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El País: Situação de Lula mergulha eleições de 2018 em insegurança política e jurídica
Estratégia da defesa e eventual morosidade da Justiça podem arrastar novela até 2019. Especialistas discutem os cenários após condenação do petista em Porto Alegre
A confirmação da sentença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) em Porto Alegre, nesta quarta-feira, coloca um grande ponto de interrogação para a eleição presidencial deste ano e para o futuro político do petista. Por um placar de 3 a 0, a Corte manteve a condenação e ampliou a pena de nove anos e seis meses assinada pelo juiz Sérgio Moro para 12 anos e um mês, que condenou o ex-sindicalista pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarujá, que seria dado pela empreiteira OAS a ele como pagamento de propina. Sob o petista agora pairam duas sombras: a da inelegibilidade (impossibilidade de ser eleito) e uma possível (mas ainda longe de ser uma possibilidade imediata) prisão, o que pode colocar as eleições de 2018 em um clima de insegurança jurídica e política. Seja como for, uma grande novela política ainda está por vir. E até que o Supremo Tribunal Federal ou o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), as últimas instâncias possíveis, declarem que ele é inelegível, ele pode continuar a fazer campanha.
Agora existem alguns caminhos possíveis para Lula tentar, após a condenação, chegar ao Planalto. Cada um com consequências e tempos diversos. Seu problema mais imediato tem relação com uma lei que ele mesmo sancionou: o então presidente assinou a Lei Ficha Limpa, que impede políticos condenados por órgão colegiado (mais de um juiz, como o TRF-4) de disputar cargos públicos por oito anos, mesmo sem uma sentença definitiva (no Supremo Tribunal Federal, por exemplo). Este agora é seu próprio caso e acabou por reabrir um debate jurídico sobre a restrição.
Seja como for, a Lei Ficha Limpa tem uma espécie de brecha que pode manter o petista no páreo, ainda que provisoriamente. Este seria outro caminho para o ex-presidente poder disputar a eleição. A legislação permite que o candidato barrado faça um pedido liminar para suspender a inelegibilidade, e assim concorrer. Neste caso, a defesa do ex-presidente aciona o Superior Tribunal de Justiça ou o STF, e caso o pedido seja deferido temporariamente Lula poderá registrar sua candidatura e levar adiante sua a campanha a partir de 16 de agosto.
Mas mesmo com a concessão da liminar, nada garante que Lula possa disputar. Isso porque “a lei estipula que caso seja concedida essa liminar haverá um caráter de urgência para que o tribunal superior analise o caso”, afirma o juiz Márlon Reis, um dos idealizadores da medida. Ou seja, o STF e o STJ terão que definir em curto prazo se o petista pode ou não ser candidato. “Além disso, mesmo se a liminar for revogada apenas após o candidato vencer o pleito, ele perde o mandato do mesmo jeito”, diz. Esta situação provocaria um impasse político, na medida em que novas eleições teriam de ser convocadas. “Veja, mesmo neste cenário não se trata de insegurança jurídica, e sim insegurança política. A lei é clara e bem delimitada”, afirma Reis.
Outro problema, ainda que menos provável, para a candidatura do ex-presidente que pode tirar sua foto das urnas eletrônicas no dia do primeiro turno, em 7 de outubro, ocorrerá caso o STF o condene no meio tempo. Neste caso, o PT poderia escolher outro candidato desde que notifique o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até 20 dias antes do pleito.
Existe ainda uma terceira via para Lula. Este cenário é o mais complicado do ponto de vista jurídico e político, uma vez que também pode fazer com que ele dispute, vença, mas não tome posse. O petista poderia abrir mão de recursos e pedidos de liminar, registrar a candidatura e fazer campanha até que o TSE analise o caso. Se o Tribunal negar o registro, caberá ainda ao STF dar a palavra final. Exista uma possibilidade de que o TSE não se posicione sobre o caso até o dia da eleição. Neste caso, a situação teria que ser definida pela Justiça até dezembro de 2018, quando seria expedido o diploma de presidente. Se no final do ano o registro da candidatura for cassado, Lula perderia o mandato, o presidente da Câmara assumiria interinamente e novas eleições seriam convocadas. O juiz Marlon Reis não acredita que essa seja uma estratégia eleitoral viável para o ex-presidente: “Para que isso ocorra o Ministério Público teria que deixar de notificar o TSE sobre a condenação criminal de Lula. O MP tem sido muito diligente e ágil nessas questões, analisam candidato por candidato”.
Rediscussão da prisão em segunda instância pelo STF
O outro problema que ronda Lula é o risco de prisão. Com relação ao início do cumprimento de pena pelo ex-presidente, o próprio TRF4 já divulgou nota afirmando que “a determinação de execução provisória da pena pelo TRF4 só ocorrerá após o julgamento de todos os recursos do segundo grau [que é a própria Corte]”. A defesa de Lula tem dois dias para recorrer da nova condenação unânime.
Não é possível prever quanto tempo o tribunal irá demorar para analisar os recursos da defesa. Caso eles sejam negados pelos desembargadores, aí sim a situação do ex-presidente se complica do ponto de vista da prisão. Isso porque uma decisão controversa do Supremo Tribunal Federal de outubro de 2016 permite a execução da pena após a condenação em segunda instância. Até então a prisão só era permitida após a análise de todos os recursos em todas as instâncias – incluindo o próprio STF. Uma súmula do próprio TRF-4 reforça esse entendimento. De qualquer forma, alguns ministros do Supremo já optaram por contrariar esta nova resolução, determinando que os condenados continuem em liberdade até o trânsito em julgado. Provavelmente a Corte ainda terá que se debruçar novamente sobre o tema. Um dos que já se manifestou sobre o assunto foi o ministro do STF, Gilmar Mendes. Ele, que votou pelo regime fechado após condenação em segunda instância, sinalizou que pode mudar de ideia. Sua guinada, se considerarmos o último mudaria o placar.
El País: O plano do Agora para chegar ao poder
Ilona Szabó explica as bases do movimento ao qual Huck se juntou. Grupo diz que combate à desigualdade é uma das metas e que foco para outubro será o Legislativo
Por Mariana Rossi
Sobre uma mesa em Medellín, durante um encontro regional do Fórum Econômico Mundial em junho de 2016, um grupo de três jovens rabiscava alguns nomes em um guardanapo. Queriam lembrar das figuras que poderiam se juntar a eles para formar um movimento capaz de “juntar a geração e se aproximar da política”, como descreve Ilona Szabó, que integrava o trio naquele dia. Com ela, Leandro Machado e Patrícia Ellen criavam o Agora! (eles escrevem com exclamação ao final: Agora!).
O movimento se autodefine como apartidário, plural e sem fins lucrativos. Formado em grande parte por profissionais técnicos e acadêmicos – são 90 membros no total, sendo 50 cofundadores – um dos seus objetivos é “renovar a política”, termo que já não tão novo assim no desgastado cenário político brasileiro.
Ganhou maior visibilidade nas últimas semanas, quando o apresentador global Luciano Huck anunciou no programa Domingão do Faustão, da Globo, que era membro do movimento. Só isso já seria suficiente para que os holofotes se voltassem ao Agora. Mas junta-se a este anúncio o fato de o apresentador ter sido fortemente cotado como pré-candidato à presidência no ano passado. Embora tenha anunciado sua desistência da candidatura no dia 27 de novembro, no programa dominical ele aparece com ares de candidato ainda, dizendo querer “um Brasil melhor” e “o que o destino e o que Deus esperam para mim, eu vou deixar rolar”. O programa foi ao ar no dia 7 de janeiro, mas fora gravado em 11 de novembro, antes, portanto, do anúncio da desistência de Huck.
De qualquer forma, Ilona Szabó rejeita o carimbo de movimento do Luciano Huckpara o Agora. “Luciano é um membro como outro qualquer”, diz. “Todos os membros trazem alguma coisa para o Agora.” No caso do apresentador, ela afirma que ele é um “membro chave” para a estratégia de comunicação. “A gente sabia que para o movimento ganhar as ruas a gente precisava ter tradutores, pessoas que tenham mais capacidade e experiência de conversar com a população, e o Luciano tem muita capacidade e experiência para isso”, diz. "Se não tivesse uma figura pública como ele, certamente demoraria mais para a gente ser compreendido, mas a gente não vai decepcionar", diz.
Por outro lado, ela reconhece que o movimento restringiu a ampliação do leque de figuras públicas porque Luciano Huck ganhou muita visibilidade. O apresentador foi anunciado como membro do movimento em outubro do ano passado, após “um namoro longo”, segundo Ilona. “Ele viu a nossa agenda e disse “nossa, mas eu concordo com isso tudo”.
A entrada de Huck levou à primeira crise pública do Agora, na época com pouco mais de um ano de vida. Alexandre Youssef, que participou da criação da Rede, de Marina Silva e era um dos fundadores do movimento, anunciou sua saída assim que o apresentador chegou oficialmente ao grupo. “A escolha do Alê tem a ver com a escolha de vida dele e cada membro vai ter que fazer essa pesagem. Cada um tem o direito de entrar e sair, mas o grupo tem uma essência muito clara”, explica Ilona.
Os demais membros do Agora embora não sejam apresentadores, podem ser perfilados com características muito comuns às do global. Estão na faixa entre os 30 a 40 anos, são em sua grande maioria brancos, que fazem parte da elite intelectual e econômica do país. Tiveram acesso à educação e oportunidades, como estudar no exterior. Todos já eram engajados em outras frentes antes de entrar para o Agora. Talvez a maior exceção a essas regras seja Anapuaka Tupinambá, líder indígena.
Ilona Szabó, por exemplo, é presidenta do Instituto Igarapé, que atua na área de segurança pública e drogas. É próxima ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e foi uma das roteiristas do filme Quebrando o Tabu. Leandro Machado é cientista político, criador do Cause, consultoria que apoia marcas e organizações na gestão de causas, e foi assessor da campanha de Marina Silva (Rede) em 2010. Fechando o trio de Medellín, Patrícia Ellen liderou a Prática de Setor Público e Social da McKinsey. Além do engajamento, os três têm um título em comum. “Fazemos parte de uma rede, cujo nome é bastante esnobe, que é a rede de jovens líderes globais [Young Global Leader, do Fórum Econômico Mundial], seja lá o que isso signifique”, diz Ilona, rindo. “Mas para nós é um espaço interessante de troca”.
Foco no Legislativo
Ilona explica que inicialmente a ideia era que os membros do Agora entrassem em cargos do Executivo, como assessores ou consultores, por exemplo, e contribuíssem por meio das propostas tiradas em conjunto no grupo. Mas, com o longa duração da crise política, “percebemos que o buraco era mais embaixo e que teríamos que entrar também em cargos eletivos”.
Por não ter configuração jurídica de partido, o Agora não pode lançar candidatos oficialmente. “Não somos partido e não queremos perder essa característica de movimento”, diz Ilona. Como a legislação brasileira não permite candidaturas independentes, o movimento pretende então “explorar parcerias com partidos que nos deixassem manter a nossa identidade”. Na prática, os membros do Agora que queiram disputar a eleição estão livres para escolher em qual partido querem se filiar. “Mas eles devem saber que uma vez sendo do Agora, o compromisso é com a nossa agenda”, diz Ilona. “Com um partido com uma agenda antagônica à nossa, o militante vai ter que se desligar”.
Apesar da liberdade de escolha, Ilona afirma que realizou conversas com partidos que “tinham interesse em nos oferecer um espaço legítimo de autonomia, de independência e de troca”. São eles a Rede, de Marina, e o PPS. “Queremos ter voz e voto em decisões do partido, porque queremos de alguma maneira influenciar o programa do partido, mas queremos ser livres enquanto movimento", diz. "Se houver divergências de agenda, por exemplo, somos livres para votar conforme a nossa agenda”.
Ela diz que, por enquanto, o foco é no Legislativo. “Não vamos lançar candidatos porque não somos partido”, diz Ilona. “Mas estamos apoiando e é óbvio que vai ficar claro que são os candidatos do Agora porque eles estarão usando a bandeira do movimento". A expectativa é apoiar de 15 a 20 pessoas, concorrendo entre seis e dez estados. Ela e os três demais fundadores não estão nesta conta, por enquanto.
Sobre a presidência, a grande polêmica que envolve o movimento, Ilona é categórica: “Não temos cacife para disputar a presidência”, diz. “No primeiro turno vamos oferecer as nossas propostas, no que estamos chamando de carta de mandato, para todo mundo. Será de domínio público, não importa o partido, se você é candidato vinculado ao Agora! ou não”, explica. Já no segundo turno, ela diz que não descarta apoiar alguém, “se tivermos um candidato que tiver muitas afinidades com nossas propostas. Mas isso será discutido com o grupo a cada passo”.
Posicionamentos
Por enquanto, o movimento é sustentado com a contribuição dos seus próprios membros. As contas ainda não estão abertas, mas estarão em breve, segundo Ilona. A forma organizacional se constitui em onze grupos de trabalho com temáticas como sustentabilidade, cultura e reforma do Estado. Já organizaram algumas reuniões com simpatizantes para ouvir o que a população tem a dizer sobre temas sensíveis ao país.
As boas intenções do grupo, porém, ficarão à deriva se não se posicionarem diante de questões fundamentais para o país em ano eleitoral. Questionados sobre o que pensam em relação a temas como descriminalização do aborto, regulamentação das drogas, redução da maioridade penal, reforma da Previdência e reforma trabalhista, informam que o movimento é “um grupo muito plural e reúne pessoas com visões variadas. Embora os membros individualmente tenham suas posições, o movimento ainda está debatendo esses temas e vai lançar suas diretrizes de políticas públicas a partir do segundo trimestre”.
Entre se posicionar como liberal ou progressista no campo econômico, o movimento parece ficar no meio do caminho também. "Queremos um Estado mais eficiente, menos burocrático, mais próximo das pessoas e responsável", diz Ilona. "Os serviços públicos essenciais tem que ter muita qualidade para quem não pode pagar".
Outro ponto muito debatido em todo o mundo e que pode ser sensível para um grupo situado tão no topo da pirâmide é a questão tributária. A taxação das grandes fortunas é uma proposta defendida até mesmo pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). "A redução da desigualdade é a principal causa do grupo. E quando falamos em redução de desigualdade não tem como não falar na questão tributária", diz Ilona. "Isso não é um tabu para o grupo. Pelo contrário, é um tema que certamente estará na nossa agenda. Não é a única proposta que teremos, mas é uma delas".
Ao encerrar a entrevista, Ilona, que não se esquiva das perguntas embora não deixe clara todas as respostas, pede para falar um pouco da história dos membros do Agora!: "Óbvio que a gente faz parte de uma elite, mas a maior parte dos nossos membros vem de famílias de classe média ou baixa. Tem gente que vem de comunidade. São pessoas que batalharam muito, tiveram acesso à educação, mas por conta desse desnível (de oportunidades) se encontram na classe A e B", diz. "Temos poucos membros com perfil de famílias ricas, mas mesmos fizeram a sua própria história".
El País: O fantasma da internacional nacionalista não nos abandonará em 2018
Recuperação econômica não enfraquece o nacional-populismo, que com vigor e sintonia com Trump e Putin constitui uma séria ameaça ao projeto integrador europeu
Um fantasma percorre a Europa e, obviamente, já não é o comunismo ou a internacional socialista: é a internacional nacionalista. O sintagma pode parecer um paradoxo, uma mera figura retórica, mas não é. Em quase todo continente, alimentadas por múltiplas insatisfações e ansiedades próprias do século XXI, prosperam formações de viés nacionalista que representam uma ameaça existencial para o projeto europeu, e que compartilham estratégia e tática. A maioria é de direita, mas algumas também são de esquerda ou de inspiração ideológica atípica.
Seu potencial para desestabilizar a União Europeia, além disso, foi redobrado pela sintonia natural desses movimentos e partidos com as instâncias nacionalistas representadas por Vladimir Putin e pelo próprio Trump. Falta saber até onde essa sintonia pode chegar, mas já há múltiplos casos de sinergia, do financiamento russo à Frente Nacional francesa à escolha da Polônia como destino da primeira grande viagem europeia do presidente norte-americano; do pacto de cooperação entre o partido de Putin e a Liga Norte italiana ao retuíte por parte de Trump de vídeos islamofóbicos de ativistas britânicos de extrema-direita.
O quadrilátero de Visegrado
Justamente a Polônia e os países do Grupo de Visegrado (Hungria, República Tcheca e Eslováquia) constituem um dos nós de maior importância para o futuro do projeto europeu. Juntos os quatro somam uma população parecida à da França ou a da Itália e o quinto PIB da UE (quarto após a saída do Reino Unido). Representam a espinha dorsal dessa Europa centro-oriental que tanto ansiou a adesão à UE após a queda do muro de Berlim, quando o papa João Paulo II clamava para que a Europa voltasse a “respirar com seus dois pulmões”. Sua mudança de atitude é, em certo sentido, assombrosa. Depois de ter recebido transferências vultuosas em forma de fundos estruturais e de ter protagonizado uma etapa de desenvolvimento sustentado, agora formam um combativo grupo de oposição a um leque de polícias europeias, especialmente as relacionadas com questões migratórias e com uma visão liberal da sociedade. O quarteto, encabeçado pelos Governos polonês e húngaro, mostra que a resistência ao projeto integrador não se deve somente aos problemas econômicos.
Frequentemente se relaciona o atual auge nacional-populista no Ocidente com a Grande Recessão de 2008-2009. O caso do Visegrado evidencia que há muito mais além disso. Todos os países da zona do euro entraram em recessão em 2009; das 39 economias consideradas como avançadas pelo FMI, só Austrália, Israel, Coreia do Sul e Macau se salvaram.
No meio desse vendaval, a Polônia nunca entrou em recessão e, no entanto, sua população optou por uma guinada radical com a eleição de um Governo ultraconservador em 2015. Os outros três países do grupo até entraram em recessão, mas conseguiram sair rapidamente dela. Nesses casos se vê que o apoio a líderes e a políticas nacional-populistas não é fruto apenas da rejeição aos aspectos econômicos da globalização, mas também, e em boa parte, ao apego a tradições, valores culturais e morais que são considerados em risco. A Europa precisa dar uma resposta a isso se quer prosseguir com seu projeto integrador.
Europa ocidental
No outro pulmão da Europa, como diria João Paulo II, a situação é diferente. Os representantes da internacional nacionalista não alcançaram o poder. No entanto, suas propostas políticas têm exercido enorme influência nos partidos tradicionais.
Observemos os acontecimentos no coração do projeto europeu, o eixo franco-alemão. Na Alemanha, os democratas-cristãos da Baviera (CSU), aliados de Merkel, acabam de eleger como líder um político defensor de duras políticas migratórias. A CSU, de fato, já mostrou no passado grande sintonia com o pensamento do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban. Por outra parte, na França, os republicanos, partido herdeiro da tradição gaullista, realiza neste fim de semana primárias nas quais se espera a vitória de um candidato que representa a ala radical. Depois da curva à direita liderada por Nicolas Sarkozy, o partido parece distante de posições centristas, ocupadas por Emmanuel Macron, e prossegue sua caminhada para a direita. O fenômeno se repete, com características distintas, em muitos países. O próprio Brexit parece ser resultado de uma tentativa dramática dos conservadores de fechar a porta para a expansão do antieuropeu UKIP.
A questão migratória é a prova por excelência dessa osmose política, e não apenas nas correntes de transmissão internas das ágoras nacionais entre radicais e moderados, mas também em escala continental. No início da crise, as propostas migratórias do húngaro Orban eram consideradas extremistas, em geral. Mas várias de suas teses estão atualmente no coração da política migratória europeia, que fez do fechamento das pontes levadiças sua estratégia principal, como demonstra o acordo coletivo com a Turquia ou a ação italiana na Líbia.
Resta saber se a Orbanização da política migratória europeia poderá se repetir, por exemplo, em questões de cunho social, moral e educativo. Mas o que está claro é que do gabinete de comando – nos países do Visegrado – ou nas retaguardas parlamentares – no pulmão ocidental –, a internacional nacionalista representa um desafio enorme para o desenvolvimento do projeto europeu em seu eixo histórico liberal. Emmanuel Macron parece ter entendido bem a situação e aposta tudo na busca por um equilíbrio que conjugue esses instintos liberais com a ordem de forjar uma “Europa que protege”, um de seus lemas favoritos. Uma Europa liberal que protege pode, também, parecer um paradoxo. Não mais que a internacional nacionalista, esperam muitos europeístas.
El País: Brasileiros culpam a si mesmos pela corrupção, diz pesquisa Ipsos
De 1.200 pessoas entrevistadas, 55% diz que corrupção "é culpa do povo que elege políticos corruptos". Estudo mostra grau de saturação com o tema, mas também uma demanda para debate de soluções
Por Felipe Betim, do El País
A maioria dos brasileiros culpam os próprios brasileiros pela corrupção na política. É o que aponta o estudo Pulso Brasil, do instituto Ipsos, realizado entre os dias 1 e 14 de novembro deste ano. Das 1200 pessoas entrevistadas, 55% acreditam que "a corrupção no Brasil é culpa do povo que elege políticos corruptos", 42% discordam da frase e 2% não souberam responder. "Não sei se é um mea culpa, porque o brasileiro coloca a culpa nos outros. Ela acha que as outras pessoas estão fazendo um voto de baixa qualidade", explica Rupak Patitunda, gerente da Ipsos Public Affairs.
Os números pouco variam quando se faz um recorte por idade e por classe social. A maior diferença se dá quando analisado o grau de escolaridade: entre os entrevistados considerados sem instrução, 67% concordam que o culpado pela corrupção é o próprio eleitor brasileiro, enquanto que entre as pessoas que possuem desde o Fundamental I até ensino Superior, esta porcentagem varia entre 52% e 59%.
Além disso, a cifra geral, de 55%, é uma porcentagem menor que a registrada em abril de 2016, quando o Ipsos apontou que 61% dos brasileiros creditavam ao eleitor o problema da corrupção. "Após todo o noticiário da Lava Jato, existe uma maturação na percepção da população. Ela está mais informada e percebe que o problema é sistêmico", argumenta Patitunda.
População "saturada com o tema"
A Operação Lava Jato e a consequente enxurrada de informações a respeito fizeram com que a corrupção permanecesse no centro do debate nacional dos últimos anos. Passou a fazer parte da rotina dos brasileiros as imagens impactantes de políticos e grandes empresários sendo presos ou conduzidos coercitivamente pela Polícia Federal. Grandes figuras públicas caíram e malas de dinheiro foram descobertas, mas ainda assim a população parece saturada com o tema. Isso porque 50% acreditam que ele é mais discutido do que se deveria. Já 17% acreditam que ele é discutido na medida adequada e 32% disseram que é menos discutido do que se deveria.
Ao mesmo tempo, as cifras praticamente se invertem quando se chega a questão de "como acabar com a corrupção", isto é, como buscar soluções para ela. 51% acreditam que o assunto é menos discutido na sociedade brasileira do que se deveria, enquanto 16% acreditam que é debatido de forma adequada e 31% disseram que é mais falado do que se deveria.
"Há um certo grau de saturação com relação a simples exposição desse tema. Mas existe uma demanda para que outras dimensões do mesmo assunto ainda não tocadas sejam abordadas. A gente não esperava e é animador", explica Patitunda. "A maior parte dos entrevistados está cansado, acha que o tema já deu, mas ao mesmo tempo valoriza o discurso sobre causas e consequências", completa.
Outros dados
Outros resultados coletados pela pesquisa mostram que o brasileiro é, em sua maioria, intolerante com a corrupção. Também chega a conclusão de que "quanto mais instruído o grupo pesquisado, menor os percentuais que indicam tolerância"."A pessoa com grau maior de instrução se sente mais empoderada, se sente com mais poder para decidir sobre o próprio governo e entende melhor que há instrumentos para resolver o problema", explica Patitunda.
Assim, 70% acreditam que é possível governar sem corrupção. Entretanto, os mais pobres são mais céticos com relação a este último ponto: 64% dos entrevistados das classes D e E concordam com esta afirmação. O dado geral também mostra uma população mais cética, já que em abril de 2016 83% concordavam com ela.
Além disso, apenas 23% acreditam que "o que realmente vale são políticos e partidos que roubam mais fazem". 73% discordam desta afirmação e 5% não souberam responder.
O Ipsos realiza estudos mensalmente desde 2005 para monitorar a opinião pública sobre política, economia, consumo e questões sociais. A pesquisa sobre a corrupção abrangeu 72 municípios e tem uma margem de erro de três pontos percentuais.
El País: De quem devem ser os tesouros históricos roubados?
Os museus mais importantes do mundo se recusam a devolver obras primas reivindicadas por países vítimas de espólios históricos
Por Miguel Ángel García Veiga, do El País
A história da arte é, em grande medida, a história de um roubo. Os vikings, os conquistadores, Napoleão, as potências coloniais, Hitler... todos praticaram o saque em escala monumental. Os exércitos do conquistador francês transportaram toneladas de obras egípcias para a Europa. Quase ao mesmo tempo, os britânicos embarcavam os mármores do Partenon. Mais tarde, em 1897, militares britânicos despojavam os marfins dos palácios do que hoje em dia é Benim. As coleções do Louvre (Paris), Museu Britânico (Londres) e Museu Neues, de Berlim, foram nutridas com esse espólio.
No entanto, as brasas desses dias ainda fazem fumaça. Uma infinidade de países (territórios invadidos e antigas colônias) exigem a devolução de seus tesouros e, com eles, de suas identidades. A Turquia, por exemplo, reclama desde 1934 as esfinges de Hattusa (capital do império Hitita), abrigadas pelo Museu de Pérgamo (Berlim). Farto de não receber as obras de volta, o governo turco criou uma comissão para rastrear o patrimônio saqueado.
Todo esse drama destila-se no enfrentamento entre o Governo de Aragão e o da Catalunha pelos tesouros de Sijena (Huesca). Embora a Espanha também receba reclamações internacionais, como a do Tesouro dos Quimbaya por parte da Colômbia (122 peças de ouro que o presidente Carlos Holguín deu de presente ao país em 1893). Vivemos em uma sociedade que cunhou o conceito de "capitalismo artístico". Um tempo em que os grandes museus ocidentais blindam seus patrimônios. E poucas vezes respondem a restituições. A desculpa é que eles protegem melhor as peças. "Quando as obras podem ser visitadas e, além disso, são acessíveis ao público, isso ajuda a neutralizar os argumentos sobre a titularidade, porque o importante é que tenham a maior difusão possível", afirma Gabriele Finaldi, diretor da National Gallery, de Londres. Esse pensamento responde à ideia de que a arte deve ser mostrada onde mais pessoas possam desfrutar dela. No outro lado da conversa, o diálogo é diferente. "A circulação ética e legal dos bens culturais beneficia os países em que as obras originaram-se", argumenta o arqueólogo Sam Hardy. "A retenção de antiguidades que foram extraídas em expedições punitivas é uma perpetuação intolerável da violência colonialista". O equilíbrio entre os dois discursos parece completamente impossível.
Enquanto isso, a Grécia continua esperando o retorno de seus mármores para Atenas. Para abrigá-los, construiu um museu e já conquistou a opinião pública inglesa. Mas não importa. O Museu Britânico fecha a porta. "Até que mude o conselho do museu, fruto do establishment, parece difícil que haja uma posição distinta", lamenta Tom Flynn, membro do Comitê Britânico para a Reunificação dos Mármores do Partenon.
Apesar de tudo, há esperança. O presidente francês Emmanuel Macronprovocou, esta semana, uma brecha inimaginável no debate sobre a posse da arte. Em um prazo de cinco anos, criará as condições necessárias para restituir, de forma "temporal ou permanente" o patrimônio africano estabelecido na França. Apenas o museu do Quai Branly-Jacques Chirac abriga 70.000 objetos da África subsaariana. Alguns preveem um precedente. "Envia um sinal perigoso para todos os países (antigas colônias, mas também Grécia ou Egito) que possuem bens que, na opinião deles, foram obtidos ilegalmente. Agora, podem reclamá-los", alerta Yves-Bernard Debie, um advogado especialista em propriedade cultural. Macron, antes de mudo, tem que modificar a legislação, porque as coleções públicas francesas são inalienáveis. Assim como as espanholas. "Temos bastante sorte", admite Andrés Úbeda, diretor-adjunto da Conservação e Investigação do Museu do Prado, "porque não somos afetados pelas duas grandes polêmicas: o espólio colonial e o nazista". Este último originou uma destruição nas coleções de pinturas norte-americanas.
Cada vez mais zelosos
No momento, os países se apegam aos seus legados. Talvez pelo ressurgimento dos nacionalismos, pelos altos preços das obras ou porque sempre foram uma expressão de poder que separava quem os tem de quem não os tem. Exacerbado o sentido de posse, desaparece o essencial. "A arte é uma manifestação do comum. Nem público, nem privado. Como a água ou os bosques", pondera Manuel Borja-Villel, diretor do Museu Reina Sofía. E acrescenta: "Temos que trocar o conceito de proprietário pelo de guardião".
Mas o mundo gira em sentido contrário e cada vez mais zeloso dos seus tesouros. A Itália exige licença de exportação para obras com mais de 50 anos, a Sicília cobra para emprestar seus caravaggios e a Alemanha pede uma licença especial para a retirada, de fora da União Europeia, de pinturas cujo valor supere os 150.00 euros. O protecionismo foi instalado na arte e o planeta ensaia novas formas de possuí-la. Museus móveis, redes globais de empréstimos, cópias em alta resolução. Tudo serve para derrotar os tópicos. "As obras primas do mundo antigo pertencem a todos. Mas, em uma cultura baseada na propriedade, este lugar comum não resolve as intermináveis disputas sobre suas posses", observa Jason Felch, especialista em tráfico de antiguidades. Talvez uma solução seja tirar a poeira da memória: 90% das obras dos grandes museus vivem escondidas nos depósitos. "Encontrar outros relatos nas nossas coleções, oferecendo visibilidade ao esquecido e oculto, é uma maneira diferente de posse, menos materialista e mais poética", defende Miguel Zugaza, diretor do Museu de Belas Artes de Bilbao. Hoje em dia, essas palavras soam como um verso solto.
ARTE PARA RESPALDAR MICROCRÉDITOS
A arte é um universo em que convivem duas forças. Uma centrífuga, que expulsa as obras de seus lugares de origem, e outra centrípeta, que luta pela sua permanência. O Culture Bank (fundado em Mali, em 1995, pelo ativista Todd Crosby) se encaixa nesta resistência. Quer evitar a fuga do patrimônio das regiões mais frágeis por meio da criação de museus locais. Os moradores são incentivados a contribuir com objetos que pertençam a suas famílias. Com essas peças, respaldam pequenos créditos. Um singular colecionismo que viajou por Benim (Koutammakou), Togo (Taneka) e Guiné (Télimélé) Porque se a arte leva algo à vida é a imaginação. O arqueólogo iraquiano Abdulamir al-Hamdani propõe criar um grupo, parecido com a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), "formado por nações que abrigam obras de culturas antigas". Juntas, elas se protegeriam de tempos de tumultos e guerras. Um grande refúgio contra a fragilidade das pedras.
El País: Há 30 anos era uma vila de pescadores e hoje é o Vale do Silício da China
Uma megacidade na qual nasceram gigantes como Huawei e Tencent. Jovem, super-rápida e competitiva
1. A eficiência é vida
"Shenzhen está muito bem", diz Eric Hu. “Se você consegue sobreviver a ela”. Fala rápido. Pensa rápido. Tem o cabelo esvoaçante, camiseta surrada, tênis. Olha seu celular com frequência, um Huawei, marca chinesa, e com orgulho: “O iPhone”, diz, “é um lixo”. É noite neste lado do mundo e ele dirige seu Audi Q5, em cujo retrovisor dançam dois bichinhos de pelúcia Hello Kitty. Quer mostrar algo no centro desta cidade enorme, símbolo do capitalismo asiático, uma espécie de Eldorado tecnológico onde os recém-chegados buscam imitar os fundadores das grandes empresas do país. Aqui nasceram gigantes como Huawei, segunda produtora mundial de telefones inteligentes e líder em redes de telecomunicações, e Tencent, uma das maiores empresas de Internet do planeta, criadora do WeChat, o WhatsApp chinês, com 1 bilhão de usuários. Mas há outras 8.000 empresas de alta tecnologia. O setor contribui com 40% da economia da cidade. E esse PIB é monstruoso: o de Shenzhen disputa com o da Irlanda; o da região, conhecida como o Delta do Rio da Pérola, que inclui outros oito centros urbanos da China e as regiões especiais de Hong Kong e Macau, é equiparável ao de toda a Rússia.
Entre guinadas no volante, Hu vai enviando mensagens de voz através do WeChat (o “WhatsApp é outro lixo”). Fundou há três anos uma start-up de drones resistentes à água chamada Swellpro. Criações de engenharia com oito patentes próprias e uma câmera 4K para gravar cenas marítimas. São vendidas pelo equivalente a 6.140 reais. A maioria acaba no Ocidente. Muitas, em mãos de pessoas endinheiradas com barcos ou iates. Mas nascem em uma zona poeirenta, nos arredores, onde passam caminhões, os operários muito jovens dormem em apartamentos ao lado das fábricas e encontramos, ao caminhar por suas ruelas, todo tipo de negócios de manufaturas tecnológicas. Shenzhen, conta, é o melhor lugar para a inovação. Com uma rede de fornecedores de componentes eletrônicos inigualável. “Atrai pessoas jovens, educadas, enérgicas”, diz Hu. “Vai a toda a velocidade. A concorrência é altíssima.” Os arranha-céus brilham através da janela. “Este foi erguido há dois anos”, aponta. Atravessa uma área de livre comércio recém-aberta pelo Governo. Vias engarrafadas. Carros caros. E, no fim, para. Desce e aponta a inscrição em algumas pedras. Em caracteres chineses se lê a filosofia que define a cidade: “Tempo é dinheiro. A eficiência é a vida”.
O óculos emite uma vibração que, em contato com um
osso de seu crânio, faz com que a escute dentro da cabeça JAMES RAJOTTE
Hu nasceu em 1980, ano em que Deng Xiaoping transformou Shenzhen na primeira zona econômica especial do país. Uma porta aberta ao liberalismo, à iniciativa privada. Um experimento da China do futuro. A cidade era uma vila de pescadores com 30.000 habitantes. Hoje, no censo oficial beira os 12 milhões; no extraoficial alcança 20. Uma locomotiva à qual chegam centenas de milhares de trabalhadores arrojados todo o ano. Engenheiros altamente qualificados, legiões de operários. Não se vê um rosto velho na rua. A idade média ronda os 28. Em Shenzhen quase ninguém é de Shenzhen. Ele cresceu em uma zona rural da província, entre galinhas e plantações de arroz. Estudou engenharia, trabalhou em uma fábrica de celulares da Samsung (na região estão muitas das megafábricas do mundo) e em 2005 se mudou para a cidade para tentar a sorte. Lapidou o inglês vendendo USB e câmeras. Depois passou a trabalhar por conta própria. Seu negócio, explica, consiste em “desenvolver produtos: não algo barato, mas inovador, alta tecnologia”. Esboça ideias: seus engenheiros projetam e montam até chegar a um protótipo. Seu último invento é um projetor portátil do tamanho de um punho. Shenzhen, explica, é o paraíso do hardware. O físico, o artefato. Com um ecossistema superveloz onde a passagem da ideia à produção em série ocorre em um suspiro e quase na mesma quadra. E enquanto sonha em dar a grande tacada, lembra com nostalgia de seu primeiro apartamento dividido, em um bairro do qual hoje não resta senão o templo budista. Ali agora se erguem os arranha-céus do parque tecnológico, com cerca de 1.300 empresas; uma centena delas cotada em Bolsa.
2. O gigante tecnológico
Yu Chengdond entra na sala de reuniões sem gravata e seguido por uma secretária com saltos altos e brinquedos de pelúcia pendurados do celular. Cumprimenta em espanhol. Fala um inglês duro. É o executivo-chefe de uma das três ramificações da Huawei, a divisão de telefones e outros produtos de consumo. Representa um terço da receita da multinacional, cujo faturamento beira os 250 bilhões de reais, conta com 180.000 funcionários em 170 países e lidera o mercado de celulares na China. Na Espanha disputa ferrenhamente com a Samsung o primeiro lugar. No mundo, o ombro a ombro é contra a Apple, ambas atrás da Samsung. O CEO afirma que a empresa não teria existido se não tivesse nascido em Shenzhen: “Há 30 anos, quando a China não era tão aberta, se transformou em uma cidade de acolhida. Capitalista no econômico, não no político. De estilo ocidental. Onde se podia desenvolver uma gestão moderna”. Ele, engenheiro da Universidade de TsingHua, “o MIT chinês”, se uniu à empresa em 1993, quando começava a desenvolver infraestrutura telefônica. A Huawei foi fundada em 1987 pelo ex-militar Ren Zhengfei com apenas 19.000 reais. Uma empresa privada cuja primeira sede ficava entre plantações. Hoje se transferiram para um campus tecnológico de 200 hectares nos arredores da cidade, com universidade própria, apartamentos para trabalhadores, jardins zen e vans que transportam os funcionários de um edifício a outro com o ar condicionado no máximo. Mas não estão satisfeitos. “Podemos fazer melhor”, disse Yu. E para mostrar que se empenham nisso convidaram à sua sede cinquenta instagramers, youtubers e jornalistas ocidentais (entre os quais o EL PAÍS). Segundo o CEO, “nosso problema não é a inovação. Nisso somos fortes. O grande desafio é que não somos uma marca conhecida. Ninguém a conhece”. O marketing, a grande tragédia chinesa. Uma luta contra si mesmos para passar de sinônimo de produto barato ao de artigo de alta qualidade.
Os europeus Kristina Cahojova e Hynek Jemelik, inventores
de um medidor de fertilidade feminina, criaram seus produtos na
aceleradora de ‘start-ups’ HAX, Shenzhen JAMES RAJOTTE
Durante dois dias de conferências e powerpoints no interior de um moderno bloco envidraçado que, visto em panorâmica, tem a forma de uma chave, diretores desfiam detalhes de seu próximo lançamento, o celular Mate 10, cujo chip Kirin 970, afirmam, imita o cérebro humano: “Unidade de processamento neuronal”, o chamam. O telefone, prestes a ser lançado (foi colocado à venda em outubro), está trancado em uma maleta com três fechaduras (numérica, de chave e bluetooth), colocam luvas brancas para tocar nele, pedem a assinatura de contratos de confidencialidade antes que se possa dar uma olhada. E em cada pausa projetam anúncios nos quais uma voz sensual de mulher sussurra sonhos eletrônicos.
Também decidiram abrir suas portas para mostrar uma face transparente, dinâmica, que lembre as concorrentes norte-americanas. Percorremos laboratórios onde engenheiros com avental de trabalho trituram equipamentos e terminais para medir sua resistência. Nas instalações há cartazes que avisam: “Prestem atenção às informações sobre segurança para proteger nossas patentes”. Uma visita rápida atravessando corredores intermináveis e desertos de mármore. Nunca oficinas com trabalhadores. É proibido tirar fotos na maioria das salas. E, ao contrário do mundo que se imagina, digamos, no Google, veem-se mesas de pingue-pongue, mas sem rede. Piscinas paradisíacas com horários estritos. Mesas de bilhar cobertas. Para quem é de fora não é permitido conversar com funcionários de forma espontânea. E o engenheiro autorizado a falar, sob o olhar de seus chefes, responde assim sobre suas aspirações pessoais: “São parecidas com o slogan da empresa: construir um mundo mais conectado”. O controle é férreo. “É uma empresa militar”, ironiza um financista que conhece o setor, referindo-se aos anos de juventude de seu fundador no Exército Popular.
Se não quer falar sem barreiras com um funcionário da Huawei, melhor ir a uma Pizza Hut mais próxima do campus. Em uma mesa há quatro profissionais de telecomunicações estrangeiros. “Somos a ONU”, brincam. Vêm de Brunei, Sri Lanka, Egito e Costa do Marfim. Especialistas em redes, vieram passar por um treinamento na sede. Suspiram porque desde que aterrissaram não puderam olhar o Facebook, e o WhatsApp funciona só por breves momentos: esqueceram-se de instalar no celular, antes de viajar, uma VPN (rede privada virtual), com a qual os usuários contornam diariamente a grande muralha chinesa da Internet e têm acesso ao outro lado da censura. Não se deve esquecer onde estamos. Nem a proximidade nesses dias do XIX Congresso Nacional do Partido Comunista da China: a imprensa regional fala na necessidade de “erradicar rumores políticos online”. Durante a refeição, quando por fim conseguem se conectar com o outro lado, o egípcio exclama: “Sou livre!”. O grito soa estranho na boca dos criadores do sistema. Mas esta é uma cidade de contradições, onde convivem as multinacionais de fast food e as bandeiras comunistas em cada avenida.
Uma funcionária da Tencent, criadora do WeChat e uma das maiores
empresas de Internet do mundo, fundada em ShenzhenJAMES RAJOTTE
3. Os inventores
Se no Vale do Silício se sonha nas garagens, muitos dos recém-chegados a Shenzhen com pretensões digitais se acomodam em apartamentos de Baishizhou, um bairro labiríntico, de estrutura medieval e com algazarra da rua, e com velhos edifícios de pouca altura de cujas janelas se pode dar a mão ao vizinho do bloco ao lado. Conta com cerca de 150.000 habitantes, 20 vezes a densidade da população do resto da cidade. E em seus meandros se misturam jogadores de mahjong, vendedores de lichia e de peixes vivos, depenadores de patos, emaranhado de cabos que pendem até o chão como trepadeiras e jovens hipsters que voltam da prática de esportes no meio da tarde. A área ficou cercada por arranha-céus. E já existe um plano para derrubá-la e erguer sobre seus escombros torres de vidro e aço.
Shenzhen é o centro urbano que mais depressa se transformou em uma megalópole na história, segundo Juan Du, professora de arquitetura na Universidade de Hong Kong. Em 1979 nem sequer contava com o status de cidade. Hoje possui 49 edifícios que superam os 200 metros de altura, incluindo o segundo mais alto do país, de quase 600 metros. E há outros 48 a caminho. O fervor imobiliário a transformou na bolha mais cara da China: o metro quadrado custa 21.000 reais em média. E as chengzhongcun (“aldeias no meio da cidade”) ficaram como testemunhas anãs da era em que tudo começou. Nelas, os aluguéis ainda são aceitáveis e atraem pessoas como Eli MacKinnon, de 28 anos, um nova-iorquino que trabalha na Insta360, uma start-up local que fabrica câmeras de realidade virtual.
MacKinnon fala chinês com fluência, se arranja com seu porte atlético, mas ficou velho: o fundador da empresa, JK Liu, tem 26 anos. E a idade média entre seus 250 funcionários é de 24. O ambiente de trabalho na sede impressiona: jovens, quase adolescentes, teclam concentrados, sentados em fileiras em uma sala com enormes janelas através das quais se veem edifícios no meio da obra. Muitos têm grandes objetos de pelúcia ao lado do teclado: Explica-se: são almofadas. Na hora da refeição, as luzes são apagadas, colocam a almofada sobre a mesa de trabalho e tiram uma soneca. Depois continuam trabalhando.
A inscrição define a filosofia da cidade: “Tempo é dinheiro. A eficiência é a vida” JAMES RAJOTTE
A empresa nasceu em 2014 e a história de seu fundador já apareceu na Forbes: JK Liu se mudou para Shenzhen com colegas da Universidade de Nanjing, convenceram uma empresa de capital de risco a investir neles e acabaram criando câmeras portáteis, acessíveis, que se acoplam ao celular e captam o mundo em 360 graus. Depois de um período em sua sede, entre óculos de realidade virtual e bolas futuristas com visão de peixe, dá a sensação de que as imagens governarão o planeta em breve. MacKinnon nos guia através de um terraço, na unidade 29, para mostrar as maravilhas que podem ser feitas com os inventos: registrar cenas tipo Matrix, mas quais o retratado fica congelado. Selfies em que a pessoa parece contida em uma esfera. Do alto se escutam as perfurações incessantes das obras. Um som envolvente, também em 360 graus. Quando se fecha os olhos, parece que o chão treme sob os pés. A cidade em estado febril, grunhindo como uma criança em pico de crescimento. Talvez seja o som do capitalismo, o dos impérios em seu apogeu. “Quem chega a Shenzhen vem com a ideia de que pode criar algo por si mesmo”, diz MasKinnon. “De que não há barreiras que não possa saltar. Representa uma verdadeira mudança na mentalidade chinesa.”
Jason Gui representa essa nova China. Tem 26 anos e usa uns óculos que de longe parecem de desenho. Imprimiu-os com uma máquina 3D. Toca com o dedo uma haste e começam a emitir a música de seu celular, ou isso ele diz, porque não se ouve nada: só vibra uma protuberância nas varetas, e essa vibração, em contato com um osso de seu crânio, faz com que a escute dentro da cabeça. Batizou-as à francesa, Vue, mas ele nasceu em Shenzhen. Sua família se mudou do interior da China. Deram-se bem, aproveitaram anos de boom imobiliário e ele estudou na Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. Passa metade do ano em San Francisco, onde se encontra o ramo de marketing e design de sua empresa, e a outra em Shenzhen, onde tem a parte de P+D neste espaço chamado Hax, uma aceleradora de start-ups com capital norte-americano, para cuja sede acorrem empreendedores de meio mundo para aperfeiçoar protótipos em suas oficinas repletas de cabos. Entre telas, levanta o rosto uma dupla de taiwaneses, magrinhos e de aparência infantil, inventores de uma máquina para se jogar pingue-pongue sozinho; ou o grego George Kalligeros, engenheiro de 24 anos, com experiência na Tesla e Bentley, criador de um dispositivo que converte “em minutos” qualquer bicicleta em uma elétrica. Aqui não vale o etéreo. A tônica é o hardware, produtos físicos que são melhorados até se encontrar o design perfeito. Os criadores mostram seus inventos recém-saídos do forno, como esta espécie de fruto da cor do céu, “pequeno e sexy”, diz sua autora, a checa Kristina Cahojova, de 28 anos, que chegou há um mês, e em 10 dias tinha pronto seu medidor da fertilidade feminina. Dá muito que pensar o potencial de um aparelho semelhante conectado ao celular, à Internet: “Que tipo de compras o Google vai te sugerir em dias férteis? Que música? Que restaurantes? No fundo, é disso que trata o negócio. De milhões de dispositivos conectados, gerando informação sobre padrões de vida. Os especialistas chamam de IoT, a Internet das coisas, na sigla em inglês.
Bay McLaughlin, cofundador da BRINC, uma aceleradora de 'start-ups'
tecnológicas com sede em Hong Kong. Trabalhou 10 anos no Vale do Silício até que
percebeu que a revolução seguinte, a do hardware, aconteceria no sul da China JAMES RAJOTTE
4. Hong Kong
De Iot entende bastante Bay McLaughlin, norte-americano de 34 anos, boné de sufista e olhar messiânico, que trabalhou 10 anos no Vale do Silício, 6 deles na Apple, até que se deu conta de que vivia no dia da marmota: “Deixou de haver inovação. Repetiam-se os mesmos pitches, as mesmas ideias, modelos, investidores. Então surgiu uma nova tendência: o hardware. E vi claramente. Se quisesse participar da revolução seguinte, precisava vir ao sul da China. Porque não vai acontecer no Vale do Silício. Tudo o que tiver impacto virá da Ásia. E a China vai ser a locomotiva”. Mas não se instalou em Shenzhen, e sim na cidade vizinha, já quase a mesma, a 30 quilômetros em linha reta, e separada por uma fronteira que 80 milhões de pessoas cruzam por ano: Hong Kong, “a face ocidental da China”, assim a chama, uma das praças financeiras mais poderosas, em cujas ruas se misturam as raças, os dialetos, os investimentos; a região administrativa especial, democrática, futurista, onde se dirige pela mão esquerda, vigora uma lei baseada na common law e se completam 20 anos desde que foi devolvida pelo Reino Unido. Hoje faz parte do plano mestre de Pequim para o Delta do Rio da Pérola, esse conglomerado de cidades que desembocam no Mar do Sul, ao qual também pertence Shenzhen. Juntas somam 66 milhões de habitantes e pouco a pouco vão se unindo com trens de alta velocidade, pontes quilométricas e acordos de livre comércio, formando a maior megacidade do planeta.
McLaughlin é cofundador de uma aceleradora de start-ups no estilo da HAX. A sua se chama BRINC e tem a vantagem, diz, de estar deste lado da censura chinesa, com a propriedade intelectual bem protegida, e a um passinho de Shezhen, o paraíso de componentes eletrônicos ao qual os recém-chegados acodem para montar seus protótipos. É o que conta Florian Simmendinger, alemão de 28 anos, cofundador da Soundbrenner, uma empresa que desenvolveu metrônomos digitais em forma de relógio de pulso. O artefato vibra e marca o ritmo no pulso, um engenho interessante para grupos de música: seu tam-tam sincroniza todos os membros. A ideia começou em Berlim; desenvolveram protótipos de forma precária. O primeiro, que abre em uma mesa, é grande e feio. Parece um aparelho para medir a pressão sanguínea. Para aperfeiçoá-lo, precisavam de melhores motores de vibração. “Na maior loja de eletrônicos de Berlim encontramos apenas um modelo. Começamos a encomendá-los no eBay, mas chegavam três semanas depois”.
O BRINC os selecionou para seu programa, o que envolve um investimento e uma transferência para Hong Kong, onde fazem cursos, recebem ajuda e um espaço para desenvolver o negócio. Assim que aterrissaram, atravessaram Shenzhen e entraram no epicentro do ecossistema de componentes eletrônicos, o mercado Huaqiangbei. O lugar lembra um formigueiro, do qual entram e saem vendedores e clientes vão e vem empurrando carrinhos com sacos de chips, placas, interruptores. Tem um aspecto que está entre uma loja de departamentos e um mercado atacadista de verduras, mas com andares dedicados a áudio, leds, telefonia, informática. Dentro, se ouve constantemente o ruído da fita adesiva fechando embalagens, porque tudo parece ser vendido em caixas, a granel; é possível fazer uma réplica quase exata do iPhone procurando peças nas bancas. O alemão ficou impressionado: “Uma velhinha me ofereceu 300 motores de vibração diferentes em um carrinho. Pensei: “Viemos ao lugar certo”. Na semana, visitaram o fabricante dos motores e pediram um sob medida. “E em dois meses nós o transformamos nisso”. Deixa sobre a mesa essa espécie de relógio de pulso que vibra e acompanha com seu tam-tam as bandas ao redor do mundo: venderam cerca de 40.000 unidades.
Yu Chengdong, CEO da Huawei JAMES RAJOTTE
O ritmo. Sobre isso também gosta de falar o surfista McLaughlin, cujo discurso augura um futuro estilo Blade Runner, em que o tempo, claro, é dinheiro e a eficiência é a vida: “O Ocidente não percebe isso. As pessoas aqui estão trabalhando muito duro. Bem-vindos à nova norma. Você acha que a Suécia é o mundo real? Estão fodidos. Não é que os europeus não gostem de trabalhar. Lá foi doutrinado que o equilíbrio é mais importante do que a produtividade. E é muito bom se o mundo vai nesse ritmo. Mas, adivinhe, ele mudou. Agora é global. E a Europa nem aparece no gráfico”. Nesse mundo que vislumbra, cujo magma está sob seus pés, marcado por horários diferentes, cruzamentos de idiomas e o encontro entre Leste e Oeste, o hardware, diz ele, é a chave. A Internet das coisas. E os dados que geram essas coisas. No momento, existe cerca de 1 bilhão de objetos conectados à Internet. Os cálculos mais exagerados apontam que haverá 100 bilhões em 2020. Um “superorganismo” diz um relatório da OCDE, que formará um “sistema nervoso digital global”. Com impulsos de informação individual atualizados a cada segundo. “A maior revolução desde a Internet”, segundo McLaughlin. Na opinião dele, “o software nos torna leves. Porque significa que você pode criar o Instagram enquanto está sentado em um porão. Mas tampouco é o mundo real. O mundo real é físico. Todos falam de big data e inteligência artificial. Bem, como coletamos os dados dos objetos físicos? É por isso que no BRINC começamos onde começa o valor. Com o hardware. Precisamos introduzir mais wearables, mais sensores, mais produtos domésticos inteligentes. Para extrair os dados e entregá-los aos especialistas em algoritmos para que possam explorá-los”.
5. O novo ouro
Os dados, hoje, são mais valiosos do que o ouro”, sorri David Chang, diretor da MindWorks, empresa de capital de risco com sede em Hong Kong e focada nas start-ups da China. Chang também migrou de Silicon Valley para esta terra. Sua família era dona do banco Kwong on em Hong Kong (eles o venderam para a DBS). Seu pai foi um investidor destacado nos Estados Unidos, discípulo de Arthur Rock, a quem se atribui ter cunhado o termo venture capital e apostado em uma das primeiras empresas de semicondutores de silício na Califórnia nos anos cinquenta, aquelas que moldaram o nome Silicon Valley. Chang, de 34 anos, nasceu em Mountain View. Frequentou a mesma escola que Steve Jobs. Voltou para casa porque daqui, garante, em um raio de três horas de avião, se tem acesso a 2,2 bilhões de pessoas. “É 30% da humanidade. Deixo vocês por um momento para que meditem sobre isso”.
Mercado de eletrônicos no bairro de Huaqiangbei, em Shenzhen JAMES RAJOTTE
Depois da pausa dramática, acrescenta que 70% dessa população ainda não possui Internet. E que na próxima década, 1,3 bilhão de pessoas se conectará à Rede. “Uma loucura, como se toda a China se conectasse de repente”. Ele chama isso de “a próxima grande onda”. E quer surfá-la. Gerencia um fundo de 70 milhões de euros. Investiu em diferentes start-ups, como LaLa Move, um serviço de compartilhamento de carros tipo Uber, mas para mercadorias. Passar uma tarde com ele é como abrir um zíper e enfiar o nariz numa dimensão futura em que o eixo do mundo gravita em direção à Ásia. Fala sobre o guanxi, as relações de confiança necessárias para entrar nos investimentos chineses (e que ele conquistou nas filiais locais do Morgan Stanley e do Credit Suisse). Sobre a maneira como se deve lidar com o Governo. Sobre a diferença entre investir em software e em hardware (prefere o soft: custos fixos, maior retorno e em menos tempo). E por que muitos serviços de Internet não custam um tostão: “Se te oferecem algo de graça é porque você é o produto. Se você usa o Facebook ou o WeChat, você é o produto”.
Então ele nos convida para ir ao China Club, na cobertura da antiga sede do Banco da China. Pede um dedo de whisky e, entre pequenos goles, instalado em uma poltrona de brocado e cercado por uma decoração tipo Shanghai anos quarenta, se define como um “glocal”, fala do preço estratosférico do mercado imobiliário e de arrisca que, no caso de um apocalipse nuclear estilo Kim Jong-un, apenas as bitcoins sobreviverão. Aconselha a comprar. Define essa região como “o centro do comércio mundial” e Shenzhen como uma cidade “crua, o wild wild West”. E a cobertura parece estar a anos-luz das fábricas empoeiradas de Shenzhen, onde tudo começa e faz girar a roda. Na saída, um cartaz de propaganda comunista, que o dono do lugar coleciona e hoje custa uma fortuna, lembra essa origem. No desenho, um homem chinês com um chapéu de palha diante de uma fábrica. E um lema: “Rompamos com as convenções estrangeiras. Tracemos o nosso próprio caminho para o desenvolvimento industrial”.
El País: O fiel escudeiro de Eduardo Cunha a caminho de virar ministro de Temer
Carlos Marun, o deputado da dancinha que barrou investigação contra presidente, é o mais cotado para Secretaria de Governo
"Tudo está em seu lugar, graças a Deus, graças a Deus!", cantarolou Carlos Marun (PMDB-MS) performando uma dancinha para comemorar o fato de a Câmara barrar uma segunda apuração criminal contra o presidente Michel Temer. Apenas algumas semanas depois, Marun, que foi da tropa de choque de Eduardo Cunha e é ligado a um ex-governador investigado pela Polícia Federal, deve chegar ao topo de sua carreira política. Aos 57 anos, ele deve ser anunciado nesta quarta-feira como o novo ministro da Secretaria de Governo por conta de minirreforma ministerial que Temer promoverá até meados de dezembro e deve mexer em 4 de seus 28 ministérios. Indicado pela bancada do PMDB para a pasta responsável pela articulação com o Congresso Nacional, Marun deverá substituir Antônio Imbassahy (PSDB-BA) que pode migrar para o ministério da Transparência (a antiga CGU) ou para o dos Direitos Humanos. Outro nome que está certo na Esplanada dos Ministérios é o do deputado Alexandre Baldy (PP-GO). Ele irá para o ministério das Cidades nesta quarta-feira, em substituição ao demissionário Bruno Araújo (PSDB-PE).
Nesta terça-feira, o Palácio do Planalto fez circular o nome de Marun. O intuito era sentir como ele seria recebido na classe política e, até o início da noite, a recepção havia sido positiva. Ainda assim, outros dois nomes de deputados federais corriam por fora: Saraiva Felipe (PMDB-MG) e Hugo Motta (PMDB-PB). A favor do deputado de Mato Grosso do Sul pesou o fato de ele estar de acordo em permanecer no Governo até o fim de dezembro de 2018 e, dessa maneira, abdicar de disputar a eleição do próximo ano. Temer já avisou que não quer nomear ministros para ficarem apenas quatro meses no cargo. Em abril, a seis meses da votação, todos os candidatos que tiverem cargos no Executivo terão de renunciar às funções, conforme prevê a lei eleitoral.
Segundo assessores do Planalto, Marun é o nome favorito principalmente por quatro razões: foi identificado como um fiel aliado ao defender a reforma da Previdência (ele presidiu a comissão especial que discutiu o assunto na Câmara); esteve na linha de frente do grupo a favor do impeachment de Dilma Rousseff; é governista ao relatar a CPMI do BNDES (que pretende atacar as ações da Procuradoria-Geral da República); e até ao se transformar no “cão de guarda” o ex-deputado e hoje presidiário da Lava Jato Eduardo Cunha. “Ele é determinado no que faz. Quando tem de defender algo, o faz com unhas e dentes. Isso é positivo para esse momento do Governo, sem dúvida”, afirmou um dos assessores de Temer.
Marun foi um dos únicos deputados a ocuparem a tribuna da Câmara para discursar a favor de Cunha na sessão que cassou o mandato dele, em setembro do ano passado. Quando questionado pelo EL PAÍS por que defendia Cunha, ele respondeu: “Nosso grupo entendeu que ele não podia sofrer cassação antes do impeachment passar. Continuei fazendo o meu trabalho, mesmo depois, porque sou um homem de palavra”.
Antes dessa consulta informal iniciada pelo Planalto, outras duas haviam sido feitas. Na semana passada, Temer fez chegar aos jornalistas os nomes de João Henrique Sousa, ex-deputado presidente do Conselho Nacional do Serviço Social da Indústria, e do deputado federal Mauro Lopes (PMDB-MG), que foi ministro da Aviação Civil de Dilma Rousseff. Nenhum deles vingou. Procurado para comentar sua possível nomeação, Marun informou por meio de sua assessoria que o convite não foi feito formalmente. Mas se ele ocorresse, aceitaria.
Marun é o tipo de político falastrão. Alto, com 130 quilos distribuídos em 1,89 metro de altura, tem uma voz grave, intensa e explosiva. Está em seu primeiro mandato no Congresso Nacional. Gaúcho de Porto Alegre fez sua carreira política em Campo Grande. Engenheiro civil e advogado, tornou-se vereador, deputado estadual e federal após se juntar a André Puccinelli. Foi secretário de Habitação de Puccinelli tanto na prefeitura de Campo Grande (1997-2004) quanto no Governo do Estado (2006-2014). Puccinelli é atualmente investigado por enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro e corrupção no período em que governo Mato Grosso do Sul. Marun não é alvo desses inquéritos.
O dedo de Maia e apoio do centrão
Se a troca na articulação política é dada como quase certa, no Ministério das Cidades o nome de Alexandre Baldy já está assegurado - ele toma posse nesta quarta. Ele será o homem de Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, dentro do Planalto. No Planalto a informação é de que foi Maia quem lutou pela nomeação de Baldy porque queria se sentir mais prestigiado por Temer. Recentemente, o presidente da Câmara reclamou dezenas de vezes da atuação da gestão peemedebista. Seus movimentos chegaram a ser vistos como uma possível tentativa de desarranjo na base governista e uma movimentação para substituir o presidente. Algo que Maia sempre negou.
Para chegar ao cargo, Baldy teve de trocar de partido pela segunda vez nos últimos três anos. Se elegeu pelo PSDB de Goiás. Depois, migrou para o PODEMOS. Foi deposto da liderança do partido por não defender as investigações criminais contra o presidente. Agora está se filiando ao PP, a pedido de Maia e do presidente da legenda, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Será mais um representante do centrão no Governo.
Com o segundo maior orçamento da Esplanada, o Ministério das Cidades é um dos mais almejados pelas bancadas partidárias. O PP decidiu que pode abrir mão de uma das outras duas pastas que ocupa, Saúde e Agricultura, para ter essa máquina em um ano eleitoral.
Outra certeza entre Temer e seus aliados é a da demissão de Luislinda Valois (PSDB) da pasta de Direitos Humanos. Aliados do presidente disseram que ela nada apresentou de útil até o momento, apenas trouxe problemas, quando disse que deveria receber um salário de 61.000 reais, valor bem acima do teto constitucional de 33.400 reais mensais. Em um ofício enviado ao Planalto, ela alegou que a situação, “sem sombra de dúvidas, se assemelha ao trabalho escravo”. “Ela reclamou do salário, falou de escravidão, mas nem um mísero evento fez no dia da consciência negra [comemorado no dia 20 de novembro]. Nada de produtivo trouxe ao Governo”, afirmou uma fonte palaciana. Sua queda é certa.
Outro cargo em vista é o da Transparência. Desde maio está interinamente ocupado por Wagner Rosário, um técnico que substituiu Torquato Jardim quando este foi transferido para o Ministério da Justiça. Até abril do ano que vem, as trocas ocorrerão em 13 pastas, todas ocupadas por senadores ou deputados que têm interesse em concorrer a algum cargo eletivo.
El País: Governo da Espanha destitui cúpula da Catalunha e abre nova fase na crise
Presidente espanhol pedirá ao Senado a dissolução do Governo catalão e a realização de novas eleições
A crise espanhola entrou em um novo patamar neste sábado, depois de o Governo central estabelecer quais serão as medidas que tomará para intervir na Catalunha, assumindo o poder da comunidade autônoma que no início do mês realizou um referendo independentista considerado ilegal pelo Tribunal Constitucional do país. A decisão é algo inédito na democracia espanhola. Em uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros, o Governo de Mariano Rajoy determinou a saída de toda a cúpula de poder da Generalitat, como é conhecido o Governo catalão. Nos próximos meses, a comunidade autônoma também deverá passar por uma nova eleição. As medidas ainda precisam ser aprovadas pelo Senado antes de serem colocadas em prática.
Em sua fala à imprensa após a reunião, Rajoy qualificou o processo independentista de "unilateral e contrário à lei", cuja missão era a de fazer o Governo aceitar um referendo que se sabia que "não podia ser aceito". Ele ressaltou que sua intenção nunca foi aplicar o artigo, que só deve ser usado em "situações excepcionais". "Nenhum Governo de nenhum país democrático pode aceitar que se ignore a lei", ressaltou ele, que disse que a intervenção está baseada em quatro pilares: a volta da legalidade, a recuperação da normalidade e da convivência, a continuidade da recuperação econômica (ressaltando a saída da Catalunha de sedes sociais de várias empresas desde o início da crise) e realizar eleições "assim que se recupere a normalidade", destacando a vontade de que seja em um prazo máximo de seis meses. Na prática, detalhou ele, a medida suspende o presidente e o vice-presidente da Generalitat e os ministérios assumirão suas funções.
O movimento do Governo abre uma nova etapa de incertezas na crise, que já se arrasta com intensidade há semanas. A expectativa é que gere reações duras por parte da Generalitat, que já ameaçou, na última quinta-feira, prosseguir com a votação da declaração formal de independência no Parlamento catalão caso o Governo central "persista em impedir o diálogo e continuar a repressão". Caso isso aconteça, a procuradoria espanhola afirmou, também neste sábado, que fará uma denúncia por "rebelião" contra o presidente catalão, Carles Puigdemont, e outros dirigentes. Um crime que prevê até 30 anos de prisão.
OS PRINCIPAIS MOMENTOS DA CRISE NA CATALUNHA
Há ainda a expectativa de que os independentistas comecem a mobilizar as ruas para tentar atrapalhar a tentativa do Governo central de tomar o controle das instituições catalãs, entre elas a polícia regional, a Mossos d'Esquadra, acusada de ter se dividido durante o referendo de 1º de outubro, quando tinha a missão de evitá-lo. No final deste sábado, eles prometem realizar um grande protesto em Barcelona, capital da comunidade autônoma, onde a decisão do Governo central deve ter grande peso e se somar à indignação dos independentistas pela prisão sem fiança de Jordi Sànchez e Jordi Cuixart, líderes dos principais movimentos sociais separatistas que promoveram atos pró-independentismo nos últimos meses.
Por outro lado, a intervenção na comunidade autônoma é vista por seus defensores como uma das únicas possíveis saídas para o maior impasse vivido pela Espanha desde o final da ditadura, pois só assim seria possível realizar novas eleições na Catalunha. Nos últimos dez dias, após uma fala ambígua de Puigdemont, em que o presidente catalão não deixou claro se, de fato, declarava a independência —mas ainda assim a suspendeu em busca do diálogo com o Governo central—, não houve qualquer progresso na negociação entre as partes. Rajoy afirmava que, caso Puigdemont convocasse eleições, o artigo 155 não seria acionado. Mas isso não ocorreu. Rajoy, em sua fala à imprensa deste sábado, afirmou que Puigdemont recusou todas as tentativas de diálogo com o Governo dentro das instutuições democráticas espanholas.
Esta é a primeira vez que a Espanha coloca em prática este artigo da Constituição, que permite que o Governo central intervenha em uma comunidade autônoma. Estas entidades, 17 no total, foram criadas na Constituição de 1978, que marcou o fim da ditadura franquista, justamente para aumentar a descentralização do poder após um período de intensa centralização — elas podem aprovar leis e realizar as tarefas executivas que estejam estabelecidas em seu estatuto próprio; têm um presidente e um parlamento próprios.
Aplicá-lo é algo tão delicado na sociedade espanhola que Rajoy buscou obter, nos últimos dias, todos os apoios possíveis, para que a decisão parecesse unânime entre as maiores forças políticas do país. Entre os conseguidos se destaca o do PSOE, principal partido de oposição, que concorda com a aplicação do 155, mas quer que ela aconteça com um período determinado e de forma leve. Neste sábado, Pedro Sánchez, líder do PSOE, declarou que "o secessionismo é oBrexit da Catalunha", em referência à separação do Reino Unido da União Europeia.
Na cúpula da União Europeia, ocorrida nesta última quinta e sexta, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente da França, Emmanuel Macron, também manifestaram apoio inequívoco ao Governo de Rajoy na questão catalã. “Apoiamos a posição do Governo espanhol”, afirmou Merkel. E, por fim, nesta sexta-feira, o Rei Felipe VI abordou a situação em cerimônia dos Prêmios Princesa de Astúrias. Ele assinalou que a Espanha enfrenta "uma tentativa inaceitável de separação em parte de seu território nacional e irá resolvê-la por meio de suas instituições democráticas legítimas". "Dentro", ressaltou, "do respeito pela a Constituição e se atendo aos valores e princípios da democracia parlamentar em que vivemos por 39 anos".
As propostas decididas no Conselho de Ministros agora serão encaminhadas ao Senado, onde o Partido Popular (PP), de Rajoy, tem a maioria. Na Casa, elas tramitarão por uma comissão, que terá que apresentar ao pleno um parecer favorável ou contrário às medidas. Depois acontecerá a votação final entre todos os senadores, prevista para acontecer na próxima sexta-feira.
El País: Na cidade com mais feminicídios no Brasil, 89% das vítimas são pretas e pardas
A Agência Pública foi até Ananindeua, no Pará, onde se registrou o maior índice do país em 2015
A sala está quente, abafada. O pequeno ventilador que gira no canto da mesa não dá conta de vencer os quase 40ºC que o termômetro marcava naquele começo de tarde no Pará. Os minutos de silêncio, timidez e hesitação precedem o peso dos depoimentos que viriam a seguir. Cada mulher sentada naquela roda sabe que não será fácil reconstituir as lembranças da violência sofrida durante anos. Algumas delas ainda vivem com seus agressores.
Elas estão reunidas na sede do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cram) em Ananindeua, cidade da zona metropolitana de Belém. São mulheres diversas em idade, raça, classe e história, todas atendidas pelo serviço. Apesar das diferenças, todas têm algo em comum: o fato de estarem vivas para contar o que viveram significa que venceram as estatísticas.
A cidade que mata mais mulheres
A Pública mergulhou nos registros do Ministério da Saúde para encontrar a cidade brasileira com mais mortes violentas de mulheres e a evolução desse número em dez anos (de 2005 a 2015 – último ano com dados disponíveis no sistema). Essa categoria inclui mortes por violência por diversos meios, como sufocamento, arma de fogo, objetos cortantes ou mesmo agressões sexuais*. Nesse recorte, Ananindeua foi o município com a maior taxa de morte de mulheres em 2015, com 21,9 homicídios para cada 100 mil. A segunda colocada, Camaçari, na Bahia, teve uma taxa de 13. A escalada da taxa de mortes de mulheres em Ananindeua ao longo dos anos também chama atenção: em 2005, foram apenas três mortes por agressões por 100 mil mulheres na cidade paraense – aumento de 730% em uma década.
Ananindeua aparece também entre as cidades com as maiores taxas de homicídio da América Latina e Caribe, segundo o Observatório de Homicídios. No último Mapa da Violência, que traz os homicídios por armas de fogo no país, de 2012 a 2014, ela fica em sétimo lugar no ranking.
Para obter mais detalhes do contexto em que essas mulheres foram mortas, a Pública pediu à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), via Lei de Acesso à Informação (LAI), os Boletins de Ocorrência (B.O.) de mortes de pessoas do sexo feminino em 2015 nos municípios de Belém e Ananindeua, decorrentes de agressões externas. O pedido especificava que, caso o nome das vítimas e dos agressores estivessem protegidos pelos excludentes das informações pessoais da LAI, poderiam vir tarjados no material a ser enviado. Ainda assim não obtivemos o acesso.
Segundo a pesquisa no DataSus, em 2015 morreram em Ananindeua 40 mulheres por armas de fogo, 12 por objetos cortantes, três por força corporal e uma por sufocamento. O recorte de raça também salta aos olhos: em dez anos, das 343 mulheres assassinadas, 306 eram pardas e negras e 35, brancas.
Com cerca de meio milhão de habitantes, Ananindeua é apontada também como a cidade com pior saneamento básico do país, entre outros maus indicadores sociais que se associam em um quadro de violação de direitos humanos, como explica Luanna Tomaz, professora da Ufpa e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Mulher e Relações de Gênero Eneida de Moraes (Gepem-Ufpa). “É uma cidade que fica ao lado da capital [Belém], que cresceu de forma desordenada, que tem muitas áreas pobres, precárias em termos de saneamento básico e urbanização. Grande parte das pessoas trabalha em Belém e só volta para dormir na cidade, que tem a BR passando no centro e várias regiões distantes, de periferia. Tem muitos problemas estruturais, e esse conjunto de fatores pode ser um dos indicadores para esses altos números de violência.”
Nesse cenário de violência generalizada, a violência entre quatro paredes é a principal responsável pelas agressões contra as mulheres, de acordo com a defensora pública de Ananindeua Luciana Guedes: “A grande maioria das mortes de mulheres aqui é resultado da violência doméstica. São cometidas dentro do núcleo familiar. Nós observamos isso não só pelas mulheres que chegam pedindo ajuda como nos casos em que a Defensoria atende os homens nesses crimes. Nós tivemos recentemente em Ananindeua a primeira condenação de feminícidio do Pará [cometido em 2015], e isso é bem simbólico”, afirma. E acrescenta: “Ananindeua é um município muito, muito pobre. A educação é muito ruim, a saúde é muito ruim, e, na minha opinião, a falta de políticas públicas ainda é o grande vilão da história. Isso se reflete nos nossos atendimentos aqui na Defensoria. Na área criminal, o volume de atendidos é muito grande e a solução não é só colocar PM na rua. É um ciclo de violência que não vai se quebrar enquanto faltar vontade política do Estado e da prefeitura [ambos do PSDB]”.
Luciana planeja montar um núcleo de atendimento especializado na Defensoria para dar conta da demanda espontânea: “Nós atendemos um grande número de mulheres que chegam todos os dias, às vezes com o B.O. que fizeram na Delegacia da Mulher em Belém, às vezes depois de serem mal atendidas em delegacias comuns na cidade e às vezes sem nada, só porque não sabem aonde ir.”
A fragilidade da rede de proteção apontada pela defensora aparece de forma recorrente na fala das mulheres vítimas de violência com quem conversamos para a reportagem.
A Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) mais próxima fica no centro de Belém, a cerca de 50 minutos de ônibus de Ananindeua, o que dificulta a denúncia – muitas mulheres disseram não ter o dinheiro do transporte ou com quem deixar os filhos, além de perder o dia de trabalho na viagem – e sobrecarrega a própria delegacia, conforme a delegada Janice Maia: “A Deam Belém foi feita para atender a zona metropolitana. A gente atende Belém e as cidades próximas como Ananindeua, Marituba etc. São muitas vítimas e a gente acaba não dando conta de atender todos. Ananindeua é uma cidade enorme, tem muitos habitantes, depois de Belém é de onde recebemos mais mulheres. É necessária uma Deam local, e ela já está sendo pensada. Existem muitas delegacias na cidade e teoricamente todas podem fazer o atendimento, mas a vítima prefere vir para cá porque aqui damos um atendimento mais especializado”.
A delegada explica que a aplicação da medida protetiva, que nos casos de Belém sai em 24 horas, assim como as providências quando ela é descumprida pelo agressor são mais difíceis em Ananindeua por causa da distância entre as duas cidades: “Em Belém, nós temos a facilidade de ter tudo aqui no mesmo prédio, mas nos outros municípios não. A medida protetiva tem que ir fisicamente para lá. O policial tem que sair daqui, atravessar a cidade e entregar na vara de lá. Se a mulher narrar uma quebra de medida, é mais fácil quando é de Belém porque a gente já fala com o Judiciário, pergunta se ele foi notificado, se não foi… Para os outros municípios, tem que ter esse deslocamento, tem que enfrentar o trânsito. Já dificulta nosso trabalho. É preciso mais veículos, mais policiais”.
Na prática, isso significa que uma moradora de Ananindeua que tenha sofrido qualquer tipo de violência ou ameaça de morte e não queira ser atendida por policiais homens em delegacia comum – ou que tenha sido mal atendida em uma – precisa se deslocar em uma viagem de cerca de uma hora até o centro de Belém, encarar uma fila, fazer o B.O. e voltar para casa para esperar pela medida protetiva (se for atendida no mesmo dia). Caso o agressor descumpra a medida – e a mulher continue viva –, ela deverá voltar a Belém (novamente caso não queira ou não possa ser atendida em uma delegacia comum) e avisar as autoridades competentes para que sejam tomadas providências.
“Quando eu cheguei sozinha na delegacia em Ananindeua, ninguém me deu atenção. Nem as próprias mulheres me deram atenção. Eu pensei: ‘O que eu tô fazendo aqui se nada vai ser feito?’. A escrivã pergunta: ‘Ele bateu? Como bateu? Tem marca?’. Pega no seu braço assim: ‘Ah só isso? Isso aqui? A senhora tem certeza que quer denunciar? Não quer tomar uma água?’. Isso faz a gente entender o quê? Que é perda de tempo estar ali. Pra muitas mulheres que voltam pra suas casas, que não denunciam, é justamente por isso. Porque elas se deparam logo com essa barreira. Eu não tenho família, não tinha pra quem pedir ajuda. As mulheres voltam pra casa e são agredidas novamente e novamente. Por isso hoje muitas mulheres falam: ‘Nem vou denunciar porque não vai dar em nada mesmo’. A mulher acaba que desiste”, diz A**, que durante alguns anos sofreu agressões físicas e chegou a ser mantida em cárcere privado pelo companheiro, na roda de conversa no Cram (sua história completa está em uma das animações abaixo).
As outras acenam com a cabeça, concordando. R., que ainda mora com o marido agressor, diz: “Eu prefiro sumir, sair de casa quando ele tá violento. Nesse feriado de abril que teve, eu apanhei muito. Aí eu fui na delegacia do bairro fazer um B.O. e eles me disseram que só poderiam me atender no horário comercial, de 8h ao meio-dia e das 14h até as 17h. Eu só poderia voltar quatro dias depois. Fui em outra delegacia e também não me atenderam. Eles não dão continuidade. Eu não tenho condição de ir até Belém pra voltar com um papel. Vai ser pior. Aí eu acho melhor eu sumir mesmo, saio um pouco de casa e, quando ele se acalma, eu volto. Já tive minha cara quebrada, meu nariz quebrado, pedaço da orelha arrancado. Tenho marca, mordida, sofri violência moral, sexual”. Ela diz que ainda não deixou a casa porque não tem família nem renda suficiente para sustentar a si e ao filho com necessidades especiais. Também não conseguiu que o marido saísse da casa. Então vai convivendo com a violência.
“É muito difícil para as mulheres quebrarem o ciclo de violência”, diz a coordenadora do Cram, Rosana Moraes. “Porque eles agridem, pedem perdão, ficam bons por um tempo e depois começam tudo de novo. Muitas vezes acabam com a autoestima delas, as agressões são psicológicas e patrimoniais também. Por isso é tão importante que essas mulheres sejam acolhidas de forma correta por toda a rede de enfrentamento à violência, para que se sintam fortes para sair dela.”
A jornalista e ativista da Rede de Mulheres Negras do Pará Flávia Ribeiro, que também mora em Ananindeua (veja entrevista com ela no fim da página), conta que já acompanhou uma mulher à Deam de Belém e que a demanda dela não foi atendida nem lá nem em qualquer outra instância do Estado: “Ela estava sendo ameaçada de morte pelo vizinho. Foi na delegacia e eles recomendaram que ela se afastasse de casa. Mais um papelzinho com o Boletim de Ocorrência. Ela não falou com nenhuma assistente social. A mulher chegou lá e teve que recontar essa história um milhão de vezes. Depois disso esse vizinho entrou de novo na casa dela, bateu, quase matou. Ela levou uma facada no rosto e teria que fazer várias cirurgias para recriar os nervos. Levou facada no pescoço, na mão. Consegui uma advogada em um grupo feminista, consegui uma audiência para ela em um órgão público e, quando ela chegou lá, novamente não foi atendida. Nem medida protetiva conseguiu. Ela se mudou. A casa que ela construiu e em que morava há não sei quantas décadas teve que deixar. E os vizinhos estão lá”.
Falta estrutura para proteger as mulheres de Ananindeua
A Delegacia da Mulher em Belém divide espaço – em um prédio novo e bonito – com a Polícia Militar, assistência social e psicológica, atendimento médico, perícia, Ministério Público e Tribunal de Justiça, em um projeto chamado Pro Paz Integrado Mulher. Segundo a coordenadora do serviço, Raquel Cunha, em 2015 a unidade atendeu 706 mulheres apenas de Ananindeua. Por lá, segundo ela, as mulheres recebem atendimento social e psicológico e, apesar da alta procura, ninguém volta para casa sem atendimento.
Inaugurado em 2014 pelo governo do estado, existem atualmente seis unidades do programa no Pará, com orçamento anual previsto de R$ 564 mil para Belém e cerca de R$ 30 mil para as outras unidades – pouco mais de R$ 2.500 mensais. A Pública pediu informações sobre outras fontes de renda dos centros integrados, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.
As mulheres com quem conversamos que precisaram do serviço dizem que a fila é grande em Belém e que elas voltaram várias vezes até conseguir atendimento. Uma delas, que não quis se identificar, disse que, quando tomou coragem para procurar ajuda, foi até o prédio do Pro Paz e esperou das nove da manhã às seis da tarde, até que desistiu e voltou para casa.
Segundo a Segup, a Deam de Ananindeua deve começar a funcionar nos primeiros meses de 2018, e, enquanto isso não acontece, a Polícia Civil pôs em prática o projeto “Mulher respeitada é mulher empoderada”, que leva delegacia móvel aos bairros da cidade duas vezes por mês, registrando Boletins de Ocorrência, pedidos de medidas protetivas e instauração de inquéritos policiais. “Ademais, tal projeto conta também com a Ação Cidadania, que realiza atendimento com assistentes sociais, atendimento jurídico, testes rápidos de saúde e serviços de embelezamento como corte de cabelo, limpeza de pele, manicure e pedicure, maquiagem, entre outros”, afirma a diretora de Atendimento a Grupos vulneráveis, Aline Boaventura.
O Cram, que também é um serviço do Estado, tem sido uma peça de resistência e talvez a única referência no enfrentamento da violência contra a mulher em Ananindeua. Mas as profissionais reclamam da falta de recursos e do descaso do poder público: “A coisa está cada vez pior. Nós estamos há três anos aqui e não há uma placa de identificação na porta. Nós pedimos um banner que fosse, e até hoje não conseguimos. A justificativa para a falta de recursos é sempre a crise, a crise. O Cram existe desde 2010 e essa crise existe desde essa época para nós”, diz a pedagoga Rita Viegas. “Somos quatro aqui: duas assistentes sociais, eu e a psicóloga, que adoeceu e não veio ninguém para substituir. Antes nós tínhamos um carro para atender às demandas, mas faz três anos que ele foi para o conserto e nunca mais voltou. Esse ventilador eu trouxe de casa porque a gente não estava aguentando o calor aqui dentro.” A assistente social Kellen Santos continua: “A gente queria ver o reconhecimento ao nosso trabalho, ter um local adequado para trabalhar, com infraestrutura. Estamos com essa falta da psicóloga, que para nós é muito difícil. A gestão fala que está tudo muito bem, que o Pro Paz é maravilhoso, mas aqui não tem o Pro Paz e o Cram está esquecido. Temos essas rodas de conversa mensalmente e, se a gente quer um bolo, uma água, um café para servir para as mulheres, a gente tem que tirar do bolso”. Kellen termina com uma frase que ouviríamos outras vezes e ficaria marcada como um grande fator para o alto número de mortes de mulheres em Ananindeua: “É como se a gente aqui não existisse”
*Nota sobre metodologia da pesquisa:
Para chegar à situação de Ananindeua, levantamos no DataSUS todas ocorrências de mortes de pessoas dos sexo feminino causadas por agressões em todos os municípios brasileiros de 2005 a 2015 (último ano com dados disponíveis no sistema). Em seguida, comparamos o número de mortes com a população feminina do município no ano correspondente, segundo dados do IBGE de população residente. A partir daí, alcançamos o valor da taxa de morte de mulheres por agressões, que é baseada no número de ocorrências a cada 100 mil residentes do sexo feminino. Excluímos do ranking final cidades com menos de 100 mil habitantes, visto que nelas pequenas variações no número de mortes de mulheres produziam uma alteração distorcida na taxa de mortalidade. Nesse recorte, Ananindeua foi o município com mais de 100 mil habitantes com a maior taxa de morte de mulheres por agressões em 2015, último ano do levantamento.
**Os nomes das mulheres vítimas de agressão entrevistadas nesta reportagem foram abreviados para preservar suas identidades
Colaborou Martha Jares
"O PODER PÚBLICO SÓ NOS VÊ QUANDO VIRAMOS ESTATÍSTICA"
A jornalista e ativista Flávia Ribeiro mora em uma das áreas consideradas mais violentas de Ananindeua, o Distrito Industrial. Ela também acompanha de perto a questão da violência de gênero, especialmente da mulher negra, como integrante da Rede de Mulheres Negras do Pará, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e da Rede de Ciberativistas Negras. Em conversa com a Pública, ela dá sua interpretação do dado sobre o alto número de mortes de mulheres em sua cidade: “O poder público não está nos vendo. Ele só vê a gente quando a gente tomba. Aí a gente vira estatística”.
P: O que diz para você esse dado que mostra Ananindeua como a cidade com mais mortes violentas de mulheres do Brasil?
R: Eu acho assustador. Mas, embora seja assustador, não é incrível no sentido de “não acredito”. A gente sabe que a violência lá [a entrevista aconteceu em Belém] é muito grande. Eu moro em uma área periférica que é o Distrito Industrial, uma das áreas mais violentas da cidade. Eu moro em um conjunto e a maioria trabalha e estuda, mas lá a gente convive com áreas de invasão, tenho vizinho traficante, outro que é policial, uma boca… A gente convive com todo mundo, mas sente a violência. E, no meu trabalho com o movimento negro, a gente sabe que nem todas as mortes são publicadas. Tem muitas mortes que acontecem por lá e ninguém fica sabendo. Não sei nem se entra para o número, para essa estatística. Esse dado é perfeitamente crível.
P: E o que você acha que está acontecendo?
R: Um total abandono por parte do poder público. Não só a respeito da política de mulheres, que é praticamente inexistente. Pode até ter alguma coisa no papel, mas, andando por lá, a gente sabe que não tem nada.
P: Em Ananindeua não tem quase nada da rede de proteção à mulher, né?
R: Olha, acho que no Pará. A gente não sente a presença do Estado. A gente acabou de fazer a Marcha das Mulheres Negras aqui em Belém e, antes disso, a gente fez uma campanha que era de 75 dias de ativismo contra o racismo. As pessoas perguntavam: “Mas por que vocês estão fazendo isso?”. Porque a gente está morrendo. Cada pessoa negra que você está vendo aqui é um desafio à estatística. A mulher negra é a que mais morre de violência obstétrica; a criança negra é a que mais morre; aumentou em 54% o número de mortes da mulher negra; e tem um genocídio do homem negro acontecendo. Toda vez eu digo em palestras que a gente tem que se organizar porque o poder público não está nos vendo. Ele só vê a gente quando a gente tomba. Aí a gente vira estatística. Política pública não nos contempla – tanto é que a [Lei] Maria da Penha não nos contemplou. Se não for voltado para a população negra especificamente, não vai nos contemplar. Política universal não nos contempla. Um dia desses, eu vi uma entrevista com um policial militar que dizia “tem que fazer Boletim de Ocorrência”, mas as pessoas não fazem porque não acreditam. Várias amigas acham que podem ser agredidas pela polícia. Elas acham que podem ser destratadas, desconsideradas. E vai fazer o que com o papel? Só formar dado de novo? O que eu vou fazer lá?
P: Estivemos no Propaz e na Delegacia da Mulher de Belém e nos disseram que, apesar da grande demanda, tudo está funcionando, que as mulheres de Ananindeua são atendidas, que ninguém volta para casa sem atendimento.
R: Vou te contar só um caso. A Artemis [organização que atua com a promoção da autonomia feminina e prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres] recebeu uma denúncia de uma moça de Marituba que foi estuprada pelo vizinho e foi procurar a Deam. Ela estava sendo ameaçada de morte pelo vizinho. Ele tinha uns 18 anos e ela uns 37. Ele estava ameaçando ela e as filhas. Ela foi na Deam e eles recomendaram que ela se afastasse de casa. Mais um papelzinho com o Boletim de Ocorrência. Ela não falou com nenhuma assistente social. A mulher chegou lá e teve que recontar essa história um milhão de vezes. A escrivã estava conversando e entrou alguém para perguntar se ela queria merendar. Aí ela teve que parar aquela história de violência porque a escrivã estava com fome, ou não; alguém só foi oferecer. Depois disso, esse vizinho entrou de novo na casa dela, bateu, quase matou, ela levou uma facada no rosto e teria que fazer várias cirurgias para recriar os nervos. Levou facada no pescoço, na mão. E essa moça não falava com a gente. Quem falava com a gente era a patroa dela. Porque ela trabalhava num motel de segunda a sexta e, nos fins de semana, dava diária na casa dos donos do motel. Então ela trabalhava todos os dias. Ela não tinha celular e não queria falar sobre isso. Então, era o tempo todo a gente falando com a patroa sobre a situação dela. Até que chegou um momento em que eu disse: “Olha, não admito que ela desista”. Consegui uma advogada em um grupo feminista, consegui uma audiência para ela em um órgão público. Demorou um tempo para ela ser atendida e, quando ela chegou com a patroa, disseram que não se enquadrava nos atendimentos e ela não foi atendida. E nem medida protetiva conseguiu. Ela se mudou. A casa que ela construiu e em que morava há não sei quantas décadas, teve que deixar. E os vizinhos estão lá. Esse é o atendimento que ela teve na Deam. Eu também já fui lá segurar a mão de uma preta que tinha sido agredida pelo namorado e eles mal olham para as mulheres. Primeiro que chega lá e a gente tem que lidar com policiais militares homens. Eu entendo que é uma questão de segurança. Mas eu também entendo que a gente tem que ter outro meio de atender essa mulher. E nesse caso dessa moça, que era estudante universitária, veio do interior e não tinha família, ela queria a medida protetiva. É um prédio lindo pintado de rosa, lilás, mas é um elefante branco. A medida protetiva da minha amiga não tinha saído uma semana depois e só saiu porque a gente insistiu, voltou, foi atrás.
A gente fez um protesto no dia 8 de março de 2015 lá na frente contra o mau atendimento na Deam e se formou um grupo, e a delegada abriu a possibilidade de se falar sobre raça.
P: As mulheres que sofrem agressão em Ananindeua vão para a Delegacia da Mulher de Belém?
R: Algumas vão até as delegacias de bairro porque não foram bem atendidas na Deam. Conheço alguns casos. Inclusive casos em que as mulheres foram melhor atendidas nessas delegacias de bairro. Já tive conversas com delegadas que não admitem recorte de raça, por exemplo. Elas não admitem que é inconsciente, não é “você é preta não vou lhe atender”. Ela [profissional] olha para a mulher e pensa: “Ela já deve ter um monte de filhos, já deve estar acostumada, aguenta mais. Dá licença”.
P: A delegada da Deam disse que esse alto número de mortes de mulheres pode estar relacionado ao tráfico de drogas em Ananindeua. Mulheres de traficantes, dívidas de droga. Faz sentido isso para você?
R: Quando a polícia relaciona alguma morte com a droga, é um caso assim… A mãe da mulher que morreu é vizinha de um traficante. Caso encerrado. Não interessa quem morreu, não é ninguém. Acerto de contas.
P: Isso é uma justificativa oficial então…
R: Nossa. Muito. Tem relacionamento com o tráfico de drogas porque tem um vizinho traficante. Digamos que eu tenha um primo que morreu que era traficante. Então, se alguém na minha família morrer, caso encerrado. A gente não tem mais o que justificar. É tráfico de drogas. Tinha vínculo com o tráfico. A gente está falando do outro, de alguém negro, pobre e periférico que não sou eu. “Nossa, que violência, né?” Eu sempre falo que já não me impressiono com o machismo e com o racismo. Eu me impressiono com os olhos arregalados de quem não sabe que existe o machismo e o racismo. “Não sabia! Isso acontece em pleno século XXI?” Eu fico, gente! Que “privilegiozão da porra” que essa pessoa deve ter para desconhecer que existe racismo e machismo! É sempre a mesma expressão, os olhos arregalados: “Séeeerio que vocês são seguidos em loja? Eu nunca ouvi falar disso!”. Todas as pessoas negras deste país. Independente da roupa. Porque eu vou no shopping com meu iPhone na mão, com a chave do meu carro e eu sou seguida. E tem gente que segura a bolsa perto de mim. Do mesmo jeito que a gente é perigoso, quando a gente morre vira estatística e ninguém liga mais. Aí fica uma morte para minha mãe chorar. O Estado não se importa, não.
E as pessoas não estão mais com vergonha de se anunciar machistas, racistas, homofóbicas. O que está acontecendo para eles acharem que podem? Como a gente vai reagir?
P: Como é a polícia em Ananindeua? Porque o que eu costumo escutar é que, da mesma forma que existe a ausência do Estado, existe a presença ostensiva e violenta da polícia…
R: Também é assim. A gente tem aqueles “bons policiais” que têm uma boa relação com a comunidade e tentam ajudar aqui e ali. Mas de maneira geral é violenta. Principalmente quando eles vão baculejar, param a molecada na rua. Quem é essa molecada? Quem são essas pessoas? O meu vizinho branco nunca foi revistado pela polícia, ele não sabe o que é isso. Eu, por exemplo, quando sou parada numa blitz, abaixo o vidro para eles verem que eu sou mulher, porque eu sei que eles nessa hora estão procurando homem preto. Tenho a cadeirinha da minha filha no banco de trás.
As violências vão interseccionando. Eu sou uma mulher negra, no meu trabalho eu sou jornalista e consigo circular em espaços de pessoas brancas, com empresários. Mas lá eles me olham e sabem que eu sou uma mulher negra. Em outros espaços, eu estou no movimento negro, mas os homens negros é que ganham espaço. Eu sou mulher negra. Em todos os espaços, eu sou mulher negra. E se eu fosse lésbica, trans, essas características não iriam me deixar. Gorda, periférica. São marcadores de opressão.
A questão da mulher negra é tudo que atinge também o homem negro, porque o genocídio é do meu irmão, do meu filho, meu parente. Questão de gênero: falamos da mulher negra porque é quem mais sofre violência. Nós estamos brigando para ter uma dimensão de humanidade que o homem tem, porque o homem negro não tem medo de ser estuprado. O racismo é democrático, pega a pessoa negra. Ele pode interseccionar com o machismo. A gente quer a dimensão de humanidade da mulher branca porque a mulher branca tem medo de ser estuprada, mas morre menos do que a mulher negra. E o homem branco, que tudo foi feito por ele, para ele, em qualquer momento da história vai ser bem recebido. Todos os heróis são homens brancos, todos os livros falam de homens brancos, tantas conquistas. A gente também quer o homem branco discutindo com a gente. Já que vocês se dizem aliados, então vamos discutir os espaços de privilégio, usar os privilégios para inserir pessoas negras. Vamos discutir machismo, racismo e, principalmente, vamos escutar, né? Tem momentos em que para realmente mudar alguma coisa é isso: fechar a boca e escutar.
Juan Arias: O novo Brasil sem Lula
Já são poucos os analistas que confiam que o Brasil possa voltar a ser presidido por Lula e seu partido
Os países são maiores e mais importantes do que seus governantes. E mais ricos, humana e culturalmente. O Brasil também é, e não pode ficar estagnado no “Lula sim” ou “Lula não”. Se ficar preso à disputa política e às redes de corrupção, o país corre o risco de atrasar a mudança que a sociedade está pedindo.
Já são poucos os analistas que confiam que o Brasil possa voltar a ser presidido por Lula e seu partido, que foi uma peça importante da história recente. Seu ciclo político termina, como indica a chuva de denúncias e acusações que caíram sobre o ex-presidente mais carismático e de maior projeção internacional, esta semana da boca de Antonio Palocci, que foi seu principal ministro, amigo e conselheiro, e, agora, o primeiro líder de seu partido a romper o pacto de silêncio. O Brasil está saindo, ferido e desconcertado, de um período de incerteza política e de medos de voltar ao pior de seu passado. Pode ser que sejam feridas que deixem marcas difíceis de curar ou talvez, como escreveu em uma nota no Facebook minha colega Carla Jiménez, podem ser “os problemas de crescimento da democracia”.
Nessa gangorra entre pessimismo e otimismo, também prefiro pensar como minha colega que, desta tormenta, o Brasil poderá sair mais maduro, com instituições saneadas e fortalecidas, e sem que a democracia tenha sofrido perdas irreparáveis.
Se a etapa histórica do lulismo deu seus frutos e representou um momento importante para o progresso do país, o pós-Lula não tem por que ser um passo atrás na consolidação do processo democrático de um país chave no continente.
Os pessimistas podem ver no pós-Lula e pós-PT uma derrota da democracia e das conquistas sociais. No entanto, se já sabemos como foi o passado, com suas luzes e sombras, o futuro, que começará com as eleições de 2018, ainda está aberto e todos os caminhos são possíveis.
A responsabilidade, neste momento, já não está nas mãos de uma classe política, de esquerda ou de direita, que aparece despida de sua dignidade, maculada pelo descaramento das malas de dinheiro da corrupção de Geddel Vieira de Lima, aliado do presidente Michel Temer, e pela gravidade dos “pactos de sangue” como o selado, ao que parece, entre Lula e o capital para se perpetuar no poder. Essa classe política está agonizando e seu destino estará dentro de um ano nas mãos da sociedade que poderá expressar nas urnas seu poder democrático de mudar as coisas.
Dessa vez, graças sobretudo às redes sociais e à liberdade de expressão dos meios de comunicação que nenhum governo, nem os corruptos, eliminou, a sociedade, até a menos ilustrada, conhece muito bem o resultado da política de corrupção e do enriquecimento fácil. Esta é a hora da verdade. É a hora de um verdadeiro pacto, não de caráter mafioso com o velho, mas de compromisso com a ética e a democracia.
Não será uma mudança fácil, mas nada novo nasce sem dor. Não há na História humana uma única criança que nasça rindo. Nascem todas com medo do novo.
Os pactos de sangue da história da política levam, em sua ambiguidade, à impossibilidade de que apareça sangue novo e renovador. São a gangrena dos processos de liberdade.
Os brasileiros, nas próximas eleições presidenciais, deverão fazer um pacto de esperança de encontrar caminhos novos para demonstrar ao mundo que foram mais fortes que a corrupção e a falta de ética de seus políticos.
É isso, aliás, o que esperam, fora do Brasil, aqueles que gostam e invejam este país, mescla de sabores e culturas, alegre caleidoscópio de felicidade.
El País: Os rebeldes sem armas emboscados por um agente duplo da ditadura
Em tempos de delação premiada, obra de jornalista retrata o massacre da granja São Bento, de 1973, e traz a história de um dos famosos dedos-duros da ditadura, cabo Anselmo
Quantas pessoas você trairia para se livrar da prisão e de sessões de torturas? Quantas delas entregaria as vidas para assassinos vestidos de fardas e uniformes policiais? José Anselmo dos Santos, ex-marinheiro brasileiro conhecido como cabo Anselmo, foi um dos principais agentes duplos da ditadura militar e delatou ao menos 200. Sendo que cerca de cem perderam suas vidas. Seis delas durante uma chacina no então município de Paulista, em Pernambuco. É a história deste assassinato múltiplo que é retratada no livro O Massacre da Granja São Bento, lançado no último dia 29, em Recife.
Os minuciosos detalhes deste caso, ocorrido em janeiro de 1973, finalmente vieram à tona na obra assinada pelo jornalista e mestrando em antropologia Luiz Felipe Campos. Justamente em um momento em que os delatores são apontados no Brasil como uma espécie de heróis. A diferença, é que nos dias de hoje, eles desvelam casos de crimes de colarinho branco envolvendo a cúpula política e empresarial. Nos anos da ditadura militar, contribuíram para o cometimento de centenas de homicídios e torturas de presos políticos.
No livro, o autor relata como cabo Anselmo articulou uma falsa reestruturação de um grupo revolucionário armado em Pernambuco e os entregou para serem aniquilados por policiais e militares na área rural da então cidade de Paulista. Entre os assassinados estava a mulher com quem Anselmo viveu maritalmente em Recife, a militante paraguaia Soledad Barret Viedma.
Motivado por contar um caso regionalmente conhecido, mas pouco explorado por jornalistas e historiadores nacionalmente, Campos juntou cerca de 2.000 páginas de documentos em cinco anos de investigações que resultaram na obra. Ao menos 50 pessoas foram entrevistadas no período. Os principais relatos foram dados por um dos sobreviventes da chacina, o paraguaio Jorge Barrett, cunhado de Anselmo. “Percebi que essa era uma história que não estava bem contada. Tinha muito da versão oficial, algumas tentativas de desconstruir a versão de que chamava as vítimas de terroristas, mas nada que tentasse juntar todos os elos”, afirmou o jornalista ao EL PAÍS.
No livro, ele vai além: “No caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em Pernambuco, a guerrilha nunca chegou a existir: desde sempre teve suas pernas amputadas e uma sentença de morte sobre as costas. Com os seis mortos foram enterrados também os sonhos de toda uma geração de guerrilheiros que, a seu modo, buscavam uma Sierra Maestra para chamar de sua no Brasil”.
Em um ritmo de thriller policial, a obra orbita em torno do cabo Anselmo. Mostra como ele reuniu no Pernambuco seis militantes contrários à ditadura sob a justificativa de reiniciar a luta armada urbana contra o regime. Segundo essa aprofundada pesquisa que gerou o livro, o ex-militar queria dar um tiro de misericórdia na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e em todo outro grupo que tentasse se articular contra os ditadores. “Em 1971, a luta armada de esquerda estava desmobilizada. Anselmo concordou em ser usado pelo regime para dar esse tiro de misericórdia. Era para passar um sinal para os outros grupos de que a luta armada não valeria a pena”, explica o autor. Um dos “comandantes” de Anselmo nessa trama foi o famoso delegado torturador Sergio Paranhos Fleury, um obstinado perseguidor de rebeldes que atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo.
As vítimas do massacre da granja São Bento foram Soledad Barret, Jarbas Marques, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Pauline Reichtsul e José Manoel da Silva. Todos foram traídos por Anselmo. Por quase um ano articularam maneiras de como unir forças para combater o regime militar. Não conseguiram adquirir uma só arma. Mas morreram identificados como terroristas, conforme estamparam em suas manchetes os jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, em uma clara adesão à versão oficial.
Entre os dias 7 e 8 de janeiro de 1973, os seis foram presos. Seus corpos foram encontrados crivados de balas nas proximidades da chácara São Bento, no dia 9. Dos 32 projéteis encontrados nos corpos, 14 estavam alojados nas cabeças das vítimas. Diversas armas foram espalhadas ao redor dos cadáveres. A polícia, na ocasião, disse que desbaratou um congresso de militantes da VPR. Trocou tiros com eles. Matou todos. E nenhum policial saiu ferido, nem de raspão.
Uma das razões para a chacina ter ocorrido foi que o jogo duplo de Anselmo começou a ser desvendado. Na antevéspera do massacre, Soledad, a mulher dele, recebeu uma carta em que o comando da VPR que estava exilado no Chile alertava sobre a possibilidade da traição de Anselmo. Ingenuamente, ela mostrou a carta para o ex-militar. Foi sua sentença de morte e dos outros cinco companheiros dela. Assim que o sexteto foi preso, Anselmo deixou Recife da mesma forma que chegou, clandestinamente.
Na obra, o jornalista Campos também relata a luta das famílias em conseguir a reparação do Estado brasileiro e o reconhecimento de que todos foram vítimas da ditadura. Vários conseguiram, mas as marcas deixadas em alguns, jamais foram apagadas.
O LIVRO
O Massacre da Granja São Bento
Autor: Luiz Felipe Campos
Editora: CEPE – Companhia Editora de Pernambuco
Preço: 30 reais
Páginas: 214