios. Que um presidente decida se comportar como um bufão num debate e a comissão nacional encarregada de organizar tais eventos não deixe claro que isso não irá se repetir sob hipótese alguma é sinal de que Trump venceu mais um round e conseguiu enfraquecer mais uma estrutura que sustenta a democracia norte-americana – que, mesmo com todas as suas lacunas e falhas, é uma das mais estáveis do mundo.

Por tudo isso é vital a importância da eleição dos Estados Unidos, para o mundo e para o Brasil. A era de governantes fanfarrões calhou de coincidir com o maior flagelo humano, social e econômico que as atuais gerações – sejam as mais novas, sejam as que estão vendo antecipado seu tempo útil – irão conviver no curso de suas vidas.

A presença de figuras como Trump e Bolsonaro em postos de comando agrava exponencialmente os efeitos desse calvário. Mais de 200 mil mortos lá, quase 150 mil aqui e tanto um quanto outro seguem distraídos e distraindo os seus governados com factoides midiáticos. Lá a busca vale-tudo por uma reeleição cada vez mais difícil. Aqui a costura de terreno político com vista ao mesmo objetivo e para proteger a família presidencial, cada vez mais enredada numa trama que explicita o uso de dinheiro público de gabinetes para enriquecimento.

Não se sabe o mal que Trump ainda pode fazer, desde propagar o vírus para os que o cercam até colocar em dúvida a transição do poder caso se efetive a derrota que as pesquisas apontam. Mas é fácil analisar a importância que sua eventual saída de cena em novembro representará para começar a trazer de volta a racionalidade perdida à política brasileira. Que assim seja.