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El País: Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro. Tema pode chegar ao STF

Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro

Carla Jiménez e Regiane Oliveira, El País

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.

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Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.

Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.

A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.

Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.

Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.

Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.

A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.

A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.


Breno Altman: Por que o STF está enfrentando a Lava Jato?

Corte tenta se redimir da chancela dada ao que resultou numa anarquia da ordem constitucional promovida pela operação, inclusive com aval do ministro Gilmar Mendes, que hoje lidera as críticas contra seus métodos

Houve um tempo em que a República de Curitiba, com suas regras e procedimentos atípicos, comandada pelo ex-juiz Sergio Moro, recebia a bênção da Corte Suprema. Apesar de um ou outro reparo, o STF parecia avalizar os mecanismos de excepcionalidade que marcavam os processos em curso na 13ª Vara Federal, a sede da Lava Jato. Deslanchada em 2014, a operação viveria sua primavera até o final de 2017. Sob as luzes e aplausos dos principais veículos de comunicação do país, transformados em correias de transmissão do espetáculo exibido a partir do Paraná, a Lava Jato dominava a cena política. Os partidos que compunham a oposição de direita, particularmente PSDB e DEM, entusiasmavam-se com a escalada repressiva contra o Partido dos Trabalhadores e seu líder histórico. Derrotados em quatro eleições presidenciais seguidas, os tucanos apostavam que Moro poderia carimbar seus passaportes de retorno ao comando do Estado.

Forjou-se ambiente de indomável euforia antipetista, semeado por amplos setores da imprensa, a começar pela poderosa Rede Globo, açulando as camadas médias e contagiando as instituições. Sob a bandeira do combate à corrupção, eram corroídas as garantias constitucionais e democráticas. Sequer tratava-se de uma situação nova. A maioria do STF, desde a Ação Penal 470, o chamado “mensalão”, concluída no final de 2012, abdicara da guarda do Estado de Direito, aceitando ou inventando manobras que pudessem solapar o Governo Lula. Alguns dos ministros agiam de forma consciente, talvez acreditando nas denúncias apresentadas pela promotoria. Outros decidiam com a faca no pescoço. Absolver chefes petistas poderia significar um penoso ostracismo.

Somente resistiam algumas vozes isoladas, especialmente o ministro Ricardo Lewandowski. Mesmo a maioria dos indicados durante os mandatos petistas iria aderir à onda das excepcionalidades. O clamor popular fabricado pela mídia de massa, contra um inimigo ao gosto das elites que regem a sociedade, mostrou-se capaz de estimular incontido espírito de manada, cujo ápice ocorreria em 2016, entre a condução coercitiva de Lula e o golpe parlamentar que derrubaria a presidenta Dilma Rousseff.

O ex-juiz Sergio Moro, exatamente nesse período, divulgaria gravações de conversas entre a chefe de Estado e seu antecessor, jogando para a plateia de verde e amarelo. Mais que uma irregularidade, tratava-se de crime escancarado. O STF, no entanto, contentou-se com um muxoxo do ministro Teori Zavascki (1948-2017), criticando a atitude do magistrado curitibano. Seu colega, Gilmar Mendes, agiu no sentido contrário. Com base nos diálogos difundidos, emitiu decisão contrária à nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil, em inédita usurpação de atribuição exclusiva do Poder Executivo.

A subversão e a anarquia da ordem constitucional eram chanceladas, entre outras razões, porque jogavam água no moinho da oposição de direita liderada pelo tucanato. O PSDB inegavelmente era a legenda do coração e o bastião dos interesses da imensa maioria dos empresários e banqueiros, dos integrantes da alta burocracia estatal, dos barões da comunicação e das classes médias. Também eram conhecidos e comprovados os vínculos dessa agremiação com os democratas norte-americanos, que governaram a grande potência ocidental até o início de 2017.

Um novo fenômeno, porém, emergiria da potente mobilização golpista contra Dilma, capaz de levar milhões às ruas por sua derrubada. A teia sobre a qual se desenvolveu esse movimento era formada por grupos disseminados nas redes sociais durante os anos anteriores e que tinham mostrado sua musculatura nas chamadas jornadas de junhoem 2013, tomando da esquerda o comando das ruas e as incendiando contra o Palácio do Planalto.

Esses grupos, embora sem coordenação central e com fortes divergências entre si, eram bastante influenciados pela combinação, em diversos graus, de ideias neoliberais com paradigmas neofascistas. Não se reportavam às velhas legendas de direita, fundadoras da VI República, configurada pela Constituição de 1988. Seu papo era outro, misturando nostalgia da ditadura militar, culto às Forças Armadas e antigos credos anticomunistas, um viés autoritário que também embalava valores racistas, sexistas e homofóbicos.

Tais patotas eram adoradoras da Lava Jato, sua principal arma na guerra contra o PT. A turma de Curitiba foi paulatinamente correspondendo a esse amor, se afastando do bloco que havia comandado o impeachment de Dilma e constituído o Governo Michel Temer. Os setores lavajatistas do sistema de justiça, em expansão para outros Estados, como o Rio de Janeiro, foram se incorporando ao caudal político que desaguaria no bolsonarismo. Esse deslocamento refletia a permanente busca por popularidade e a identidade crescente com o projeto de Estado policial representado pelo ex-capitão.

Os sinais práticos logo se manifestariam, entre 2017 e 2018, com investigações e processos abertos contra cardeais do PSDB e do PMDB, atingindo a Aécio NevesEduardo Cunha e o próprio Temer. Além de fortalecer o ramo político de sua nova preferência, a operação Lava Jato queria exibir provas de neutralidade, esvaziando parcialmente as críticas de perseguição à esquerda e preparando terreno para o bote final, a prisão e a interdição do ex-presidente Lula, fundamentais para a disputa presidencial.

Esse cenário levou a uma lenta, mas essencial mudança no STF, liderada por Gilmar Mendes, talvez o ministro menos preocupado em agradar a opinião pública. Um grupo importante de ministros começou a questionar os métodos e as ilegalidades da operação, tratando de colocar-lhe algum anteparo.

A alteração de forças começou a ter maior nitidez em abril de 2018, quando foi julgado habeas corpus que poderia impedir o encarceramento de Lula. O receio de uma derrota levou o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, a desembainhar espada e ameaçar veladamente com a reação dos quartéis. A faca no pescoço deixava de ter sentido figurado e definia a batalha.

A vitória de Bolsonaro e a nomeação de Moro para a pasta da Justiça acabariam por fortalecer o mal-estar político e jurídico contra a Lava Jato dentro do STF, que passaria a ser defendida, com radicalidade, apenas por um trio de magistrados indicados por Lula e Dilma: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. O apoio de Cármen Lúcia e Rosa Weber, também nomeações petistas, passou a ser incerto. Conquistava espaço a aliança entre Lewandowski, Mendes, Dias Tóffoli e Alexandre de Moraes, muitas vezes acompanhada por Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello.

Os fatos adquiriram outra velocidade em junho de 2019, com os diálogos sigilosos entre os integrantes da força-tarefa e o ex-juiz, revelados pelo site The Intercept e outros veículos. A ala garantistada Corte, junto com a defesa de Lula e a campanha por sua libertação, passava a ter munição de sobra para colocar a operação Lava Jato na berlinda, desarmando sua sustentação na sociedade e no Estado. O mecanismo estava nu, com a mão no bolso.

O tiro de misericórdia, no entanto, seria dado pelo principal beneficiário das arbitrariedades cometidas sob a batuta de Moro. O presidente Jair Bolsonaro, com pouco mais de um ano no governo, via com desgosto e temor a especulação de que seu ministro poderia ser candidato em 2022, enfrentando-o nas urnas em coalizão com a direita tradicional. Tratou de isolá-lo e desestabilizá-lo, até que saísse do governo, em abril de 2020. Para se assegurar da morte política de um perigoso rival, ao mesmo tempo em que tratava de proteger a si próprio e seu clã frente ao sistema judicial, já tinha nomeado Augusto Aras como procurador-geral, em setembro de 2019, com a tarefa de limar o legado da Lava Jato e construir pontes com os garantistas.

Esse giro seria selado em novembro de 2020, com a indicação de Kassio Nunes Marques ao STF, para o lugar de Celso de Mello, retirado por limite de idade. Essa substituição foi primordial, pois consolidava na Segunda Turma do tribunal, encarregada de todos os processos da Lava Jato, uma maioria crítica, formada por Mendes, Lewandowski e o ministro novato, contra Fachin, podendo atrair Carmen Lúcia para um quarteto dominante. Foi o que se viu no julgamento, em 9 de fevereiro, que liberou o acesso da defesa de Lula às conversas entre os procuradores da força-tarefa e o magistrado responsável.

Rompida com a direita tradicional e abandonada pelo bolsonarismo, a Lava Jato recebeu o beijo da morte, ainda que viúvas e órfãos lutem por sobrevida. Seu corpo, fétido, ainda precisa ser enterrado. A anulação das sentenças contra Lula, por suspeição do ex-juiz Sergio Moro, é a grande chance para o STF, redimindo-se, extirpar o “maior escândalo judicial da história humana”, nas palavras de um articulista do New York Times, repetidas pelo ministro Gilmar Mendes, presidente da Segunda Turma do STF, durante a histórica sessão que cravou mais um punhal no coração da República de Curitiba.

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.


Afonso Benites: Direita se engalfinha e desfaz alianças enquanto Haddad, Huck e Moro seguem entre apostas para 2022

Eleição de presidente da Câmara expõe guerra interna do DEM e PSDB e embaralha xadrez para próxima eleição. Bolsonaro premia Centrão com ministério da Cidadania enquanto PT testa primeiro nome da esquerda à sucessão presidencial

Sem lideranças políticas naturais, a direita brasileira está esfacelada em compasso de espera pelas eleições de 2022. E a esquerda também, depois que o PT lançou a candidatura de Fernando Haddad como um balão de ensaio para testar o eleitorado. O presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de criar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil, mas alcançou a proeza de embaralhar a miríade das outras composições partidárias que pretendem disputar sua sucessão. Com um cenário de candidaturas diluído, a máquina governamental nas mãos e um apoio na casa dos 30% da população já colocariam o presidente em um segundo turno.

Nas últimas semanas, Bolsonaro cooptou com cargos e recursos da União o Centrão, o fisiológico grupo de centro direita que atua no Congresso Nacional, implodiu o direitista Democratas e acabou estimulando um racha na sigla de centro-direita PSDB. Todo o processo tem como pivô a disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados no início do mês, que terminou com a vitória do candidato bolsonarista e expoente do Centrão Arthur Lira (PP-AL).

Nesta sexta-feira, Bolsonaro concretizou parte do acordo firmado com o Centrão em troca de seu apoio por Lira. Ele nomeou o deputado federal João Roma, do Republicanos, para o Ministério da Cidadania em substituição a Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que foi deslocado para a Secretaria-Geral da Presidência da República. Roma é amigo e ex-assessor de Antônio Carlos Magalhães Neto, o presidente do Democratas que se aproximou do Planalto rompendo com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com o movimento, o mandatário começa a pagar a sua fatura em troca de uma base de sustentação legislativa. Ainda restam entre dois e três ministérios a serem entregues ao Centrão, o que deve ocorrer nas próximas semanas.

Os movimentos no xadrez político de Bolsonaro ocorrem a um ano e 8 meses da eleição. Mas, de pronto, já começaram a minar alianças que estavam sendo planejadas pelo campo autodenominado “direita democrática”. A principal delas foi a articulação feita por DEM, MDB, Cidadania e PSDB. As quatro legendas rascunhavam um acordo para seguirem juntas em 2022. Seu candidato seria João Doria (PSDB), o governador paulista que já foi aliado de Bolsonaro, ou Luciano Huck, o apresentador da maior emissora de TV do Brasil, a Globo, que paquerava uma filiação ao DEM ou ao Cidadania.

Implosão do DEM e racha no PSDB

A implosão do DEM afastou Huck dos democratas, mas há ainda a esperança do Cidadania de tê-lo em suas hostes. Além disso, dos 27 deputados do DEM, 6 disseram que apoiarão a reeleição de Bolsonaro, 14 não descartaram apoiá-lo e apenas dois disseram que não se aliarão ao presidente. Os dados foram levantados pelo jornal O Estado de S. Paulo. “O que o DEM tem dito é que não fechará nenhuma porta, nem mesmo a Bolsonaro. Se o presidente se moderar nos próximos dois anos, o DEM consegue se justificar e seguir com ele, caso contrário, pode tomar outro rumo”, avalia e cientista política Lara Mesquita, que é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas.

No PSDB, Doria se sentiu forçado a marcar território. Tentou controlar diretamente a Executiva Nacional do partido, atualmente comandada pelo seu então aliado o ex-deputado Bruno Araújo. Mas os figurões da sigla reagiram e estenderam o mandato de Araújo para 2022. De pronto, Doria se enfraqueceu no processo, sinalizou que pode deixar a legenda e viu outro tucano despontar como potencial presidenciável: Eduardo Leite, o governador do Rio Grande do Sul que quer ser uma nova oposição a Bolsonaro. “O Doria é uma liderança de luz própria. Os velhos elefantes do partido não o veem com bons olhos. Ele é uma das pessoas mais pragmáticas da política brasileira. Tanto que se aliou a Bolsonaro para se eleger governador”, diz a cientista política Mariana Borges, pesquisadora em Oxford.

Outra legenda de centro-direita que está em busca de um nome que agregue outros apoios é o Podemos. Os dirigentes esperam que o ex-juiz da operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, anuncie sua filiação até o início do próximo ano. As conversas estavam adiantadas. Mas, nas últimas semanas, o que menos Moro tem feito é se preocupar com a política partidária, já que corre o risco de ter sua biografia ainda mais manchada, quando o Supremo Tribunal Federal está em vias de invalidar as decisões que ele tomou contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Para as duas pesquisadoras consultadas pela reportagem, ainda é cedo para os partidos definirem qualquer cenário. “Tudo ainda depende da economia e de como o Governo vai reagir à pandemia [de coronavírus]. Também tem de ser levado em conta a avaliação da população sobre os processos judiciais contra os filhos do presidente”, diz Lara Mesquita. A narrativa que Bolsonaro empregou na eleição de 2018, de ser um político antissistema também será posta a prova. “Ele está claramente adaptando o seu discurso extremista. Vamos ver até onde isso vai durar”, afirma Mariana Borges.

Da mesma maneira que a direita anti-bolsonaro, a esquerda também enfrenta severas dificuldades de articulação interna. O PT já colocou em prova sua hegemonia nesse campo na última semana, quando o ex-presidente Lula lançou a candidatura do ex-prefeito de São Paulo Haddad e disse para ele percorrer o Brasil em uma espécie de pré-campanha. O PDT se aproxima de uma aliança com o PSB para relançar o ex-governador do Ceará Ciro Gomes. E o PSOL sinaliza que deve seguir com o professor universitário Guilherme Boulos. Ou seja, seria a repetição dos três candidatos que foram derrotados por Bolsonaro na disputa passada. A diferença agora é que Boulos ganhou projeção nacional ao disputar o segundo turno com Bruno Covas pela prefeitura de São Paulo, a maior cidade do Brasil. “Os partidos estão se movimentando porque sabem que se não começarem a se movimentar, eles não terão um candidato do dia para a noite. O Bolsonaro, mesmo, ficou quatro anos fazendo campanha”, diz a pesquisadora Lara Mesquita.

Para Mariana Borges, uma das falhas da esquerda brasileira, especialmente do PT, é manter-se focada no Estado de São Paulo na hora de falar em candidatos, ignorando outras regiões brasileiras. Ela cita que, ao escolher Haddad, Lula deixa de lado lideranças baianas do partido, como o senador Jaques Wagner ou o governador Rui Costa. “Talvez apresentar um nome que não seja tão ligado ao Lula seria a alternativa para atrair os outros partidos de esquerda”, diz.

Outra conta que tem sido feita pelas legendas é a da cláusula de barreira. A partir de 2023, só terá acesso aos fundos públicos eleitoral e partidário quem atingir 2% dos votos válidos para a Câmara em nove Estados ou eleger ao menos 11 deputados. Atualmente, a doação eleitoral privada é proibida no Brasil. E é quase consenso entre os partidos que, sem uma candidatura presidencial como uma vitrine, dificilmente se elegem tantos deputados federais. Como o Brasil tem 33 partidos registrados, sendo que 24 têm representação na Câmara, a tendência é que haja uma disseminação de candidaturas presidenciais.


Juan Arias: 'Divide e reina', a estratégia diabólica de Bolsonaro

O presidente conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as instituições. No Congresso e no Supremo, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais

A estratégia do “divide e reina” remonta ao Império Romano e a frase é atribuída ao imperador Júlio César. Foi também usada pelo cristianismo e atribuída a Satanás, o rei da discórdia e da divisão. Também foi adaptada às guerras e guerrilhas modernas e até mesmo às democracias, para ganhar eleições. Trata-se de criar confusão para confundir e dividir a sociedade enquanto o déspota se fortalece.

Essa tem sido a tática de Bolsonaro, tanto na campanha eleitoral como agora no Governo. Se Satanás é visto como o rei da mentira, Bolsonaro é o melhor expoente das fake news, da mentira sistemática para confundir e desconcertar a população.

Bolsonaro confundiu a sociedade e a dividiu com suas ambiguidades na gestão da pandemia, primeiro minimizando-a, depois aconselhando medicamentos que a ciência e a medicina consideram ineficazes e até perigosos.

Dividiu novamente a sociedade sobre a importância da vacina, criando uma corrente contra ela. Com isso, adiou a aquisição do imunizante, politizando-o. Fomos um dos últimos países a iniciar o processo de vacinação, a única possibilidade de combater a propagação da covid-19 e suas variantes cada vez mais contagiosas. E assim ele dividiu a sociedade.

Mentiu descaradamente, jogando por terra todas as promessas feitas durante a campanha eleitoral contra a velha política e contra a corrupção que agora está exposta em sua própria família. Ele se tornou assim o maior cruzado na guerra para encerrar a luta pela moralidade político-empresarial.

E talvez sua estratégia de dividir para reinar tenha ficado mais clara nas eleições para a presidência da Câmara e do Senado. Bolsonaro conseguiu impor seus candidatos, mas à custa de dividir e pôr em confronto os partidos, que saíram desgastados da batalha.

Foi uma jogada que fortaleceu seu poder ao mesmo tempo em que frustrou a possibilidade de criar uma frente ampla que poderia derrotá-lo nas eleições presidenciais. Sua tática deu bons resultados para ele, pois os partidos saíram da luta enfraquecidos e estão como baratas tontas tentando, por enquanto em vão, recolher os escombros da batalha perdida.

E ainda tem mais. Bolsonaro também conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as outras instituições, que parecem cada dia mais divididas e confusas. No Congresso, no Supremo Tribunal Federal e na Justiça, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais.

Tem sido sua tática diabólica ir contaminando as instituições e a sociedade, aproveitando-se disso para escapar das dezenas de pedidos de impeachment contra si que dormem no Congresso.

Enquanto as forças democráticas não entenderem a política de Bolsonaro de dividir para reinar, acabarão se devorando ao passo que o déspota e golpista vai ficando mais robusto, dando de presente bilhões em dinheiro público para comprá-las e tê-las a seus pés.

Será necessário ver como a sua política de colocar uns contra os outros no melhor estilo de sua política negacionista e de desorientar a sociedade terá consequências na recuperação econômica de um país que ele próprio disse que está quebrado e onde as intrigas políticas criadas pelo presidente aumentam cada vez mais a pobreza e até a miséria.

Isso faz com que a imagem do Brasil esteja no seu pior momento em décadas, segundo revelou um estudo realizado pela Curado Consultoria Associados, especializada em gestão de imagem, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. O estudo analisou as informações sobre o Brasil que saíram nas sete publicações consideradas os mais influentes do mundo: The New York Times e The Washington Post. dos Estados Unidos, The Guardian e The Economist da Inglaterra, Le Monde da França, Der Spiegel, da Alemanha e El País global, da Espanha.

O resultado do levantamento é devastador. Dos 1.179 textos publicados ao longo de 2020, 92% foram negativos, e isso significa que o Brasil vive uma “crise de reputação”. O estudo destaca que o Governo Bolsonaro tem sido “incompetente e vulnerável”.

O que mais contribuiu para a criação dessa imagem negativa foi, segundo a referida pesquisa, a forma desastrosa com que Bolsonaro conduziu a crise da pandemia, sua política suicida de destruição da Amazônia, a crise econômica que tornou ainda mais aguda a já grave desigualdade social no país e uma política externa desastrosa.

A imagem positiva de que o Brasil desfrutou durante décadas no mundo não excluía suas feridas ainda abertas, como o racismo, a violência e a pobreza. O que acontecia é que o Brasil sempre soube projetar o melhor do país, seus valores mais ancestrais e sua parte lúdica. E não só futebol e Carnaval, mas também sua multicultura, a música popular, com a particularidade do samba e da bossa nova, cujos grandes artistas conquistaram o mundo. E com isso tudo, o caráter acolhedor do brasileiro com os estrangeiros.

Ainda hoje em São Paulo, a maior cidade da América Latina, convivem em paz pessoas de mais de 100 nacionalidades. Lembro-me de que nas viagens que fiz pelo mundo, na companhia de correspondentes de vários países, os mais bem recebidos sempre eram os brasileiros. Recordo-me da expressão de simpatia com que eram recebidos: “Ah, brasileiros!”

Não há dúvida de que muito da imagem de simpatia de que o Brasil desfrutava se devia à sua magnífica política de relações exteriores. Seus ministros sempre foram figuras de grande prestígio e preparo intelectual, e enviavam pelo mundo como embaixadores pessoas de grande empatia e capazes de vender os aspectos mais positivos do país.

De fato, a diplomacia brasileira sempre foi considerada uma das melhores do mundo.

E agora? Passamos para o outro extremo com um ministro de Relações Exteriores que sempre cria problemas com os outros países e que esteve à ponto de azedar gravemente as relações com as grandes potências mundiais, ao mesmo tempo em que fazia de Trump seu ídolo pessoal. E quando o então presidente dos Estados Unidos perdeu as eleições, o Brasil foi o último país do G20 a parabenizar o vencedor Joe Biden, enquanto Bolsonaro continuava a defender que Trump havia vencido as eleições.

Tudo isso e mais a desastrosa política para a educação e o desprezo pela cultura, humilhando artistas e intelectuais, criaram no exterior uma política de rejeição do Brasil que pode ter custos muito sérios, afastando os empresários estrangeiros de investir no país.

E é sabido que quando um país começa a ser visto no exterior em contínua crise política e de valores, precisará de muitos anos para recuperar sua face positiva e atraente.

Tudo isso vai destruindo internacionalmente a imagem positiva do país do futuro de que o Brasil desfrutava.

Nada na política está separado da prosperidade econômica e das relações positivas com as outras nações. O resultado é sempre a perda não só de prestígio, mas também de credibilidade internacional que não pode deixar de afetar sua política econômica, empobrecendo ainda mais o país.

Hoje, em um mundo globalizado e conectado a todo instante, não cabem mais nem as muralhas da China nem os muros entre o México e os Estados Unidos nem a ressurreição das fronteiras europeias.

O mundo está mudando com tal velocidade que tentar se fechar em sua casca como o Governo fascista de Bolsonaro tenta fazer é ficar fora da história.

Até os conceitos de tempo e espaço estão mudando no mundo. Dentro de pouco tempo será possível viajar do Brasil para a Europa ou EUA em 20 minutos. Um empresário de São Paulo poderá tomar o café da manhã em casa, ir a Londres dar uma palestra e voltar para almoçar com a família. E não se trata de ficção científica, mas de uma realidade que já está em experimentação.

Por tudo isso, pretender que o Brasil, quinto maior país do mundo, permaneça fechado, envenenando suas relações com o restante do planeta em prol de uma política petrificada e empobrecida, é querer voltar às cavernas.

Para recuperar o prestígio perdido, o Brasil merece algo mais do que essa política destrutiva e negacionista.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


El País: Bolsonaro busca patrocinadores para 63 milhões de hectares da Amazônia

Governo quer que empresas e pessoas físicas do Brasil e do exterior doem dinheiro para preservar reservas naturais. Ambientalistas consideram a iniciativa como meramente propagandística

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

Governo brasileiro quer que empresas, fundos de investimento e pessoas físicas, tanto do Brasil como dos outros países, contribuam com dinheiro para preservar a Amazônia. Para isso, lançou na terça-feira uma iniciativa em busca de patrocinadores para as 120 reservas naturais criadas nas últimas décadas, abrangendo 15% da superfície da maior floresta tropical do mundo em território brasileiro. São 63 milhões de hectares. O programa Adote um Parque ―nome que subestima a exuberância, a extensão e o valor ecológico dessas áreas, que somadas têm o tamanho da França— foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro em Brasília. Os ambientalistas o consideram uma iniciativa meramente propagandística.

O Brasil sente cada vez mais a pressão política e comercial pela política de seu Governo para a Amazônia, pressão à qual os EUA de Joe Biden devem somar-se agora. A iniciativa está aberta a patrocinadores estrangeiros, embora, para Bolsonaro e boa parte dos brasileiros, o interesse externo no território amazônico esconda ameaças à sua soberania. O preço difere. Os brasileiros podem adotar uma reserva ecológica por 50 reais (8 euros, 9 dólares) por hectare; os estrangeiros, por 10 euros (65 reais).

Por enquanto, a primeira, e única empresa que aceitou participar é a rede francesa de supermercados Carrefour. O presidente francês, Emmanuel Macron, é precisamente o mandatário que criticou mais duramente nos últimos dois anos o Governo de Bolsonaro por seu desinteresse em preservar a Amazônia, pelo crescimento do desmatamento a níveis recordes e pelo aumento das queimadas. O ultradireitista, que em campanha criminalizou as ONGs e prometeu priorizar o desenvolvimento econômico da Amazônia sobre sua preservação, referiu-se à coincidência: “O que podemos falar para aqueles que nos criticam é o seguinte: ‘Olha, não temos condições, por questões econômicas, de atender nessa área. Venham nos ajudar. E uma empresa francesa foi a primeira que apareceu”.

O Carrefour precisa melhorar sua reputação no Brasil depois que, em novembro, dois de seus seguranças, brancos, espancaram até a morte um cliente negro às portas de um de seus supermercados. A multinacional planeja, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, formalizar a adoção da reserva de Lago do Cuniã, de 75.000 hectares, localizada em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Esse território, do tamanho de Caracas, tem um estatuto legal que permite a extração controlada de madeira ou a agricultura de subsistência. Outras cinco empresas negociam patrocínios, disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, à agência Bloomberg.

A gestão das reservas ―denominadas unidades de conservação― continuará nas mãos de organismos ambientais governamentais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio, concentrado em preservar a biodiversidade). As ONGs e os ativistas ambientais sustentam que seria muito mais eficaz parar de erodir sistematicamente a capacidade dessas instituições. Em um comunicado, o Greenpeace acusou o Governo Bolsonaro de promover “uma nova ação midiática para limpar sua imagem” enquanto “continua destruindo os instrumentos que protegem as unidades de conservação, desmantelando o ICMBio, militarizando suas estruturas e impondo significativos cortes orçamentários”.

Ao Carrefour e a outras empresas que possam estar interessadas, a gestora florestal e ativista Cristiane Mazzeti pediu em um tuíte que parem de usar o meio ambiente para limpar sua reputação e “se apressem em cumprir suas promessas de desmatamento zero”.

As tensões internas no Gabinete de Bolsonaro ficaram expostas também na apresentação do Adote um Parque. O principal interlocutor de diplomatas e fundos de investimento preocupados com a política ambiental do Governo é, desde a crise das queimadas de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão, que não participou da cerimônia, à qual compareceu o ministro Salles. O titular do Meio Ambiente disse abertamente em uma reunião de ministros que iria aproveitar que a pandemia estava atraindo toda a atenção da mídia para aprovar leis que enfraquecessem a fiscalização ambiental e trouxessem facilidades para o agronegócio.

O Governo Bolsonaro verbalizou pela primeira vez a ideia de buscar patrocinadores para a preservação da Amazônia em plena discussão pública com o ator americano Leonardo DiCaprio em 2019, quando as queimadas devoraram milhares de hectares na Amazônia.


Oliver Stuenkel: Desmonte do Itamaraty abre brecha para projeção internacional de governadores e prefeitos

Com o chanceler brasileiro priorizando assuntos internos, governadores, prefeitos e deputados estão virando interlocutores-chave de governos, empresas e ONGs no exterior

Quando os assessores de Anthony Blinken, secretário de Estado do presidente americano Joe Biden, começaram, recentemente, a discutir o futuro da relação entre os Estados Unidos e o Brasil, surgiu uma pergunta incomum: quem no Governo Bolsonaro seria o principal interlocutor do novo Governo americano? Em tempos normais, seria o chanceler brasileiro, é claro. Na prática, porém, Ernesto Araújo não é uma opção para gerenciar a relação bilateral. Afinal, o novo Governo americano avalia, corretamente, que o papel fundamental de Araújo não é a condução da política externa brasileira, mas, por meio da promoção de teorias conspiratórias, a mobilização permanente da base bolsonarista.

Mesmo se Araújo priorizasse a gestão das relações exteriores do Brasil, seus comentários sobre o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro (segundo ele, os invasores seriam “cidadãos de bem”) e a respeito das eleições presidenciais americanas (para ele, fraudadas) já seriam suficientes para torná-lo persona non grata em Washington. O cenário em Berlim, Paris, Pequim e Buenos Aires é o mesmo: alguma comunicação oficial e um aperto de mão protocolar até podem envolver Araújo, mas a maioria dos governos já estabeleceu canais alternativos.

Não há vácuo de poder na política, e o mesmo vale para a política externa. Na ausência de um chanceler disposto ou capaz de gerir as relações do Brasil com o resto do mundo, outros políticos brasileiros tornaram-se figuras-chave nos palcos internacionais. Durante o primeiro ano do Governo Bolsonaro, enquanto Araújo cumpria seu papel de cheerleader do presidente Trump, o vice-presidente Mourão e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se empenhavam no âmbito diplomático. Em viagem a Pequim, por exemplo, os dois souberam desfazer o estrago feito pelo presidente brasileiro na relação bilateral. Coube a eles acalmar os ânimos dos chineses porque Araújo, com seu histórico de ataques verbais à China, tinha perdido credibilidade em Pequim.

Para diplomatas chineses, ficou claro que, se for preciso resolver alguma questão com o Governo brasileiro, Mourão e Tereza Cristina serão interlocutores bem mais úteis do que o chanceler brasileiro. O cenário repetiu-se quando o ministro foi excluído das negociações com Pequim para a compra de vacinas contra a covid-19 e quando o governador de São Paulo, João Doria, e o então presidente do Congresso, Rodrigo Maia, tornaram-se interlocutores-chave para o Governo chinês e empresas farmacêuticas chinesas.

Nada disso é por acaso. Afinal, a marginalização do Ministério de Relações Exteriores (MRE) é um objetivo-chave da gestão atual, em uma tentativa de combater o que o bolsonarismo chama de deep state, estrutura composta por tecnocratas que supostamente sabotam as ideias do Governo. Como Eduardo Bolsonaro declarou depois da vitória de seu pai nas eleições presidenciais, o Itamaraty era “um dos ministérios onde mais está arraigada essa ideologia marxista e onde haveria uma maior repulsa ao presidente Jair Bolsonaro”. Ao permitir que outras figuras no Governo se ocupem de temas internacionais, Araújo está cumprindo sua missão de diminuir o controle do Itamaraty sobre a articulação da política externa. Mesmo no período pós-Bolsonaro, o MRE demorará para reconquistar o espaço perdido, um processo que dependerá muito da capacidade de futuros e futuras chanceleres.

A estratégia bolsonarista, porém, representa um risco político para o próprio presidente. Afinal, não são apenas ministros e familiares a preencher o vácuo que a atuação de Araújo está criando. Opositores de Bolsonaro, como o governador João Doria, também estão conseguindo se destacar no exterior com muito mais facilidade e são vistos por entidades públicas, privadas e da sociedade civil fora do país como interlocutores fundamentais para tratar de temas da relação bilateral. Em vez de chamar o chanceler brasileiro para participar de reuniões sobre o Brasil, cada vez mais, organizadores de eventos internacionais convidam governadores ou prefeitos capazes de articular uma visão mais pragmática.

Na hora de avançar a pauta ambiental com o Brasil, governos estrangeiros mantêm laços fortes com governadores e prefeitos da Região Norte, cientes de que é mais fácil trabalhar com eles do que com Ernesto Araújo ou Ricardo Salles, o controverso ministro do Meio Ambiente. Governadores e até prefeitos, como Eduardo Paes, têm hoje uma interlocução comparável ou até melhor do que a do chanceler com tomadores de decisão no exterior, uma situação sem precedentes na história do Itamaraty.

Esse novo cenário da multiplicação dos atores envolvidos na política externa brasileira ―um processo descrito por especialistas como pluralização ou fragmentação― pode ajudar a mitigar, em parte, o impacto nefasto da atuação internacional bolsonarista. O protagonismo de vários governadores no contexto do combate à pandemia e a obtenção de vacinas do exterior é apenas um dos vários exemplos disso. No futuro, porém, a perda de influência do Itamaraty complicará tentativas de governos pós-Bolsonaro de articularem e implementarem um projeto coeso de política externa. Quanto mais Araújo permanecer no cargo, mais árdua será a tarefa de seus sucessores de reerguer o Itamaraty.

É claro que governos estrangeiros, como a nova administração de Joe Biden nos Estados Unidos, não podem lidar apenas com entidades subnacionais brasileiras. Resta saber, no entanto, com quem no Governo Bolsonaro o novo Governo americano, por exemplo, buscará estabelecer um diálogo produtivo. Desta vez, o vice-presidente Mourão dificilmente poderá desempenhar o papel de interlocutor racional e “adulto na sala” porque tem sido visto como isolado em Brasília. O mesmo vale para Paulo Guedes, cuja palavra já não tem tanto peso no exterior. O mais provável é que os EUA e outros países com relações delicadas com o Brasil identifiquem seus interlocutores caso a caso, seja Tereza Cristina, da Agricultura, seja Roberto Campos Neto, do Banco Central, seja Mourão.

O uso do Itamaraty para animar a base bolsonarista traz vantagens inegáveis para o presidente, e o combate contra o “globalismo” e o “comunismo” são populares nos grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro. Ao mesmo tempo, fica cada vez mais claro que o presidente também acaba entregando, de bandeja, a oportunidade ímpar aos seus adversários de se tornarem atores-chave na política externa brasileira e dar visibilidade às consequências desastrosas da estratégia internacional de seu Governo.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra).


El País: Derrocada da Lava Jato expõe Moro como guia da força-tarefa, e escândalo cai no colo do STF

Mensagens do ex-juiz com procurador Deltan Dallagnol obtidas pela defesa do ex-presidente Lula têm potencial de anular processos em andamento, segundo juristas. Caso já é chamado de “maior escândalo da Justiça no Brasil”

Carla Jiménez, Felipe Betim e Regiane Oliveira, El País

Sete anos após provocar uma reviravolta sem precedentes na política e na economia do Brasil, a outrora poderosa Operação Lava Jato viveu nesta quarta-feira, 3 de fevereiro, um melancólico apagar de luzes com o anúncio de que já não existe mais —ao menos não da forma como ficou conhecida. A força-tarefa de Curitiba deixa de existir e torna-se um apêndice do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). O desfecho acontece após a operação entrar numa espiral de descrédito no mundo jurídico, que culminou com a exposição de diálogos entre o ex-juiz Sergio Moro e o então chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol.

O conteúdo, tornado público nesta segunda-feira, 1, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandovski a pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, confirma parte das informações que já haviam sido reveladas pelo The Intercept Brasil, na sérieVaza Jato. Publicada desde 9 de junho de 2019, a série trazia alguns diálogos de Dallagnol e Moro, mas principalmente conversas entre os procuradores da força-tarefa do Ministério Público Federal do Paraná. Um total de 105 reportagens foram escritas por diversos veículos de imprensa, incluindo o EL PAÍS Brasil, a partir do material obtido pelo The Intercept.

No entanto, o material exposto nesta segunda-feira vai muito além do que o exposto pela Vaza Jato. E tem o potencial de reescrever a história da operação. Em 50 páginas de mensagens selecionadas pelo perito Cláudio Wagner, a pedido da defesa do ex-presidente Lula, lê-se de maneira cristalina como Moro, que deveria ser neutro para julgar os processos apresentados pelos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba, tinha comunicação permanente com integrantes da força-tarefa, especialmente com o ex-chefe da operação, Deltan Dallagnol. Entre setembro de 2015 e junho de 2017, há registros de trocas sistemáticas de diálogos entre os dois pelo aplicativo Telegram —fora dos ritos processuais— para tratar de detalhes de decisões em andamento, em que o então juiz do caso cobra informações e sugere ao menos uma fonte para ser ouvida pelo Ministério Público no processo do ex-presidente Lula. “O material que o moro nos contou é ótimo. Se for verdade, é a pá de cal no 9 e o Márcio merece uma medalha”, diz Dallagnol numa comunicação feita pouco depois das 19h, em 29 de julho de 2016. As mensagens estão sendo apresentadas neste texto com a grafia em que aparecem nos arquivos apreendidos; o número “9” é como os procuradores tratavam, de forma pejorativa, o ex-presidente Lula, em função da ausência de um dos dedos da mão, perdido em um acidente de trabalho.

Não era a primeira vez que Moro sugeria caminhos para a investigação. Em trecho de 7 de dezembro de 2015, ele dá dicas ao procurador: “Entao. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou entao repassando. A fonte é seria”, lembrou o juiz. No que Deltan agradeceu a corteisa. “Obrigado!! Faremos contato”. Para Moro valia a pena seguir a pista, afinal, “seriam dezenas de imóveis”. A fonte, em questão, não se mostrou crível como apontou a continuação do diálogo. A fala havia sido revelada em junho de 2019 pelo The Intercept. Na ocasião, Moro afirmou ao Estadão, que repercutiu a fala, que “tudo o que chegava que era relevante, ou a gente encaminhava para a polícia ou Ministério Público, seja lá se a informação eventualmente beneficiava defesa ou acusação”. Segundo ele, o objetivo era “descobrir a verdade”. Os métodos tornados públicos agora, porém, são considerados condenáveis por irem contra todo o princípio de imparcialidade que se espera, ainda mais num caso de extrema delicadeza com potencial de alterar os rumos políticos do país —a Lava Jato foi responsável por enquadrar o ex-presidente na Lei da Ficha Limpa e retirá-lo da corrida presidencial contra Bolsonaro em 2018.

Em outro trecho de 14 de dezembro de 2016 Deltan informa Moro sobre o andamento de duas denúncias. “Denúncia do Lula sendo protocolada em breve. Denúncia do Cabral será protocolada amanhã”, informa o procurador, citando ali o ex-governador do Rio, Sergio Cabral. O então juiz responde a comunicação extraoficial quase como um torcedor: “Um bom dia afinal”, seguido de um emoticon feliz.

As conversas fora dos autos foram captadas pela Operação Spoofing, a investigação da Polícia Federal que prendeu hackers que invadiram celulares dos procuradores da Lava Jato e tiveram acesso aos arquivos de mensagens dos procuradores no aplicativo Telegram —e foram base para a Vaza Jato. Depois, os diálogos foram obtidos na íntegra pela PF. A defesa de Lula solicitou os trechos que diziam respeito ao processo do ex-presidente. Nelas, os dois maiores protagonistas da Lava Jato mostram intimidade de parceiros de trabalhos, partilhando emojis, risos em linguagem de internet, pedindo reuniões reservadas com parte dos integrantes da força-tarefa e até orientando melhores caminhos para a comunicação com a imprensa. “Precisamos conversar com urgência. Hj as 1430 ou as 1500 vcs podem? Mas melhor virem em poucos pois melhor mais reservado. Quem sabe vc, o lima, Athayde e Orlando?”, propõe Moro a Dallagnol, mencionando, possivelmente, Carlos Fernando Lima, Athayde Ribeiro Costa e Orlando Martello Jr.

Se a Vaza Jato provocou um terremoto e representou uma perda de prestígio da operação e de Moro, as mensagens conhecidas nesta segunda podem jogar uma pá de cal na credibilidade de algumas decisões tomadas pela Lava Jato, segundo juristas ouvidos por este jornal. O escândalo bate à porta do Supremo Tribunal Federal que tem um encontro marcado com Moro no julgamento do pedido da defesa do ex-presidente Lula de suspeição do ex-juiz e consequente anulação da condenação do petista no caso do triplex do Guarujá. Lula foi preso em abril de 2018 por ter supostamente recebido o apartamento em seu nome em troca de favores para a empreiteira OAS. Saiu 580 dias depois, em novembro do ano seguinte, após uma mudança de interpretação do STF sobre prisão de condenados em segunda instância.

A comunicação fluída entre Moro e Dallagnol viola a relação juiz-procurador e rompe o princípio da imparcialidade aos olhos do Direito. “Este é o maior escândalo da história da Justiça no Brasil”, diz o jurista Rafael Valim. Marco Aurélio de Carvalho, líder do grupo Prerrogativas —que reúne cerca de 1000 juristas, incluindo advogados de réus da Lava Jato que militam contra as práticas açodadas da operação—, segue a mesma linha. “O Supremo tem uma chance única de reacreditar o sistema de Justiça. Nesse processo, perdeu-se muito de credibilidade com a politização do Judiciário”, diz Carvalho.

A Lava Jato participou de investigações que levaram a 278 condenações, algumas de réus confessos, como o empresário Marcelo Odebrecht, que sustentava um departamento de propina para políticos na empreiteira, ou Pedro Corrêa, ex-deputado do PP, que mencionou troca de apoio aos Governos petistas em troca de ministérios, além de cargos em diretorias de empresas públicas como a Petrobras. “O mesmo que se fazia nos Governos anteriores. Inclusive com o entendimento e favores a empresários, igualzinho a todos os Governos que participei desde 1976”, ressaltou ele, em entrevista ao Paraná Portal. Em sua delação aos procuradores, Correia apontava corrupção na Petrobras desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1999-2002).

O problema são os juízos onde as investigações tiveram atropelos com consequências diretas para os rumos políticos do Brasil. A Vaza Jato já havia revelado conversas que mostravam as estratégias de divulgação para a imprensa e o contato direto dos procuradores com movimentos de rua que torciam pela queda da então presidente Dilma Rousseff em 2016, retroalimentando a pressão popular para favorecer os pleitos da Lava Jato. Mesmo quando passavam por ilegalidades, como a exposição de um telefonema entre o ex-presidente Lula e Rousseff, em que eles discutiam a futura noemação do ex-presidente para um cargo de ministro. A celeridade da condenação de Lula também causou uma clara sensação de parcialidade, incluindo a confirmação de pena em segunda instância.

Divisor de águas

O julgamento da suspeição de Moro pode, assim, ser um divisor no passado de glórias da Lava Jato e vaideterminar o futuro do combate à corrupção no Brasil. Os trechos de arquivos apreendidos pela Operação Spoofing mostram que o sucesso da operação teve um custo alto para a imagem da Justiça brasileira, com excessos que afetam a credibilidade do sistema Judiciário. Ignorar esses desvios seria um golpe que contaminaria o mesmo Supremo. O processo está nas mãos do ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas e já avisou que ele poderá ser julgado pela Segunda Turma do Supremo ainda no primeiro semestre deste ano. Em tese, as informações divulgadas tornariam mais difícil aos ministros da Corte justificarem um comportamento que vai contra o princípio da imparcialidade do Direito brasileiro.

A dúvida, no entanto, é se eles vão admitir as mensagens como legítimas ou tomá-las como provas ilícitas, diz o advogado Alberto Toron, que defende réus da Lava Jato. “Reconhecidamente esse material foi interceptado de forma ilícita [pelos hackers que invadiram os celulares dos integrantes da Lava Jato e de Moro], o que abre uma grande discussão no processo penal, pois não valem para acusar alguém. Mas e para se defender ou mostrar parcialidade de um juiz?”, questiona Toron.

A montanha de mensagens confirma o que advogados de defesa dos réus reclamavam desde o início da operação, em 2014. “Um juiz precisa ser equidistante e assegurar à acusação e à defesa as mesmas condições. Isso é a negação radical desse princípio fundamental do exercício da magistratura”, afirma o advogado Maurício Dieter, professor de criminologia da USP. Os procuradores e o juiz encarnaram uma espécie de “tenentismo togado”, como escreve o jurista e cientista político Christian Edward Cyril Lynch —numa alusão aos tenentes que se revoltaram contra a República Velha na década de 1930— os novos heróis, no caso juízes e promotores da Lava Jato, assumiram para si a tarefa de limpar a política, “se não mais a golpes de metralha, pelo menos de vazamentos, delações premiadas e rigorosas condenações judiciais”. Foram bem sucedidos por um tempo em sua “Revolução Judiciarista”.

Moro nunca reconheceu o teor das conversas e sempre afirmou que podiam ter sido adulteradas. Após o movimento de Lewandowski, o ex-ministro da Justiça do Governo Jair Bolsonaro voltou a repetir sua justificativa: “Não reconheço a autenticidade das referidas mensagens, pois como já afirmei anteriormente não guardo mensagens de anos atrás”, disse em nota. “As referidas mensagens, se verdadeiras, teriam sido obtidas por meios criminosos, por hackers, de celulares de procuradores da República, sendo, portanto, de se lamentar a sua utilização para qualquer propósito, ignorando a origem ilícita”. O problema desse argumento é que a própria Polícia Federal, acionada pelo então ministro Moro quando a Vaza Jato publicava suas reportagens, fez a perícia das mensagens e constatou que são verdadeiras. O MPF de Curitiba informou por meio da assessoria de imprensa que não comenta o caso.


Eliane Brum: O que significa cuidar de um filho numa pandemia?

O sofrimento das crianças na emergência da covid-19 deve levar os pais a responder à pergunta mais importante para a próxima geração — e agir

O menino é filho único e tem oito anos. Logo nas primeiras semanas da pandemia, ele elegeu dois bichos de pelúcia para serem seus parceiros. Quando jogava videogame, colocava um dos bonecos ao lado, com um controle no colo, como se estivessem brincando juntos. Os amigos seguiam com ele dividindo as atividades do dia. O menino fantasiava outros meninos para enfrentar a falta atroz de outras crianças. Uma mãe me conta, por tela, que seu bebê nasceu na pandemia e logo completará um ano sem nunca ter visto uma outra criança. Já começa a andar e a balbuciar algumas tentativas de palavras sem jamais ter encontrado ou tocado em outro bebê. Que tipo de efeito isso terá sobre a sua vida? E se a pandemia durar mais um ano?, ela pergunta, mas sem a esperança de uma resposta. Outra menina pede: “Mãe, me dá uma criança?”.

A pandemia forjou uma realidade de crianças sem crianças. Ainda não conhecemos totalmente os efeitos que essa experiência radical pode ter sobre quem estreia na vida. Também não sabemos quando esse cotidiano será superado, já que são muitas as variáveis: do tempo para completar a vacinação ao impacto das novas cepas que já começaram a circular. Negar a emergência sociossanitária, como alguns estão fazendo, é a pior escolha possível. Como os adultos de sua vida lidam com essa pandemia será um exemplo que marcará profundamente a formação de cada criança, porque todos os desafios e as escolhas éticas fundamentais de uma vida humana estão colocados nesse acontecimento. Pode faltar criança para brincar, mas não pode faltar ética para formar.

“Faltar” criança para conviver é um dado da realidade em uma pandemia. É duro, mas há que se lidar com ele. Faltar ética ao escolher como enfrentar a crise pode ser mais complicado e ter efeitos mais longos. As crianças estão observando o que os pais fazem com ainda maior atenção porque também elas sentem nos ossos a emergência. As lições do agora serão para toda a vida.

O que significa cuidar de uma filha ou filho numa pandemia? Ou o que significa cuidar da próxima geração numa emergência global de saúde pública, já que somos todos pais daquelas e daqueles que assumirão a responsabilidade por esse mundo nas próximas décadas? Essa questão vale para todos os adultos em qualquer país do mundo, mas no Brasil ela ganha contornos muito mais dramáticos.

Onde estamos metidos

O primeiro passo é entender onde estamos metidos. A ampla disseminação da ideia de que estamos vivendo algo surpreendente e inesperado, que teria pegado a todos de surpresa, é falsa. A ocorrência de pandemias não é novidade para Governos e instituições. Se foi, é por incompetência e irresponsabilidade. E também por essa praga que se pode chamar de síndrome do curto prazo, que é a escolha de governar com medidas de visibilidade imediata, porque têm mais impacto para as ambições do governante nas próximas eleições, do que com planejamento de longo prazo, cujos benefícios ultrapassam o mandato porque visam ao bem comum.

Quem acompanha o tema da saúde pública e as comunicações da Organização Mundial da Saúde sabe que o surgimento de mais uma pandemia era previsto. Assim como o fato de que as pandemias se tornarão mais frequentes, devido à emergência climática (causa e efeito da destruição de habitats de espécies) e à ampla circulação de pessoas e de mercadorias em um mundo globalizado. São o que o microbiologista francês Philippe Sansonetti, do Collége de France, chama de “doenças do antropoceno”: “as doenças que estão principalmente, senão exclusivamente, ligadas ao fato de os humanos terem dominado o planeta e ao impacto que estão causando sobre a Terra”.

Há protocolos para enfrentar pandemias preparados muitos anos antes do primeiro caso de coronavírus em Wuhan. Diretrizes de enfrentamento foram criadas principalmente a partir de 2003, com a emergência da SARS (síndrome aguda respiratória grave). Até mesmo o Banco Mundial oferece há anos uma linha de crédito para os países enfrentarem pandemias. Em 2017, por exemplo, lançou títulos especializados com o objetivo de garantir apoio financeiro ao Pandemic Emergency Financing Facility (PEF), um mecanismo criado para financiar países em desenvolvimento que enfrentam o risco de uma pandemia.

A surpresa pode ser para os cidadãos, que não receberam toda informação que deveriam ou se recusaram a acreditar na que receberam, caso da emergência climática que as lideranças indígenas alertam há décadas e os cientistas também. Mas não deveria ser surpresa para os Governos. E, se foi, é preciso entender o porquê e apurar responsabilidades.

É importante compreender também que a gestão pública da pandemia tem sido muito desigual. O Lowy Institute, um centro de estudos e debates da Austrália, publicou no final de janeiro uma pesquisa em que analisou os dados e a atuação de 98 países. O estudo mostrou o Brasil com a nota mais baixa na condução da pandemia (4,3) e a Nova Zelândia com a nota mais alta (94,4). É razoável supor que uma criança brasileira sofrerá muito mais impacto com a pandemia do que uma criança neozelandesa ou de países em que o Governo usou o conhecimento científico e especializado disponível para enfrentar a emergência sanitária.

Liderar o ranking de má gestão pública da pandemia, como é o caso do Brasil, tem consequências evidentes. A pior delas está exposta diariamente nas covas abertas para abrigar os mortos: atualmente, mais de 1.000 por dia, e quase 230.000 no total. Embora o Brasil seja o segundo país em número de mortes, essa tragédia é a realidade de vários países, e está intimamente conectada com a incompetência na condução do enfrentamento da covid-19. A má gestão é ainda mais evidente em países como o Brasil e a Inglaterra, que possuem sistemas públicos de saúde que, apesar de sucateados pelos Governos neoliberais, ainda assim são um exemplo para o mundo. No Brasil, o SUS não foi apenas sucateado, mas atacado pelo vírus do subinvestimento crônico desde o seu nascimento.

Diferentemente de outros países com evidente má gestão da crise sociossanitária, o Brasil se tornou um caso único, que entrará para os livros de história da pandemia de covid-19. O Governo Bolsonaro não ganhou o título de pior gestor por incompetência, mas por ter colocado em prática uma “estratégia institucional de propagação do vírus”. A partir da análise de 3.049 normas federais, um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e da Conectas Direitos Humanos, divulgado no último dia 21 pelo EL PAÍS, comprovou a ação deliberada do Governo para a propagação do vírus, com o objetivo de acelerar o contágio da população para poder retomar as atividades econômicas.

Um grupo de entidades religiosas, entre elas a CNBB e a Fundação Luterana de Diaconia, fizeram uma denúncia baseada no estudo junto ao Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos na semana passada. Relacionadas à covid-19, há pelo menos três comunicações por genocídio e outros crimes contra a humanidade cometidos por Bolsonaro e membros do Governo no Tribunal Penal Internacional. Outras devem chegar, tornando a hashtag #BolsonaroEmHaia cada vez mais forte.

Pelo menos mais um pedido de impeachment, esse dos professores da Faculdade de Direito da USP, a mais prestigiosa do país, baseou-se no estudo para somar-se nesta semana aos mais de 60 que já desembarcaram no Congresso. Como é sabido, Bolsonaro “comprou” a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, estratégicos para decidir a abertura de um processo de impeachment. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o presidente que se elegeu mentindo que era “contra a corrupção” beneficiou 285 parlamentares com 3 bilhões reais de dinheiro extra em troca de votos. Nosso dinheiro, é importante lembrar.

“festa da vitória” de Arthur Lira (Progressistas), o novo presidente da Câmara, denunciado duas vezes por corrupção passiva e organização criminosa, reuniu 300 pessoas no mesmo espaço físico quando mais de 1.000 famílias por dia choram seus mortos. Como nomear o ato de um parlamentar, eleito presidente da Câmara graças à troca de dinheiro público por votos, troca feita pelo presidente da República para impedir a abertura do seu processo de impeachment, comemorar o escárnio dessa vitória reunindo 300 pessoas no mesmo espaço, a luxuosa mansão de um empresário denunciado por fraude, quando o Brasil soma quase 230.000 mortos por um vírus transmitido por proximidade física?

Às voltas com um Governo que comprovadamente recusou a oferta de testes e de vacinas em 2020 e, em 2021, ainda não conseguiu garantir um cronograma confiável de vacinação, a sociedade e as instituições têm pouca energia e recursos para debater e enfrentar as consequências da pandemia. Quando se acompanha a linha do tempo dos atos de Bolsonaro para disseminar o vírus e das reações do Judiciário, do Legislativo e da sociedade a esses atos, torna-se evidente que quase todos os esforços no Brasil têm sido investidos em bloquear ou neutralizar o boicote sistemático do Governo ao enfrentamento da pandemia.

Grande parte da energia da sociedade e das instituições está sendo gasta na redução de danos dos atos de Bolsonaro e de seus ministros contra a saúde pública. Isso significa que Bolsonaro se tornou um vírus que não só ajuda a disseminar o transmissor da covid-19, como também suga toda a capacidade de combate do sistema imunológico da sociedade. Não há como combater dois vírus ao mesmo tempo. A resposta para neutralizar o vírus Bolsonaro é óbvia e foi prevista na Constituição.

O que um adulto faz numa situação dessas?

Essa é a situação. E é com ela que nós, os adultos, precisamos lidar, para cuidar das futuras gerações.

Quando o presidente da República é comprovadamente o principal propagador do vírus, todas as pessoas precisam se posicionar e lutar para barrar o que alguns dos juristas mais respeitáveis do Brasil têm definido como crimes contra a humanidade. Votar é apenas uma pequena parte dos deveres de um cidadão numa democracia. Omitir-se diante de uma política de extermínio que já sepultou quase 230.000 brasileiros, ciente de que uma parte dessas mortes poderia ter sido evitada se as medidas corretas de prevenção e de enfrentamento tivessem sido tomadas, é a pior lição que se pode dar a um filho. É ensinar que, diante de uma ameaça, devemos nos deixar matar.

As crianças mais velhas já confrontam o pai ou a mãe ou ambos: o que é que você vai fazer? Em caso de alguns adolescentes, essa pergunta é jogada como desafio e em tom de afronta. Mas, prestando um pouco mais de atenção, é possível escutar o medo. O que está nas entrelinhas é: como você vai me cuidar?

Ao contrário de muitos países, especialmente na Europa, o Brasil nunca fez lockdown. A palavra em inglês, que já entrou no vocabulário da covid-19, significa “confinamento”. Significa fechar mesmo, não fazer de conta, como fazem a maioria dos Estados e dos municípios do país, ao submeter-se à pressão de empresários e comerciantes que nada entendem de saúde pública. Possivelmente, também não entendem de economia, já que há vários estudos sérios, feitos por gente séria, que mostram que o melhor para a economia é controlar a pandemia.

Se os governantes, aqueles que têm autoridade e responsabilidade de executar as políticas de saúde pública, preferem se submeter àqueles que financiam suas campanhas políticas em vez de cumprir sua obrigação constitucional de defender o conjunto da população, é necessário pensar melhor no voto da próxima eleição. Enquanto isso, adultos responsáveis tomam todas as medidas necessárias à prevenção a que têm acesso —isolamento e higiene e, caso sejam obrigados a sair, máscara e distanciamento.

Se um pai ou mãe não é capaz de mostrar ao seu filho ou filha, por palavras, mas principalmente pelo exemplo, que sua escolha individual deve ser tomada não em função de seus próprios interesses, comodidade ou privilégios, mas no interesse do coletivo e especialmente dos mais frágeis, que tipo de pai ou mãe ou que tipo de pessoa é você?

Aqueles que não podem promover seu próprio isolamento, porque estão submetidos à vontade dos empregadores ou porque trabalham em serviços essenciais, devem pressionar seus sindicatos e outras representações, quando elas existem, somando-se à parcela da sociedade que luta por medidas efetivas de combate à covid-19. E todos devem lutar para que os mais pobres, a maioria deles negros, que são também proporcionalmente os que mais morrem por covid-19, a maioria na informalidade, recebam auxílio emergencial.

Segundo o economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), o fim do pagamento do auxílio emergencial pode condenar uma parcela entre 10% e 15% da população brasileira a viver em pobreza extrema, dobrando o número de miseráveis no país. Isso significa que entre 21 milhões e 31 milhões de pessoas podem já estar passando fome. Campanhas para alimentar os famintos que se espalham por todo o país já se iniciaram promovidas pela sociedade civil organizada nessa nova onda de covid-19.

Quem individualmente menos precisa de ajuda é quem mais tem obrigação de lutar pelo coletivo.

Abrir ou fechar as escolas, eis a falsa questão

Se a premissa do debate sobre as escolas numa pandemia é uma oposição entre saúde e educação ou entre sociedade e professores ou ainda entre prevenção da pandemia e prevenção da saúde mental das crianças, o debate já começa muito, mas muito torto, e não pode terminar em nada bom. Infelizmente, é o que tem acontecido em várias instâncias.

frase “não podemos continuar mais um ano com as escolas fechadas” é equivocada. As escolhas de saúde pública, assim como as da vida, não são apenas uma questão de vontade, mas de responsabilidade e de estratégia. O que não podemos é continuar mais um ano com um presidente que dissemina o vírus, o que não podemos é continuar mais um ano com uma das polícias que mais matam no mundo, o que não podemos é continuar mais um ano com criminosos destruindo impunemente a Amazônia. Essas são situações criadas pela sociedade que estão matando a sociedade e que podem e devem ser mudadas por ela.

A pandemia exige estratégias diferentes para que possa ser controlada e, enquanto não for, mate o menos possível. Podemos e devemos reduzir seu impacto com medidas de prevenção da doença e garantia de vacinação, assim como devemos encontrar mecanismos de proteção dos mais pobres para que não morram por fome. Parte dessas medidas de saúde pública, porém, podem depender sim de manter os prédios das escolas fechados. A questão é que prédios fechados não deveriam significar escolas fechadas. Quando significam é porque há um problema com o entendimento do que é uma escola.

A experiência da pandemia mostrou algo à sociedade e aos adultos. Como tem sido dito por pesquisadores do tema da infância, como a psicanalista Ilana Katz, doutora pela Faculdade de Educação da USP, foram as crianças que apontaram o quanto a escola é essencial. “O debate precisou atravessar a simplificação do ‘abre e fecha a escola’, desimplicado das suas consequências territoriais, para considerar, com seriedade, a função da escola”, diz Katz. “Foi preciso dimensionar o seu lugar social e a importância de sua tarefa como agenciadora da cultura e da vida com todos os outros. Isso se colocou na forma de ausência e saudade no cotidiano das crianças e das suas famílias e tornou evidente onde, como e para o quê uma escola faz falta. Como consequência, apresentou a possibilidade de ampliação da compreensão da função da escola, sua centralidade no laço social e sua condição de serviço essencial”.

De certo modo, aconteceu com a escola pública o mesmo que aconteceu com o SUS. Era considerado imprestável por parte da sociedade até a pandemia mostrar que, apesar de terrivelmente sucateado nos últimos anos, o SUS é um trunfo precioso. Não fosse o sistema de saúde pública, o Brasil estaria numa situação ainda mais dramática. Já com a escola pública, poucos se importavam para além do discurso sem ação. Professores sempre mal pagos, escolas sem equipamentos, prédios depredados, alguns dos piores índices de aprendizado do mundo, crianças há anos na escola sem conseguir se alfabetizar, índices alarmantes de evasão e a tal da “normalidade” seguia.

Nos anos que antecederam o Governo Bolsonaro, a educação foi atacada pelo programa ideológico que se autodenominou Escola Sem Partido, mas mostrou-se escola com o pior partido, sofreu bullying por supostamente ser um “antro de esquerdopatas”, professores foram perseguidos e humilhados por ativistas de extrema direita e suas milícias digitais. Para piorar, o Governo Bolsonaro encontrou —propositalmente— a pior sequência de nulidades para colocar à frente do Ministério da Educação, páreo apenas para o atual ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello.

Ao mesmo tempo, o Governo tenta retroceder alguns séculos de avanço civilizatório e colocar a família como uma totalidade que não precisa da sociedade, defendendo bobagens como o homeschooling (escola em casa), porque a família se bastaria. Não qualquer família, claro, mas a “certa”, aquela “de homem e de mulher”, de preferência o primeiro vestido de azul e a segunda de rosa. “Tudo pela família, tudo feito em casa, tudo protegido. Protegido de mundo, do outro, de alteridade”, comenta Katz.

E então a pandemia botou as crianças e os adolescentes em casa e, bem, o óbvio ficou óbvio para (quase) todos: não se faz educação sozinho nem entre quatro paredes. E, mais uma obviedade: é muito difícil ser professor. Nunca tantos pais exaustos perceberam o quanto os professores ganham pouco e recebem pouco apoio para fazer o seu trabalho. Pelo pior acontecimento, alguns pilares da democracia finalmente ficaram claros para (quase) todos: saúde e escola são essenciais.

A questão é o que se faz com o que se descobre. Uma parte importante do debate sobre a escola não é sobre a escola, mas sobre onde os pais vão colocar os filhos para poder trabalhar —ou, em alguns casos, para ter paz. Essa também é uma questão válida, mas não é a principal. “A escola não existe para resolver um problema dos adultos, ela existe para permitir que crianças sejam educadas num espaço de diversidade de experiências, e então possam se tornar pessoas responsáveis pela sua comunidade e capazes de desenvolver seus potenciais para a criação e a manutenção do comum”, diz Katz.

Assim, a questão de abrir ou não os prédios, que são apenas parte do que uma escola deve ser, é uma fração dessa conversa. Se a escola é essencial, então é passada a hora de realmente tratar a escola como essencial —e aí não estamos falando de prédios apenas, mas de toda a comunidade escolar, a começar pelos professores e funcionários. Se a escola é essencial então é preciso tratá-la como essencial —e não, mais uma vez, rearranjar o desarranjo. Numa pandemia, tratar a escola como essencial é determinar que é um serviço essencial e, portanto, professores e funcionários devem ser colocados na frente da fila de vacinação. Até agora, os professores não foram vacinados. E, sem medidas práticas, qualquer conversa é pura demagogia. Ou pior, é escolher o corpo do outro para que seja sacrificado. Sempre o do outro, claro.

É preciso se perguntar de forma mais profunda, comprometida e honesta do que tem sido feito: abrir as escolas para quê? Para que elas continuem sucateadas, negligenciadas, aviltadas? Obrigar os professores e os funcionários a trabalhar numa pandemia, fazendo apenas o mínimo (ou no máximo o mínimo) para protegê-los, da mesma forma que os obrigam a ensinar sem condições para ensinar? Esse é um momento terrível, mas é também um momento de possibilidades. Tanto no que se refere ao destino que a sociedade dará à descoberta de que o SUS é algo precioso, que precisa ser urgentemente fortalecido, quanto ao destino que se dará à descoberta de que a escola é essencial, para muito além do que antes era percebido no cotidiano.

Entre tanto material de qualidade produzido sobre esse tema, reproduzo aqui um trecho do manifesto Ocupar Escolas, Proteger Pessoas, Recriar a Educação, assinado por várias organizações ligadas à educação e à saúde:

“A pandemia desagregou o sistema educativo e a discussão sobre sua reorganização mantém-se no dilema da volta ou não às aulas presenciais. Um problema complexo, com vários níveis, dimensões e interfaces, foi simplificado como se fosse uma simples escolha dual: abrir escolas ou manter suspensas suas atividades. Pior, a suposta dicotomia rede pública e privada, utilizada com frequência para sustentar a desvalorização do que é público estatal, é falaciosa mesmo se tocarmos exclusivamente na questão da infraestrutura. É preciso construir caminhos para superar o negacionismo e os falsos dilemas no campo da Educação.

É necessário questionar desde logo o termo retorno. Não é possível retornar na vida, é preciso seguir e refazer, reinventar, recriar. As vivências desse período podem ensejar aprendizagens, a vida na pandemia se faz de acontecimentos que devem ser trazidos para as construções curriculares que acontecem no chão da escola, mesmo que agora em espaços virtuais. Não se trata de cumprir currículos ou repor saberes escolares, mas de fazer do processo vivido durante a pandemia uma oportunidade de troca de saberes e experiências, momentos de fortalecimento de laços pessoais e sociais. Momentos de resistência criativa e solidariedade com as comunidades escolares.

Nesse aspecto, são necessárias políticas de inclusão digital específicas para os estudantes que necessitem, com fornecimento de equipamentos e acesso à internet para atividades educacionais. Reabrir e ocupar os espaços institucionais da educação implica, enfim, questionar se, como sociedade, estamos satisfeitos/as com o modelo de escola que concebemos, construímos e reproduzimos ou se, ao contrário, vale a pena lutar para rever o que é a escola e, com isso, recriar a educação”.

Há um ponto levantado pelo manifesto que me parece crucial para botar rumo no debate: não há mesmo retorno possível. Se a escola, essa que é feita de gente viva e diversa, for reaberta nos parâmetros de antes da pandemia, como mero depósito dos filhos dos mais pobres, para que os pais possam exercer seus trabalhos precarizados e agora também se arriscarem a ser contaminados; ou então como commoditybusiness, instrumento de reprodução de privilégios, no caso das escolas privadas de elite, mais uma oportunidade histórica será perdida.

Diante da tragédia, mais uma vez teremos escolhido o pior como sociedade. Já se a escola for investida, com investimento de recursos e com investimento de tempo de todos os envolvidos, convertida em prioridade real, ela estará aberta mesmo que os prédios fiquem fechados (ou voltem a ser fechados) até os profissionais de educação serem vacinados e as autoridades sociossanitárias tiverem convicção de que é seguro abri-los.

O que as crianças podem ensinar aos adultos?

O menino que abre esse texto fez dos bonecos de pelúcia suas crianças imaginárias. Ao observarem sua fabulação, os pais procuraram outros pais da escola para criar um encontro regular pelas telas do game Minecraft. Ao se juntarem, o que as crianças construíram? Uma escola. Deram a ela o mesmo nome da sua. Um dia resolveram jogar também com monstros. Antes, porém, garantiram a fortificação da escola para que ela pudesse sobreviver ao ataque.

Essa cena não expressa apenas amor, mas cuidado. Crianças confinadas se juntando para cuidar da escola da forma que lhes é possível. E, cuidando da escola, cuidam uns dos outros, porque juntos, apesar do isolamento físico.

Essa história tão bonita e tão simbólica foi contada pela psicanalista Luciana Pires. Especialista em psicanálise com crianças e adolescentes pela Tavistock Clinic, de Londres, e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, ela tem refletido sobre as brincadeiras da quarentena. Instigada pelas construções que seus pacientes vêm produzindo durante o isolamento (e pelo quanto ela tem aprendido com eles), Luciana Pires e o Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientae fizeram um chamado para que famílias, escolas e profissionais de saúde relatassem o que ela tem chamado de “brincário”.

As crianças inventaram mundos e se inventaram no mundo nessa pandemia. “No caminho da fantasia de movimentos, uma vez que estamos privados deles, um garoto de cinco anos passou dias falando e desenhando sobre o movimento da água nos canos da casa e finalmente para a rua. E, na mais franca brincadeira de realização de desejo, outro menino construiu um controle remoto de um drone com o qual viaja para todos os lugares que deseja”, conta a psicanalista. Outro garoto, esse com seis anos, passou os primeiros dias da quarentena construindo e brincando de Arca de Noé. Sonhava em salvar a todos do “dilúvio” que se apresentava, agora com o nome de covid-19.

O mais surpreendente é um fenômeno que une crianças de partes muito diferentes do planeta: elas estão criando casa dentro de casa. Tendas e barracas de todos os tipos, com os materiais disponíveis, de lençóis a pedaços de tecido, de caixas a sobras de madeira, embaixo de mesas, no canto de sofás, na esquina do corredor, em lugares possíveis e também impossíveis, meninas e meninos nunca construíram tanto como nessa pandemia. Um dos garotos inventou uma cabana no meio da sala e de lá pede tele-entrega. Logo, sentiu necessidade de aumentar a casa e construiu mais um cômodo, expandindo seu mundo dentro do mundo.

O que as crianças fazem lá dentro? “Nossas casas não são mais as mesmas e definitivamente ganharam novos contornos e sentidos. As casas precisam então ser repensadas e re-representadas a partir das brincadeiras”, diz a psicanalista. “Essas cabanas também permitem que se crie um ‘fora da casa’, um campo externo. Delimitam um espaço de dentro, deixando o resto de fora. Pois não só nos entocamos, mas passamos a fazer o que fazíamos fora de casa dentro: vamos à escola, trabalhamos, temos consultas médicas etc. Talvez as cabanas queiram recriar o íntimo dos lares no meio da casa invadida. Agora que a casa virou o mundo, a criança precisa ter uma casa no mundo.”

Como na fábula do menino que apontava que o rei estava nu, foram também as crianças que, nessa pandemia, apontaram que aquilo que os adultos chamavam de “normal” era bem precário. Num mundo que priorizou o indivíduo, nunca a rede fez tanta falta. De repente, a precariedade das relações e do cotidiano se revelou em todas as suas ausências. Como diz um ditado africano, para educar uma criança é preciso toda uma aldeia. Não basta a família, é preciso a escola. Não basta a escola, é preciso a comunidade. Só se faz gente junto com gente.

Também foram as crianças que apontaram que não seria possível rearranjar o mundo dentro de casa como se algo da dimensão do acontecimento de uma pandemia não exigisse lidar com as perdas e recriar o mundo. Com as suas possibilidades, juntando restos e retalhos do que vão encontrando, arrebanhando os bonecos, as crianças foram as primeiras a fazer a sua parte, inventando um mundo dentro da casa que virou mundo para serem capazes de viver com dentro e com fora. Agora, precisamos escutá-las, aprender com elas e criar um mundo em que elas possam viver. Porque, como diz uma adolescente chamada Greta Thunberg, “nossa casa está em chamas”. De dentro de suas cabanas fortificadas, o que as crianças nos perguntam é: e agora, o que vocês vão fazer?

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Afonso Benites: Nova cúpula do Congresso acena à economia, e não à pauta ultraconservadora de Bolsonaro

Indicada para a CCJ, bolsonarista Bia Kicis, que já defendeu golpe militar e é negacionista da pandemia, sofre resistência. Derrota de deputada no colegiado seria derrota do Planalto

Na primeira metade de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu emplacar suas pautas de costumes. A expectativa dele era que, a partir deste ano, com as duas casas comandadas por seus aliados, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a situação mudasse. Mas não é o que parece que ocorrerá. Nesta quarta-feira, na abertura do ano legislativo, Lira e Pacheco se comprometeram a pautar temas ligados ao crescimento da economia, mas não com a agenda ultraconservadora do presidente.

Em uma relação enviada aos parlamentares pela Secretaria de Governo, Bolsonaro citou que gostaria que nos próximos anos fossem debatidos temas como a permissão para mineração em terras indígenas, alterações no estatuto do índio, a ampliação do porte de armas para a população em geral, a licença para militares matarem quando estiverem em operações de garantia de lei e ordem (as GLOs), além da permissão para o ensino escolar domiciliar, o homeschooling.

Mais cedo, contudo, os presidentes de Câmara e Senado assinaram um documento no qual se comprometem a se empenhar em pautar medidas para o combate à pandemia de covid-19, a reforma tributária e às propostas de emendas constitucionais dos fundos infraconstitucionais e a emergencial. Essas duas últimas tratam da destinação de recursos da União para Estados e Municípios.

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Apesar de um aparente descompasso inicial, o presidente Bolsonaro disse estar confiante na relação com os dois parlamentares. “O clima [é o] melhor possível. Imperará harmonia entre nós”, declarou após um encontro com Lira e Pacheco na manhã de quarta-feira. O Governo ainda pediu dedicação do Parlamento na análise da reforma administrativa e da privatização da Eletrobrás. Algo que, inicialmente, não estava necessariamente no radar de prioridades do Congresso.

Na relação enviada pelo Executivo também constam propostas feitas para agradar os ruralistas, como os projetos de lei que pretendem alterar a regularização fundiária, o licenciamento ambiental e a concessão de áreas florestais.

No ato de abertura do ano legislativo, o presidente foi vaiado por deputados do PSOL, que fazem oposição ao seu Governo. Eles o chamaram de “genocida” e “fascista”. Em tom de deboche, o mandatário disse que em seus 28 anos de parlamentar sempre respeitou as autoridades que frequentaram o plenário da Câmara. E retrucou: “Nos vemos em 22”. Era uma alusão à eleição presidencial prevista para ocorrer em outubro do ano que vem na qual ele deve ser candidato à reeleição.

Reforma à vista

A relação inicial entre o Executivo e o Legislativo servirá de teste para Bolsonaro começar a pagar a fatura com o Centrão, responsável pela eleição de Lira para a presidência da Câmara. Auxiliares do presidente relataram que, ao invés de entregar os prometidos quatro ministérios já neste mês, o presidente pretende fazer uma reforma ministerial a conta-gotas. Seria uma estratégia para não deixar tão evidente o toma-lá-dá-cá que foi a eleição no Parlamento. Duas pastas da Cidadania e do Desenvolvimento Regional seriam entregues nas próximas semanas ao Centrão e ao grupo de Davi Alcolumbre (DEM-AP), que apadrinhou a candidatura de Pacheco. O presidente ainda estuda como iria acomodar os atuais ministros, Onyx Lorenzoni e Rogério Marinho, respectivamente. Lorenzoni deve ir para a Secretaria-Geral da Presidência. O destino de Marinho é incerto.

Numa segunda etapa, o presidente poderia recriar o Ministério da Previdência e o do Esporte, para alocar indicados do Centrão. Ainda há a possibilidade de dar as pastas ou da Saúde ou da Educação para os neoaliados. Outra troca deve ocorrer no Itamaraty. Mas essa seria uma indicação pessoal de Bolsonaro e um aceno ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já que o atual ministro, Ernesto Araújo, foi um dos que mais empenhou na relação com Donald Trump.

As mudanças ocorreriam conforme os neobolsonaristas passassem a fazer a sua parte, ou seja, a aprovar os projetos de interesse do Planalto. Ainda não está claro para o Governo qual é o tamanho real de sua bancada. Na Câmara, 302 dos 513 deputados votaram no candidato de Bolsonaro, Lira. Mas sabe-se que houve traições entre parlamentares que os partidos oficialmente apoiavam Baleia Rossi (MDB-SP). No Senado, entre os 57 votos de Pacheco (entre 81 possíveis) houve apoios do PT, da Rede e do PDT, que são declaradamente opositores e tentam emplacar uma CPI da Saúde, para investigar a atuação do Governo na pandemia de coronavírus.

A ocupação de espaços internos da Câmara e do Senado também demonstrarão qual é o real tamanho do empenho dos bolsonaristas. O primeiro teste de fogo será a disputa pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Esse é o principal colegiado da Casa, por onde passam todos os projetos de lei. Em tese, o cargo seria de direito do PSL, que indicou a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Em seu primeiro mandato, ela é defensora de um golpe militar, é aliada de primeira hora do presidente e foi apontada como uma das principais disseminadoras de desinformação da Câmara. Há uma tentativa de demovê-la da ideia de assumir o cargo. Apesar da indicação do partido, a escolha de presidentes de comissões depende da votação dos membros de cada colegiado. A derrota de Kicis seria a derrota de Bolsonaro.


Afonso Benites: Lira acomoda oposição, mas acordo reduz participação de mulheres

Grupo do novo presidente do Legislativo aumentou de 3 para 4 membros na Mesa Diretora. Oposição terá duas vagas e só uma ocupada por uma mulher. Depois de ameaças, grupo de Baleia Rossi não levou tema ao STF

Primeiro bate. Depois assopra. Assim foram as primeiras 24 horas da gestão do neobolsonarista Arthur Lira (PP-AL) na Presidência da Câmara dos Deputados. Temendo a judicialização de um tema interno do Legislativo, o parlamentar alagoano líder do Centrão deu um passo atrás e desistiu de cancelar todas candidaturas dos membros do bloco opositor ao seu na disputa pelo comando da Casa. Na reunião de líderes, Lira chegou a um denominador comum com outras lideranças em que seu grupo político acabou ganhando quatro vagas dentre as seis da Mesa Diretora. As outras duas, acabaram com os apoiadores de Baleia Rossi (MDB-SP).

Até a noite de segunda-feira, as seis cadeiras seriam divididas igualitariamente, três para cada bloco parlamentar. No entanto, assim que eleito, Lira decidiu invalidar a inscrição do grupo de Baleia Rossi e embaralhou o jogo. O motivo foi que o PT havia entregue seus documentos de inscrição da chapa seis minutos além do horário permitido, o qu, na sua visão, causaria um vício formal ao processo, mas mesmo assim foi aceito por Rodrigo Maia. Sua estratégia era ocupar cinco das seis vagas ainda em disputa da Mesa Diretora. Diante da repercussão, nesta terça-feira, negociou a nova configuração. Alguns deputados disseram que ele chegou querendo imprimir o seu tom à administração, que oscila entre a firmeza e a abertura ao diálogo. “O ato foi necessário, não para dar um pé na porta, mas um freio de arrumação”, afirmou minutos após ser eleito em entrevista à emissora CNN Brasil.

A solução de Lira resultou que a Mesa Diretora será ocupada assim: o PL indicará a primeira-vice-presidência, o PSD, a segunda. A primeira secretaria, que é responsável pelo orçamento da Casa, será do PSL. A segunda secretaria fica com o PT. A terceira, com o PSB. E a quarta, com o Republicanos. Desses, apenas petistas e peessebistas não são originalmente do grupo de Lira. Com a nova composição, o PSDB e a REDE acabam excluídos do processo.

Na nova configuração, também há uma considerável redução da participação feminina na cúpula gerencial da Câmara. Antes, havia a expectativa que três dos seis postos chaves ―excluindo a presidência― fossem ocupados por mulheres. Agora, apenas o nome de Marília Arraes, pelo PT, deverá figurar entre as dirigentes da Casa. Antes as outras indicadas seriam Rose Modesto (PSDB-MS) e Joenia Wapichana (REDE-RR). Havia um simbolismo nessas nomeações, já que apenas 15% da Câmara é ocupada por mulheres. No caso de Joenia, ela seria a primeira indígena a ocupar um cargo de comando na Casa.

Tradicionalmente, a ocupação dos cargos na Mesa Diretora ocorre de maneira proporcional. Ou seja, os maiores partidos ou blocos partidários indicam quem ocupará cada função. Se a decisão de implosão do grupo de Baleia persistisse como ameaçou Lira, apenas o PT entre os dez apoiadores de Baleia Rossi poderia indicar um membro. Como quem estivesse doutrinando os seus pares, Lira disse ao final do encontro dos líderes partidários que espera que os deputados tenham entendido como serão tomadas as decisões de sua gestão. “Nós trataremos democraticamente, sempre por maioria, ou decisões da Mesa ou decisões do colégio de líderes. Nada mais de decisões isoladas, como dissemos durante a campanha”, afirmou aos jornalistas.

Com a decisão da madrugada, os parlamentares que se sentiram prejudicados ameaçaram ingressar com uma ação conjunta no Supremo Tribunal Federal, o que não ocorreu em decorrência da composição ajustada por Lira e os líderes ao longo da tarde.

Por que a disputa?

Essas funções de dirigentes na Câmara são consideradas estratégicas pois, por meio delas, os parlamentares ganham destaque midiático, podem contratar assessores comissionados e administram orçamentos internos. Além de substituir o presidente, o primeiro-vice-presidente da Câmara é o responsável por analisar os requerimentos de informação a outros órgãos públicos. O segundo-vice analisa os pedidos de reembolso de despesas dos deputados e age como uma ponte institucional com órgãos dos Legislativos de Estados e Municípios.

O primeiro-secretário é uma espécie de prefeito da Câmara. O segundo zela pelas relações internacionais da Casa, o que inclui a emissão de passaportes para os deputados e o estágio universitário. O terceiro-secretário analisa requerimentos de licença e justificativas de ausência dos parlamentes assim como dá autorização prévia de reembolso de despesas com passagens aéreas internacionais. Já o quarto-secretário controla os apartamentos funcionais da Casa.


Cláudio Gonçalves Couto: Quando o rabo abana o cachorro, ou a eterna volta do Centrão que nunca se foi

Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão com as eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco

Durante seu primeiro ano e meio de mandato, Jair Bolsonaro tentou cumprir uma promessa impossível que fez a seus eleitores, mas que a bem da verdade fez mesmo foi a si próprio: governar sem base de sustentação no Congresso. No país do presidencialismo de coalizão, Bolsonaro fez muitos crerem (e talvez ele mesmo tenha acreditado) que montar uma coalizão presidencial decorreria de uma escolha do presidente, em vez de ser uma imposição institucional. O apoio desbragado de seu Governo a Arthur Lira na Câmara e a Rodrigo Pacheco no Senado mostraram que, ao menos momentaneamente, o chefe de Governo cedeu à realidade do funcionamento de nosso presidencialismo multipartidário.

coalizão que Bolsonaro agora monta, contudo, tem lá suas particularidades. Primeiramente porque, diferentemente de seus antecessores, o atual mandatário não dispõe de um partido que possa capitanear essa aliança. Sarney contou com o velho PMDB, FHC com o PSDB e Lula com o PT. Jair dinamitou as relações com a legenda de ocasião pela qual se elegeu e para cujo inchaço contribuiu —o PSL. No lugar dela, ficou sem nada, já que a tentativa de construir o Aliança pelo Brasil naufragou miseravelmente. O resultado imediato desse fracasso foi o grande fiasco presidencial nas eleições municipais, em que o presidente não dispôs de uma agremiação sua, que pudesse fazer crescer e reforçar sua base país afora —para além do insucesso quase geral dos candidatos avulsos apoiados por ele.

O outro desdobramento dessa situação aparece agora. O presidente é mais caudatário de uma coalizão legislativa à qual aderiu do que o contrário. Durante obiênio de Rodrigo Maia se falava em parlamentarismo branco, uma analogia imprecisa para descrever o que era, na realidade um Governo congressual. Nesse contexto, o Executivo, indisposto a articular uma base parlamentar e incapaz de liderar o processo legislativo, reivindicava os méritos pela aprovação de medidas que, embora convergissem com sua agenda na área econômica, eram aprovadas mais a despeito do que graças ao Governo. Não à toa colheu seguidas derrotas na derrubada de vetos, caducidade de medidas provisórias e irrelevância congressual da pauta reacionária de costumes.

Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, acossam seus familiares e apoiadores radicais, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão, em que os partidos do assim chamado Centrão aderem ao Governo do dia em troca de benesses estatais —razão pela qual entendo que sejam mais bem definidos como partidos de adesão. Em vez disso, é Bolsonaro que adere a eles, mostrando que por vezes, na política, ocorre de o rabo abanar o cachorro.

Tal inversão é reveladora não só da fragilidade estrutural desse Governo —dependente que é da proteção dos partidos de adesão por meio de uma coalizão defensiva—, mas também do quão tênue é a conversão de Bolsonaro à moderação democrática inerente ao presidencialismo de coalizão. O presidente da segunda metade do mandato não se tornou mais comedido; apenas recuou. Para isso, lançou mão dos vultosos recursos disponibilizados pelo “orçamento de guerra” da pandemia para cooptar a maioria que elegeu Arthur Lira, provocando rachas em partidos que até então mantinham certa independência com relação ao Executivo, como o DEM, o PSDB e o MDB.

O caso do DEM é particularmente notável e merece comentário à parte. A agremiação logrou, durante os anos petistas, manter-se na oposição. Isso levou à sua diminuição congressual, com parlamentares menos programáticos abandonando o barco e rumando para os partidos de adesão que constituíram a base fisiológica das coalizões petistas (PP, PL/PR, PTB, PRB, PSD, PMDB). A longa travessia no deserto pareceu ser recompensada com a entrada no Governo Temer, a conquista da presidência da Câmara por Rodrigo Maia e o bom desempenho nas últimas eleições municipais. Ou seja, o DEM mostrou não se tratar de um partido de adesão —à diferença do PMDB. Mas eis que agora o partido sucumbe ao fisiologismo e ao regionalismo (notadamente o baiano), embarcando de vez na nau adesista. Embora tenda a render frutos no plano regional, tal manobra reduz muito a capacidade do partido de liderar uma coligação competitiva nas próximas disputas presidenciais. Afinal, partidos programaticamente invertebrados têm dificuldade de se incumbir dessa tarefa.

É bem verdade que para esse desfecho contribuiu decisivamente o estilo imperial e a voracidade de Rodrigo Maia. Ao mesmo tempo que se indispôs com os colegas de Câmara, dispensando-lhes mais desdém do que atenção, apostou demasiadamente na possibilidade (sempre algo dissimulada) de uma nova recondução à presidência da Casa. Seu fracasso nesse intento acabou por levar de roldão também as pretensões de seu colega de partido e então presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Com isso, Maia não apenas se isolou no DEM e fora dele, mas perdeu o timing para construir sua sucessão. Quando tentou fazê-lo, Lira já estava muitas braçadas à frente, contando ainda com o substancial auxílio da busca aflita do Governo por proteção congressual. Ambição em excesso (como na relutância em construir um sucessor para valer) e não fazer as coisas no tempo certo são dois erros mortais que frequentemente acometem políticos até então bem-sucedidos, mas inebriados com o próprio sucesso. Costumam custar caro, como mostram tantos casos na história.

A questão agora é saber se o Governo Bolsonaro terá mais do que proteção congressual, ao menos enquanto compensar para os partidos de adesão e suas lideranças se manterem atrelados ao barco governista. No Senado, a maioria que elegeu Pacheco contra a candidata identificada com o lavajatismo, Simone Tebet, congrega forças que estão muito longe de apoiar o bolsonarismo e suas agendas —como PT, PDT e Rede. Na Câmara, embora Lira não tenha tido o apoio dos partidos da oposição de esquerda, contou com votos que ultrapassam em muito as hostes bolsonarescas, e que dificilmente se repetirão quando (e se) temas da pauta reacionária de costumes forem a votação. Ou seja, uma coisa é ter apoio suficiente para evitar um impeachment, CPIs incômodas e outras iniciativas tormentosas —ou seja, uma base defensiva. Outra, bem diferente, é fazer avançar uma agenda própria altamente controversa, contando para isso com os votos de uma coalizão que o Governo não lidera, pois em vez de ela ter aderido a ele, foi ele que aderiu a ela.

E tudo isso, claro, sem contar com a forma como tal base se comportará caso se mantenha a queda de popularidade do atual presidente. Nessa frente, as perspectivas não são das melhores, tendo em vista a situação econômica, a condução na pandemia e, por último, mas não menos importante, a decepção que Bolsonaro provocou em boa parte de seus antigos eleitores ao fazer justamente aquilo que prometera combater: a velha política do Centrão —ainda que em sua versão invertida.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV EAESP, produtor do canal do YouTube e podcast ‘Fora da Política Não há Salvação’.


Afonso Benites: Lira sela vitória dupla de Bolsonaro no Congresso, mas deixa Planalto refém do Centrão

Deputado do Progressistas de Alagoas vence Baleia Rossi por 302 a 145. Como primeiro ato, presidente dissolve bloco de seu opositor e cancela eleição de seis dirigentes da Casa

Quatro anos atrás, o então deputado federal Jair Bolsonaro concorria à presidência da Câmara e resolveu fazer uma “denúncia”. Disse ele: “Sabemos que o Executivo sempre interferiu nos trabalhos desta Casa, em especial por ocasião das eleições. Hoje temos uma Câmara que não cria leis, que não fiscaliza e que não representa os anseios do povo. O Poder Legislativo se apresenta subserviente ao Executivo e submisso ao Judiciário”. Sua candidatura de protesto rendeu 4 votos.

O vencedor na ocasião foi Rodrigo Maia (DEM-RJ), que contou com o apoio de boa parte do Centrão, o grupo fisiológico de centro-direita. O jogo virou. Agora é Bolsonaro, ocupante da Presidência, que colhe os louros de ter agido abertamente para interferir na eleição da Câmara e celebra nesta segunda-feira a vitória contundente do líder do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), como novo comandante da Casa, formulador da agenda estratégica do Legislativo brasileiro e, não menos importante, dono da prerrogativa de por ou não em análise pedidos de impeachment.

Arthur Lira derrotou em primeiro turno, com 302 votos contra 145, o candidato de Maia e da oposição, Baleia Rossi (MDB-SP). O resultado faz com que Bolsonaro se una ainda mais ao Centrão, a quem ofereceu até quatro ministérios, dezenas de cargos no segundo e terceiro escalões, além de entregar pelo menos 3 bilhões de reais em emendas extraorçamentárias. Se, por um lado, o presidente começa seus dois últimos anos de mandato com uma relação mais azeitada com o Congresso ―o presidente também emplacou um aliado, Rodrigo Pacheco, na presidência do Senado―, por outro, fica refém de grupo que não é conhecido pela lealdade, mas pelo extremo pragmatismo: se os ventos dos recursos públicos secarem e os da popularidade do Planalto minguarem de vez, Lira pode deixar de ser a blindagem que que o ultradireitista almeja contra um processo de destituição.

A aliança do presidente com Lira também sela de vez o fim do discurso de rejeição da “velha política” e contra desvios de conduta que marcou a campanha eleitoral bolsonarista. Ao longo da corrida para a Presidência da República, Bolsonaro e seu entorno criticavam severamente o Centrão. O hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, cantarolou em um evento: “Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”. Foi uma paródia da canção que troca a palavra ladrão por Centrão.

Ex-integrante da elite da tropa de choque de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara preso pela Operação Lava Jato, o novo presidente da Casa é réu no Supremo Tribunal Federal pelo crime de corrupção passiva. Ele é acusado de receber 106.000 reais em propina de Francisco Colombo, então presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos que queria o seu apoio para seguir no cargo. O crime teria ocorrido em 2012 e até hoje seu julgamento não foi concluído. Por ser réu, Lira não pode ocupar a cadeira presidencial, mesmo sendo o segundo na linha sucessória. Caso Bolsonaro e o seu vice Hamilton Mourão se ausentem temporariamente do país, renunciem ou morram, o deputado não poderia assumir a cadeira presidencial.

O apoio que poderia parecer um contrassenso para a base bolsonarista, não o foi, em um primeiro momento. Levantamento do Departamento de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas mostra que a base conservadora de Bolsonaro se engajou na candidatura de Lira. Em grupos pró-governo no WhatsApp e no Telegram, monitorados pela reportagem, também não havia nenhuma crítica à mudança de discurso de Bolsonaro. O principal argumento era de que Lira seria um opositor a Maia, chamado de algoz de Bolsonaro, e encarnação, junto com a mídia, do “sistema” que o impede de governar. O discurso foi usado inúmeras vezes, como no início do ano, quando o presidente disse que o “Brasil estava quebrado” e que ele não conseguia fazer nada. Agora, veremos como essa caixa de ressonância se ajusta aos novos métodos do Planalto.

Golpe contra adversário e último choro de Maia

Tido como um negociador duro assim como Cunha, Lira tomou uma decisão controversa como primeiro ato no comando da Casa. Dissolveu o bloco de seu principal adversário, Baleia Rossi, formado por PT, MDB, PSDB, PSB, PDT, Solidariedade, PCdoB, Cidadania, PV e Rede, e cancelou a eleição de outros seis cargos da Mesa Diretora. Argumentou que o bloco foi inscrito ilegalmente para a disputa na tarde desta segunda-feira, depois do horário-limite para a inscrição de concorrentes, às 12h, e mesmo assim chancelado por Maia. O novo presidente da Câmara marcou a nova eleição para os cargos para às 16h desta terça-feira, mas o caso pode acabar sendo levado ao STF.

Todo o movimento de Lira visa evitar que partidos de esquerda que apoiaram a candidatura de Rossi, como o PT, tenham a prioridade em escolher qual cargo irá ocupar. O novo presidente da Câmara e seus aliados entendem que, como eles têm um maior número de partidos, caberia ao seu grupo escolher as posições primeiro. Como de costume, o Centrão está de olho em cargos. Dessa vez, o grupo de Lira quer a 1ª vice-presidência e a 1ª secretaria, esta que é uma espécie de prefeitura da Casa, e também é responsável pelas finanças. O objetivo é deixar cargos irrelevantes aos petistas, como a 4ª secretaria ou uma suplência.

Na coroação de Lira não faltaram homenagens ao chamado baixo clero da Câmara como provocações a Rodrigo Maia, que terminou um dos mais longevos períodos de comando da Casa da história brasileira de maneira melancólica. O líder do Centrão afirmou que privilegiará a coletividade em detrimento a pessoalidade dada por Maia na condução da Casa. Iniciou sua fala em pé, ao lado da cadeira de presidente da Câmara, que ele disse não ser um trono de um absolutista. “De pé, em homenagem a todos os presentes, de todos os partidos, aos que votaram e aos que não votaram em mim. É um gesto de respeito a este plenário, o verdadeiro e único presidente da Câmara”, afirmou aos seus pares. Prometeu que o Legislativo será independente, harmônico e responsável, que olhará à direita, ao centro, e à esquerda ―o quanto seguirá os interesses do Planalto é uma pergunta ainda em aberto.

Já Maia teve seu último ato como protagonista de primeira linha em Brasília. O deputado do DEM atraíra as atenções durante todo o dia desde que, prevendo a derrota acachapante de seu candidato com a participação do seu próprio partido, ventilou a possibilidade de pôr em análise um dos pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro, um passo que jamais cogitou fazer no último ano. À tarde, negou: “Eu nunca disse que ia dar (andamento ao processo). Vocês (da imprensa) ficam ouvindo as pessoas e não confirmam comigo”, afirmou à Agência Câmara. Na cadeira de presidente da Câmara pela última vez, chorou. A Maia, Lira reservou uma frase feita de peso simbólico: “A História irá julgar o seu legado.”Adere a