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Jamil Chade: E se Gagarin tivesse pousado no Brasil?
Que a data deste 12 de abril seja despida de sua batalha ideológica que marcou a Guerra Fria e que seja lembrada como a vitória da ciência e da conquista da humanidade
Há exatos 60 anos, Yuri Gagarin se transformava no primeiro homem a ir ao espaço. Muito se falou da preparação de sua viagem, de sua conquista e o que ela significou para a manipulação do poder soviético, em plena Guerra Fria.
Mas o que ocorreu quando ele caiu de volta e desembarcou no planeta?
A história conta que seu local de pouso foi amplamente equivocado. Gagarin caiu perto da cidade de Smelovka, centenas de quilômetros do ponto onde os cientistas tinham planejado.
Na terra, literalmente, estavam duas pessoas. Uma avó e uma menina de cinco anos, ambas plantando batatas.
A garota conta que havia visto um objeto vermelho despencando do céu. Mas sua avó estava ocupada demais com as batatas e tentando evitar que as vacas as comessem.
Instantes depois, a menina viu um objeto laranja caminhando em sua direção, com um capacete. Assustada, a avó deu a mão para sua neta e começou a rezar. Tentaram correr, quando ouviram de dentro do capacete uma voz em russo gritando: “esperem, sou russo!”
Sem entender nada, a avó perguntou de onde ele teria vindo, apenas para ouvir uma resposta ainda mais estranha. “Do céu”. A região não tinha luz elétrica e ninguém sabia que Moscou tinha mandado um homem para o espaço.
A história ampliou o mito de Gagarin, amplamente usada pelo Kremlin e sua propaganda comunista.
Mas e se o cosmonauta tivesse pousado no Brasil de 2021?
Em primeiro lugar, haveria o risco real de cair em uma zona na qual sua explicação de que “veio do céu” seria denunciada por um insulto e blasfêmia. Uma vigília seria organizada, enquanto a pasta de Damares Alves seria acionada.
Não faltariam questionamentos sobre seu capacete. “Onde já se viu um exagero desse contra um vírus que nem existe”, diria algum vereador local. “Marica”, declararia um presidente.
Ao responder que era russo, a história daquele cosmonauta poderia ter sido de uma vez por todas golpeada: “Comunista!”, gritaria outro. “Nossa bandeira jamais será vermelha!”, completaria um colega, perguntando em voz baixa ao vizinho qual a diferença entre russo, esquerdista e soviético.
Para além da propaganda que ele representou, Gagarin é mais uma testemunha, ator e porta-voz do avanço da ciência e de que, para a genialidade humana, não existem fronteiras.
Há 60 anos, a história dava mais um passo nessa fascinante direção. Provavelmente, sem ele, os americanos não teriam acelerado seu programa espacial. Foi essa concorrência e a conquista do espaço que nos trouxe avanços reais para nossas vidas cotidianas, inclusive ajudando a manter uma vida mais saudável no planeta.
Painéis solares, monitores de batimentos cardíacos, tratamentos contra o câncer, sistemas de purificação de água e, claro, os computadores que hoje lidamos com uma realidade são frutos dessa aventura.
Mas a ciência também tem seu papel filosófico. Ao termos a possibilidade real de explorar o espaço, as perguntas se multiplicam: podemos sobreviver de outra maneira?
A mudança e a ciência ―ao lado do amor― certamente são alguns dos aspectos mais misteriosos da humanidade. Quando um primeiro homem inventou um primeiro instrumento, buscava facilitar seus dias, construir um futuro melhor. Ela era a aposta de que o amanhã seria melhor do que hoje, de que a vida vencerá.
Há uns meses, perguntei para Greta Thunberg se ela teria alguma mensagem a enviar a Jair Bolsonaro. Ela me olhou, sorriu e lançou: “escute a ciência”. Hoje, o nosso desafio é o de implementar uma mudança para salvar o planeta. E, mais uma vez, a resposta também estará na ciência.
A pandemia está nos dando, talvez, um último e sério alerta. Ela também mostra que quem apostou na ciência viu os resultados para suas populações. Quem a minimizou, esnobou ou preferiu adotar o caminho da charlatanice acumula corpos.
Que a data deste 12 de abril seja despida de sua batalha ideológica que marcou a Guerra Fria e que seja lembrada como a vitória da ciência e da conquista da humanidade, num momento em que o obscurantismo é uma ameaça tão real quanto o próprio vírus.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Juan Arias: Os três gols seguidos em Bolsonaro podem prever sua derrota final
Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado
Os que convivem com o presidente Jair Bolsonaro afirmam que nunca o viram tão irritado como nestes dias. Talvez porque tenha sofrido três gols seguidos que podem prever sua derrota definitiva.
Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado que fez com o que o Brasil seja visto hoje no exterior como o maior perigo sanitário do mundo.
O capitão viu de repente seu governo vazado três vezes. Primeiro quando o Exército fez com que ele soubesse com a renúncia dos três chefes das Forças Armadas que não está disposto a entrar em política e deu a entender que não é “seu Exército” como ele cacareja a cada dia.
O Supremo que ele achava ter dominado marcou dois gols seguidos em Bolsonaro. Primeiro derrubando por 9 votos contra 2 sua pretensão de que as Igrejas se mantivessem abertas ao culto apesar do agravamento da pandemia. Os magistrados se mantiveram firmes em que são os governadores e prefeitos que, segundo a gravidade do momento, poderão ou não impedir o culto presencial nos templos.
O outro gol do Supremo foi marcado pelo juiz Barroso obrigando o Senado a dar sinal verde à abertura de uma CPI para analisar as responsabilidades do Presidente e de seu Governo na gestão da pandemia que levou o país à catástrofe que está sofrendo com o horror de que em muitas cidades os mortos já superam os nascimentos. No Senado já existiam os votos suficientes para dar andamento à CPI, mas o presidente da Casa se fazia de desentendido e continuava sem abrir a comissão de inquérito sobre os possíveis crimes de Bolsonaro que zomba do que ele chamou de uma simples “gripezinha”. Enfurecido, o Presidente ameaçou o Supremo e o Senado em usar a “bomba atômica” contra eles. Ameaça que deixa a descoberto sua fragilidade e o poder que achava ter sobre as instituições.
Essas três derrotas às que é preciso somar o fato de ter sido obrigado a demitir seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado o coração ideológico do Governo, seguidor fiel de Donald Trump e que estava fazendo com que o Brasil brigasse com meio mundo, indicam que as placas tectônicas de seu poder estão se movimentando e podem causar um terremoto político.
É importante que o amante das ditaduras comece a ver seu poder se quebrar porque com seus desmandos e ataques contínuos à democracia está fazendo com que o Brasil perca as esperanças. E já sabemos o que costuma acontecer quando um povo perde as esperanças nos que o governam.
De fato, com Bolsonaro o Brasil do futuro ficou muito para trás, o do Deus é brasileiro, o do milagre econômico, o país desejado pelos europeus que queriam vir trabalhar aqui, o Brasil respeitado em todos os foros internacionais, o de sua invejada diplomacia exterior. Tudo isso parece de repente ter se desfeito como uma bolha de sabão dando lugar a um pessimismo nacional.
Hoje predominam as fake news que envenenam a sociedade e a desorientam levada pelo ódio em vez da convivência pacífica. Onde se esconderam envergonhadas a esperança e a alegria de viver? Hoje até a música popular se tornou mais violenta.
De tanto falar de armas, de militares, de golpes de Estado, de genocídios e de sentirem-se abandonados em meio à matança da pandemia os brasileiros se veem a cada dia mais abandonados à sua sorte.
Enquanto os mortos se amontoam e já faltam cemitérios, soam macabras as zombarias, as ironias e até as imitações grosseiras de alguém que morre asfixiado por falta de oxigênio por parte de quem detém o poder da nação e deveria mostrar solidariedade e compaixão com tanta dor.
Dá a sensação de uma grande confusão que desorienta as pessoas que já não sabem em quem confiar com as instituições do Estado também até ontem desorientadas e incapazes de se unir contra o perigo comum de quem só pensa em conseguir o poder absoluto para impor um sombrio golpe ditatorial.
É surpreendente ver, por exemplo, os grandes empresários aplaudindo o candidato a ditador que arrastou o país a uma das maiores crises econômicas da história com milhões que ou passam fome, ou estão sem trabalho e que quase não conseguem viver com dignidade com o que ganham.
Estão cegas essas elites financeiras que não veem as lágrimas de milhões de brasileiros que levantam todas as manhãs sem saber se poderão dar de comer aos seus filhos? Esses empresários que manejam as finanças do país não veem que o Brasil está desmoronando e que a cada dia se sente mais inseguro sem saber que futuro seus filhos esperam?
Essas elites da política e do dinheiro não veem que o Brasil amanhece a cada manhã com os grandes veículos de comunicação mundiais anunciando a queda e desmoralização de um país que deveria e poderia ser o coração do continente?
Não, o Brasil não precisa para ser governado e para recuperar sua esperança hoje quebrada de mais messias e redentores, e sim de estadistas capazes de organizar o país em relação à sua dignidade, sem saqueá-lo vergonhosamente para que eles e suas famílias enriqueçam condenando um país rico material e espiritualmente à pobreza e ao desalento.
A única esperança é que a sociedade procure sua unidade e o antídoto para se defender contra os vírus políticos mais mortais do que os da pandemia porque envenenam não só o presente, e sim também o futuro da nação.
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A palavra de ordem dos brasileiros hoje deveria ser a da resistência aos que se divertem e lucram saqueando não só seus recursos, como suas liberdades até de expressão e, principalmente, a esperança de sair do pesadelo que os aflige mais unidos e com orgulho do que realmente representa este país no mundo.
O que espera, por exemplo, o Congresso para dar seguimento aos aproximadamente cem pedidos de impeachment contra o Presidente por parte da sociedade? O Congresso não é a voz e a expressão dos anseios da sociedade?
É desmoralizador ver essa voz da sociedade sufocada pelos interesses puramente pessoais dos que a governam. O que podem pensar os milhões sem casa e morando em pardieiros como animais vendo um senador jovem, filho do Presidente, investigado por corrupção, comprar uma mansão de seis milhões no coração aristocrático de Brasília?
Quando o poder que deveria pensar em como melhorar a vida das pessoas aparece preocupado somente em acumular privilégios e benefícios, a democracia se quebra envergonhada e humilhada.
O Brasil sofreu como tragédia os 21 anos de ditadura militar e agora parece viver como farsa a democracia. Só que às vezes a farsa dos aprendizes a ditadores pode ser mais grave do que a realidade.
O Brasil precisa com urgência de verdadeiros líderes capazes de devolver a esperança perdida a 220 milhões de pessoas submersas hoje no medo e na desilusão. A história é sempre mãe da sabedoria. O que o Brasil vive hoje pode lembrar quando há mais de 2.000 anos Cícero, senador romano, jurista, político e escritor enfrentou o conspirador Catilina que pretendia tomar o poder absoluto, com suas famosas palavras que atravessaram os séculos: “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo tua loucura zombará de nós? A que extremo chegou tua audácia desenfreada? Não percebeu que seus planos foram descobertos?”. O conspirador Catilina acabou fugindo de Roma com suas hostes fanáticas e derrotado.
Sim, o Brasil precisa de um novo Cícero capaz de repetir ao conspirador que só sonha em conquistar o poder absoluto zombando da Constituição e da democracia: até quando continuará abusando de nossa paciência?
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Afonso Benites: Governo quer fim da Comissão de Anistia em 2022 e nega 90% dos pedidos de reconhecimento
Ex-presidenta Dilma é uma das que tem um pedido de anistia, que deveria ter sido analisado em março. Atual comissão não reconhece a ditadura, enquanto Governo reduz mecanismos do Estado que admitem a violência nos anos de chumbo contra quem discordava do regime militar
O Brasil restaurou a democracia em 1985 sem acertar as contas com a história e a memória das vítimas do regime militar que durou 21 anos. Diferentemente de países como a Argentina ou o Chile, que levaram seus algozes para o banco dos réus antes de virar a página, o país se contentou com a Lei da Anistia, assinada em 1979 pelo general João Batista Figueiredo, que presidia o Brasil. A lei ‘perdoava’ militantes de esquerda, bem como militares acusados de crimes. Em 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), uma outra pequena vitória para quem sofreu os abusos dos militares, com a criação do regime do anistiado político. O sistema indeniza quem sofreu perseguição e tortura do Estado durante a ditadura militar. A ex-presidenta Dilma Rousseff, por exemplo, é uma das que pleiteia hoje esse benefício após ter passado dois anos sob tortura na prisão durante o regime militar.
Mas, depois de quase 20 anos, sob um Governo entusiasta da ditadura, os benefícios de reparação da memória estão ameaçados. Houve uma queda exponencial nos deferimentos dos pedidos de anistia e um endurecimento das regras para solicitar o benefício durante a gestão Jair Bolsonaro (sem partido). Somente10% dos pedidos feitos até o momento foram deferidos. A queda nas aprovações vem desde o Governo Michel Temer (MDB), quando 13% dos requerimentos foram aprovados.
O status de anistiado político é concedido às pessoas que tenham sofrido perseguição por órgãos ou indivíduos ligados ao Estado brasileiro entre os anos de 1946 e 1988. A maioria dos reconhecidos como anistiados foi alvo de perseguição durante a ditadura entre os anos de 1964 e 1985. “Desde a gestão Temer, o Estado brasileiro nem pede mais perdão a quem a Comissão de Anistia entende que tem de receber uma reparação”, diz a professora de direito da Universidade de Brasília (UnB), Eneá Stutz e Almeida, conselheira da comissão entre 2009 e 2018. O pedido de desculpas era um importante gesto simbólico, no qual, após analisar minuciosamente os processos em que os requerentes solicitavam a anistia e avaliar que o pedido era justo, os membros do Conselho da Comissão da Anistia anunciavam: “Em nome do Estado brasileiro nós pedimos perdão”.
De 2016 para cá, alguns conselheiros passaram a insultar quem requisita o reconhecimento de que foi perseguido pela ditadura, conta a pesquisadora Stutz e Almeida. A afirmação é referendada por outras testemunhas. “Em uma das sessões, um conselheiro que é militar disse que os anistiados eram terroristas. Me revoltei e falei que os militares eram tarados porque eles tinham o prazer de dar choques em testículos ou em mamilos dos presos e presas, como fizeram com meu pai”, diz Rosa Cimiana, que hoje, aos 61 anos, é servidora pública. O pai de Rosa, Arthur Pereira da Silva, era um líder sindical do setor ferroviário e membro do Partido Comunista no Rio Grande do Sul. Eram credenciais suficientes naqueles anos de chumbo para ter seus 23 anos de direitos trabalhistas cassados. Ele foi preso em 1964, juntamente com outros dez companheiros. Alguns perderam os direitos políticos.
Quando foi solto, Silva passou a viver na clandestinidade porque ainda era perseguido. Chegou a enviar os filhos temporariamente para Argentina para fingir que tinha deixado o país, mas se mudou com a esposa para Goiânia e, depois, para Brasília.
Foi em 1979, quando Rosa, então com 20 anos, teve a alegria de testemunhar o primeiro passo para que a memória do seu pai fosse reconhecida. Em outubro daquele ano, com a ajuda do então deputado Ulysses Guimarães (MDB) ela conseguiu entrar na Câmara, pela primeira vez, para acompanhar a sessão que aprovou a Lei da Anistia. Desde então, passou a ser uma militante da causa e testemunhou todas as movimentações que se seguiram sobre as famílias prejudicadas pelo regime militar. Viveu a alegria, quando em 2003 seu pai, foi oficialmente anistiado – 21 anos após a sua morte. Também acompanhou quando os Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (ambos do PT) reconheceram 40.548 pessoas como perseguidas políticas – cerca de 62% dos requerimentos de anistia apresentados foram aprovados no período.
Agora, o Governo do ex-capitão do Exército caminha a passos largos na sua tentativa de reescrever a história, negar a existência de uma ditadura que usou da perseguição política e de tortura, embora muitos ainda lutem para ter familiares mortos naquele tempo reconhecidos como vítimas do Estado. O objetivo, conforme relatado por interlocutores do Governo, é até o fim de 2022 extinguir a Comissão de Anistia, que é o colegiado responsável por analisar a documentação de todos os pedidos de reparação histórica feitos pelos perseguidos políticos. “É um revisionismo histórico que não pode ocorrer. Mas não dava para esperar nada diferente de quem já defendeu torturador da ditadura militar em discursos públicos”, ponderou Diva Santana, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia.
Os primeiros passos já foram dados. Inicialmente, Bolsonaro retirou a comissão do guarda-chuva do Ministério da Justiça e o transferiu ainda em 2019 para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Assim, a deixou sob o comando da representante da ala ideológica do Governo, a pastora e advogada Damares Alves. Esse colegiado tem caráter consultivo e a decisão final sobre quem deve receber ou não reparações financeiras cabe à ministra.
Como um de seus primeiros atos, Damares decidiu que entre os 27 membros da comissão, sete seriam militares ou teriam algum vínculo direto com a família Bolsonaro. Dentre eles, o atual presidente da comissão, o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, que já assessorou Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) quando ele era deputado estadual no Rio e atualmente é assessor-chefe adjunto no gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB). Também já advogou para o presidente Bolsonaro.
Em sua atuação independente da família Bolsonaro, Freitas foi o autor de pedidos polêmicos envolvendo anistiados. Foi ele quem pediu e conseguiu na Justiça por meio de uma ação popular a suspensão do pagamento da pensão à viúva do guerrilheiro de esquerda e antirregime militar Carlos Lamarca (1937-1971), assim como a do veto às reparações dadas a 44 camponeses, torturados na Guerrilha do Araguaia (1967-1974). Procurado pela reportagem, ele não se manifestou. Tampouco o fez o ministério, apesar de ter pedido mais tempo para levantar os dados solicitados.
“Em nenhum momento a atual comissão admite que houve ditadura. Nas composições anteriores não era assim. Havia divergência entre os conselheiros, mas até mesmo quem era militar reconhecia o regime de exceção”, disse a professora Stutz e Almeida, que no último dia 31 lançou o livro “Justiça de Transição e Democracia”, obra que também aborda a anistia.
Desde o início da Gestão Bolsonaro, a ministra Damares Alves assinou 3.572 portarias que tratam de anistiados. Ela indeferiu o pedido de 2.402 (65%) requerentes, deferiu 363 (1,3%) e anulou 807 (33%) anistias que já haviam sido concedidas em outros Governos. As anulações são os que mais preocupam os ativistas. Vários dos atingidos por ela são idosos, com mais de 75 anos, que, muitas vezes tem como sua principal fonte e renda as prestações mensais que recebem da União — os valores são bastante variáveis, a reportagem identificou pagamentos de 135 reais até 22.000 reais. “Vivemos um momento de perdas de direitos. Primeiro foram os trabalhistas, depois os previdenciários, agora nem a memória é respeitada”, diz o advogado Humberto Falrene, que atua em casos envolvendo anistiados.
Caso Dilma Rousseff
Os números de indeferimentos poderiam ser maiores, caso não houvesse a pandemia. Desde o ano passado, a comissão permitiu que os requerentes que não se sentissem à vontade para viajar a Brasília ou enviar seus advogados poderiam solicitar o adiamento do julgamento que estivesse pautado. Uma das que usou dessa prerrogativa foi a ex-presidenta Dilma Rousseff, que já tivera o julgamento de seu caso adiado em 2019 a pedido de um dos conselheiros que analisava o processo.
Rousseff entrou com pedido de anistia em 2002. Ex-militante antirregime militar, ela foi presa e torturada quando era estudante universitária. Quando foi ministra do Governo Lula e quando presidiu o país ela pediu que seu processo ficasse parado. Ele retornou à pauta em fevereiro passado, mas a ex-presidenta e sua advogada, Paula Febrot não quiseram viajar para o julgamento em Brasília e pediram o adiamento por temor de exposição à pandemia. Uma nova sessão deveria ocorrer na última semana de março, mas não ocorreu e o ministério não justificou por que ela não aconteceu. A petista solicita uma prestação mensal no valor de 10.700 reais.
No seu requerimento, Rousseff alega que depois de ficar presa entre 1970 e 1972 ela foi expulsa da Universidade Federal de Minas Gerais, teve de prestar um novo vestibular para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e enquanto trabalhou na Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul foi pressionada a se demitir. A ex-presidenta já recebeu três reparações em prestações únicas dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que totalizam 72.000 reais. Ela afirma que doou parte desses valores à ONG Tortura Nunca Mais.
Além de Dilma há outros anistiados que pretendem postergar o quanto podem a análise de seus processos, na esperança de que haja uma mudança na mentalidade da comissão ou da ministra Damares. Conforme advogados ouvidos pela reportagem, é comum ouvir relatos de seus clientes que preferem pagar para ver se a comissão resistirá até 2023, quando pode haver um novo Governo eleito, do que gastar seu tempo com processos que dificilmente terão sucesso, já que a comissão tem mais vetado ou anulado anistias do que aprovado.
“O problema é que nossa lei foi de anistia capenga, anistiou os torturados e os torturadores. Por isso, temos de ficar brigando para defender o óbvio e contra o revisionismo histórico”, reclama Rosa Cimiana, que mesmo não tendo mais benefício financeiro algum, segue na luta pela memória das vítimas da ditadura.
Monica de Bolle: Economia e saúde jamais foram separáveis
O país inteiro asfixia não apenas por ter ignorado aquele que seria o seu destino ante o descaso, mas porque continua preso na armadilha de que a economia importa mais do que as vidas que a sustentam
A frase que intitula esse artigo está sendo dita e repetida por mim e muitas outras pessoas há mais de um ano. A insistência nunca foi por pura teimosia, menos ainda por pessimismo exagerado como muitos acreditaram no início da pandemia. A insistência, ao contrário, sempre veio do entendimento de que caso tratássemos a economia como soberana ao vírus entraríamos em colapso. Já não tenho noção de quantas vezes disse e escrevi que o colapso do sistema de saúde levaria, inevitavelmente, ao colapso econômico. Afinal, quando o sistema de saúde colapsa no país inteiro não são apenas os pacientes de covid-19 que morrem desnecessariamente ou que sofrem e agonizam. São também todos aqueles que precisam de atendimento hospitalar: do enfarte a uma perna quebrada, de uma crise de asma a um tornozelo torcido. Pensei na apendicite.
A apendicite é uma inflamação no apêndice, órgão que perdeu a funcionalidade no nosso intestino mas que lá reside. A apendicite acomete qualquer pessoa, em qualquer idade, com qualquer condição de saúde. Seja um adolescente saudável ou uma senhora de 80 anos com doença pulmonar obstrutiva, a apendicite pode, de uma hora para a outra, levá-los à emergência. Esse quadro inflamatório agudo, caso não mereça atenção imediata, pode supurar, levando as bactérias responsáveis pela inflamação à circulação. Quando isso ocorre, a pessoa acometida tem sepse e pode acabar morrendo. Hoje, uma pessoa com apendicite em qualquer canto do país tem de contar com muita sorte para ser atendida, ou mesmo contar terrivelmente com a morte de outra para que possa ter um leito de hospital. Hoje no Brasil, ter apendicite é uma quase sentença de morte. É isso que significa o colapso dos sistemas de saúde público e suplementar em todos os Estados. Para que fique claro, a saúde complementar é o sistema hospitalar privado. Portanto, não adianta ter dinheiro caso você tenha apendicite pois já não há hospital para atendê-lo.
Como chegamos a esse ponto? Alguns dizem que foram as festas de fim de ano, outros apontam o Carnaval e outros ainda culpam as pessoas que não usam máscaras e não respeitam as regras de distanciamento social. É claro que todos esses fatores contribuíram de alguma forma para o colapso, mas na realidade ele já estava contratado. Ele foi contratado no momento em que aceitamos a falsa dicotomia entre saúde e economia e jamais tratamos de abandoná-la.
Algo semelhante ocorreu aqui nos EUA, onde moro. Por muito tempo —tempo pandêmico, logo denso— a necessidade de limitar a circulação de pessoas para frear as cadeias de transmissão do vírus foi negada. O uso de máscaras se tornou objeto de embates políticos, as medidas de distanciamento social foram rechaçadas por uma parte da população, incitada pelo então presidente Donald Trump. Houve descontrole da pandemia e mais de meio milhão de pessoas morreram. Muitas das que sobreviveram e se “recuperaram” hoje vivem o calvário da covid-19 crônica, isto é, da convivência com sintomas debilitantes que jamais desapareceram ainda que tenham se livrado do vírus. Apesar dos números pavorosos da epidemia nos Estados Unidos durante a Administração Trump, planos de vacinação foram preparados, financiamentos para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos foram concedidos pelo governo. Além disso, os Estados Unidos jamais enfrentaram a situação que vive hoje o Brasil. Estados colapsaram, sim. Contudo, havia recursos em outros Estados que podiam ser deslocados para os mais necessitados. Profissionais de saúde viajaram de uma parte do país a outra, ventiladores mecânicos foram emprestados, equipamentos hospitalares em geral foram compartilhados. Dessa forma, cenas como as de Manaus, de pessoas morrendo por falta de oxigênio, de pessoas intubadas sem sedativos nos corredores dos hospitais, foram evitadas.
Entendam: hoje não há recursos hospitalares em qualquer parte do país que possam ser compartilhados. Quando todos os Estados colapsam simultaneamente, foi-se a capacidade de uns ajudarem os outros. O país inteiro asfixia não apenas por ter ignorado aquele que seria o seu destino ante o descaso, ou mesmo a política intencional de deixar morrer do Governo Bolsonaro, mas porque continua preso na armadilha de que a economia importa mais do que as vidas que a sustentam. Não fosse assim, teríamos medidas de lockdown —não as medidas disfarçadas de lockdown que fizemos em 2020, mas as de verdade— no país inteiro. Essas medidas estariam sendo defendidas por todos: governadores, prefeitos, pela população.
E o que são, realmente, essas medidas? Em poucas palavras, o fechamento do país. Todos os serviços e estabelecimentos não essenciais precisam fechar. A circulação de pessoas precisa ser severamente limitada. O uso de máscaras tem de ser obrigatório, e penalidades para quem infringir essas ordens devem ser postas em prática. Vários países fizeram isso, e não só as economias mais avançadas. Países como a Índia adotaram multas severas para quem não utilizasse máscaras em locais públicos, outros fizeram o mesmo. Afetado hoje, inclusive, por variantes mais agressivas do vírus —mais transmissíveis ou até mais letais, duas delas surgidas no Brasil— o país não tem tempo a perder. Mas perde tempo.
O Brasil perde tempo com a discussão sobre o lockdown e perde tempo ao propor um auxílio emergencial completamente inadequado. Não é possível fechar o país sem o auxílio emergencial. O auxílio não é apenas uma medida econômica, mas uma medida de saúde pública. No entanto, o Governo brasileiro deixou o auxílio acabar quando já estava claro que a pandemia iria piorar e hoje oferece de 150 a 375 reais mensais para as famílias de baixa renda e para a população vulnerável. O custo médio da cesta básica no Brasil —e a cesta básica contém realmente isso, o básico do básico —é de mais de 500 reais. Como que as pessoas que precisam ter meios para sobreviver sem ir aos seus locais de trabalho serão capazes de se alimentar com menos da metade do valor da cesta básica? O auxílio proposto é de baixo valor para preservar as contas públicas brasileiras, assim nos dizem. Pergunto-me desde quando as contas públicas brasileiras passaram a ser mais importantes do que a maior crise sanitária já vista no país segundo a Fundação Oswaldo Cruz.
Encerro respondendo a minha própria pergunta: as contas públicas são soberanas porque nós teimamos em separar a economia e a saúde. Esse é o caminho do colapso e é nele que nos encontramos.
Vladimir Safatle: Este Governo tem que cair. Preservá-lo é ser cúmplice
Há um ano, movimentos exigiam impeachment de Bolsonaro, mas foram desqualificados pois era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia. O tempo passou e ficou claro que a verdadeira crise brasileira é o próprio presidente, que trabalha para aprofundá-la
Na última sexta feira, a imprensa noticiou que “um homem”, “um idoso” morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. O “homem” apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.
O “homem” em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: “um idoso”, “um homem”. Não teve direito à descrição de sua “luta pela vida”, nem da dor em “entes queridos”. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, “um homem” não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira com que se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.
Enquanto “um homem” morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio, ou “medidas duras” caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com “um homem”. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.
Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. Não por outra razão “genocídio” apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.
Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um Governo das Forças Armadas.
Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundá-la não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição. Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que “um homem” morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.
Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora veem à público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato “indesejável” através de um processo no qual se forjou até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem influenciando as eleições.
Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. Mesmo assim, setores que clamavam por “frentes amplas” nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.
A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. Há um setor da população brasileira, envolto em uma identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro. Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia.
Afonso Benites: Bolsonaro sabota auxiliares que tentam costurar pacto contra a covid-19
Ação do presidente no STF que pretende impedir que governadores e prefeitos decretem ‘lockdown’ é vista como uma tentativa de ele reforçar seu discurso político em contraposição aos governadores. Cresce no Senado movimentação pró-CPI da Covid
Enquanto auxiliares do Palácio do Planalto se articulam para demonstrar alguma união com outros poderes e governadores no combate à pandemia de covid-19, o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) joga contra a sua equipe. Em duas aparições públicas, na sua live de quinta, e numa conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, na sexta-feira, o mandatário voltou a criticar governadores que impõem medidas de restrição de circulação, reforçou que entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para impedir esses decretos e citou que, em algum momento, o Governo Federal tenha de tomar uma “medida dura”, por causa da pandemia. Foi uma repetição do discurso que vem adotando há um ano.
A diferença é que agora o Brasil registra quase 300.000 óbitos em decorrência do coronavírus e encontra dificuldades em adquirir vacinas, já que ignorou as ofertas de preferência de compras apresentadas no ano passado, e está prestes a ficar sem remédios básicos para UTIs em 18 Estados. Os ataques ocorrem nas vésperas de promover uma reunião ampla, em que o objetivo era mostrar alguma coesão. Ela está prevista para o próximo dia 24 e espera contar com a participação dos presidentes da Câmara, do Senado, do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União e uma comitiva de governadores que ainda não foi definida.
No Supremo, a ação apresentada pelo presidente tem sido vista como uma espécie de armadilha para reforçar o seu discurso, sem fundamento na realidade, de que o Judiciário não o deixa agir. Ele não espera uma vitória na Ação Direta de Inconstitucionalidade, e pretende usar uma possível derrota como plataforma política-eleitoral, na qual se eximiria de culpa no colapso da saúde e também pelas consequências do isolamento social. No ano passado, quando os ministros do STF decidiram que haveria uma responsabilidade compartilhada na gestão da crise, o presidente propagou entre os seus apoiadores a falsa informação de que ele foi impedido a agir por ordem dos magistrados.
Uma outra leitura política pode ser feita ao sobre o autor da ação. Geralmente, documentos que são enviados pela Presidência da República são assinados pela Advocacia Geral da União. Não foi o que ocorreu no caso. A petição inicial é firmada apenas pelo presidente Bolsonaro, e não por José Levi Mello do Amaral. No documento, o mandatário pede que os decretos emitidos pelos governos do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Distrito Federal sejam suspensos. Também solicita “se estabeleça que, mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar”. Na prática, quer proibir o lockdown.
A ação do presidente vai na contramão do que a maioria da população deseja. Pesquisa Datafolham, divulgada na quinta-feira, mostrou que 71% dos brasileiros apoiam a restrição do comércio e serviços como medida de controle da pandemia. Também segue em sentido oposto aos países que tem apresentado melhores resultados no combate à doença, como o Reino Unido.
Os nove governadores da região Nordeste assinaram uma nota que disseram estar surpresos com a ação do presidente. A chamaram de inusitada e o convidaram a participar de uma união de esforços no combate à pandemia. “Fizemos a proposta de um Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde e continuamos aguardando a resposta do presidente da República”, diz o documento assinado pelos chefes dos Executivos estaduais nordestinos.
Sem vácuo na política
Os movimentos descoordenados de Bolsonaro tiveram três reações no cenário político. O primeiro foi que, no Senado, tem crescido um movimento para que seja instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19. Já há as assinaturas necessárias para tanto, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), prefere postergar qualquer decisão. A abertura da comissão depende de seu aval.
O segundo movimento foi feito pelo próprio Pacheco. Nesta sexta-feira, ele enviou um ofício à a vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, pedindo que ela intermedeie a venda de vacinas excedentes em seu país para o Brasil. Harris acumula nos EUA o papel de presidente do Senado. Há ao menos 30 milhões de doses excedentes em território americano, produzidas pela AstraZeneca, que ainda dependem de autorização das agências sanitárias locais para serem usadas lá. A expectativa é que essas vacinas não sejam usadas tão cedo por lá. Enquanto que no Brasil, elas já têm autorização para o uso.
“O Governo não é só Executivo. O Governo é Executivo, é Legislativo e Judiciário. E a questão principal neste momento é unir forças em favor do povo brasileiro. E convém fazer mais do que tem sido feito”, disse a senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado que intercedeu no tema. O Senado se viu compelido a agir não só pela inépcia de Bolsonaro, mas também porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não tem cargo algum, tem tentado usar de sua influência política para obter mais vacinas ao país.
O terceiro movimento no xadrez político partiu de um subprocurador da República junto ao TCU (Tribunal de Contas da União). Lucas Furtado pediu a esse tribunal que afaste o presidente Bolsonaro das funções administrativas e hierárquicas sobre os ministérios da Saúde, Economia e Casa Civil e repasse as suas atribuições ao vice-presidente, Hamilton Mourão. Em seu pedido, o procurador argumentou que haverá prejuízo aos cofres públicos se não houver atendimento à população durante a pandemia e se queixa das disputas político-ideológicas.
“Não se discute que toda estrutura federal de atendimento à saúde, com recursos financeiros, patrimoniais e humanos, terá representado inquestionável prejuízo ao erário se não cumprirem sua função de atender à população no momento de maior e mais flagrante necessidade. É inaceitável que toda essa estrutura se mantenha, em razão de disputas e caprichos políticos, inerte diante do padecimento da população em consequência de fatores previsíveis e evitáveis”, diz trecho do documento.
O subprocurador ainda justificou que seu pedido está embasado na lei orgânica do TCU, que prevê o afastamento temporário do responsável caso haja indícios suficientes de que, “prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento”. Na prática, a tendência é que esse pedido não tenha sucesso. O afastamento de um presidente ocorre por meio de um processo de impeachment tocado no Congresso Nacional ou quando há a cassação da chapa por meio de uma ação no Tribunal Superior Eleitoral. O vácuo de liderança no Palácio do Planalto e os sinais trocados emitidos pelo presidente tem resultado até em ações esdrúxulas de outros atores.
Juan Arias: Alguém acha que se Bolsonaro perder as eleições contra Lula irá passar a faixa pacificamente?
A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, é capaz de atropelar liberdades e voltar a acariciar seu sonho de uma nova ditadura militar
A possível foto do capitão Bolsonaro passando pacificamente a faixa presidencial ao ex-presidente Lula percorreria o mundo. E é isso que o presidente tentará evitar. Já recém-eleito em 2018 começou imediatamente a colocar em dúvida a legitimidade das urnas e exigiu o voto impresso. Chegou a dizer que se os votos não fossem manipulados ele teria vencido no primeiro turno e que tinha provas disso, mas nunca as apresentou. E desde então deixou claro que se perder o próximo pleito e ainda mais agora com a possibilidade de que Lula seja o vitorioso, não aceitará pacificamente os resultados.
Não por acaso, desde que surgiu de surpresa a possibilidade de que Lula possa disputar as eleições, Bolsonaro tem afirmado que só ele pode impor o estado de sítio no país. Falou novamente da possibilidade de um golpe, de que ele conta com “seu Exército”.
Bolsonaro nunca apareceu tão nervoso e agressivo ao mesmo tempo em que se apresentou de repente como o defensor da vacina, enquanto abre uma guerra contra os governadores aos que acusa de ser os responsáveis pela tragédia da pandemia por permitirem medidas restritivas para tentar conter o drama da covid-19 cada vez mais perigosa e agressiva.
A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, o presidente é capaz de atropelar todas as liberdades e de voltar a acariciar seu sonho de implantar uma nova ditadura militar. Não é por acaso que a cada dia seu Governo aparece mais militarizado e que no boletim do Clube Militar do Rio de Janeiro tenha se defendido que a maioria dos brasileiros “tem saudade da ditadura”. Algo que todas as pesquisas nacionais desmentem mostrando que 70% dos brasileiros são favoráveis à democracia.
Bolsonaro voltou esses dias à cínica filosofia de que “a liberdade é mais importante do que a vida”. Só que ele falar de liberdade soa a sarcasmo. Pelo contrário, para ele o conceito de liberdade não existe. A primeira vez que ele falou de liberdade significou liberdade para infringir as leis restritivas contra o avanço da pandemia. Bolsonaro não entende de filosofia e não sabe o que é um silogismo e um sofismo. Seu forte não é o raciocínio e a reflexão e sim a impulsividade das armas e a exaltação da violência em todas as suas vertentes.
Quando o presidente defende que a liberdade vale mais do que a vida não está fazendo uma reflexão filosófica. Está só pensando na liberdade que suas hostes negacionistas pedem para desobedecer às normas impostas pela ciência e a medicina em meio à maior tragédia sanitária da história do Brasil.
Bolsonaro tem pavor de perder votos de suas hostes se apoiar as medidas necessárias não só para prevenir o contágio pessoal, como também para impedir o dos outros. Chega a defender que é melhor morrer e expor os outros à morte do que impedir as pessoas de burlar essas normas ao bel-prazer. Sua única obsessão é a de poder perder as eleições e por isso despreza a vida dos outros para salvar seu poder.
Bolsonaro falar da liberdade mesmo à custa de colocar em perigo a própria vida é risível e soa mais à fraude. Se há hoje no Brasil um político que despreza a liberdade é o presidente cujo vocabulário está repleto de palavras como golpe, ditadura, guerra contra a liberdade de expressão e perseguição dos direitos humanos. De guerra contra a liberdade das pessoas de escolher suas preferências sexuais e de negar que os diferentes tenham direito à sua liberdade de sê-lo.
A palavra liberdade na boca do negacionista e genocida já nasce podre e corrompida.
A única forma de liberdade para ele é justamente a de perseguir as liberdades que forjam uma sociedade verdadeiramente democrática onde não existe valor maior do que a vida.
O presidente alardeia o uso de Deus para seus planos de poder e para ganhar os votos da grande massa dos evangélicos. Ele, que gostaria de trocar a Constituição pela Bíblia, deveria se lembrar que nos textos sagrados Jesus define a si mesmo como “o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,16).
Bolsonaro despreza exatamente esses três conceitos. Em vez de ser o caminho, ou seja, o guia de uma sociedade justa e livre, é o motor da confusão e do desgoverno. Em vez de ser o representante no país da verdade é o semeador da mentira, cultor da nova moda das fake news. E em vez de ser o defensor da vida chama de covardes os que se protegem do vírus e fazem sacrifícios para continuar vivos.
Não existe no presidente que está conduzindo o país a uma catástrofe um só instinto de vida. Seu abecedário é o da morte e da destruição como revela sua paixão pelas armas, expressão da morte e da violência. Que Bolsonaro coloque um falso conceito de liberdade como mais importante do que a vida é a melhor constatação do que já havia confessado: “Eu não nasci para ser presidente. Minha profissão é matar”.
Bolsonaro poderá um dia ser levado aos tribunais internacionais acusado de não ter impedido com sua negação da pandemia e seu desprezo pela vacina encher os cemitérios de mortos. A única verdadeira liberdade que ele pratica é a de abandonar o país a sua própria sorte para não perder o poder.
O certo e cada vez mais indiscutível é que o Brasil, desde o fim da ditadura e volta à democracia, nunca esteve tão perto de uma nova tragédia política. A espada de Dâmocles de um novo golpe militar não é algo hipotético e sim algo bem próximo. E ainda mais com a chegada inesperada de Lula e a deterioração cada dia maior das instituições que deveriam velar pelos valores democráticos como o Congresso e o Supremo onde está ocorrendo uma verdadeira guerra campal entre os magistrados que deveriam colocar todos os seus esforços na defesa da democracia ameaçada.
Por sua vez, os militares que se comprometeram abertamente com o Governo Bolsonaro e suas loucuras antidemocráticas dificilmente aceitarão aparecer como derrotados. E certamente não permitirão perder essa guerra.
As grandes tragédias dos países começam por ser consideradas como catastrofistas e acabam sempre se realizando quando já não há mais tempo de detê-las.
Cuidado Brasil!
Quem mandou matar Marielle?
No último dia 14 de março, completaram-se três anos do atroz assassinato da jovem ativista negra vinda da favela, Marielle Franco, e sobre sua tumba continua ameaçador o silêncio sobre quem foram os mandantes de sua morte. Escrevi em outra coluna que Marielle morta poderia acabar sendo mais perigosa do que viva. Talvez seja necessário uma mudança no Governo de morte de Bolsonaro para que por fim saibamos com certeza quem matou a jovem e por quê. E então o Brasil poderá, por fim, fazer justiça da bárbara execução.
Para isso será preciso que chegue um presidente não comprometido com o submundo das milícias do Rio e que chegue um Governo realmente democrático que descubra o mistério de sua morte e, por fim, faça justiça levando aos tribunais os culpados hoje escondidos nos porões sombrios do poder.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Juan Arias: Brasil mergulhado na barbárie
Deixar um país inteiro à deriva, não por falta de recursos, mas de liderança, é um crime que também recai sobre as autoridades incapazes de intervir
O Brasil começa a ser um campo onde parece ter se instalado um regime bárbaro com atos de terrorismo perpetrados contra aqueles que defendem as medidas de lockdown contra a pandemia que ameaça afundar o país na maior crise de saúde de sua história. Dois atos de terror e violência levados a cabo nos últimos dias contra dois jornalistas por fanáticos de Jair Bolsonaro levantaram o alarme de que os seguidores do presidente, que os qualifica de “meu exército”, estão dispostos a incendiar o país para impedir as medidas restritivas exigidas pela ciência e pela medicina como única arma junto com a vacina para tentar deter o rastro de mortes cada dia maior que horroriza o país. Nesta quinta-feira, o presidente deu mais um incentivo a eles: em nova transmissão ao vivo, disse ter acionado o Supremo Tribunal Federal contra as medidas para conter a circulação.
O último ato de terror aconteceu na cidade de Olímpia, no interior de São Paulo, contra José Antonio Arantes, editor do jornal local que quase morreu junto com a mulher e a neta de sete anos enquanto dormiam. Atearam fogo na casa durante a madrugada e se não fossem os dois cachorros que os despertaram com o quarto já cheio de fumaça e fogo, toda a família teria morrido. “Mais quinze minutos e teríamos todos morrido sufocados pelo fogo”, disse o jornalista, que acrescentou: “Estou há 40 anos na profissão, comecei minha carreira já no final da ditadura. Não vou abrir mão de lutar pelo meu povo e contra qualquer tipo de terrorismo e pensamento político que visem tirar a liberdade e suprimir os direitos de minha população”.
Outro jornalista, do O Estado de Minas há 20 anos, foi agredido durante uma manifestação de bolsonaristas com pontapés e pancadas na cabeça dadas com um capacete de motociclista aos gritos de “Comunista! Não vamos deixar!”. O jornalista comentou: “A ferida está na alma. Saber que temos um líder no país que incentiva a violência”. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) escreveu que “o extremismo e a intolerância contra jornalistas atingem toda a sociedade”.
É sabido que os grandes incêndios que devastam florestas inteiras às vezes começam com uma ponta de cigarro acesa. O mesmo acontece na política. Muitas das grandes tragédias da humanidade às vezes começaram com um único tiro de pistola e acabaram manchando de sangue países inteiros.
O Brasil está numa situação grave e perigosa que, se não for contida a tempo, pode arrastar o país para as cenas dantescas vistas no final do Governo Trump. As instituições do Estado responsáveis pela defesa dos direitos sancionados na sociedade não podem fechar os olhos nem pensar que Bolsonaro ainda pode mudar, defender os valores da liberdade e acalmar suas hostes violentas. Em mais de dois anos de Governo já deu provas suficientes de que sua personalidade negacionista, destrutiva e violenta não vai mudar.
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Como vários psiquiatras já indicaram, sua personalidade pertence a pessoas com traços de patologia impossíveis de curar. Em sua coluna de ontem no jornal Folha de S. Paulo, intitulada Jair Messias e o ‘pai dos psicopatas’, Guido Palomba cita o psiquiatra alemão Kurt Schneider, que em seu último livro tenta decifrar os transtornos de personalidade em tempos de tensão.
El País: Covid-19 se espalha por órgãos públicos em Brasília
Câmara já registrou 21 mortes. Senado e 19 dos 23 ministérios se recusaram a responder a levantamento do EL PAÍS sobre vítimas. Pressionado, Arthur Lira suspende trabalho presencial de servidores
Afonso Benites, El País
Em um período de três horas desta quinta-feira, o Departamento Médico da Câmara dos Deputados recebeu 20 atestados de funcionários que pediam licença para se tratarem de covid-19. No dia anterior, foram quase 60, segundo observado pelo vice-presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo, Paulo Cezar Alves. Até a última semana, a Câmara havia registrado ao menos 21 óbitos de funcionários e 482 contágios desde março de 2020. Os números dão ideia de que a onda que varre o Brasil e nesta quinta-feira vitimou o senador Sérgio Olímpio Gomes (PSL-SP), o Major Olímpio, tem atingido com toda a intensidade órgãos públicos de Brasília que, em grande parte, decidiram retomar o trabalho presencial ou semipresencial.
No decorrer do dia, os senadores demonstraram indignação com o que consideram inépcia do Governo Jair Bolsonaro na atuação contra a pandemia. Após a morte de Olímpio, passaram a se articular para definir ações a serem tomadas. Começaram com a divulgação de um vídeo nas suas redes sociais em que o próprio Olímpio pedia para ser vacinado. Há um clima de indignação e consternação entre boa parte dos parlamentares. Parecem ter notado o descalabro apenas agora, quando morre o terceiro senador ―o outros foram José Maranhão e Arolde Oliveira― e o país caminha para chegar aos 300.000 óbitos, enquanto o presidente segue seu roteiro de sempre: duvidou do colapso da saúde nos Estados, com a superlotação de UTIs, e disse que vai recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra os lockdowns.
Os casos dos servidores, no entanto, se acumulam e não há o mesmo destaque midiático do que o que acomete seus chefes. Pior, vários se veem obrigados a voltar ao dia a dia, pois, no caso dos terceirizados, temem perder benefícios, como o auxílio alimentação ou, pior, o próprio emprego. Acabam se tornando números na pandemia. Muitas vezes, nem isso, já que 19 dos 23 ministérios do Governo Jair Bolsonaro, além do Senado Federal, se recusaram a responder à reportagem sobre o número de funcionários contagiados e óbitos registrados em decorrência de coronavírus nos últimos 12 meses. Na prática, entram para a contabilidade da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, mas quase ninguém sabe quem são eles. Na capital do Brasil, 5.274 morreram dessa doença e 324.576 se contaminaram
Das quatros pastas que responderam, total ou parcialmente, aos questionamentos feitos pelo EL PAÍS, somados aos dados enviados pela Câmara, é possível afirmar que ao menos 91 servidores públicos perderam suas vidas para essa doença. E ainda houve 4.206 infectados.
No cálculo não estão os três senadores que morreram do vírus ―Olímpio, José Maranhão e Arolde Oliveira― nem o sargento do Exército Silvio Kammers, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro que teve seu nome omitido pelo Palácio do Planalto até a última quarta-feira, quando a imprensa brasileira noticiou o caso.
Entre os quatro ministérios que responderam às perguntas, o que registrou mais mortes foi o Ministério da Economia, 49, seguido pela Agricultura, 19, e Justiça, 2. A pasta da Saúde, informou apenas o número de contagiados 333, mas não o de mortos. Entre os outros 19 ministérios, nenhuma informação sobre essa contabilidade foi dada. Nem mesmo a Controladoria Geral da União, que preza pela transparência do Governo Federal, se manifestou. No caso do Gabinete de Segurança Institucional, a resposta foi a de que a reportagem deveria acionar a Lei de Acesso à Informação para obter os dados.
Trabalho presencial e reação no Congresso
Na Câmara, uma das vítimas foi a chefa da secretaria de controle interno, Creuzi Rodrigues da Silva, de 60 anos. Ela, o marido e o filho se contaminaram com a doença. Seu caso foi o mais grave na sua família. Seus colegas e parentes ficaram três dias em busca de um leito em UTI, conseguiram no último dia 8, mas ela não resistiu aos sintomas e morreu no dia seguinte. Trabalhava no Legislativo havia 29 anos. Estava em teletrabalho até janeiro, mas foi obrigada a frequentar o Congresso Nacional em fevereiro, quando Arthur Lira (PP-AL) assumiu a presidência da Casa e determinou o retorno do trabalho presencial.
Nesta quinta-feira, Lira voltou atrás na medida e decidiu restringir a circulação de parlamentares e funcionários pelas próximas duas semanas. Os jornalistas da TV e a da Rádio Câmara foram orientados a não fazerem mais a transmissão ao vivo presencialmente depois que um dos funcionários do setor foi diagnosticado com coronavírus. O deputado sentiu-se pressionado pela maior parte dos parlamentares, assim como, indiretamente, por Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o presidente do Senado que conclamou um “pacto nacional” de combate ao coronavírus. “Precisamos mais do que nunca de uma união nacional, um pacto nacional contra essa doença. Nossa tristeza que estamos sofrendo, com pessoas próximas, é uma tristeza que milhares de pessoas estão sofrendo no Brasil, e é preciso que nós da classe política façamos alguma coisa”, disse Pacheco em entrevista ao programa Brasil Urgente, da Band. Pacheco tem nas mãos um pedido de CPI para investigar a gestão Jair Bolsonaro. Até o momento, no entanto, prefere usá-lo apenas como instrumento de pressão política.
Monica de Bolle: Os desafios do Brasil aquém e além da pandemia
Ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas
Os desafios a que me refiro no título deste artigo não são nem os da saúde pública, que são imensos, nem os econômicos, também enormes. Em momento sombrio da história brasileira, dou um passo para trás em um esforço para perceber mais claramente os desafios que a sociedade brasileira já havia criado para si com a eleição de Bolsonaro em 2018 e que foram agravados pela pandemia. Podemos dividir o país em dois campos, como é mais habitual: de um lado, figuram os bolsonaristas; de outro os que a elem se opõem. Mas vale tentar ir além do binarismo, para contemplar nuances que já eram visíveis em 2018 e ficaram mais explícitas no decorrer do último ano.
Há os bolsonaristas. Eles possuem uma linguagem própria, e este elemento merece atenção porque o bolsonarismo se define menos por uma ideologia do que por estratégias de comunicação que ou apresentam a violência ou repõem a sua potencialidade. Não menos importante, o bolsonarismo é antipluralista. É antipluralista em relação à vida social, como fica claro quando contemplamos a sua relação com minorias; na política, como podemos ver, sugere a ilegitimidade de seus adversários, desde a sua perspectiva; nos valores, o que notamos quando atentamos para os seus operadores (”cidadão de bem”, “humanos direitos”, “a família brasileira”) e no plano das ideias. Falas bolsonaristas, como são as do presidente, deixam ver práticas patriarcais longamente constituídas. Para ilustrar com uma manifestação recente: contestando medidas que governadores tentam implementar, o presidente afirmou em uma mídia social que “atividade social é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão dentro de casa”. O viés do bolsonarismo também é nitidamente colonialista, como se nota em sua relação com povos indígenas, com esboços de defesa ou justificação do desmatamento em nome do “desenvolvimento”.
Se o bolsonarismo é antipluralista, o antibolsonarismo seria pluralista. compreende o antirracismo, o feminismo e sua luta mais que secular no Brasil pelos direitos das mulheres, a igualdade de todos os seres independentemente de gênero ou orientação sexual, o rechaço à desigualdade e a contestação de uma democracia universal na forma, mas restrita na vida, em que negros e pobres são tratados como não-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe. O pluralismo percebe o traço autoritário na operação de uma lógica absolutista e que instrumentaliza a razão em causa própria. A razão assim instrumentalizada é cerceada. Ser pluralista, ao contrário, é manter-se aberto aos conflitos trazidos pela abertura ao real e os questionamentos dos pressupostos que a realidade suscita. O pluralismo supõe uma abertura que é antagônica a tudo o que é estático.
O antagonismo do pluralismo ao que é estático ficou em evidência maior na pandemia, um evento cujo ineditismo não permite que permaneçamos apegados a conhecimentos estabelecidos e formas de ordenar o mundo informadas por experiências passadas. A pandemia fez ver. Fez ver o tamanho da desigualdade, a inadequação da política econômica, o desconhecimento científico da população, o sofrimento, a vida e a morte. Esses aspectos da realidade brasileira ficaram tão visíveis, tão despidos de construções e fantasias, que o inaceitável ―para o campo pluralista― passou a ser permitir que o mundo não fosse visto por determinados grupos da sociedade.
Mas, nas fraturas da sociedade brasileira, há ainda outro grupo: aquele formado por pessoas que se declaram antibolsonaristas, mas, ao encontro com o real, não resistem a se agarrar a um conhecimento estabelecido, mantendo intactos os seus pressupostos, sem reexaminá-los. É o que chamo, hoje, de relação absolutista com a racionalidade, que faz certa razão aparecer como antipluralista. Esses atores políticos percebem a importância das causas do pluralismo e as abraçam. Porém, o antipluralismo embutido na forma como entendem a relação de especialistas com o público torna algumas de suas práticas compatíveis com o bolsonarismo. Sendo preciso dar-lhes um nome, proponho chamá-los de “anti-anti”.
Eles estão presentes na economia, mas não só: os antibolsonaristas e antipluralistas aparecem à luz do público, eventualmente. São pessoas bem intencionadas, de diferentes gerações, que defendem causas a meu ver justas, tais como a renda básica, a redução da pobreza e das desigualdades, mas que ao mesmo tempo não se dão conta de que defendê-las pode implicar abrir mão de certas crenças e pressupostos. Na economia, o pressuposto mais hostil a dúvidas, e proveniente do conhecimento estabelecido a partir de experiências passadas, é o de que a responsabilidade fiscal é um valor inegociável, ainda que a realidade o exija, em uma crise humanitária e com um governo que atua por ação e omissão para deixar morrer e fazer morrer. No mundo dos anti-anti, a defesa da igualdade de acesso e o inevitável choque com aquilo que consideram fiscalmente responsável estão em planos distintos, correm em paralelo. Mas a realidade não permite que se opere em planos paralelos. Ao contrário, ela coloca esses planos em rota de colisão: ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas.
Evidente na economia, tal absolutismo é difuso. No jornalismo opinativo ―nos editoriais ou nas colunas de opinião― a construção de um mundo que não tem relação com a realidade está igualmente presente. Constroem-se argumentos para sustentar essa ou aquela tese com base em uma dissociação da realidade. Temas que tentam reconstituir uma realidade que deixou de ser com a pandemia dão a tônica à representatividade dos veículos de comunicação. Aceita-se de bom grado o absolutismo econômico, científico, ou seja lá qual for, ainda que se manifeste uma opinião contra o Governo, contra o presidente da República. A imprensa que se permite tratar o mundo real com demasiada maleabilidade, ou negligenciá-lo, para habitar esse outro construído valida o bolsonarismo sem querer fazê-lo: é anti-anti pelo que deixa ver, pelo que faz não ver.
Está posta, assim, a tragédia do Brasil atual: atores importantes da sociedade não enxergam, em suas construções e atitudes, pontes para a perpetuação do antipluralismo bolsonarista. Esses grupos preferem desqualificar aqueles que estão com os pés na realidade, tentando dar conta de um mundo repleto de fraturas, de descontinuidades, que requer novas ideias e o livre pensar, ou o que Hannah Arendt chamou de pensar sem corrimão. Preferem tudo isso a enxergar insuficiências e inadequações do conhecimento que nos foi legado. No limite, e nós nos encontramos em alguns limites, tornam-se facilitadores, conscientes ou desavisados, da franca decadência moral que marca um país que se recusa a chorar pelos seus mortos, seus doentes, seus destituídos.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.
Lula: 'Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força com Bolsonaro'
Petista vê chances de o seu partido ganhar a presidência em 2022, seja com ele ou com Haddad, ou o nome da esquerda que se sobressaia até lá. “Me contento em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso”. Para ele, a realidade vai se impor e Bolsonaro vai perder a disputa
Jan Martínez Ahrens e Carla Jiménez, El País
Luiz Inácio Lula da Silva vive um momento de energia em estado puro. Tem 75 anos, superou o câncer, o coronavírus e a prisão, e diz se sentir “com 30 anos.” Aparece na entrevista feita por Zoom em uma camisa de mangas e se posiciona de pé diante da câmera do computador. Parece estar à vontade; é sexta-feira, no último dia 5, e fala da sua casa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde vive com Rosângela Silva, a Janja, socióloga por quem se apaixonou quando estava preso em Curitiba. Às suas costas aparecem alguns poucos livros de capa mole e uma bandeira vermelha, de mesa, que exibe a sigla do PT e que, por causa de uma estranha corrente de ar, parece se movimentar em uníssono com Lula, como num comício, quando ele entra em ebulição. Algo que ocorre com frequência ao longo da entrevista.
É um fenômeno que vai crescendo. Primeiro Lula tira os óculos (quadrados e ostensivamente grandes), depois acelera o ritmo da resposta e, à medida que os minutos passam, dá rédea solta ao tigre político que habita nele. Fala, ri e ruge; agita os braços, bate na mesa. Lula ―e esta é uma das chaves da sua extraordinária capacidade de atração― transita de forma incessante pelos muitos Lulas que ele já foi. Ao longo de uma hora e meia de conversa, se sucedem, numa tela que fica cada vez menor, o homem que um dia foi pobre e que sabe se dirigir a outros interlocutores pobres, o torneiro mecânico simpático, o sindicalista que enfrentou a ditadura militar, o candidato dos grandes comícios e até o presidente (2003-2011) que deu ao Brasil anos de grandeza. Mas também o homem que foi preso e se revolta contra sua condenação, o político cassado que busca limpar seu nome. Lula passou 580 dias preso por corrupção e lavagem de dinheiro. E já recebeu outra sentença por crimes semelhantes no sítio de Atibaia. Esse rochedo o esmaga, e contra ele volta agora todas as suas energias.
“Aprendi com uma mãe analfabeta que não podemos viver ressentidos, que devemos ser firmes e acreditar que a vida pode melhorar. Tenho muito otimismo”, diz, em um dos raros momentos em que fica quieto (e a bandeirinha também). É só um instante. Depois continuará disparando para todos os lados, pisando fundo no acelerador de um motor que nunca se esgota e que fez dele uma lenda, tão querida quanto odiada, da esquerda latino-americana. Seu otimismo o deixa seguro de que o PT tem chances de voltar ao poder, seja com ele ou outro nome. Neste domingo, uma pesquisa publicada no jornal O Estado de S. Paulo reforçou sua ambição. Levantamento do Ipecmostra que 50% dos entrevistados votariam nele outra vez em 2022, contra 28% de presidente Jair Bolsonaro ―e 31% de Sergio Moro. Pela enésima vez, ele volta ao centro do debate político.
Pergunta. Como tem levado o confinamento, alguém inquieto como o senhor. Estaria na rua?
Resposta. Me sinto mal ficando em casa. Não me contento em ficar definhando. Vai te matando dentro. Apesar de estar namorando e apaixonado, preciso sair para a rua, respirar liberdade, falar com o povo. Toda vez que sinto falta de ar, não é o coronavírus, é a necessidade de falar com o povo, aprender com eles. Nasci em porta de fábrica. Por ora vou me cuidar e respeitar a ciência. Quando tomar a vacina e for autorizado eu saio.
P. O Brasil, diferente de outros países da região, está no pior momento da pandemia. A quantidade de mortes é terrível e a vacinação é lenta. Como vê a situação do Brasil, como ex-presidente e cidadão?
R. O Brasil vive um acidente de percurso da nossa democracia e da nossa civilidade por conta do presidente Bolsonaro. Ele tem demonstrado não ter nenhuma preocupação com a seriedade, seja para tratar a covid, a economia, a educação ou a sua relação internacional. O Brasil sempre foi o país que não tinha problemas com país nenhum no mundo. O vírus é uma coisa da natureza. Enfrentar o vírus é da responsabilidade das políticas públicas dos governantes no mundo. Aqui no Brasil, o presidente desrespeita a ciência, receita remédio, não tem solidariedade, nem respeito pela vida. Se o Brasil vivesse um momento de democracia efetivamente, o Bolsonaro já tinha sofrido o impeachment. Deixamos de comprar vacina quando poderia, vacinar quando deveria, e ele continua fazendo campanha contra o isolamento. É quase um genocida no tratamento da pandemia. O Brasil não merece isso.
P. Contudo, Bolsonaro continua com 30% de apoio popular e ainda num momento de economia ruim. Como se explica?
R. No mundo inteiro, você sempre tem entre 15% e 20% da sociedade que não querem votar, não gosta de política. Aquela parte da sociedade ultraconservadora, que defende pena de morte, que as pessoas tenham armas ao invés de empregos e livros, que defende a violência, são contra negros, mulheres, LGBTs, quilombolas, sindicatos. Essa gente existe. Muitos ex-militares aposentados, milicianos da guarda privada, gente que depende do Bolsonaro. O fato dele ter esse apoio significa que tem 70% que não concordam. E são esses 70% que vão garantir a democracia. Que na hora da decisão, vão se manifestar.
P. Mas, neste momento, não há uma oposição forte no país. Os últimos resultados eleitorais do seu partido PT foram ruins. Não falta uma nova liderança? O que falta para que o PT recupere força?
R. Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força [na urna]. Eu lembro que quando o [partido espanhol] Podemos [junto com grupos à esquerda do PSOE] ganhou as eleições da prefeitura [de Madri], muita gente falou que o PSOE tinha acabado. Quem governa a Espanha hoje é o PSOE. O PT continua sendo o maior partido do Brasil, a força política mais organizada do país. O PT tem sido vítima de uma campanha de destruição enorme, com [a operação] Lava Jato. A minha inocência está provada e a culpabilidade do Ministério Público, do [Sérgio] Moro e da Polícia Federal está mais do que provada. Em 2016, na minha defesa, a gente já dizia tudo que está sendo publicado agora, os documentos oficiais liberados pela Suprema Corte. Houve um conluio para evitar que o Lula pudesse voltar à presidência do Brasil. Mentiu uma parte da Justiça, uma parte do Ministério Público, da Polícia Federal. Envolveram muita gente numa mentira, reforçada pelos meios de comunicação. Agora que sabem a verdade, como vão dizer para a sociedade que, durante 5 anos, condenaram uma pessoa inocente?
P. Se conseguir vencer a batalha judicial, se apresentaria como candidato?
R. Eu necessariamente não preciso ser candidato a presidente, porque eu já fui. Estou com 75 anos, com muita saúde, mas descobri que o [Joe] Biden é mais velho do que eu e governa os EUA. Quando eu chegar em 2022, eu vou estar apenas com 77 anos, um jovem. Se chegar na época e os partidos de esquerda entenderem que eu posso representá-los, eu não tenho problema. Mas o PT tem outras opções, tem o Fernando Haddad, outros governadores. E a esquerda também tem: Flávio Dino, o [Guilherme] Boulos... Na hora que tiver que decidir, vamos ver quem tem mais condições de ganhar. A única possibilidade que eu tenho de ser, porque eu não disputarei com ninguém, é se as pessoas entenderem que eu sou o melhor nome. Se não, me contentarei em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso. Pedi ao Fernando Haddad começar a lutar pelo Brasil, porque ele tem um passaporte diplomático de 47 milhões de votos conquistados em 2018, ele não pode ficar parado em casa. Tem que ir pra rua conversar sobre educação, emprego, sobre salário, custo de vida. E sobre coronavírus, precisamos exigir todo dia que esse país consiga comprar as vacinas para que o povo possa ter tranquilidade em viver dignamente.
P. O senhor tem dialogado com lideranças da esquerda e da direita sobre a eleição?
R. Você sabe que eu não tenho problema em conversar com ninguém. Às vezes eu vejo a imprensa ficar impressionada porque os conservadores ganharam a Câmara. Eles nunca perderam. Na Constituinte, em 1988, o Centrão percebeu que a gente estava crescendo e fazendo coisas demais, eles se reorganizaram e fizeram mais que nós. Toda vez que tem algo importante para votar, se constrói a maioria. A direita sempre foi maioria, a esquerda nunca. Acontece que a democracia é boa por conta disso. Não parecia que o Podemos era inimigo do PSOE na Espanha? E não se juntaram para governar? O [ultradireita] AfD não está junto com a Merkel? A política é boa por conta disso. Você vai construindo aquilo em que você acredita que é bom e aí a realidade te empurra para algo que não esperava.
P. E com Ciro Gomes?
R. Não tenho problema com Ciro Gomes. Gosto dele de graça, como disse outras vezes. Mas ele está equivocado e precisa compreender. Ele resolveu engrossar o discurso antipetista achando que vai ganhar votos da direita. Não vai. Isso que é grave. Não adianta falar mal do PT e da esquerda achando que vai ganhar voto do Doria. Se continuar discurso xenófobo contra o PT ele vai perder gente da base dele. Se teve 12% na última eleição ele pode cair. E eu acho que o Ciro Gomes é importante para o Brasil. Mas ele precisa acertar na política. Ele pode não ter no PT o maior aliado porque o PT não o apoiou. Mas ele não pode considerar PT inimigo.
P. Hoje o Bolsonaro está alinhado ao Congresso reformista, com a agenda de teto de gastos. Não é pouco tempo para acreditar que o PT pode mudar a mentalidade no Brasil?
R. O PT pode e deve. Todo o combate ao coronavírus, ele se dá mais corretamente nos países onde o Estado tem políticas públicas de saúde. Aqui no Brasil, o SUS foi atacado pela elite brasileira desde que foi criado em 1988. Agora com o coronavírus, todo mundo começa a reconhecer que se não fosse o SUS o Brasil estaria muito pior. Por que é o sistema público de saúde invejável. E do qual eles cortaram muito dinheiro e que salva milhões de pessoas neste país. É o profissional do SUS, a estrutura do SUS que tem salvo o Brasil, que faz com que não esteja pior do que está.
P. Quando o senhor governou a China começava a investir muito, um momento favorável.
R. Quero desfazer esse equívoco que às vezes vocês cometem. “Ah porque teve um boom de commodities” [nos anos do PT]. Boom de commodities tem hoje. O problema é saber onde você vai gastar o dinheiro no país, aonde é que o pobre vai entrar na economia. Nós fizemos uma inclusão bancária de 76 milhões de pessoas, levamos energia de graça na casa de 15 milhões de pessoas, cisternas. Viajei muito pelo mundo, vendia a capacidade intelectual e produtiva do Brasil.
P. Mas agora nosso endividamento está perigoso.
R. O Brasil é muito grande e pode voltar a ser. Tenho a impressão de que o povo vai começar a perceber o que aconteceu no Brasil. Obrigatoriamente vai ter que comparar o que era no governo do PT e o que é o Brasil no governo do Bolsonaro, e dos outros.
P. Falando agora de Estados Unidos, eles tinham o presidente Donald Trump, muito parecido com o Bolsonaro. Seu último ato foi fomentar a invasão do Capitólio. Acredita que pode acontecer algo parecido se Bolsonaro perder as eleições?
R. Eu acho que o Bolsonaro vai perder as eleições, e a vitória será para alguém progressista, espero que seja para o PT. Acho que ele está armando o povo. Quem quer comprar arma, não é o trabalhador. O metalúrgico, o químico, o professor. As pessoas querem comprar comida, emprego. O Bolsonaro está vendendo armas para quem? Para uma elite, agrícola, ex-policiais, milicianos que lhe dão segurança, para a turma que matou Marielle. Se o PT voltar a ganhar as eleições, a gente vai desarmar o povo e recuperar o humanismo da sociedade brasileira, deixar esse ódio de lado. Só tem um remédio para este país: fortalecer a democracia. Tenho clareza absoluta que a gente pode ganhar outra vez. Aqui no Brasil o que parece impossível hoje vai ser possível amanhã. Este país é poderoso. O que ele tem é uma elite perversa, que acha que tudo é para ela. Precisamos de uma sociedade solidária, em que o humanismo prevaleça sobre a chamada inteligência artificial. Não quero virar algoritmo. Não quero que a sociedade vote num Trump ou num troglodita como o Bolsonaro nunca mais. As pessoas precisam votar em homens que pensam o bem.
P. Ou mulheres, não presidente? Não só homens.
R. Se tem uma pessoa que apostou na conquista das mulheres é este seu amigo aqui. No PF tivemos uma presidente mulher, 50% do meu partido são mulheres.
P. E tem uma mulher despontando como potencial candidata, cogitada até pelo PT, que é a empresária Luiza Trajano, nome inclusive de fora da política. Como o senhor a vê?
R. Conheço e adoro a Luiza Trajano como mulher, pessoa humana e empresária. Acontece que o mundo da política é insano, não é uma coisa fácil. Uma coisa é dirigir uma coisa sua, uma rede, uma fábrica. Outra é um Estado, um país, em que você presta conta para empresa, sindicato, Parlamento. Não tem curso universitário para preparar político. A política é difícil, é tomada de posição e não é ciência exata sempre. Você tem que decidir de que lado você está sempre, para quem quer fazer o bem. Atender uma [parte] e ferir a outra. Toda vez que se nega a política o que acontece é um Bolsonaro.
P. Em que se diferencia o Lula que assumiu o poder em 2003 e o Lula de agora? Qual experiência lhe trouxe a prisão?
R. O Lula de hoje não é diferente do Lula de 2002. Sou mais experiente, um pouco mais velho, mas continuo com a mesma vontade e a mesma certeza que é possível mudar o Brasil. Sonhava em possível construir um bloco econômico forte na América do Sul. Hoje, com a União Europeia, não dá pra você ficar negociando sozinho. Vamos ser francos, [meu tempo] foi o melhor momento da América Latina desde Colombo. Acho que o continente precisa se convencer que não pode continuar no século XXI sendo a parte do mundo que tem mais desemprego, mais miséria e mais violência. Sou a prova que o Brasil foi convidado para quase todas as reuniões do G-8, e virou protagonista internacional e é isso que os americanos não querem. Não querem competição. Por exemplo, não é assimilável que o Trump queira invadir a Venezuela e que países europeus reconhecerem o [Juan] Guaidó como presidente. Como reconhecer um impostor, alguém que não concorreu à presidência? A Europa é que desapareceu da política. Tudo é comissão. Tem comissão daquilo, de meio ambiente, tudo burocrata. Os governantes são eleitos e desaparecem. É preciso que a política volte a assumir o seu papel, tomar grandes decisões.
P. Mas o que mudou pessoalmente, com a prisão? Poucos políticos viveram isso. O que isso mudou do ponto de vista pessoal?
R. Se eu dissesse que eu não tenho mágoa de algumas pessoas eu estaria mentindo. Mas nunca na minha vida trabalhei com meus rancores. Quando a gente tem ódio a gente dorme mal, faz digestão mal. Como eu sempre tive consciência do que estava acontecendo comigo, eu nunca tive dúvida. Quando eu estava detido na Polícia Federal, houve uma tentativa de que eu fosse libertado e viesse para casa e utilizasse tornozeleira. O que eu disse? ‘Eu não troco minha dignidade pela minha liberdade’. Eles procuravam um motivo para me prender. Preciso agora deixar de ser refém, que a Suprema corte vote e decida. Só quero um julgamento honesto, eu não vou mais xingar o Moro, nem o Ministério Público. Todo político que rouba se esconde, submerge. E eles pela primeira vez enfrentaram um político que não tem medo deles porque sou inocente. É preciso saber quando o Supremo vai tomar a decisão porque ao me colocar como inocente eles vão ter que dizer que os outros mentiram, que a rede Globo mentiu, que a imprensa toda mentiu. Será o dia do perdão. Fico imaginando o dia em que o William Bonner abrirá o Jornal Nacional dizendo: “Boa Noite, hoje nós queremos pedir desculpas para o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque acreditamos nas mentiras do Dallagnol e do Moro”.
P. É utopia, né, presidente?
R. Você acha impossível, mas eu acho que vai acontecer. Eles pediram desculpas porque não cobriram as [manifestações pelas] eleições diretas depois de 30 anos. Os americanos admitiram que interferiram no golpe [de 1964] depois de 50 anos. Não sei se vou estar vivo mas mesmo que eu estiver no túmulo eu levantarei por alguns segundos de alegria por que finalmente a verdade aconteceu.
P. Deixaria um dia a política?
R. Não, não penso. A política está no meu DNA, é uma célula no meu corpo. Quando somente essa célula parar de produzir e eu morrer é que eu pararei de fazer política. Não tem saída para humanidade fora da política, para a democracia, para o crescimento econômico e a distribuição de riqueza. Tudo depende da política. Em 1978 eu dizia: “Eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política.” Hoje eu digo, eu gosto de política e toda sociedade deveria gostar.
El País: Amazonas caminha para terceira onda de covid-19, com avanço de variantes
Estado tem o dobro da média nacional de mortalidade para cada 100.000 habitantes, mas flexibilizou a quarentena e reabriu lojas e restaurantes. Caso de Manaus representa ameaça para todo o Brasil, alertam pesquisadores, que recomendam fechamento imediato das atividades
Após a covid-19 provocar cenas de terror em Manaus ―com a falta de oxigênio e de leitos nos hospitais no auge da segunda onda da pandemia―, a capital do Amazonas caminha para uma terceira onda de infecções pelo novo coronavírus e para a estabilização do número de mortes em um platô alto, o que deve ocorrer a partir de março e se manter durante todo o ano. O alerta é do grupo de pesquisadores que reúne especialistas em várias áreas (como matemática, estatística, infectologia, imunologia e biologia) responsável pelo estudo publicado em agosto de 2020 na revista Nature Medicine que previu a segunda onda em Manaus quatro meses antes dela acontecer.
O alerta aponta para um cenário de reinfecção constante e de uma média de 50.000 infectados simultâneos, chegando ao pico de 75.000 no mês de junho. “Isso é preocupante porque tende a propiciar o surgimento de uma nova variante resistente às vacinas já conquistadas, dentro de seis meses a um ano. Essa situação é gravíssima”, afirma o biólogo Lucas Ferrante, doutorando pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e um dos pesquisadores que assinam o estudo.
A pesquisa prevê ainda que, caso nada seja feito, o Amazonas viverá um pico da pandemia até 2023. A recomendação do grupo de estudiosos é que o Estado adote um lockdown imediato, diminuindo a circulação de pessoas em 90% por um período de 20 a 30 dias, em paralelo à vacinação de ao menos 70% da população nos próximos três a quatro meses. “É a melhor estratégia do ponto de vista econômico e epidemiológico. Todas as autoridades no Amazonas já foram avisadas, mas preferem a prática de uma necropolítica. Eles sabem das consequências, mas usam a desculpa de conciliar os interesses da economia, sendo que a própria economia sofre com esse abre e fecha. Estamos prevendo mais dois fechamentos este ano. A gente precisa de um lockdown federal”, defende o biólogo.
Apesar dos avisos dos pesquisadores e ainda que o governador Wilson Lima afirme que o Estado segue na fase vermelha (o que representa o alto risco de contaminações), o horário de funcionamento dos serviços essenciais e não essenciais no Amazonas foi ampliado nesta sexta-feira, 5 de março. Lojas, que antes abriam das 9h às 15h, agora podem ficar abertas até às 17h, de segunda a sábado. Flutuantes registrados como restaurantes podem funcionar das 9h às 16h, de segunda a sexta. Supermercados e padarias ganharam uma hora a mais de funcionamento. E o toque de recolher foi encurtado em duas horas, sendo agora das 21h às 6h.
Já a campanha de conscientização do Governo estadual afirma que a responsabilidade em não provocar aglomerações é da população, mas não é difícil encontrar lojas e shopping cheios no Estado. O Amazonas ostenta a triste liderança do ranking de mortalidade no Brasil, com o dobro da média nacional de mortes para cada 100.000 habitantes. O índice de mortes pela covid-19 para cada 100.000 habitantes no Estado é de 270, enquanto a média nacional é de 125.
Os pesquisadores afirmam ainda que a constatação de que ter sido infectado por outras variantes do coronavírus não garante imunidade à cepa P.1 torna a população de Manaus refém de um ciclo constante de reinfecções, segundo Lucas Ferrante, o que faz com que a cidade “coloque em xeque os esforços mundiais para conter a pandemia.” A pesquisa a respeito desse quadro está em fase de revisão para publicação científica nas próximas semanas. “Não foi a P.1 que causou a segunda onda, mas a segunda onda ocasionou a P.1. Desde outubro os casos já vinham aumentando. Nós alertamos que o Amazonas encerraria o ano de 2020 com 6.000 óbitos, o que foi concretizado com 6.500 mortes, demonstrando que o modelo que utilizamos é eficiente”, explica o biólogo. Atualmente o Estado contabiliza 18 linhagens do SARS-CoV-2.
Negacionismo e banalização das mortes
O epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Amazônia) Jesem Orellana levou uma denúncia contra as autoridades sanitárias brasileiras de crime contra a humanidade na 46ª audiência da Comissão Internacional de Direitos Humanos. “Faremos a denúncia também nas Nações Unidas já que no Brasil ninguém faz nada e impera a impunidade. Só resta recorrer a organismos internacionais”, afirmou o pesquisador, que também previu a segunda onda em Manaus e vem alertando publicamente sobre as consequências trágicas da gestão da pandemia no Amazonas. O Estado atingiu 11.229 mortes pela covid-19 nesta sexta-feira, sendo que a metade delas ocorreu somente em 2021. “A partir de janeiro, a P.1 tem predominância nas novas contaminações”, afirma o biólogo Lucas Ferrante. Há semanas a taxa de ocupação de leitos de UTIs se mantém superior a 80%.
Para o sociólogo Marcelo Seráfico, professor doutor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), as trágicas duas ondas no Amazonas evidenciaram a naturalização da tragédia na sociedade brasileira. “Nos planos federal, estadual e municipal temos um alinhamento fino com o negacionismo, que tem contribuído decisivamente para estimular a população a condutas que são absolutamente nocivas a ela mesma”, afirma.
Outros agravantes no enfrentamento da pandemia são a pobreza e a perspectiva de piora da economia. “A vulnerabilidade econômica faz com que a população, ao invés de reivindicar políticas econômicas e sociais que seriam adequadas, se mobilize para fazer o inverso: pedir o fim do isolamento, o não uso do lockdown como estratégia de contenção da doença. Há um problema lógico de definição de prioridade: é difícil desenvolver atividade econômica estando morto”, opina. Mais da metade da população de Manaus vive em habitações precárias, os chamados aglomerados subnormais, como são classificadas as favelas, invasões, palafitas e loteamentos, segundo dados do IBGE de 2020. É também a cidade onde o trabalho informal está acima de 50%.
Mesmo sendo o primeiro Estado brasileiro a sentir o impacto da pandemia durante a primeira onda, em um colapso hospitalar e funerário em abril de 2020, centenas de pessoas foram às ruas para protestar contra o fechamento do comércio em dezembro. Pressionado, o Governo estadual recuou das restrições. Duas semanas depois, o Estado vivenciou a tragédia com pessoas morrendo por falta de oxigênio e voltou a implementar uma quarentena. Desde meados de fevereiro, porém, o comércio e a indústria voltaram a funcionar, apenas com horário reduzido e observação do toque de recolher.
Informações desencontradas
Em comum, as duas ondas da pandemia no Amazonas tiveram uma enxurrada de informações desencontradas ou falsas sobre os tratamentos adequados contra a doença. No início de janeiro, três dias antes do colapso com a falta de oxigênio em Manaus, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) defendeu o “tratamento precoce” para minimizar a pandemia de covid-19 no Estado. Na ocasião, em entrevista à CNN, o prefeito de Manaus, David Almeida, concordou com a afirmação do ministro e recomendou que a população procurasse as unidades básicas aos primeiros sintomas para “iniciar o tratamento de forma precoce” e “profilático”.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) ressaltaram, entretanto, que não há comprovações de que exista um tratamento precoce ou preventivo eficiente contra a doença e, assim, o ministro recuou da recomendação dias depois. Já em relação à hidroxicloquina, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a OMS concluiu que o medicamento não funciona no tratamento contra o novo coronavírus e alertou ainda que seu uso pode causar efeitos adversos.
Mas ainda que a principal autoridade da Saúde brasileira tenha recuado na defesa do “tratamento precoce”, a hidroxicloquina e outros medicamentos sem comprovada eficácia no combate ao coronavírus continuam a ser defendidos por profissionais respeitados no Amazonas. É o caso do geriatra e reitor da Fundação Universidade Aberta da Terceira Idade do Amazonas (FUnATI/AM), Euler Ribeiro, favorável ao tratamento à base de ivermectina, azitromicina e vitamina D associada ao zinco, além de cloroquina. Na avaliação dele, o tratamento foi “politizado”, o que fez com que sua eficácia fosse colocado em xeque. “Eu já tratei 111 idosos, alguns com comorbidade e nenhum morreu. Nenhum. Eu sou favorável ao uso, fui secretário de saúde no Estado durante sete anos e sei da eficácia do medicamento, principalmente no caso de malária (cloroquina), que eu receito há 30, 40 anos. Nunca vi alteração cardiológica. Eu adoto esse protocolo e uso, associado a corticoides e anticoagulantes”, defende o geriatra.
Por outro lado, ele faz coro em defesa do isolamento social e a vacinação ―isso sim, um consenso na comunidade científica. “Não estamos livres, tem que prevenir, fechar comércio, se isolar. Precisamos vacinar 70% da população para conter isso. Como tem pouca vacina, ainda estamos à mercê. Entre a economia e a vida, fico com a vida”, diz Ribeiro, que recebeu a primeira dose do imunizante.
Convencer a população a tomar a vacina é mais um desafio em meio à tempestade que atinge o Amazonas. A aposentada Raimunda Ferreira Gamboa, de 67 anos, recebeu a primeira dose do imunizante, mas narra a dificuldade em convencer amigos e vizinhos. Ela, que contraiu a doença em novembro, passou 28 dias internada no Hospital e Pronto Socorro Delphina Aziz (o maior em quantidade de leitos e referência para a covid-19 em Manaus). “Depois do que eu passei, quero mesmo é me vacinar. Infelizmente, nem todos pensam assim: minha vizinha, que perdeu a irmã para a covid recentemente já disse que não quer saber de vacina.”