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Rolf Kuntz: Presidente dos EUA se torna um novo desafio para Bolsonaro

Com a política de Biden, a relação entre comércio e meio ambiente poderá ganhar uma importância desconhecida até agora. Quem cuidará disso no governo?

O combate à mudança climática será um dos pontos centrais da diplomacia, da política de segurança nacional e dos planos econômicos do governo americano, anunciou ontem o presidente Joe Biden. O mesmo recado foi transmitido em sessão do Fórum Econômico Mundial pelo representante especial da Casa Branca para questões do clima e do ambiente, John Kerry, secretário de Estado no governo do presidente Barack Obama. Não há escolha, disse Kerry, entre criar empregos pelo crescimento econômico e cuidar do ambiente. Grandes empresários, acrescentou, já apontam o caminho. Em seguida citou, entre outros, o bilionário Elon Musk, fabricante de carros elétricos.

O anúncio dá uma nova dimensão à advertência feita pelo candidato Joe Biden, num debate eleitoral, sobre a devastação da Amazônia. Eleito, poderia contribuir com bilhões de dólares para a preservação da floresta ou impor restrições comerciais ao Brasil. Resposta do presidente Jair Bolsonaro: “Depois que acaba a saliva, tem de ter pólvora. Não precisa nem usar a pólvora, mas tem de saber que tem”.

O enviado John Kerry nem sequer mencionou o Brasil. Mas citou uma grande potência econômica e militar, a China, responsável, segundo ele, por 30% das emissões de carbono. Nenhuma rivalidade comercial, afirmou, ofuscará a união dos governos americano e chinês a favor de políticas sustentáveis. Dois dias antes do enviado da Casa Branca, o presidente da China, Xi Jinping, havia discursado em defesa do multilateralismo, da cooperação econômica, do respeito às normas internacionais e da colaboração contra a covid-19 e na busca de grandes objetivos comuns.

Os dois pronunciamentos afirmaram valores muito diferentes daqueles proclamados pelo presidente Donald Trump, seguidos por seu discípulo Jair Bolsonaro incorporados na diplomacia executada pelo ministro Ernesto Araújo. A reunião do Fórum de Davos, nesta semana, foi em parte uma celebração de uma era pós-Trump: proteção do ambiente, multilateralismo, cooperação contra a covid-19 e ação coordenada para uma economia mais verde foram bandeiras defendidas em várias sessões, a partir de vários ângulos.

Malsucedido em sua única participação numa reunião anual do Fórum, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro decidiu novamente faltar. Foi substituído pelo vice-presidente Hamilton Mourão, escalado para uma sessão sobre a Amazônia

Foi um evento morno, com presença de vários brasileiros, do presidente da Colômbia, Iván Duque, e do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Mauricio Claver-Carone. Falou-se de planos para preservação da floresta, comentou-se o potencial econômico da região e o presidente do BID prometeu ajuda. Não houve críticas nem autocríticas.

O presidente Bolsonaro evitou os incômodos de participação no Fórum, mas terá de reconhecer, no dia a dia, os desafios da nova política americana. Muito ocupado com a reeleição e com seus assuntos familiares, provavelmente deixará as questões econômicas e diplomáticas para outras pessoas. Com a política de Biden, a relação entre comércio e meio ambiente poderá ganhar uma importância desconhecida até agora. Quem cuidará disso no governo?

*É JORNALISTA


Demétrio Magnoli: Trump, Cruz e o Compromisso de 1877

Para trumpistas, a ‘nação verdadeira’ foi sitiada pela massa de ‘estrangeiros’

A invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro, não impediu a certificação da vitória de Joe Biden — nem o espetáculo parlamentar de fundação do Partido de Trump. Na retomada dos trabalhos do Congresso, mais de cem deputados republicanos e meia-dúzia de senadores ainda insistiram em contestar os resultados eleitorais. À frente deles, o senador Ted Cruz, do Texas, invocou como precedente o Compromisso de 1877. A referência sintetiza o programa do Partido de Trump.

A eleição presidencial de 1876 foi travada entre o republicano Rutherford Hayes e o democrata Samuel Tilden. Na época, os republicanos eram o “partido da União”, dos vencedores da Guerra Civil (1861-65), e os democratas eram o “partido da Confederação”, das elites sulistas derrotadas. Tilden triunfou no voto popular, mas o desenlace no Colégio Eleitoral dependia de 20 delegados de quatro estados contestados. Depois de uma longa disputa judicial e parlamentar, concluiu-se por uma barganha. O Compromisso de 1877 deu a Casa Branca a Hayes, em troca da retirada das forças militares que ocupavam os estados da antiga Confederação.

À primeira vista, o paralelo entre as eleições de 1876 e 2020 não tem sentido. Na primeira, de fato verificaram-se irregularidades e fraudes generalizadas nos quatro estados decisivos. Na segunda, meticulosas recontagens e inúmeras decisões judiciais confirmaram a absoluta lisura do pleito. Cruz, porém, invocou o Compromisso de 1877 para delinear uma plataforma política: o Partido de Trump almeja a retirada das tropas da Lei dos Direitos de Voto que, em 1965, ocuparam o conjunto dos EUA.

Bandeiras confederadas, o símbolo do supremacismo branco, tremularam no comício de Trump que precedeu a invasão do Capitólio. O Compromisso de 1877 encerrou a Reconstrução: o parêntesis aberto em 1865 de intervenção do governo central na antiga Confederação. Logo, as velhas oligarquias retomaram o poder nos estados sulistas e formularam as leis de segregação racial. Com base na conciliação federativa, uma catarata de regulamentos estaduais reduziu a pó o direito de voto dos negros inscrito na 15ª Emenda (1870).

Tilden, o derrotado de 1877, pertencia ao Partido Democrata, que representava as oligarquias sulistas. O movimento pelos direitos civis, de Martin Luther King, inverteu o cenário. As leis dos Direitos Civis (1964) e dos Direitos de Voto (1965) foram patrocinadas por governos democratas. O Partido Republicano converteu-se no “partido do sul” — mas manteve-se longe da bandeira confederada e do supremacismo branco. Trump promove a ruptura com a tradição de Lincoln. Sua facção republicana sonha anular as garantias legais da igualdade de direitos, restaurando a nação original, de colonos brancos e protestantes.

Só uma estreita minoria de idiotas hipnotizados pelas lendas conspiratórias de mídias sociais acredita, de fato, que Biden triunfou graças a uma fraude eleitoral. A grande mentira, porém, encontra tradução diferente na extensa base de fiéis trumpistas. Trump obteve a maioria do voto branco, mas perdeu devido ao peso eleitoral dos negros e latinos. É isso que o núcleo de eleitores trumpistas interpreta como fraude. Para eles, a “nação verdadeira” foi sitiada pela massa de “estrangeiros” de “sangue” latino ou africano.

No seu mandato único, Trump concentrou-se em mudar a composição da Suprema Corte, indicando juízes “originalistas” — ou seja, adeptos da interpretação literal da Constituição escrita pelos fundadores. A Constituição “original” não abrange as leis dos direitos civis. Convenientemente relida, poderia autorizar as legislaturas estaduais a restringir a inscrição de eleitores de minorias. Eis a meta principal do Partido de Trump.

O Partido de Trump, uma facção do Partido Republicano, é um movimento restauracionista do nacionalismo branco. As correntes supremacistas e as milícias nativistas que circulavam na periferia do sistema político encontram nele uma grande organização unificadora. A violência política da extrema-direita transforma-se em elemento central e perene da política americana. É esse o legado de Trump.


Dorrit Harazim: A hora é agora

Será obrigatório transformar sociedade que se estruturou no racismo e deu 74 milhões de votos a Trump

Neste 20 de janeiro de 2021, nada foi como a catártica festança de novembro, quando ruas, praças e lares explodiram de júbilo pela derrota de Donald Trump. Na cerimônia de posse de Joe Biden e de sua vice, Kamala Harris, aconteceu algo mais sutil e profundo. Algo como ser coberto por uma manta familiar, quando nem sabíamos quanto ainda estávamos com frio. Fomos sorrindo, revendo rostos conhecidos, revivendo brincadeiras e nos surpreendendo, totalmente desarmados. Um repentino conforto cívico fez emergir uma doce alegria interior.

Durou só um dia. Mas aconteceu, e foi lindo.

Impossível tirar os olhos e desplugar os ouvidos da performance de Amanda Gorman, a jovem poeta negra que, em menos de 6 minutos, cativou geral recitando “The Hill We Climb” (A colina que subimos). Trazia no dedo um imenso anel em forma de pássaro aprisionado (tributo ao primeiro livro da imortal Maya Angelou, “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”). Encadeou cada palavra para compor um mosaico histórico do país, com técnica inspirada no épico “Hamilton”, de Lin-Manuel Miranda. Sua récita foi iniciada com um questionamento: “Quando o dia amanhece, nos perguntamos onde podemos encontrar luz nesta sombra que nunca acaba?”. Ela mesmo deu a resposta: “Sempre há luz se formos suficientemente corajosos para vê-la. Se ao menos fôssemos suficientemente corajosos para sê-la… Não voltaremos ao que foi, mas vamos nos transportar ao que será um país ferido, íntegro, benevolente, mas ousado, feroz e livre”.

Exatamente um ano antes, o veterano Joe Biden, branco, centrista e com 77 anos, se arrastava pelo Iowa rumo a nova derrota nas prévias partidárias, competindo com a safra 2020 de democratas mais jovens, mais diversos, mais progressistas. Conseguiu chegar aonde sempre quis estar graças ao próprio ocupante do cargo — talvez não chegasse à vitória sem a trágica, criminosa, deliberada porteira aberta pela Casa Branca à Covid-19. As previsões para fevereiro são de 500 mil mortos em solo americano. America First, como diria Trump. No 20 de janeiro de um ano atrás, a pandemia nem sequer foi mencionada por Biden num comício em Des Moines. Hoje seu lugar na história depende em boa parte de como se sairá no embate com o vírus.

Por vezes o julgamento da história é mais veloz que o tempo. Donald Trump pôde ser avaliado bem antes de se esgotarem os 2.044 dias em que ocupou e dominou a mídia — mais precisamente, desde 16 de junho de 2015, quando o showman e empreendedor fraudulento surgiu de uma escada rolante dourada para se declarar candidato. Os 1.460 dias em que ocupou o Salão Oval, e de lá quase teve de ser retirado na marra, apenas consolidaram o veredito: difícil de ser superado como o mais ruinoso presidente da nação. Em quatro anos de mandato, foram dois impeachments, o abandono de responsabilidades, uma insurreição contra eleições livres e contra a verdade, um assalto ao Congresso, a criação de um culto à personalidade, a mudança da sede do governo para o Twitter.

Por enquanto, Trump está exilado em Mar-a-Lago, visto como material tóxico. Até o ex-ator mirim Macaulay Culkin já se juntou ao diretor Chris Columbus para que seja removida a microcena de “Home Alone 2” em que Trump faz uma ponta. A ressaca do ex-presidente será grande. Por não suportar a invisibilidade, deverá tentar prosseguir a “guerra incivil” em porões da democracia.

O discurso inaugural de Biden foi o segundo mais longo desde a posse de Ronald Reagan, em 1981. Se falou muito, foi por ter o que dizer, e o fez com notável franqueza. Pela primeira vez nos mais de 230 anos da nação, um presidente americano pronunciou a palavra maldita — “supremacia branca”. Disse mais: “Precisamos confrontar e vamos derrotar o crescimento do extremismo político, da supremacia branca, do terrorismo doméstico”. Em outras palavras, salvar os Estados Unidos de si mesmos. Tarefa hercúlea para um homem que é, sempre foi e sempre será um moderado de raiz, movido pela cautela e confiante no poder do diálogo. Sua crença no estado de direito, na decência humana, na verdade são louváveis para “restaurar a alma da América”, como anunciou. Só que, a partir de 2021, não basta mais restaurar a alma da história passada. Será obrigatório, também, transformar essa sociedade que nasceu e se estruturou no racismo, não dispõe nem sequer de uma saúde pública para chamar de sua, e deu 74 milhões de votos a Donald Trump. A iniquidade social, a justiça desigual, a vulnerabilidade subitamente exposta dessa democracia tida como farol do mundo vai exigir muito de Joe Biden. Talvez demais para a urgência e pouco tempo.

O mundo torce. “Se não fizermos mudanças audaciosas, corremos o risco de terminar com alguém pior do que Trump dentro de quatro anos”, disse em entrevista ao jornalista Anand Giridharadas o veterano Chuck Schumer, que agora assume a liderança da maioria democrata no Senado. O que foi chamado de mudança nas duas últimas décadas, incluindo aí os dois mandatos de Barack Obama, não foram “nem suficientemente grandes nem corajosas o bastante”, acrescentou. A hora é agora para Biden ousar se medir com Franklin D. Roosevelt ou com o Lyndon Johnson dos Direitos Civis. Que tempos históricos temos pela frente! Lá e cá.


João Gabriel de Lima: A Terra volta a ser redonda. Hora de o Brasil embarcar

Foi semana de benditas obviedades. Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta

Stefani Germanotta, a Lady Gaga, cantou o hino dos Estados UnidosJennifer Lopez deu um twist latino à sua interpretação de God Bless America; e, no encerramento, a poeta Amanda Gorman, de 22 anos, declamou versos que resumem o sentimento da nova geração. Na posse do presidente Joe Biden, as três mulheres nos lembraram que os Estados Unidos são um país ítalo-americano, hispano-americano, afro-americano – sem contar outras etnias e misturas. Muito de sua força e riqueza se deve à bênção de ser uma nação de imigrantes.

Parece óbvio. É como dizer que a Terra é redonda.

No momento-chave de seu discurso, Biden disse: “Nós devemos tratar os outros com dignidade e respeito. Juntar forças, parar o tiroteio e baixar a temperatura. Sem unidade não há paz – só amargor e fúria. Não há progresso – só ultraje exasperante. Não há nação – só um estado de caos”.

Dignidade e respeito. Condições óbvias para o debate inteligente nas democracias. A Terra é redonda.

No mesmo dia da posse de Biden, Portugal assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Em Bruxelas, o primeiro-ministro António Costa traçou as linhas gerais dos próximos seis meses: foco no social, na economia digital e no combate às alterações no clima. “Temos um planeta para proteger, e não podemos perder mais tempo,” disse Costa em seu discurso.

A Terra é redonda, e temos que cuidar dela.

Aqui em Portugal vivemos o momento mais dramático da pandemia. O governo decretou confinamento total. A trajetória da covid no país confirma o mantra dos cientistas: as duas únicas formas de controlar uma pandemia são vacina e distanciamento social. Portugal achatou a curva quando optou pelo confinamento, em março passado e no início de dezembro. Quando abriu mão dele, no “alívio” de Natal e ano-novo, deu-se o inverso. Turbinados pela variante inglesa, os casos explodiram.

Seguir o que diz a ciência: outra obviedade.

Enquanto isso, no Brasil, as obviedades são colocadas em dúvida todos os dias. O distanciamento social é minimizado, a floresta que ajudaria a deter a mudança climática enfrenta recordes de desmatamento e o “tiroteio” e o “ultraje” se tornam a regra em Brasília. Em ensaio publicado recentemente, o cientista político José Álvaro Moisés – personagem do minipodcast da semana – examina as razões de vivermos em permanente crise política. Uma delas pode ser o sistema de governo. Segundo Moisés, o semipresidencialismo – que vigora em Portugal e na França – distribui melhor o poder e facilita a negociação.

Portugal vai às urnas neste domingo para escolher o presidente. O atual ocupante do cargo, Marcelo Rebelo de Sousa, é o favorito à reeleição. Marcelo, que os portugueses chamam pelo primeiro nome, é de centro-direita, e divide o poder com o primeiro-ministro Costa, de centro-esquerda. Eles conversam “com dignidade e respeito” – e, pela saúde dos cidadãos, foram capazes de unificar o discurso durante a pandemia, em pleno tiroteio eleitoral.

Respeito aos que pensam diferente e aos que vêm de países diferentes. Respeito à ciência. Foco no social num momento em que muitos ficam sem empregos. Foco no combate à mudança climática – se ela ocorrer, nada restará para nossos filhos e netos.

Foi uma semana de benditas obviedades. Como se a Terra, depois de um momento de loucura, tivesse voltado a ser redonda.

Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta.


Monica de Bolle: A posse e seus símbolos

Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos

Foram quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o início do dia.

Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.

Quem capturou a atenção na cerimônia, entretanto, foi Amanda Gorman, jovem poetisa de 22 anos, que declamou seu poema “O monte que galgamos” com alegria e bravura. Foi emocionante, e não houve sentimentalismo em suas palavras ou sua postura. Por isso foi tão impactante. Como ela disse, “nós, sucessores de um país e de uma época em que uma menina negra magricela, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira pode sonhar em ser presidente, apenas para se ver recitando para um presidente”. Há promessa e poesia nessas palavras: promessa da política, pelo novo que irrompe anunciando aos que vieram antes que o mundo não perecerá, e poesia da política também. O poema de Gorman deixou claro que um ciclo se encerrava para que outro se abrisse. Novo. O novo como cumprimento da promessa, ainda que em situação de crise.

Os ritos pareciam encerrar a transição que se iniciou logo após a eleição. A seu término, Biden partiu para a Casa Branca com o propósito de desfazer males feitos por Trump.

O novo presidente vinculou os Estados Unidos de novo ao Acordo do Clima de Paris, tomou medidas para frear a pandemia e assinou decretos se comprometendo com a proteção social.

Comunicou por atos três pilares de seu governo: a proteção social, o meio ambiente e a saúde pública, além do multilateralismo. Sem ter tido muito tempo para refletir sobre o que tudo isso representa, fui chamada para uma entrevista. Nela me perguntaram: “Como ficam as relações entre o Brasil e os Estados Unidos”. Relações? Que relações? O Brasil de Bolsonaro tem relações frágeis com uns Estados Unidos imaginários, pois o amigo fantasia do presidente brasileiro, Trump-My-Way, jamais deu a mínima para ele ou para o país. De bate-pronto, respondi: vejamos os decretos que Biden acaba de assinar, os compromissos que acaba de assumir e os comparemos com o Brasil. Proteção social? Bolsonaro extinguiu o auxílio emergencial. Meio ambiente? Bolsonaro tem criado condições propícias ao desmatamento, com desmonte institucional e restrições orçamentárias. Saúde pública? Bolsonaro deixou morrerem centenas de milhares de brasileiros e fez de tudo para que a pandemia chegasse a seu pior momento. Multilateralismo? Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto, é, ao mesmo tempo, antiglobalista e árduo defensor de um liberalismo econômico sem peias. Trata-se da política do “E daí?” em todas as áreas que são caras para Biden. Portanto, que relação Brasil-EUA?

É preciso muito pensar. Pensar nesse 20 de janeiro, nas promessas da política. Cultivar esse momento em que as possibilidades são muitas e estão em aberto a quem tem disposição para disputá-las.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Ascânio Seleme: O exemplo de Trump

O caminho que ele percorreu até a derrota para Biden é o mesmo que Bolsonaro trafega

Trump seria muito provavelmente reeleito se não houvesse o coronavírus, que o desmascarou. Suas mentiras, apesar de contadas aos milhares, eram absorvidas como mais do mesmo. Pareciam uma bobagem. Não eram, como se veria mais tarde. Seu estado de confrontação permanente também não assustava no princípio. Seus adversários do Partido Democrata tampouco se entusiasmaram com a campanha que viam se encaminhar para uma derrota inevitável. Por isso, talvez, Biden tenha sido o candidato escolhido para a disputa, por ser o mais talhado para o sacrifício.

Embora seja um político valoroso, de trajetória impecável, Biden era visto como um homem velho, de outra época. Eleito, seria o mais velho presidente a tomar posse nos Estados Unidos. Além disso, ou talvez por isso mesmo, seus lapsos de memória eram considerados até por seus mais fiéis aliados como um problema político sério. Biden foi gago na juventude. Corrigiu o problema com tempo e terapia, mas eventualmente tropeça numa palavra ou engasga no meio de uma frase. Um problemão num debate eleitoral.

E foi assim, atropelando aqui e ali uma palavra que não conseguia pronunciar, esbarrando num detalhe, numa cifra, numa referência de que não podia se lembrar, que Biden foi tocando a campanha até ganhar a eleição com margem folgada. Surpresa? Vista desde janeiro de 2020, imensa surpresa. Mas, como a campanha refletiu a negligência de Trump com a pandemia e o transformou num símbolo do negacionismo, a vantagem substancial do republicano foi aos poucos evaporando.

Não foi a economia. Em janeiro do ano passado, a economia americana bombava, e o emprego era pleno. O presidente Donald Trump tinha autoridade, embora sua arrogância tenha sido seguidamente confundida com liderança. Claro que foi enorme o impacto do vírus sobre a vida econômica americana, como de resto em todo o mundo. Milhões de pessoas perderam o emprego, milhares de empresas fecharam suas portas definitivamente. Um número sem tamanho de esperanças e sonhos foi sepultado com os 400 mil americanos que perderam a vida para a Covid-19.

Mas o eleitor saberia interpretar o problema como uma tragédia global e não o atribuiria ao candidato Donald Trump, não fosse ele o mais antidemocrático, mentiroso, arrogante, beligerante e perverso presidente da história americana. Seu descaso negacionista com o vírus contribuiu para a exorbitância das mortes. Trump rejeitou sistematicamente o uso de máscaras, repetiu que o vírus era perigoso apenas para cardíacos e idosos e, já em outubro do ano passado, disse aos americanos: “Não deixem que o vírus domine suas vidas, não tenham medo, saiam às ruas”.

O caminho que Trump percorreu desde sua posse até a derrota para Biden é o mesmo que Jair Bolsonaro trafega no Brasil. E seu desfecho tem tudo para ser o mesmo. Se Bolsonaro não for cassado antes, muito provavelmente vai perder a eleição de 2022. Como ocorreu com Trump, a confiança popular, que era seu maior patrimônio quando tomou posse, foi se deteriorando pelos mesmos motivos que destruíram o ídolo norte-americano: a mentira, o ódio, o desprezo à vida e o desrespeito à democracia.

No Brasil, a pandemia contaminou o governo Bolsonaro da mesma forma que destruiu o de Trump. Uma boa parte das mais de 210 mil vítimas brasileiras deve ser atribuída à negligência e ineficiência do governo federal. A ilusão do tratamento precoce e o descaso com cuidados básicos, além dos maus exemplos, da politização do vírus e do atraso deliberado na compra de vacinas, aumentaram a conta de brasileiros mortos. Bolsonaro, seus pazuellos e ernestos um dia pagarão pelos crimes agora cometidos.

E agora, quando percebeu estar encurralado, tornou a ameaçar a democracia. Uma de suas velhas retóricas, a mais infame delas, voltou a brotar na boca do presidente. Os brasileiros devem dar ao golpismo de Bolsonaro o mesmo destino que os americanos deram ao de Trump: o lixo. Se não for já, que seja logo mais, em outubro do ano que vem.


Míriam Leitão: A democracia prevaleceu

O governo Joe Biden começou ontem, através do ritual da posse e do tom do discurso, a restauração dos fundamentos da democracia americana. A fala dele pedindo união poderia ser apenas protocolar, não fosse o fato de que a divisão foi levada ao absurdo pelo seu antecessor, que governou aprofundando o fosso social e político. Por isso, os ritos em Washington foram mais valiosos.

“Aprendemos de novo que a democracia é preciosa, que a democracia é frágil e, nesta hora, a democracia prevaleceu”. Poderia ser apenas uma frase bonita de um discurso de posse, exceto pela realidade de que ali mesmo onde Biden falava, duas semanas antes, uma horda de radicais insuflados pelo então chefe do governo havia tentado simplesmente impedir o ato do Congresso de reconhecer a eleição.

Biden começou ontem mesmo a desfazer a herança recebida. Todos rigorosamente de máscara durante todo o evento era um recado. Mas eles foram muitos em cada momento. Os gestos recíprocos entre o governo democrata que começa e republicanos como o ex-vice-presidente Mike Pence e o senador Mitch McConnell e, principalmente, o ex-presidente George Bush, deram sentido à frase: “a política não precisa ser um jogo violento destruindo tudo em seu caminho.”

Um presidente na sua posse defender a “verdade” seria visto como algo completamente banal, não fosse o fato de que a mentira é hoje um problema real da política. Um mentiroso compulsivo ocupou a presidência por quatro anos e falou mais de 30 mil mentiras, contabilizou o “Washington Post”. Na pior delas, feriu a base da democracia. O ataque ao Capitólio, disse o senador republicano Mitch McConnell, foi “alimentado por mentiras” e provocado por Trump.

Exaltar a diversidade da América também é previsível. Mas ganhou um sentido concreto, num governo que quebra um enorme precedente. A primeira mulher vice-presidente da história do país. Kamala Harris chega carregada de simbolismo pela sua origem. A mãe dela veio jovem da Índia para estudar e fazer carreira nos Estados Unidos. Sempre foi subestimada por seu sotaque forte. Casou-se com um jamaicano negro e teve duas filhas. Uma delas hoje está sentada na segunda cadeira mais poderosa do país e ontem à tarde deu posse aos novos senadores.

O discurso, portanto, era sincero. A posse de ontem refletia essas escolhas e valores. As primeiras ordens executivas confirmavam o que Biden havia dito. A volta ao acordo de Paris também não é um mero gesto. Significa o fim do isolacionismo que vigorou nos últimos anos, mas, além disso, é um compromisso que pode ter um impacto concreto. Os Estados Unidos são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa.

Na sua sabatina no Senado na terça-feira, a nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, falou que a retomada da economia terá que privilegiar projetos de infraestrutura, e fontes de energia que emitam menos. E que todo o sistema de subsídios terá que ter em mente a preocupação ambiental. Chegou a especificamente defender estímulo ao carro elétrico. A retomada da economia terá esse eixo, reduzir os riscos climáticos e por isso a terceira ordem executiva que Biden assinou foi a volta ao acordo global do clima. A primeira foi o uso de máscaras nos locais onde ele pode legislar. Lá como aqui, governadores e prefeitos podem decidir, mas isso não significa, como Bolsonaro sempre repete, que o governo federal nada possa fazer. Biden está determinado a fazer, e muito, pelo combate à pandemia, que ele definiu como inimiga do país. E outra decisão foi a volta à Organização Mundial de Saúde.

Os Estados Unidos estão de volta. De volta aos seus sonhos de um país de democracia forte, de rituais centenários de transição de poder, de busca de inclusão, e de relação com o mundo. O multilateralismo sentiu muita falta dos Estados Unidos. A Europa é que o diga.

Biden falou que a democracia foi testada e mostrou resiliência. É inevitável pensar no Brasil. Em dias em que, de novo, o presidente brasileiro rosna ameaças, como a de que as Forças Armadas é que decidem se há ou não democracia, e em que o seu procurador-geral insinua “estado de defesa”, é bom lembrar a razão da fragilidade da democracia. Por ser um sistema aberto, ela abriga seu próprio inimigo. E ele pode chegar à Presidência. Nos Estados Unidos, no fim, a democracia prevaleceu.


Ruy Castro: Sugestões no vazio

É inútil sugerir ao homem mais poderoso do mundo que se mate; ele nem leva em consideração

No domingo último (10), este colunista sugeriu ao presidente Donald Trump que, por sua incapacidade de aceitar a derrota nas urnas de seu país —de aceitar ser um perdedor—, fizesse como Getulio Vargas, que, ao também se ver diante do fim, matou-se e passou à história como um mártir. Se Trump fizesse o mesmo, muitos americanos que o detestam começariam a vê-lo com simpatia. Até este momento, no entanto, Trump nem considerou minha sugestão.

Realmente, há um quê de patafísico em um colunista brasileiro, escrevendo em código --a língua portuguesa--, oferecer tal conselho ao homem mais poderoso do mundo. Como era natural, Trump me ignorou, e Jeff Rosen, seu ministro da Justiça, poupou-se do ridículo de vir em cima de mim. Os horrores que Rosen escuta sobre seu chefe por todas as mídias dos EUA são mil vezes piores, e mesmo contra esses ele nada pode fazer, porque a Constituição americana garante a liberdade de opinião.

Supõe-se também que, se um presidente da República, de qualquer país, deixar-se afetar por uma sugestão tão descabida é porque deve ser um idiota, impróprio para governar. Se um sujeito se chega a ele dizendo "Mate-se" e ele salta pela janela, imagine se um de seus ministros lhe propuser botar fogo na mata enquanto ninguém está olhando --ele será capaz de topar.

Mas Trump não é um idiota, nem Rosen. Os dois, aliás, estão muito ocupados --Rosen mandando os trumpistas arruaceiros do Capitólio para a cadeia (que jeito?), e Trump deixando de ser o homem mais poderoso do mundo. Os militares já o abandonaram, assim como a Suprema Corte e, cada vez mais, seus colegas Republicanos. Se bobear, logo só lhe restará a família Bolsonaro.

Ah, sim, sem ilusões estendi aquela ingênua sugestão a Jair Bolsonaro. Mas, pela reação que ela provocou dentro do governo, o homem mais poderoso do Brasil só pode estar considerando a ideia.


Joel Pinheiro da Fonseca: Redes sociais aceitaram sua responsabilidade, mas precisam de critérios mais claros

Se critério das empresas for a preferência ideológica ou pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão

invasão do Capitólio por extremistas, apesar de sem precedentes, não foi inesperada. É resultado preparado por anos de fake news, desinformação, discurso de ódio e teorias de conspiração nas redes sociais. Depois da longa negligência, a resposta das redes foi rápida. Donald Trump está banido da maioria delas, assim como, aparentemente, centenas de outros influenciadores de extrema direita.

Com a consolidação de um oligopólio nas redes —Google, Facebook e Twitter controlam todas as principais— essas empresas passam a ter um poder similar ao de grandes grupos de mídia no passado: o poder de varrer uma opinião ou pessoa do debate público pelo mero silêncio. Basta não dar espaço para alguém se expressar que essa pessoa desaparecerá da discussão e das mentes do público. Sem Twitter e fora da presidência, o dano que Trump pode causar é drasticamente reduzido. Quanto a influenciadores que nunca tiveram altos postos na política ou na mídia, sua capacidade de influenciar o debate cai a próximo de zero quando são banidos das redes.

Há, no entanto, diferenças. Na mídia tradicional, o poder de dar voz e silenciar era exercido na seleção de quem teria o limitado espaço da página de um jornal ou na grade de uma TV. A rede social, ao contrário, seleciona os poucos que não terão espaço, pois nela cabe todo mundo.

A decisão de excluir alguém de algo a que todos têm acesso exige uma justificativa muito mais sólida do que a de dar a alguns privilegiados algo que é escasso. No caso de Trump, sobram justificativas válidas: seus tuítes pregavam o descrédito de instituições fundamentais da democracia americana, encorajavam sedição e insurreição. Além disso, por seu cargo e número de seguidores, sua voz é poderosíssima em termos de possíveis consequências práticas. Se um zé-ninguém conclama a derrubada do Congresso, ninguém dá ouvidos. Se é o presidente da República, as mesmas frases se tornam armas perigosas.

Num primeiro momento, a perda de espaço nas redes sociais principais indicava que os extremistas iriam para redes sociais menores, como o Parler. Lá, embora a radicalização seja levada a níveis verdadeiramente alucinados (muitos dos que invadiram o Capitólio são figuras do Parler), a capacidade de influenciar as massas é muito menor. Só que mesmo esses redutos de extremismo estão sendo desbaratados: com boicote de Google, Apple e Amazon, o Parler não sabe se continuará a existir.

O sentimento de vitória esmagadora contra as forças do mal é uma delícia. Mas não é um bom guia. Há indícios de que as redes sociais são muito mais intolerantes com o extremismo de direita do que com o de outras variantes. Que Donald Trump tem sido tratado de maneira mais dura até do que o aiatolá Khamenei, cuja conta de Twitter já pregou o fim de Israel e, mesmo assim, não foi suspensa.

As redes estão se conscientizando da responsabilidade de não permitir que qualquer loucura —ainda mais com consequências perigosas— seja veiculada em suas plataformas. Mas para que isso seja feito de forma justa e evite abusos, precisam desenvolver critérios e mostrar transparência e isonomia em sua aplicação. Se o critério das empresas for a preferência ideológica de seus diretores somadas às pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão. Hoje, o alvo é justo. Amanhã pode não ser.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Merval Pereira: Contrapesos democráticos

Mesmo que considerem importante chamar a atenção do fato de o presidente dos Estados Unidos Donald Trump não ter tido o apoio dos militares, como destacou o professor Steven Levitz, e a necessidade do controle civil dos militares para a prevalência e estabilidade da democracia tanto nos EUA como no Brasil, como enfatizou o cientista político Octavio Amorim Neto em colunas anteriores esta semana, dois analistas das questões da democracia consideram que fatores relevantes existem hoje no Brasil para impedir que iniciativas golpistas de populistas extremados tenham sucesso.

 O cientista político da FGV do Rio, Carlos Pereira, destaca a independência e a atuação das organizações de pesos e contrapesos (checks & balance) da democracia. O advogado e ex-deputado federal Marcelo Cerqueira, com o conhecimento de quem viveu intensamente os acontecimentos políticos, inclusive com o prestígio que a UNE desfrutava à época e, depois, como Deputado, ao lado de Tancredo Neves e Ulisses Guimarães, participou das negociações para a transição democrática, afinal exitosa, não acredita em golpe militar.  

Carlos Pereira lembra que tanto os EUA como o Brasil possuem “um leque muito sofisticado e descentralizado dessas instituições democráticas”, como Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Controladorias, Polícia Federal, que garantem o equilíbrio de poderes. “Além do mais, dispõem de uma mídia diversa e extremamente vigilante contra qualquer desvio do populista de plantão. As sociedades brasileira e americana também são muito sofisticadas, ativas e atentas com relação ao comportamento de seus governantes”.

Para Pereira, as análises partem do pressuposto de que estas organizações de controle, e a própria sociedade, seriam vítimas indefesas da atuação oportunista e golpista de governos populistas extremos. “Bastaria apenas capturar os militares para que a democracia sucumbisse”.

Mas ele destaca que o ocorrido nos EUA sugere que Trump não foi capaz de capturar os militares “porque os EUA dispõem de uma sociedade atenta e de organizações de controle fortes e independentes. O que vimos foi o completo isolamento do presidente americano, não apenas entre os militares”.

Traçando um paralelo para o caso brasileiro, Carlos Pereira pondera que “se o ocorrido com os EUA puder servir de roteiro para Bolsonaro construir uma potencial narrativa golpista, especialmente em caso de derrota eleitoral em 2022”, o mesmo pode ser argumentado em relação ao aprendizado institucional da sociedade e de suas organizações de controle, “que certamente estarão ainda mais atentas e alertas contra potenciais atitudes extremadas do Presidente”.

Populistas extremados, como Trump e Bolsonsaro, sempre andam no “fio da navalha”, pois precisam servir a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo, analisa Carlos Pereira, advertindo que “nem sempre é possível dar respostas adequadas que contemplem a essas duas demandas contraditórias”.Essa situação leva a que necessitem do apoio inconteste do seu núcleo duro de eleitores, e por isso “precisam polarizar seus argumentos por meio de conexões identitárias capazes de manter seus seguidores unidos e coesos”. Por outro lado, “precisam jogar o jogo dos procedimentos institucionais da democracia para não serem rifados do jogo político”.

O cientista politico da FGV ressalta que, com muita frequência, populistas extremos cometem erros. “O Trump, certamente, cometeu o maior erro da sua administração e vai pagar um preço reputacional, político e talvez judicial incalculável”.

O advogado Marcelo Cerqueira, defensor de presos políticos e negociador do processo de abertura que desaguou na anistia e democratização do país, acha que é preciso “colocar as questões em seus termos”. Com a experiência vivida, ele está certo de que não haverá uma ruptura militar”.

A preparação do Golpe 64 levou em conta algum enfrentamento militar, na suposição propalada de que Jango tinha apoio”, que não é o caso de hoje. E nem os "golpistas" teriam como cooptar militar acatado como General Castelo Branco. 

“Golpe para manter um militar tosco de patente inferior como Bolsonaro não é provável. Manipular com lamentável ignorância o Artigo 142 como uma supremacia militar em qualquer ocasião é de uma estupidez sem nome”.


Alon Feuerwerker: Uma data (realmente) histórica

Todo fenômeno histórico precisa, quando estudado, receber uma data fundadora, com um acontecimento determinado. É apenas uma convenção, mas útil para estudar a explicar o andamento da história em termos mais didáticos.

Foi assim com o século 20, dito o século curto, pois teria começado na Primeira Guerra Mundial e terminado no colapso da União Soviética. E a metodologia vale sempre, com a vantagem de conferir ao analista e estudioso o poder de ajeitar o calendário para fundamentar uma tese.

Hoje é um dia assim, ficará disponível para os historiadores quando precisarem explicar os acontecimentos que contribuíram para a disfuncionalidade da democracia nos Estados Unidos. Pois nunca antes ali os derrotados recusaram reconhecer a vitória do adversário depois de abertas as urnas.

Outros poderão argumentar que não, que a confusão toda começou quando os democratas tiraram do baralho a carta da "conspiração russa que elegeu Trump", e que levou ao impeachment dele. Bem, fica a critério de cada um, e cada um tem o direito de ter suas preferências.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


El País: Democratas conseguem o controle do Senado dos EUA

Raphael Warnock e Jon Ossoff conquistam as cadeiras no segundo turno da eleição na Geórgia

Antonia Laborde, El País

Em meio ao caos gerado pelo ataque ao Capitólio feito por partidários de Donald Trump em Washington, o Partido Democrata arrebatou do Republicano o controle do Senado dos Estados Unidos com a vitória dos dois candidatos progressistas na eleição desta terça-feira na Geórgia, que disputava no segundo turno as duas cadeiras atribuídas a este Estado. O resultado abre caminho para o mandato do presidente eleito, Joe Biden, que, pelo menos pelos próximos dois anos, governará com as duas Câmaras legislativas a seu favor, a dos Representantes e o Senado. A maioria democrata deste último será, no entanto, mínima. Com a vitória do reverendo Raphael Warnock e do documentarista Jon Ossoff, o Senado será composto por 50 republicanos e 50 democratas (dois deles independentes). A próxima vice-presidenta, Kamala Harris, exercerá o voto decisivo nos casos de empate.

O resultado vem depois de uma campanha de alta tensão, marcada pela ofensiva do presidente republicano Donald Trump para anular o resultado das eleições presidenciais brandindo acusações infundadas de fraude em massa, que implicam o questionamento de todo o sistema e que culminou com o caos na sessão que ratificaria o mandato de Biden. A Geórgia estava no olho do furacão depois de ter elegido, em novembro, o primeiro presidente democrata em 28 anos, tornando-se assim o único oásis azul no chamado “cinturão bíblico” do sul, em uma votação apertada que Trump tentou desacreditar sem sucesso. Nesta terça-feira, o sul do Estado voltou a fazer história e elegeu o primeiro senador democrata desde 1996 no segundo turno depois de um primeiro empate em 3 de novembro.

Com a recuperação do Senado depois de seis anos de maioria republicana, os democratas deram outro basta à era Trump, embora o resultado apertado reflita a necessidade de consensos. A vitória democrata na Geórgia também marca o fim do reinado do dirigente republicano Mitch McConnell na Câmara Alta, que passará a ser o líder da minoria. McConnell foi durante anos o muro no qual a Administração de Obama se chocou em seus últimos anos, um veterano político orgulhoso do apelido de La Parca [A Morte], por sua capacidade de enterrar projetos da oposição.

A maciça participação da comunidade afro-americana e a mobilização dos jovens foram fundamentais para a vitória de Warnock, que enfrentou a senadora republicana Kelly Loeffler, de 50 anos, e de Ossoff, de 33, que disputou uma vaga contra David Perdue, até o último domingo senador republicano, de 70 anos.

O reverendo Warnock, o primeiro afro-americano a chegar ao Senado pela Geórgia, era um forte adversário. O pastor, que há mais de 15 anos pertence à Igreja Batista Ebenezer, a mesma do líder pelos direitos civis Martin Luther King Jr., foi imediatamente bem recebido pela comunidade, que sentiu sua proximidade em relação aos seus problemas cotidianos. A Geórgia é o segundo Estado com maior população negra do país (33,5%), um grupo demográfico que costuma favorecer os democratas. Por seu lado, Loeffler, que foi escolhida a dedo pelo secretário de Estado da Geórgia depois que um legislador se afastou por problemas de saúde, era uma incógnita.

Embora as pesquisas indicassem uma ligeira vantagem para Ossoff sobre Perdue, sua vitória foi uma surpresa ainda maior. O agora ex-senador conquistou sua cadeira em 2014, quando venceu confortavelmente com 52,9% dos votos. Durante a última semana, o fiel seguidor de Trump não pôde fazer campanha no terreno porque esteve em contato direto com um contagiado por coronavírus. Ossoff será o senador mais jovem na Câmara Alta e também o democrata mais jovem a chegar ao Senado desde Joe Biden, há quase meio século.

Uma das dúvidas da jornada consistia em quanto pesaria ―e se positiva ou negativamente― a retórica do presidente cessante sobre a confiabilidade do sistema eleitoral. Trump denuncia há dois meses sem provas que houve fraude nas eleições de novembro, mas ao mesmo tempo convidava suas bases a votar nos dois candidatos republicanos na Geórgia. O último escândalo relacionado à inédita cruzada do presidente foi a chamada telefônica publicada no domingo na qual Trump pressionou o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para “encontrar” votos suficientes para reverter a vitória de Biden.

A imigração para a capital e para as áreas residenciais de minorias étnicas e profissionais da indústria cinematográfica favoreceu o Partido Democrata. O núcleo da área metropolitana de Atlanta vem se expandindo rapidamente há uma década e agora representa quase metade do eleitorado do Estado. Esse crescimento do capital progressista conseguiu ganhar o braço de ferro contra a zona rural do Estado, conservadora.

A eleição dos senadores pela Geórgia acontece em uma semana intensa para a política norte-americana. Nesta quarta-feira terá lugar a certificação de Biden como vencedor da eleição presidencial, em uma sessão bicameral no Capitólio, e um grupo cada vez maior de senadores e congressistas republicanos planeja torpedeá-la, embora não tenha votos suficientes para realizar mais do que um ato de rebeldia contra a vontade que os cidadãos norte-americanos expressaram nas urnas.