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El País: boatos são base de 6 das 10 notícias mais compartilhadas sobre ataque à caravana de Lula
Levantamento é do Monitor do Debate Político no Meio Digital. Nesta semana, até o TSE usou uma notícia falsa para combater o fenômeno
Seis das dez notícias mais compartilhadas no Facebook sobre os tiros contra os ônibus da caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula s Silva na última terça-feira no Paraná são falsas. Os boatos, de diferentes sites, afirmam que Lula e sua militância teriam armado os ataques e não tem qualquer base factual para fazer tal afirmação. A polícia do Paraná investiga o caso e ainda não houve identificação dos suspeitos do ataque.
O levantamento foi feito pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, um projeto que mapeia os conteúdos mais compartilhados e com mais interação na rede social ligado à USP. Para Pablo Ortellado, coordenador do projeto e professor de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo, o resultado do levantamento é preocupante. "Mostra que a especulação mais selvagem e grosseira tem grande poder de difusão se colar na narrativa de um dos campos políticos", disse ao EL PAÍS. "É o que aconteceu no caso Marielle e acontece agora também". Após a morte de Marielle Franco, há quinze dias, diversas notícias falsas sobre a vida pessoal da vereadora do PSOL foram amplamente compartilhadas nas redes. A questão é tão grave que o próprio TSE (Tribunal Superior Eleitoral) resolveu nesta semana anunciar medidas para combater as notícias falsas. O problema é que o TSE usou uma notícia falsa como parâmetrodos sites mais difusores de boatos e só depois de alertado corrigiu o erro.
Nova mira
A dinâmica tem um padrão. Com um novo alvo na mira, portais como Pensa Brasil ou Jornal da Cidade difundiram o conteúdo falso sobre o ocorrido na caravana petista. O primeiro portal, cuja manchete era "Jornalista dentro no [sic] ônibus entrega PT: 'Foi tudo armação os tiros [sic]", teve mais de 195.000 compartilhamentos. O segundo, com 110.000 compartilhamentos, dizia: "Vereza advertiu sobre o atentado que o PT iria encenar", atribuindo a informação ao ator Carlos Vereza. O ator usou seu Facebook para dizer que Lula não estava dentro do ônibus atingido e insinuar suas suspeitas, sem fundamento oficial, para dizer: "Ora, de repente, um tiro de um modesto 32 transforma-se numa bazuca de alto poder de destruição colocando em risco - não a vida do Pai dos Pobres que voava são e salvo num helicóptero financiado pelos degredados da senzala -, mas o bagageiro do ônibus, que resistiu (...)".
Somente a terceira notícia mais compartilhada sobre o assunto era, de fato, verdadeira. A manchete "Dois ônibus da caravana de Lula são atingidos por quatro tiros no Paraná", do jornal Folha de S. Paulo, alcançou 72.000 compartilhamentos. Ainda assim, é menos da metade do primeiro colocado no ranking.
Das dez mais compartilhadas, apenas duas eram noticiosas. Além da Folha, a manchete da revista Veja sobre o caso ficou em penúltimo lugar. O levantamento também mostra que todas as notícias falsas tendem para o mesmo lado, o da incriminação petista durante a caravana. Somente duas condenam o ocorrido: uma satírica, do humorístico Sensacionalista - "Segunda temporada de O mecanismo terá Lula atirando no próprio ônibus" - e outra analítica, do blog do Sakamoto - "Tiros contra a caravana de Lula mostram que já começamos transição à barbárie", em último lugar, com 44.000 compartilhamentos.
Em quinto lugar neste levantamento, o site O Diário Nacional é compartilhado na página do Movimento Brasil Livre (MBL) no Facebook. Entre os difusores de fake news sobre Marielle Franco, o MBL foi apontado como um dos protagonistas reproduzindo nota do site Ceticismo Político.
Confira o ranking:
1. Pensa Brasil - "Jornalista dentro no ônibus entrega PT 'Foi tudo armação os tiros" - 195.000 compartilhamentos
2. Jornal da Cidade Online - "Vereza advertiu sobre o atentado que o PT iria encenar" - 110.000 compartilhamentos
3. Folha de S. Paulo - "Dois ônibus da caravana de Lula são atingidos por quatro tiros no Paraná" - 72.000 compartilhamentos
4. Imprensa Viva - "Tiros nos ônibus de Lula - Policiais experientes não descartam a hipótese de armação" - 72.000 compartilhamentos
5. O Diário Nacional - "Autoridades desconfiam dos tiros no ônibus de Lula, diz site - 68.000 compartilhamentos
6. Sensacionalista - "Segunda temporada de O mecanismo terá Lula atirando no próprio ônibus" - 67.000 compartilhamentos
7. Imprensa Viva - "Lula estava em helicóptero quando identificaram tiro em ônibus. PT tenta desmentir Secretaria de Segurança do Paraná" - 60.000 compartilhamentos
8. Noticias Brasil Online - "Delegado Alertou Para Falso Atentado Contra Lula Que Estaria Sendo Articulado Pelo MST" - 51.000 compartilhamentos
9. Veja - "Caravana de Lula é alvo de tiros no Paraná" - 49.000 compartilhamentos
10. Blog do Sakamoto - "Tiros contra caravana de Lula mostram que já começamos transição à barbárie" - 44.000 compartilhamentos
El País: Por trás do verdadeiro mecanismo de corrupção do Brasil
Pesquisadores mapeiam as redes de relacionamento entre os escândalos de desvio de dinheiro público que assolaram o Brasil após a redemocratização
Por Regiane Oliveira, do El País
Anões do Orçamento, Dossiê Cayman, Pasta Rosa, Máfia dos fiscais, compra de votos para a reeleição. À parte a CPI do Banestado, que voltou a ganhar destaque ao ser mencionada de forma caricata na série O Mecanismo, da Netflix, os muitos escândalos de corrupção que assolaram o Brasil após a redemocratização parecem estar fadados ao esquecimento. A sucessão de eventos, crimes, personagens, investigações, bem como as parcas condenações fazem com que a realidade brasileira de combate à corrupção seja difícil, para não dizer quase impossível, de acompanhar. Um projeto de pesquisa da USP, no entanto, aposta na ciência da computação para tirar esses casos do ostracismo, revelar o verdadeiro mecanismo de funcionamento das redes de corrupção no país e, no futuro, até prever como são formadas essas redes.
Na trama do Brasil real não há um personagem principal que lidera um grande esquema de desvio de dinheiro público, como por vezes ronda a imaginação popular. Mas, sim, uma rede bem engendrada de relacionamentos da qual foram mapeados 404 nomes – entre políticos, empresários, funcionários públicos, doleiros e laranjas –, de pessoas envolvidas em 65 escândalos de corrupção entre 1987 e 2014. “Essas redes criminosas operam de forma similar ao tráfico de drogas e às redes terroristas”, explica Luiz Alves, pós-doutorando no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, em São Carlos, e um dos cinco pesquisadores do projeto.
A investigação foi feita com base em escândalos de corrupção divulgados na grande imprensa a partir de 1987. “Antes disso, não temos documentação sobre corrupção. O que não significa que não existia, mas sim, que não havia uma imprensa livre para expor os casos”, explica Alves. O resultado da pesquisa foi publicado em janeiro no artigo The dynamical structure of political corruption networks (A estrutura dinâmica das redes de corrupção política), no Journal of Complex Networks. E chamou atenção do prestigioso MIT Technology Review, que colocou o artigo na lista das publicações mais provocantes do período.
De acordo com a pesquisa, os grupos que conduzem as ações ilícitas funcionam de forma similar a descrita pela chamada teoria das "sociedades secretas", na maioria das vezes, com poucos membros, cerca de oito integrantes por “célula”, que atuam constantemente para atrair outros “talentos” e expandir seu network. O objetivo seria maximizar o potencial de ocultamento de seus crimes. “Esses grupos operam em redes modulares, algumas bem definidas e que compartilham conexões entre si”, explica o matemático (veja imagem acima).
Fazer parte deste seleto grupo não é uma tarefa fácil. A pesquisa identificou uma evolução lenta no número de participantes, um novo membro por ano de investigação - com exceção dos períodos eleitorais. A investigação aponta que, a cada quatro anos, as redes de corrupção se transformam, com aumento significativo no número de envolvidos. E apesar de não ser possível traçar uma relação direta entre eleições e corrupção, a hipótese levantada pelos pesquisadores é que o aumento nas atividades corruptas durante as campanhas eleitorais pode ser uma das razões para essa coincidência. “Uma hipótese é que cada vez que muda o partido no poder, aumenta investigação sob o Governo anterior”, afirma Alves.
Entre 1986 e 1991, cada membro da rede tinha cerca de três conexões. A primeira transição acontece entre 1991 e 1992 e pode ser associada com o escândalo Caso Collor, que levou à renúncia do então presidente emparedado por um processo de impeachment. Nesse período o número de conexões entre os participantes era de 6 pessoas cada um deles. A segunda grande transição acontece entre 2004 e 2005, quando cinco novos escândalos vem à tona - Corrupção nos Correios, Dólares na cueca, Mensalão, República de Ribeirão e Valerioduto mineiro. A partir desse período o número de relações entre participantes fica estável, com cerca de 18 pessoas em sua rede de relacionamento. O impacto da Operação Lava Jato não foi tão grande nos dados pois o recorte da investigação termina em 2014, quando apenas 21 pessoas haviam sido expostas pelo esquema.
Essas conexões não são aleatórias. Apesar de não ser possível apontar uma hierarquia, a pesquisa sugere que apenas sete hubs são responsáveis por fazer pontes com os demais 397 participantes da rede. “Esses hubs representam sete pessoas com grande influência na rede de corrupção, mas que não necessariamente detêm o controle das atividades criminosas”, afirma Alves. Esses personagens funcionam como o elo comum entre diferentes grupos denunciados em esquemas de corrupção (ver grafo). O hub mais influente tem 86 pessoas em sua rede de relacionamento.
Quem são os mais influentes da ecossistema corrupto do Brasil?
Mas quem são esses personagens? Na trama desenhada pelos pesquisadores foi revelado apenas que se trata de um prefeito, um doleiro, dois banqueiros, um diretor de empresa e um senador. Alves preferiu não identificar o sétimo participante. Isso porque, por questões jurídicas, os pesquisadores optaram por fazer uma autocensura e retirar os nomes da pesquisa. Inicialmente, a proposta incluía a lista de nomes, ano e escândalo em que esses “personagens” foram citados. A justificativa é que ter o nome citado em um escândalo de corrupção não significa que a pessoa será indiciada ou considerada culpada pela Justiça brasileira. “Procedimentos jurídicos nos grandes casos políticos de corrupção podem levar anos, até décadas, e muitos nunca chegam a um veredito final”, escreveram os pesquisadores. Alves explica, no entanto, que os dados e metodologia de pesquisa estão à disposição de quem se interessar.
Aliás, o interesse dos pesquisadores é conseguir replicar essa metodologia. “Se tivermos acesso a dados mais completos, por meio de parcerias com instituições da Justiça, por exemplo, poderemos construir ferramentas ainda mais precisas e úteis para as investigações”, ressalta Alves. No melhor estilo do filme Minority Report – A Nova Lei, os pesquisadores apostam que é possível prever crimes a partir do mapeamento de suspeitos envolvidos nas redes de corrupção. “Testamos vários algoritmos e descobrimos que é possível prever, com 25% de precisão, as novas relações que serão estabelecidas no futuro por esses indivíduos investigados. A chance de acertar as previsões em uma análise aleatória dessas conexões é de apenas 1%”, afirma Alves. Esse possível sistema “pré-crime” não é capaz de prever, como no filme, que alguém vá cometer algum delito, mas sim qual a chance de alguém que sequer está sendo investigado fazer parte de algum novo esquema. “Isso poderá ajudar a agilizar as investigações”, acredita o pesquisador.
El País: “O ‘Brexit’ não teria acontecido sem a Cambridge Analytica”
Principal fonte do escândalo que pôs o Facebook contra a parede explica em uma entrevista como desenhou o arsenal da ciberguerra da nova direita populista
Christopher Wylie é um personagem fascinante. Um jovem canadense vegano e gay, como ele mesmo se define, que projetou o arsenal de ciberguerra da nova extrema direita norte-americana. Cérebro da Cambridge Analytica (CA), atribui a si mesmo um papel decisivo nas vitórias de Donald Trump e do Brexit. Pôs em marcha a mais eficiente maquinaria de cultivo de dados pessoais a serviço da política. Tirou o gênio da lâmpada e agora volta a trancá-lo. Este arrependido de cabelo cor de rosa e inteligência feroz, com apenas 28 anos, decidiu enfrentar duas entidades que ninguém queria ter como inimigos: a sinistra empresa que contribuiu para criar e o todo-poderoso Facebook. É a fonte principal das informações, publicadas nos últimos dias por The Guardian e The New York Times, que puseram contra as cordas a gigante da tecnologia. No domingo concedeu uma longa entrevista a um pequeno grupo de jornalistas europeus, no escritório de advogados londrinos que o ajudam nesta delicadíssima guerra contra seu próprio passado.
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Pergunta. Qual foi sua motivação para falar?
Resposta. Minha intenção original era expor o trabalho da Cambridge Analytica, em parte porque ajudei a criá-la e tenho uma responsabilidade. Se não for para corrigir o que já foi feito, pois há coisas que não podem ser desfeitas, pelo menos para informar as autoridades e as pessoas.
P. De tudo o que foi revelado, o que é mais grave?
R. Primeiro, o fato de que exista uma empresa que presta serviços para o setor militar e também é conselheira do presidente dos Estados Unidos. Nas democracias modernas proibimos os militares de participarem de eleições, por que permitimos que empreiteiras militares participem e atuem como conselheiras de alguns dos políticos mais importantes do mundo? Que uma empresa que tem clientes militares crie uma enorme base de dados de cidadãos, alguns deles coletados ilegalmente, gera um grave risco de apagar as fronteiras entre vigilância doméstica e pesquisa convencional de mercado. As pessoas e os legisladores precisar ficar em dia com a tecnologia e compreender o que significam de verdade essas empresas, o Facebook e outras, que ganham dinheiro com os dados pessoais. É importante que as pessoas vejam que não é algo abstrato, mas que tem impactos tangíveis.
P. Quando se deu conta de que era o momento de parar?
R. Foi se acumulando. O problema é que me perdi em minha própria curiosidade. Não é uma desculpa, mas tinha orçamentos milionários, podia fazer toda a pesquisa que quisesse. Isso era realmente atraente. Entrei em junho de 2013 como diretor de pesquisa do grupo SLC [matriz da CA] e comecei a compreender, com o passar dos meses, o que na realidade faziam. Mas você se adapta a uma cultura empresarial. Não é uma desculpa, mas é assim. Você faz mais e mais, cada passo não é muito maior que o anterior, até que, bang!, você criou uma NSA [ a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos] privada.
P. Então saiu.
R. Saí no final de 2014. Foi um ano e meio crucial, antes não havia empresa. Foi ficando mais e mais tóxico, sobretudo porque Alexander Nix [executivo-chefe da CA] e Steve Bannon [ex-vice-presidente da CA e ex-estrategista-chefe de Donald Trump] eram difíceis. Essa liberdade para pesquisar me atraiu no começo, quando Bannon chegou se transformou em pesquisar para o que agora chamamos de direita alternativa. Bannon vinha o tempo todo a Londres, pelo menos uma vez por mês, e tínhamos uma conference call toda segunda-feira de manhã. Não houve um despertar ético repentino. Foi um entorno de trabalho tóxico.
P. Qual foi seu papel no Brexit? As últimas revelações sugerem que uma empresa de dados vinculada à CA desempenhou um papel crucial no resultado e ajudou a manipular as normas sobre gastos eleitorais.
R. Não trabalhei na campanha pelo Brexit, mas fui uma presença fantasma porque conhecia muita gente e ajudei a montar a empresa que foi posta a serviço da companha. Sabia tudo o que se passava. Eu os coloquei em contato e acompanhei o que faziam.
P. O Brexit não teria ocorrido sem a CA?
R. De modo algum. É importante porque o referendo foi ganho com menos de 2% dos votos e muito dinheiro foi gasto em publicidade na medida certa, com base em dados pessoais. Essa quantidade de dinheiro compraria milhões e milhões de impressões. Se você se dirige a um grupo pequeno, pode ser definitivo. Se você soma todos os grupos que fizeram campanha pelo Brexit, era um terço de todo o gasto. E estamos diante de algo fundamental para o modelo constitucional deste país e para o futuro da Europa. Por isso é preciso haver uma investigação sobre os indícios de que gastaram mais do que o permitido legalmente. Quem diz é alguém moderadamente eurocético. Mas as pessoas têm de poder confiar em suas instituições democráticas. Fazer trapaças é fazer trapaças. Se alguém recorre ao doping e chega em primeiro, pode ser que tivesse ganhado sem se dopar, mas a medalha é tirada dele porque enganou. A medalha é retirada porque questionou a integridade de todo o processo. Falamos da integridade de todo o processo democrático, e se trata do futuro deste país e da Europa em geral.
P. Em que outros países europeus a CA trabalhou?
R. Sei que a Itália era um projeto quando eu estava lá, mas não tenho detalhes. Não tenho referências de outros.
P. A ciência dos dados é perigosa para nossa sociedade?
R. Os dados são nossa nova eletricidade. São uma ferramenta. Se há uma faca na mesa, você pode fazer uma comida com estrelas Michelin ou usá-la como arma para um assassinato. Mas é o mesmo objeto. Os dados em si não são o problema, há um incrível potencial e coisas incríveis que podemos fazer com eles. mas o que a CA expôs é o fracasso, não só de nossos legisladores, mas de nós mesmos como sociedade, de impor os limites a isso.
P. A influência deles é assim tão grande? Funciona tão bem a previsão com base em dados?
R. Se você olha os últimos cinco anos de pesquisa científica de perfis psicológicos usando dados sociais, comprova que pode fazer perfis de atributos psicológicos. Não há dúvida de que pode traçar o perfil das pessoas e explorar essa informação. Que isso seja adequado em um processo democrático é algo em que as pessoas deveriam pensar. Nós estamos nos digitalizando como sociedade, e quanto mais o fazemos mais importância os dados adquirem. Temos que aceitar que os dados pessoais estão se transformando em uma parte integral da digitalização da sociedade. A questão não é evitar que dados pessoais sejam usados. A pergunta é quais são os riscos dos dados pessoais e como podemos garantir que sejam processados e administrados de um modo seguro para as pessoas.
P. Que uma campanha política seja direcionada a grupos específicos indecisos não é algo novo...
R. A diferença é quando você engana, quando cria uma realidade na medida certa para alguém, quando você se dirige a uma pessoa porque sabe que é mais suscetível de cair em teorias conspiratórias porque você obteve esse perfil dela, e a conduz a uma espiral de notícias falsas. É diferente de bater numa porta indeterminada se identificando como parte de uma campanha. Uma das coisas que fazíamos nos Estados Unidos era pesquisar essa noção de deep state e a paranoia com o Governo. Coisas como o que acontece se chegarem e levarem as suas armas. Você pode traçar o perfil de um grupo de pessoas muito receptivas a essas teorias conspiratórias, do tipo de que Obama mandou tropas para o Texasporque não está disposto a sair. Então você fabrica blogs ou sites que parecem notícias e os mostra o tempo todo às pessoas mais receptivas a esse pensamento conspiratório. Depois elas assistem à CNN e lá não há nada do que eles veem o tempo todo na Internet, e pensam que a CNN esconde alguma coisa. Começamos a pesquisa com métodos qualitativos, focus groups. Um focus groupnão é generalizável, mas permite reconhecer pequenos pedaços de coisas que depois você pode testar quantitativamente.
P. Qual foi a falha do Facebook em tudo isso?
R. No começo diziam que não havia infração porque os usuários consentiram que seus dados fossem usados: em algum lugar das condições de uso se dizia que os seus dados podem ser explorados por aplicativos, embora você não os estivesse usando. Uma das grandes falhas do Facebook é legalizar excessivamente suas condições de uso e se esquecer de algo tão importante: a expectativa razoável do usuário.
P. As pessoas não veem o Facebook como algo público?
R. Não há uma dicotomia entre público e privado, é um espectro. O problema é que se você diz que só é privada a comunicação de um com um outro, e tudo o mais é livre para todos, se estendermos essa lógica poderiam pôr câmeras de vigilância na sala da sua casa. Isso é o equivalente digital da sua sala. As pessoas se relacionam no Facebook como se falassem com amigos. Não estão publicando para que o mundo veja. O fato de que você não vá comprovar as condições padronizadas de privacidade não é motivo para não respeitar essa expectativa razoável de que há certo grau de privacidade no que você publica.
P. Como avalia a reação do Facebook às suas revelações?
R. Olham isto como uma questão de relações públicas. Se se importassem, teriam se sentado comigo em vez de me apagar da rede.
P. As pessoas não têm sido descuidadas demais?
R. Não é justo acusar a população de um país, isso é lavar as mãos. Se 50 milhões de pessoas fizeram isso, acho que mostra que não havia uma expectativa razoável de que isso poderia acontecer.
P. Mas a coleta de dados que foi feita não seria impossível hoje, porque o Facebook mudou?
R. Continua havendo muitas maneiras de explorá-los. Eu não especularia sobre como romper a segurança do Facebook, mas não existe essa coisa de sistema perfeito.
P. Dada a fluidez da circulação de dados, há um modo de regulá-la?
R. Deveria ser regulada do mesmo modo que um serviço público. Da mesma maneira que é impossível viver em uma sociedade moderna sem eletricidade ou água corrente, é muito difícil viver a sua vida hoje sem acesso à Internet, sem celular. Se essas plataformas são cada vez mais essenciais para o dia a dia, deveríamos olhar para elas de outro modo.
P. Não apoia o #deleteFacebook, a campanha recente para sair da rede social?
R. Não sou anti-Facebook, nem antidados nem antitecnologia. Também não sou contra as armas se forem para que os soldados protejam as pessoas. Mas uma pessoa não pode negociar individualmente uma série de condições de uso. Não é justo pedir às pessoas que entreguem absolutamente tudo a essas plataformas para se conectarem à vida moderna. Você não consegue encontrar trabalho se não tiver LinkedIn. Não pode graduar-se se não usar o Google. Não pode avançar na vida sem eles. Como a vida moderna requer o uso dessas plataformas, deveriam ter uma responsabilidade proativa de cuidado com os seus usuários.
P. Trump teria ganhado sem a CA?
R. Teve um papel, obviamente. Mas o enfoque do que a empresa faz para clientes não é necessariamente o correto. Não é somente o que fizeram para Trump, é o que fizeram para os Estados Unidos. Não é uma campanha, é um desenvolvimento gradual.
P. Vocês fabricaram a chamada direita alternativa?
R. Exato. Muitas das coisas que a CA faz não são para um cliente. Para Robert Mercer [coproprietário da CA e mecenas da nova direita norte-americana] não importa se é rendável ou não. Ele é bilionário, não precisa de dinheiro. Colocar 15 milhões de dólares [cerca de 50 milhões de reais] por ano em uma empresa não é nada para ele. Boa parte do trabalho era moldar narrativas que as pessoas comprariam e que tornariam mais fácil a conexão com candidatos da direita alternativa. A vantagem disso é que você pode contornar as regulamentações: você é um investidor e coloca dinheiro na sua empresa, não é uma doação política. Steve Bannon tinha uma visão para a direita alternativa. Precisava que os republicanos fossem do tradicional “não gosto dos impostos” para “Obama vai roubar minhas armas com um exército secreto”. Para dar início a uma tendência cultural primeiro você precisa dos pioneiros. Você não vai começar uma revolução da direita alternativa em San Francisco.
P. Sua especialidade era a previsão de tendências de moda. Como acabou metido até o pescoço em política?
R. É exatamente o mesmo. A política e a moda são a mesma coisa. São a expressão da identidade e do seu papel na sociedade. Você pode pensar em Trump em termos de moda. Eu o vejo como as sandálias Crocs. Sabe o que são? É uma coisa objetivamente feia. Antes de serem populares eram feias, e depois voltaram a ser. Mas quando eram populares todo mundo as usava. Para mim, Donald Trump é o mesmo que sandálias Crocs. É uma estética objetivamente horrorosa, mas as pessoas sucumbem às modas. As pessoas adotam uma estética da qual depois, quando virem as fotos no futuro, se arrependem profundamente.
El País: “Se não fosse a OMC, já estaríamos numa guerra comercial”, diz Roberto Azevêdo
Em reunião do Fórum de Davos, brasileiro defende relevância da organização que dirige. Meirelles diz que protecionismo dos EUA ajuda Brasil a vencer resistências na UE
Por Heloísa Mendonça, do El País
Diante da guinada protecionista do Governo de Donald Trump, que impôs tarifas de importação para o aço e alumínio para a maioria dos países do mundo, o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Roberto Azevêdo, defendeu o diálogo como o melhor caminho para resolver os conflitos gerados pela decisão dos Estados Unidos. Ele ainda negou que a organização que comanda esteja enfraquecida. “Se não fosse a OMC, já estaríamos numa guerra comercial, essa é a realidade”, disse aos jornalistas após palestra no Fórum Econômico Mundial em São Paulo. Azevedo ressaltou ainda que a organização foi criada exatamente para resolver esse tipo de problema. “Estamos em constante comunicação com os países. Eu sou consultado o tempo inteiro”, disse. Ele explicou que, até o momento, nenhum país fez uma representação formal na OMC contra a sobretaxa nos EUA.
O tema da nova política comercial americana foi um dos mais debatidos durante o evento. Mais cedo, o presidente Michel Temer já havia dito que se não houver uma solução em breve, o país entrará com uma representação na organização. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, também cobrou do Governo Trump mais clareza sobre o que ele está disposto a negociar após impor uma taxação de 25% e 10% sobre a importação de aço e alumínio, respectivamente. "Os EUA falaram em negociar porque abriram exceção para alguns países [México e Canadá]. Mas nós queremos saber quais os termos dessa negociação", afirmou Meirelles durante um no mesmo evento, em São Paulo. O ministro ressaltou, entretanto, que não acredita que o melhor caminho para resolver o impasse seja a retaliação. A posição do Brasil contraria a reação de vários países, como os da União Europeia, que já ameaçaram retaliar, impondo taxas a produtos importados dos Estados Unidos.
Na visão de Meirelles, o impasse gerado pelo Governo Trump pode, de alguma maneira, render frutos positivos, já que permite o avanço do debate de outros acordos comerciais. “Essa questão mobiliza o mundo e avança diversas resistências para acelerar a negociação do Mercosul com a União Europeia, por exemplo. Isso que é o mais relevante que vejo de tudo isso”, explica. O ministro citou, por exemplo, a assinatura do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês) sem os americanos um dia após a decisão de Trump de sobretaxar as importações no país. “Será que é coincidência? O Brasil agora pode se aproximar mais da Aliança do Pacífico também. As conversas com o Reino Unido, que só poderão se concretizar após o Brexit, também se aceleram. Acho que isso é um efeito importante. É negativo para indústria e para o consumidor americano. Tanto por encarecer o produto, mas também por permitir esse tipo de movimento, que cria um fluxo de comércio maior entre outras regiões do mundo”, disse.
Por outro lado, o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, avaliou que, caso o Estados Unidos não volte atrás na decisão da sobretaxa, a medida afetará um setor importante da economia e deve desencadear uma guerra de retaliações mundial que não deve favorecer o crescimento dos países. “Especialmente em um momento que a economia mundial está bem, crescendo, pode afetar gravemente esse avanço mundial. É um problema de sistema, que nos preocupa”, afirmou ao EL PAÍS após participar de um painel no evento.
O ministro afirmou que a primeira opção do Brasil é o diálogo com Trump e as empresas americanas que importam aço brasileiro. Nunes destacou, ainda, que Brasil e Estados Unidos sempre tiveram uma boa relação e participaram juntos do Fórum Mundial do Aço. “Nós temos nesta matéria cooperação dos EUA. Temos empresas siderúrgicas brasileiras instaladas lá. Importamos cerca de 1 bilhão dólares de carvão mineral deles. São pontos que temos que examinar com o Governo americano parar a mostrar que para o Brasil não é uma questão de segurança nacional. Existe, da nossa parte, um otimismo de que eles possam reverter essa política”.
O Brasil está entre os países que mais devem ser afetados pela medida que intensifica a política que elegeu Trump em 2016, da "América em primeiro lugar". Um terço do aço exportado no Brasil tem como destino o mercado dos EUA. Em 2017, o aço vendido aos norte-americanos somou 4,8 milhões de toneladas e gerou uma receita de 2,63 bilhões de dólares (8,58 bilhões de reais), o que faz do Brasil o segundo maior fornecedor do produto para os Estados Unidos, atrás apenas do Canadá.
El País: O físico Stephen Hawking morre aos 76 anos
O reconhecido pesquisador britânico, que popularizou a ciência, faleceu em sua casa em Cambridge
“Estamos profundamente entristecidos com o falecimento do nosso amado pai hoje”, dizem seus três filhos, Lucy, Robert e Tim, em nota publicada na primeira hora da manhã de quarta-feira. “Era um grande cientista e um homem extraordinário cujo trabalho e legado sobreviverão por muitos anos. Sua coragem e persistência, com seu brilho e humor, inspiraram pessoas no mundo inteiro. Certa vez disse: ‘O universo não seria grande coisa se não fosse lar das pessoas que você ama’. Sentiremos sua falta para sempre”.
Aos 22 anos foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, ELA, e os médicos lhe deram apenas dois anos de vida. Mas viveu mais 54 anos. A doença o deixou em uma cadeira de rodas e incapaz de falar sem a ajuda de um sintetizador de voz. Reduziu o controle de seu corpo à flexão de um dedo e ao movimento dos olhos. Seu intelecto avassalador, sua intuição, sua força e seu senso de humor, combinados com uma doença destrutiva, transformaram Hawking em símbolo das infinitas possibilidades da mente humana, e de sua insaciável curiosidade.
“Apesar de haver uma nuvem sobre meu futuro, descobri, para minha surpresa, que desfrutava mais do que nunca da vida no presente”, disse em uma ocasião. “Meu objetivo é simples. É um completo conhecimento do universo, por que ele é como é e por que existe”.
Amigos e colegas da Universidade de Cambridge prestaram uma homenagem produzindo um vídeo sobre a trajetória de Hawking – referindo-se a ele como o “professor Hawking”, como era mencionado no mundo da ciência – e um texto em cujo penúltimo parágrafo se resume uma palestra do professor em seu 75º aniversário: “Foi um momento glorioso estar vivo e pesquisar sobre física teórica. Nossa imagem do Universo mudou muito nos últimos 50 anos, e estou feliz de ter feito uma pequena contribuição”.
O professor Stephen Toope, vice-reitor da Universidade de Cambridge, também o homenageou com estas palavras: “O professor Hawking foi um pessoa única que será lembrada com carinho e afeto não só em Cambridge, mas no mundo inteiro. Suas contribuições excepcionais para o conhecimento científico e a popularização da ciência e a matemática deixaram um legado indelével. Sua personagem foi uma inspiração para milhões. Ele fará falta.”
Nascido em 8 de janeiro de 1942 em Oxford (embora sua família morasse em Londres), Stephen William Hawking já se destacava no colégio do St. Albans, cidade para onde seu pai se mudou. Ali os colegas o apelidaram de “Einstein” por seu interesse pela ciência.
Hawking saltou para a fama junto a seu colega Roger Penrose no final da década de 1960. O motivo, sua teoria da singularidade do espaço-tempo. Os dois físicos aplicaram a lógica dos buracos negros ao universo inteiro, assunto que o primeiro detalharia mais tarde para o grande público em Uma Breve História do Tempo, do Big Bang aos buracos negros (1988).
A partir dos 21 anos, a doença condicionou a vida de Hawking. A ELA destruiu pouco a pouco seu corpo, sua capacidade motora, seus músculos. Primeiro deixou-o em uma cadeira de rodas e logo tirou a capacidade de falar. Além de seu brilhantismo e suas qualidades de divulgador, Hawking se transformou em uma estrela mundial por causa da obstinação com que se agarrou ao mundo. Em 1985, uma pneumonia piorou sua saúde, obrigando-o a respirar por um tubo. Nunca mais pôde usar a voz. O físico optou então por um artefato eletrônico, um sintetizador de voz, para driblar o silêncio. A voz robótica do Stephen Hawking se transformou em parte de sua lenda.
"Look up at the stars and not down at your feet" - Professor Stephen Hawking
1942-2018 http://www.cam.ac.uk/stephenhawking
Os buracos negros marcaram sua vida. Em janeiro de 2014 apresentou um polêmico artigo defendendo que não existiam. Ao menos que não existiam da forma como eram entendidos até então. Um buraco negro é um lugar de grande densidade e energia. A teoria dizia que a partir de certo ponto, a energia – a luz – não poderia escapar de sua gravidade. Hawking argumentou que poderia sim, que não existia um horizonte de eventos, isto é, um ponto de não retorno, mas um horizonte aparente. Assim, o buraco negro conteria a energia durante algum tempo antes de deixá-la escapar.
Em entrevista concedida ao EL PAÍS em 2015, o físico se referiu à vida extraterrestre, uma de suas últimas obsessões. “Se os extraterrestres nos visitassem, o resultado se pareceria muito ao que aconteceu quando Colombo desembarcou na América: não foi bom para os nativos americanos. Esses extraterrestres avançados poderiam se tornar nômades e tentar conquistar e colonizar todos os planetas a que pudessem chegar. Para meu cérebro matemático, de números puros, pensar em vida extraterrestre é algo totalmente racional. O verdadeiro desafio é descobrir como poderiam ser esses extraterrestres.”
#Breaking Professor Stephen Hawking has died at the age of 76, a spokesman for his family said
O diretor do Instituto de Astrofísica das Canárias (IAC), Rafael Rebolo, recorda Hawking como uma “mente brilhante presa em uma jaula”, depois de conversar com ele em suas três visitas a suas instalações. Dessa relação surgiu a ideia de nomeá-lo professor honorário do IAC, coisa que o britânico aceitou de bom grado. “Tinha grandes inquietações e sempre tentava formular perguntas sobre nosso trabalho, se encontraríamos planetas similares à Terra”, relembra Rebolo, que não se esquece da primeira pergunta que o famoso astrofísico lhe fez, se os telescópios Cherenkov que estão sendo instalados em La Palma poderiam confirmar a radiação de Hawking, chamada assim em seu nome. O IAC tinha planos de construir um edifício em suas instalações para dar um escritório a seu único professor honorário, e Rebolo insiste na ideia de levantar o edifício e dar-lhe o nome de Stephen Hawking, que dependerá do orçamento da prefeitura de Tenerife, informa Javier Salas de Tenerife.
Sua vida, tanto no âmbito profissional como no pessoal, foi um desafio aos limites. Hawking viajou por todos os continentes, incluindo a Antártida. Ganhou prêmios, entre eles o Fronteiras do Conhecimento da Fundação BBVA em 2016, mas não o Nobel. Casou-se duas vezes, foi pai de três filhos. Tornou-se uma espécie de ícone pop, que apareceu em séries como Os Simpsons e The Big Bang Theory, da qual se declarava fã. Celebrou seus aniversário de 60 anos subindo em um globo aerostático. Cinco anos depois, experimentou a gravidade zero a bordo de um Boeing 727. Quando lhe perguntaram por que fazia tudo isso, respondeu: “Quero demonstrar que as pessoas não devem se limitar por suas deficiências físicas se o seu espírito não estiver deficiente.”
El País: A reconquista do Extremo Oriente da Rússia
Kremlin promove o retorno dos descendentes de cristãos russos perseguidos por suas crenças, a fim de repovoar e trabalhar as terras de seus ancestrais. Alguns deles estavam no Brasil
Dersu, uma aldeia composta por cabanas de madeira cobertas de neve, foi o principal destino dos imigrantes de origem russa que vieram da América Latina para cumprir os planos de Moscou para a colonização do Extremo Oriente. Vivem aqui 74 Velhos Crentes, ou seja, membros da comunidade cristã que foi perseguida por se opor à reforma litúrgica do patriarca ortodoxo Nikon no século XVII. Os raskolniki, como são conhecidos, se dispersaram pela periferia da Rússia, e uma parte deles partiu para o exílio. A maioria dos que chegam à Rússia atualmente completa um périplo ao redor do mundo, que teve início na China, aonde se refugiaram da Revolução Bolchevique e da guerra civil, e prosseguiu na década de sessenta no Uruguai, no Brasil e na Bolívia, quando as relações entre Moscou e Pequim se deterioraram.
Ulian Murashov, de 53 anos, é o chefe da comunidade de Velhos Crentes de Dersu e, junto com sua esposa, Ksenia, e seus 12 filhos, chegou a esta localidade em 2012, em busca de um lugar mais apto à agricultura e à pecuária do que os apartamentos da guarnição militar na fronteira com a China, onde as autoridades os alojaram durante um ano depois que eles vieram da Bolívia. Nesse país sul-americano, o casal Murashov cultivava dezenas de hectares na província do Obispo Santistevan, no departamento da Santa Cruz (leste). Antes de empreenderem a viagem à Rússia, a pátria de seus antepassados, venderam tudo o que tinham. Suas atividades na Rússia são as mesmas que desempenhavam na Bolívia, com a diferença de que o clima nesta região só permite uma safra por ano. Os Murashov e os parentes que os acompanharam a Dersu dispõem de quase 2.200 hectares de terras, entre adquiridas e arrendadas. A família tem 100 cabeças de gado e vende laticínios e pão uma vez por semana no mercado de Roschino, a 36 quilômetros da sua aldeia.
Os Murashov parecem a reencarnação dos avós e bisavôs, cujos retratos estão pendurados na parede da sua izba (moradia típica). Ksenia usa vestido comprido e um lenço na cabeça. Ulian ostenta uma longa barba avermelhada. “Na Bolívia me chamavam de gringo”, brinca, num castelhano marcado pelo sotaque brasileiro. Ulian conseguiu rapidamente o passaporte russo, mas conserva também o passaporte do Brasil, país onde viveu antes de se mudar para a Bolívia. Daí o seu modo peculiar de se expressar.
“A primeira impressão que nos deram, pela roupa e pela maneira de falar em russo, foi a de uma representação teatral de outra época”, diz Fedor Kronikovski, que desde o verão passado é o defensor oficial dos direitos dos Velhos Crentes imigrados. Antes de ter sido nomeado, duas casas pertencentes aos Velhos Crentes queimaram em Dersu e o metropolita Korniliy transmitiu ao presidente Vladimir Putin sua preocupação com os membros de sua comunidade.
O líder dos Velhos Crentes e o chefe do Estado russo se entenderam nos primeiros contatos jamais mantidos entre o chefe do poder civil na Rússia e o mais alto dignitário daquela Igreja. Um grupo de trabalho especial dedicado aos Velhos Crentes foi criado na Administração do Kremlin e a agência governamental de desenvolvimento do capital humano do Extremo Oriente planeja uma visita ao Brasil, Bolívia, Uruguai e Argentina em abril para incentivar as comunidades locais de Velhos Crentes — entre 3.000 e 5.000 pessoas — a retornar à sua pátria histórica: o leste da Rússia. Em Moscou temem que a captação de novos imigrantes possa ser afetada por problemas em relação aos correligionários que já emigraram para a Rússia.
“Será que somos tão valiosos? Minhas lágrimas caem e estou profundamente agradecido quando penso na atenção impressionante dada pelo Estado [russo], mas as autoridades locais não têm interesse nesse programa de assentamento e muitos aqui nos encaram como parasitas e nos rejeitam”, diz Ulian. “Eu sei que o Governo está lutando, mas tem de renovar as prefeituras, que estão nas mãos das máfias”, diz o colono, preocupado também com a hostilidade de parte da vizinhança.
“Os Velhos Crentes destroem a cumplicidade entre as autoridades locais que quase não possuem recursos e os empresários que tentam influenciá-las por meio do dinheiro”, diz Kronikovski, segundo o qual “aqueles que contemplam os Velhos Crentes de uma posição egoísta são minoria”. “A maioria”, diz ele, “quer ajudá-los porque pensam que o país precisa deles, porque sua fé é uma garantia de imunidade contra a degradação e porque na Rússia atual não existe gente assim”.
Na espaçosa sala de estar dos Murashov, os dois filhos mais jovens, Agripina, de sete anos, e Filaret, de 12, observam o estrangeiro com curiosidade. Sua escolarização é feita por uma professora que dá aulas a domicílio duas vezes por semana. Nestes dias estão alojados na casa de Fedor Kilin e sua esposa Tatiana, os pais de Ksenia, que vieram fazer uma visita desde Svobodna, seu local de residência na vizinha província de Amur. Esses octogenários nascidos na China viveram mais tarde no Uruguai. Depois de uma missão de reconhecimento na Rússia em 2008, Fedor Kilin foi um dos pioneiros do retorno ao país dos czares. O primeiro grupo de colonos disposto a se instalar em Dersu chegou no dia da Páscoa de 2009. Kronikovski e o pope da Igreja Ortodoxa de Roschino receberam o grupo com uma mensagem acima das diferenças litúrgicas: “Cristo ressuscitou”.
Roschino, de 6.000 habitantes, fica a 500 quilômetros ao norte de Vladivostok e no passado tinha um aeroporto do qual se voava para as principais cidades próximas. A retomada das comunicações aéreas é pouco provável por enquanto. Na pista de pouso foram construídas casas e a torre de controle foi transformada em igreja. De Roschino a Dersu não há estrada asfaltada e, guiados por Kronikovski, se atravessam cerca de 36 quilômetros sobre o gelo e o também congelado rio Bolshaia Usurinka.
Dersu recebeu esse nome em homenagem ao caçador Dersu Uzala, imortalizado por Akira Kurosawa, o cineasta japonês que levou às telas a história do geógrafo e oficial czarista Vladimir Arsenev. A aldeia se chamava anteriormente Lauliu, mas os nomes de lugares chineses ou de comunidades autóctones do Extremo Oriente foram substituídos depois do confronto militar russo-chinês de 1969 em Zhenbao (Damanski para a Rússia), uma ilha do rio Usuri, que é fronteira entre os dois países. Zhenbao está na área de mais de 300 quilômetros quadrados que a Rússia cedeu à China em virtude de um tratado bilateral ratificado em 2005.
Os Velhos Crentes constroem grandes izbas em Dersu. Os Murashov têm um poço e uma bomba, razão pela qual abrigam em sua cozinha as máquinas de lavar automáticas de outras famílias da comunidade.
A família tem receio dos jornalistas em geral, mas se mostra hospitaleira com este jornal e a língua castelhana alternada com o russo soa exótica nestas paisagens nevadas. Ksenia nos oferece chá, pão e geleia caseiros, enquanto Ulian e o defensor de seus direitos se envolvem em um debate sobre o equipamento agrícola que a empresa estatal de petróleo Rosneft deu à comunidade. O equipamento é para todos, mas deve ser registrado em nome de apenas uma pessoa e Ulian teme que o titular tenha que assumir as reparações do maquinário enquanto os outros o usam sem responsabilidades.
Kronikovski tenta convencê-lo das virtudes do trabalho em comum, mas Ulian diz que se sente mais à vontade com a colheitadeira que construiu a partir de sucata. “Tudo o que preciso é terra e um pouco de ajuda para comprar sementes e combustível. Os empréstimos bancários, que devem ser reembolsados todos os meses, não foram pensados para a agricultura, e as subvenções do Estado são muito burocráticas”, diz o colono, a quem o Governo russo pagou a viagem e o transporte de pertences desde a América Latina e ajudou com uma subvenção financeira.
Ulian também se queixa da especulação dos intermediários e Kronikovski admite que “os empresários chineses são mais atraentes do que os russos porque oferecem equipamentos e créditos aos agricultores em troca de comprar-lhes toda a colheita”. “Moscou deveria se preocupar mais e tornar mais vantajoso trabalhar para os seus empresários”, diz.
Os Velhos Crentes não fumam nem bebem e têm prole numerosa. Também são críticos e teimosos. Possuem uma moral de trabalho rigorosa e um profundo senso de responsabilidade. De Moscou, o Estado os trata como se fossem espécimes de uma fauna rara e apreciada. Os vizinhos desses imigrantes os veem, no entanto, de outra maneira. Este jornal ouviu como Ulian e um de seus filhos, barbudo como ele, foram insultados em voz baixa por uma mulher que passou perto deles em Roschino. Segundo contam, a mulher era amiga da acusada de incendiar as casas de Dersu. Tatiana, aposentada, resmunga porque aos novos vizinhos “se dá tudo” e ela só tem uma pensão de 11.000 rublos (cerca de 626 reais) que não é suficiente “nem para pagar a lenha”.
Venedikt Reutov, de 25 anos, outro Velho Crente estabelecido na aldeia de Liubitovka, a duas horas de carro de Dersu, também teve conflitos com os vizinhos. Ele chegou da Bolívia em 2014, com os pais e os irmãos. Venedikt casou-se na Rússia com Faina, criada em uma comunidade de Velhos Crentes na província de Khabarovsk. Venedikt confessa que às vezes se desespera e tem vontade de abandonar tudo. O mesmo acontece com seus irmãos, mas “não sabem para onde ir”. Ele conta que um líder local, atualmente preso, roubou-lhe 5,3 milhões de rublos (cerca de 301.618 reais) e que de sua opinião agora depende que o coloquem em liberdade condicional. “Deveria dizer que o deixem preso até que pague o que me roubou.” Entre as experiências negativas, Venedikt Reutov conta os 700.000 rublos que foi obrigado a entregar a uma pessoa que inesperadamente reclamou direitos de propriedade do terreno de 270 hectares que ele estava comprando. Dos 630.000 dólares que a venda de seu patrimônio na Bolívia lhe proporcionou, não resta quase nada, diz.
Venedikt e Faina se consideram pessoas modernas e se distanciam das tradições de sua comunidade de Velhos Crentes, reticente em relação a telefones, computadores e inclusive à eletricidade. De fato, eles se conheceram através da rede social Facebook e têm WhatsApp e Instagram em seus celulares. Eles sorriem para as fotos e sonham em ir de férias aos Estados Unidos, onde vivem seus parentes, membros da diáspora dos Velhos Crentes russos. Da América Latina, Venedikt sente falta de cocos, mangas e das três colheitas anuais.
El País: China aprova reforma constitucional que perpetua Xi no poder
Apenas dois dos quase 3.000 delegados votaram contra, e três se abstiveram
Xi foi o primeiro dos quase 3.000 delegados a depositar seu voto, num envelope-padrão de cor salmão, dentro de uma grande urna vermelha com o brasão nacional. Uma intensa ovação ecoou na sala quando o presidente, secretário-geral do Partido Comunista e chefe da Comissão Militar Central se levantou de seu assento para votar.
Há duas semanas, quando foi anunciada a decisão do Comitê Central do Partido de eliminar os limites para o número de mandatos presidenciais, registraram-se insólitos protestos nas redes sociais chinesas, antes que a censura se encarregasse de eliminá-los.
A reforma, que extingue o limite de dois mandatos de cinco anos para o chefe de Estado, põe fim à era de lideranças coletivas iniciada por Deng Xiaoping em 1982 com o objetivo de evitar os excessos da era de Mao Tsé-tung. Xi, de 64 anos, teria de deixar o cargo ao final do seu segundo mandato, em 2023, como já fizeram seus antecessores imediatos, Jiang Zemin e Hu Jintao.
O Governo chinês justifica a medida argumentando que a chefia do Estado é parte de uma tríade de cargos responsáveis pela gestão do país, sendo que para os outros dois – a presidência do Comitê Militar Central e a Secretaria Geral do PCC – não há limite de mandatos. O objetivo, portanto, seria harmonizar as regras de permanência nessas três funções, geralmente exercidas pela mesma pessoa.
Os defensores da reforma também alegam que Xi precisa de mais tempo para implementar seus projetos de reformas econômicas e tornar realidade sua visão de um “Sonho Chinês”, que transformaria o país em uma grande potência até meados deste século. Outros, porém, se mostram céticos e apontam para o perigo de que um líder perpétuo, sem um sistema de controle real sobre seu poder, possa cometer erros que prejudiquem toda a nação.
“Esta reforma deveria nos levar a uma China moderna, a uma sociedade onde impere o Estado de direito. Do contrário, seria andar para trás”, afirma o professor e comentarista Hu Xindou. “Muitos respaldam que ele fique no poder durante um longo período. Mas entre os intelectuais há gente que pode ter ideias diferentes, e muitos se opõem a isso”, acrescenta.
Desde sua chegada ao poder, em 2012, Xi vem ampliando gradualmente seu controle sobre o país, amparando-se numa intensa campanha de combate à corrupção que já afastou quase 1,5 milhão de funcionários públicos dos seus cargos. Ele também intensificou as restrições sobre a sociedade civil e a Internet. Advogados de direitos humanos e ativistas foram condenados a duras penas de prisão.
A reforma inclui também uma série de cláusulas que reforçam o papel dirigente do Partido Comunista no país. Uma delas prevê que esse papel é o traço principal do “socialismo com características chinesas”. Outra inscreve na Constituição o “Pensamento de Xi Jinping para uma Nova Era”. Uma terceira abre o caminho para a criação de uma nova Comissão Nacional de Supervisão, que aumenta a vigilância sobre os funcionários públicos chineses e que, dentro da hierarquia de poder, estará acima do Ministério Público e dos tribunais.
El País: Forças radicais avançam na Itália em um cenário sem maiorias claras
Movimento 5 Estrelas cresce de maneira espetacular, mas a coalizão de centro-direita tomaria a liderança sem conseguir as cadeiras necessárias
As pesquisas estavam quietas há duas semanas e nenhuma referência servia, nem mesmo a das últimas eleições, em 2013. A Itália foi às urnas nesse ano com uma lei eleitoral diferente, uma votação que foi até a manhã de segunda-feira e um partido que teve uma excepcional votação sem ter sequer um candidato. Dessa vez, 46 milhões de italianos deveriam resolver um problema que as pesquisas prognosticavam há semanas.
De acordo com as primeiras pesquisas de boca de urna para a rede de televisão RAI (80.000 pessoas entrevistadas) o bloqueio seria inevitável. O Movimento 5 Estrelas ganharia as eleições com um ótimo resultado (por volta de 30%), mas não seria capaz de chegar à maioria necessária. A coalizão de centro-direita superaria o M5S em quatro pontos percentuais, mas seu resultado, pior do que o esperado, também não ajudaria a desbloquear a situação.
As duas forças políticas de maior destaque no sábado – o Movimento 5 Estrelas e a coalizão de centro direita – tinham a calculadora no sul da Itália. Lá a disputa seria realmente decidida. As fileiras de Silvio Berlusconi e companhia davam como certa a vitória no Norte. Mas as regiões da Sicília, Campania, Puglia e Lazio seriam a pedra Rosetta do enigma eleitoral italiano, o mais incerto da história de um país cuja política não é exatamente simples de se decifrar.
Mas o M5S estava bem avançado na conquista desse território. A participação dos eleitores aumentou, o que beneficiaria o partido de Beppe Grillo que conseguiu o máximo do que poderia esperar: frear a centro-direita, obter um resultado que obrigará a levá-los seriamente em consideração no cenário dos pactos pós-eleitorais. Mas se os resultados se confirmarem, a voz de comando continua sendo a da centro-direita, em plena luta interna pela liderança da coalizão entre Matteo Salvini – as pesquisas davam um empate – e Berlusconi.
Mas a soma dos números do Força Itália, o partido de ultradireita populista da Liga e o Irmãos da Itália não seria suficiente para governar. De modo que vários cenários se abrirão. Incluindo o que a própria coalizão pescará no mar de outros partidos para conseguir uma base suficiente.
Desde o fim da publicação das pesquisas há duas semanas, os números falavam de um complicado quebra-cabeças dividido em três blocos: a centro-direita, a centro-esquerda e o M5S. A gravidade do assunto e a pressa em solucioná-lo, de qualquer forma, serão marcadas pelos mercados e prêmios de risco que começarão a incomodar se o bloqueio não for solucionado.
Evitar o caos
O presidente da República, Sergio Mattarella, e as instituições do país já trabalham em um cenário de consultas e pactos para evitar o caos. Os mercados, evidentemente, preferem uma grande coalizão entre a centro-esquerda – o Partido Democrático (PD) de Matteo Renzi + o Europa de Emma Bonino – e o Força Itália, um artefato político parecido ao que no sábado recebeu o sinal verde definitivo na Alemanha. Nesse caso, deverá encontrar uma figura de consenso, talvez externa à Câmara – como já aconteceu com Mario Monti – que lidere a Grande Coalizão italiana. Mario Draghi ultimamente aparece nas apostas. Mas além dessas variáveis, existem outras duas soluções de emergência que contemplariam um grande resultado do Movimento 5 Estrelas.
O partido fundado por Beppe Grilo deverá fazer sacrifícios se quiser fazer parte de um Executivo. O mais claro, renunciar a sua promessa de não formar alianças de Governo. Dentro do M5S falou-se do assunto durante toda a semana. Os números nunca lhe deram uma maioria. E uma possibilidade evidente seria formar um Executivo com o PD de Renzi e a esquerda do Livres e Iguais.
A outra, a que mais inquieta os mercados e a União Europeia, levaria o M5S a aproximar-se da Liga (que nas últimas eleições só obteve 4,1%) e seu pequeno aliado, os pós-fascistas Irmãos da Itália. Essa é a preferência de personagens como Steve Bannon, o ex-assessor do presidente dos EUA, Donald Trump, que está por esses dias em Roma como entusiasta das opções mais populistas (dito por ele mesmo).
Mas alguns dos cenários que se abririam não mudaram tanto. Em 2013, o então secretário geral do PD, Pier Luigi Bersani, já tentou um pacto com o M5S, o famoso Governo de mudança que lhe custou o cargo apesar de ter obtido um bom resultado (24,5%). Para Renzi, entretanto, seria uma partida complicada, a negação de tudo o que prometeu até agora em relação a não se acertar com os “extremistas”. Uma aliança que poderia fagocitar definitivamente o PD.
A militância do M5S também não vê com bons olhos essa opção. Os interesses pessoais, entretanto, podem fazer muitos mudarem de opinião. O partido liderado agora por Luigi di Maio não permite que seus representantes se apresentem a mais de dois mandatos. Uma regra que afeta o próprio candidato a primeiro-ministro, que está agora em sua segunda legislatura. Se precisarem repetir as eleições, não poderá concorrer. Um dado que poderá ajudá-lo a reconsiderar algumas de suas promessas. Qualquer cenário será submetido às bases mediante uma votação telemática, como em outras ocasiões.
SALVINI DISPUTA COM BERLUSCONI A LIDERANÇA DA COALIZÃO
Uma das batalhas mais apaixonantes dessas eleições foi a disputada silenciosamente pelo Força Itália e a Liga para liderar a coalizão de centro-direita. Silvio Berlusconi e Matteo Salvini acertaram que quem obtivesse mais votos escolheria o candidato a premier da coalizão. No caso do Força Itália é o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani. No da Liga, o próprio Salvini quer ser o candidato à presidência do Conselho de Ministros.
De acordo com as pesquisas de boca de urna realizadas pelas empresas EMG, Piepoli e Noto para a RAI no fechamento dos colégios eleitorais, os dois partidos estariam empatados. Uma disputa implacável que pode acabar significando um golpe de efeito no caso da contagem terminar favorável à Liga. O resultado acrescentará agressividade à fase pós-eleitoral onde deverão ser forjados os possíveis pactos de Governo. O partido de ideais inspirados no francês Le Pen é um fenômeno levantado pela crise imigratória, com a chegada de 600.000 pessoas na Itália nos últimos cinco anos e que se transformou em seu cavalo de batalha.
O sucesso da Liga também poderá abrir a janela ao cenário mais temido pela União Europeia e os mercados. Ou seja, um pacto entre o partido de Salvini e o Movimento 5 Estrelas, que também flertou nos últimos cinco anos com a ideia de convocar um referendo sobre o euro.
A liderança da Liga também desativará a opção Tajani, que continuaria em seu cargo à frente do Parlamento Europeu. Mas dificilmente seria aceitável pelo establishment e pelas instituições italianas, inquietas pelo discurso antieuropeu de Salvini, que prometeu que a Itália sairá da moeda única se a Europa não concordar em negociar todos os tratados que prejudicam seu país.
El País: Dentro da fábrica russa de mentiras
Centenas de pessoas trabalham desde 2014 em um conjunto de escritórios de São Petersburgo. Sua missão é espalhar boatos pela comunicação na Internet, favoráveis ao Kremlin
Por Pilar Bonet, do El País
A guerra e o “fascismo” na Ucrânia, a “decadência” da Europa, os problemas financeiros da Grécia; o presidente dos EUA, Barack Obama, e a chanceler alemã Angela Merkel. Todos esses assuntos eram alvo dos comentários críticos que a “fábrica de mentiras” de São Petersburgo gerava quando Marat Mindiarov, de 43 anos, passou por aquela engrenagem, de 15 e dezembro de 2014 a 15 de fevereiro de 2015.
Em um café de São Petersburgo Mindiarov contou nessa semana sua experiência ao EL PAÍS. Poucos dias antes, o departamento de Justiça dos EUA publicou o relatório do promotor especial Robert Mueller sobre as supostas ingerências russas nos processos políticos norte-americanos de 2014 até hoje, incluindo as eleições de 2016.
O relatório Mueller denuncia a Agência de Investigação da Internet (AII) pela criação e uso de contas com identidades falsas e de fora do país para comprar anúncios e pagar serviços nos EUA, mediante recursos técnicos localizados naquele país e também de utilizar cidadãos norte-americanos que não sabiam de sua participação na trama criminosa arquitetada na rua Savuchkina número 55, em São Petersburgo.
O principal envolvido na lista de 13 pessoas do promotor Mueller é Yevgeny Prigozhin, fundador de um poderoso império de catering graças às suas boas relações com a classe dirigente russa. Prigozhin é acusado de financiar através de várias empresas as ingerências na política norte-americana e nas eleições presidenciais de 2016.
Mindiarov, que trabalha atualmente como carteiro, diz estar muito satisfeito com o relatório de Mueller e acha que após sua publicação “nada será como antes”. Na chamada “fábrica de mentiras”, nosso interlocutor foi somente uma pequena peça em uma máquina de propaganda que, de acordo com investigações do serviço RBK, evoluiu e se diversificou com o tempo até chegar a criar um verdadeiro império da informação no qual estão pelo menos 16 veículos de comunicação de orientação “patriótica”. Esses veículos, segundo o RBK, se aglutinam em torno da chamada Agência Federal de Notícias e ocupam posições de liderança nos buscadores russos.
Em seu formato original, puramente propagandístico, a fábrica é parte de uma reação às manifestações de protestos contra as irregularidades nas eleições parlamentares e presidenciais de 2011 e 2012. “O Kremlin percebeu à época que havia abandonado a Internet nas mãos da oposição e dos setores liberais pró-ocidentais e começou a sanar esse problema”, diz um diretor da área da comunicação muito bem informado, que prefere não ser citado. A fonte afirma desconhecer qual é o mecanismo de ligação entre a “fábrica de mentiras” e as estruturas estatais russas e lembra do pouco interesse demonstrado por Putinem relação à Internet no passado.
Mindiarov chegou à “fábrica de mentiras” quando estava prestes a ficar desempregado, pois o hotel em que trabalhava iria fechar. Um dos clientes escrevia comentários para o estabelecimento da rua Savuchkina e o encorajou a tentar a sorte. Após um exame de fluidez verbal e ortografia e uma pesquisa sobre sua orientação ideológica, o colocaram para escrever textos. Trabalhava 12 horas por dia (dois dias seguidos e dois livres), por um salário que variava entre os 40.000 e 50.000 rublos (2.300 a 2.875 reais). Segundo ele, fazia parte de uma “brigada” de 20 pessoas instaladas em um escritório. Em cada um dos quatros andares do edifício existiam de oito a dez escritórios com número análogo de funcionários. De modo que, segundo Mindiarov, no local trabalhavam várias centenas de pessoas.
Seguindo as diretrizes por e-mail dos tutores, a brigada desenvolvia o assunto da vez. Obama era “um filão inesgotável”, segundo nosso interlocutor. Às vezes, “ocorriam situações absurdas”, como tirar proveito do momento em que Obama tirou o chiclete da boca em uma cerimônia oficial durante uma visita à Índia. A brigada de Mindiarov “inventou quatro ou cinco personagens” que interagiram na Rede, um deles a favor do líder norte-americano e o restante, contra. O resultado foram 135 comentários sobre a “degradação dos costumes na América”, diz. “Às vezes, os noticiários da televisão estatal reproduziam os assuntos nos quais nós trabalhávamos com a mesma ordem e orientação”, diz.
Uma empresa paramilitar
Mindiarov lembra da visita natalina à uma Igreja feita pelo presidente. “Putin era constantemente elogiado e tanto elogio se tornava chato. Era um trabalho monótono e exaustivo. Não havia condições para ser criativo”, afirma. Os comentaristas colocavam suas mentiras em páginas da Internet de províncias russas. Mindiarov diz não ter entrado em contato com outros comentaristas do escritório internacional, dirigido a uma audiência fora da Rússia. No recrutamento de pessoal para agir no Facebook, um trabalho que oferecia um salário melhor do que sua seção, não foi aceito por seu nível baixo de inglês.
Dzheijun Nasimi Ogly Aslanov, que dirigiu aquele recrutamento de funcionários para o Facebook, está agora na lista do promotor Mueller e pode ser extraditado se viajar a países com os quais Washington tem convênio de extradição. Segundo Mindiarov, Aslanov se diferenciava humanamente no grupo de “personagens indiferentes” – estudantes, pessoas que não finalizaram os estudos –, concentrados na “difusão de mentiras” nas quais só “alguns loucos” acreditavam e que proclamavam suas ideias na cozinha, quando interrompiam seu trabalho para comer.
Enquanto ingeriam o conteúdo de suas marmitas, “frequentemente brincávamos sobre como era possível que nas estruturas do “cozinheiro do Kremlin” [Prigozhin] não existia nem mesmo uma cantina”, diz. Mindiarov não assinou nenhum contrato, não tinha documentos que comprovavam sua função como colaborador da agência e recebia o salário em espécie. Uma vez foi repreendido por confundir o presidente da Ucrânia Víktor Yanukóvytch com seu sucessor, Piotr Poroshenko, e criticar o primeiro no lugar do segundo. Esperou o dia do pagamento e saiu sem se despedir.
A experiência de Mindiarov é anterior ao envolvimento da AII na campanha eleitoral norte-americana. Em uma investigação do RBK, publicada em outubro, afirma-se que a tarefa de desacreditar a imagem dos candidatos norte-americanos foi designada no começo de 2015.
Entre as estruturas ligadas a Prigozhin está a empresa paramilitar privada Wagner, agora centro de atenção pública pelas incógnitas sobre seus efetivos mortos na Síria. Essas duas instituições – a fábrica de mentiras e a Wagner – podem ser consideradas como um exemplo da tendência do Estado de praticar o outsourcing (externalização) de operações arriscadas para sua própria legitimidade, segundo a cientista política Yekaterina Schulman. Na emissora O Eco de Moscou, a especialista alertou sobre o preço de tal “deslocalização”, que pode ser traduzida como uma erosão desse mesmo Estado.
DA BANQUINHA DE CACHORRO QUENTE AO IMPÉRIO GASTRONÔMICO
Yevgeny Prigozhin, mais conhecido como “o cozinheiro do Kremlin”, começou sua carreira em Leningrado (hoje São Petersburgo) vendendo cachorros quentes, como contou em 2011 em uma entrevista ao site Gorod-812.ru.
Sem terminar seus estudos superiores como químico farmacêutico, Prigozhin fundou vários restaurantes na cidade do rio Neva. Um deles, o “Staraya Tamozhnya”, se transformou no local de encontro entre políticos russos e clientes estrangeiros. O empresário, então, passou a alimentar os participantes de eventos como as reuniões do G-8 (a reunião das maiores potências mundiais da qual a Rússia foi excluída em 2014).
Prigozhin disse ter conhecido Putin quando este foi a um de seus restaurantes acompanhado pelo primeiro-ministro japonês Isiro Mori (em 2000). Posteriormente, Putin voltou ao restaurante em companhia de George Bush, que viajou a São Petersburgo em 2006.
Após seu sucesso como restauranteur, Prigozhin empreendeu a aventura do “catering” dirigido a instituições de ensino, do funcionalismo púbico e militares. O empresário se orgulha de ter fundado a primeira fábrica de refeições pré-prontas embaladas a vácuo da Rússia, que contou com a participação de Putin na inauguração em outubro de 2010.
“Putin viu como fiz negócios desde a banquinha de cachorro quente e como não me incomodo de levar pessoalmente os pratos a pessoas importantes, quando chegam a mim como clientes”, explicou.
As empresas alimentícias de Prigozhin agem como um cartel, diz o jornalista Alexandr Gorshkov, diretor do site de informações Fontanka.ru, que cita o Comitê Antimonopólio da Rússia. “Sempre ganham todas as concorrências das quais participam e os contratos com a administração dão bilhões de rublos a eles que são gastos na manutenção das empresas militares privadas”. “A fábrica de mentiras é parte de um enorme iceberg”, afirma Gorshkov, que atribui os mais de mil artigos críticos contra o Fontanka.ru que surgiram nas redes sociais russas desde agosto às informações sobre a empresa Wagner fornecidas por sua agência.
El País: “Trump quer dominar as mulheres a cada passo, quer sexo a cada minuto”, diz Michael Wolff
O autor de Fogo e Fúria, o livro que o presidente dos EUA quis proibir, explica em uma entrevista ao EL PAÍS as tensões vividas na Casa Branca
Pergunta (P). O sr. esperava este sucesso?
Resposta (R). De modo algum. Pensei que geraria alguma controvérsia, mas não nessa escala. Foi muito mais longe do que jamais pude imaginar.
P. A tentativa da Casa Branca de proibir seu livro ajudou?
R. Isso é óbvio. Mas tem algo mais. Em quatro semanas foram vendidos dois milhões de exemplares. Isso é único. Dá para sentir no ar a necessidade de encontrar sentido no que está ocorrendo com Trump e suas explosões diárias. O livro permite às pessoas concentrar tudo que está acontecendo em uma história, e também lhes reafirma que eles não estão loucos, o louco é ele.
P. O que aconteceu com o processo da Casa Branca e a acusação de calúnia?
R. Foram uma demonstração de que Trump não tem ideia do que faz. Nele tudo se reduz a eu-quero-eu-posso. Bem, pois não pode impedir a publicação de um livro. Longe de ter evitado que as pessoas lessem, o efeito foi impulsionar de forma astronômica sua venda.
P. Trump foi muito duro com seu livro. Disse que é falso, tedioso e nega ter conversado com você.
R. Eu teria me conformado de receber um tuíte cheio de raiva, mas que o presidente dos Estados Unidos tentasse barrar a publicação e entrasse com um processo foi além das minhas fantasias mais selvagens. Se é que é mesmo um idiota completo...
P. Vocês se conheciam, não?
R. Conheço-o desde que eu escrevia na The New York Magazine há 20 anos. Costumava me ligar para reclamar da revista, do que se dizia sobre ele, e com mais frequência do que não se dizia. Nós nos encontrávamos de vez em quando. Não diria que éramos amigos, mas mantínhamos relações amistosas. Mais tarde, em plena campanha, entrevistei-o para a Hollywood Reporter. Gostou do que fiz, me disse que eu era o melhor, o maior, o grande Wolff... sabe como é o Trump. Então quando ganhou, na transição, visitei-o na Trump Tower e pedi permissão para entrar na Casa Branca como observador. No início, acreditou que eu estivesse pedindo trabalho, mas disse a ele que não, que queria escrever um livro. E me respondeu que sim, claro, que tudo bem. E esse foi o passaporte. Obtive a autorização do presidente. As portas se abriram para mim e comecei a fazer parte da mobília.
P. E como é o ambiente na Casa Branca?
R. Caótico, intenso e hostil. Em muito pouco tempo a unidade se quebrou, estouraram as facções e deixaram de se falar uns com os outros. E isso me ajudou, porque recorriam a mim para saber o que pensavam os outros. Jared Kushner e Ivanka Trump para descobrir o que tinha me dito o estrategista-chefe, Steve Bannon; o chefe de gabinete, Reince Priebus, para saber o que todos eles diziam...
P. No livro, há personagens, como o falecido ex-presidente da rede Fox, Roger Ailes, que consideram que Trump não tem crenças.
R. É isso mesmo. Não tem crenças nem escrúpulos. Sua ideologia se limita ao faça-me feliz agora. Trump vive o momento, e no momento seguinte tudo pode mudar. Literalmente, ele vive em uma bolha de instantaneidade. Na Casa Branca todos se referiam a ele como uma criança. Às vezes de 16 anos, outras de nove, outras de dois. Mas sempre uma criança que precisa de gratificação imediata.
P. Mas é o presidente dos Estados, venceu as eleições, deve ter alguma virtude.
R. Sua virtude é que é espontâneo. Não dissimula. Inclusive quando mente, não o faz calculadamente. Não é falso. É o que se vê. É Donald Trump. E isso agrada muita gente.
P. Chegam a defini-lo como o Deus Sol. Não é exagero?
R. Ele mesmo se vê como o centro do mundo. É alguém que não tem capacidade para contextualizar e entender as coisas como os demais, com certa relatividade.
P. E não acha que com os anos possa se tornar um presidente convencional?
R. Impossível. Todos à sua volta chegam à mesma conclusão: não tem a capacidade analítica nem as habilidades para o posto. Vive o momento.
P. Qual a relação dele com as mulheres?
R. É um mulherengo, a vida toda passou correndo atrás das mulheres. Quer sexo a cada minuto do dia. Quer dominá-las a cada passo do caminho. As mulheres são o principal interesse de sua vida. Por isso criou seu próprio concurso de beleza.
P. E com sua esposa Melania?
R. Ele a mantém como um troféu. Todos os casamentos são de alguma forma um acordo, e neste caso há um pacto de formalidade e distância. Mal se veem.
“BANNON ACHAVA QUE TRUMP ERA UM PALHAÇO”
A relação entre Donald Trump e seu ex-estrategista-chefe, o radical Steve Bannon, se rompeu depois da publicação de Fogo e Fúria. O presidente considerou que Bannon estava por trás do ataque e empreendeu uma ofensiva que resultou em sua demissão do Breitbart News, o site em que se refugiou depois de sua saída da Casa Branca em agosto. Desde então, são inimigos.
Pergunta (P). Quem era seu guardião na Casa Branca?
Resposta (R). Provavelmente Bannon.
P. Há quem diga que ele influenciou o livro.
R. E é verdade, porque fala melhor que os outros e se deixa gravar.
P. Como é Bannon?
R. Inteligente, divertido, perspicaz...
P. Perigoso?
R. Perigoso?
P. Era o mais extremista do gabinete. E é considerado o representante da ultradireita.
R. É verdade que é visto assim, mas tenho uma opinião diferente. Não o considero um extremista, mas alguém comprometido com suas ideias, que não busca o poder pelo poder. Muito intelectualizado e movido pelos meios de comunicação...
P. Mas o site que dirigia, Breitbart News, não é um exemplo de moderação nem de intelectualidade, e sim um panfleto radical de direita e racista.
R. Não é um moderado, sem dúvida certo. Mas gosta é de criar meios de comunicação e conectar-se com a audiência. Um dia me disse que queria fazer um Breitbart de esquerda...
P. Desculpe, como o sr. se define politicamente?
R. Não tenho afiliação política... Bem, moro em Nova York, talvez seja de centro.
P. O vínculo de Trump com sua filha mais velha e assessora, Ivanka, é diferente?
R. Ela é a mais parecida com ele: 100% transacional. As pessoas da Casa Branca a descrevem como uma mini Donald Trump que organizou até sua vida matrimonial.
P. Muitos a consideram sua herdeira política.
R. Trump não pensa nisso. Não pensa no que virá depois.
P. Como Ivanka se dá com Melania?
R. Muito mal. Ivanka sempre falava mal dela e zombava de que acreditasse que Trump conseguiria chegar a presidente se candidatasse.
P. Bannon, em seu livro, afirma que o presidente tem 33% de probabilidade de impeachment, 33% de se demitir e outro tanto de finalizar o mandato, mas não será reeleito. Acredita nisso?
R. Não sei se com essas porcentagens. Mas concordo totalmente com Bannon que Trump não será reeleito nem que concorrerá novamente ao cargo.
P. Por quê? Ele ainda mantém ativa sua base.
R. Sua porcentagem de aceitação é muito baixa, em torno de 35%, mas além disso ele não tem nada mais a ganhar. Já é o presidente. Em seu mundo, ele já conseguiu o que tinha de conseguir. Então prefere sair a se arriscar a perder. E é preguiçoso demais para concorrer outras vez.
P. Mas Trump pode tentar a reeleição. Presidente, milionário, showman de sucesso. Também não se pode negar que conseguiu o que se propôs.
R. Ele é um vencedor porque se declara um vencedor. Mas é o presidente mais desprezado da história moderna. E diz que é multimilionário, mas não apresentou suas contas. Seu maior medo, na verdade, é que o procurador especial investigue seu histórico financeiro. Isso o aterroriza e por isso a qualquer momento pode ser destituído.
P. Visto dessa forma, Trump seria um acidente na história dos EUA.
R. Há duas linhas que se cruzam. De um lado, a corrente populista e nacionalista, um fenômeno mundial representado aqui por Bannon. E depois vem Trump. Ambos emergem em um mesmo ponto, mas não têm de ir necessariamente de mãos dadas. Mais do que isso, penso que Trump desaparecerá e que a outra linha, não sabemos de que forma, prosseguirá.
P. Bannon manipulou Trump por interesse próprio? Lendo o livro, é o que parece.
R. No fundo acho que Bannon viu o atrativo eleitoral de Trump. Pensava que era um palhaço, mas que tinha a virtude de se conectar com o público. Foi uma relação simbiótica. Depois, Bannon ficou tão decepcionado com Trump e suas inconsistências que seus sonhos se esvaíram.
P. E agora a ligação entre os dois se rompeu.
R. Mas não foi destruída. Veja, com Trump não se estabelecem vínculos normais, tudo é puramente transacional. Bannon pode voltar? Sim. Trump pode me ligar? Não tenho dúvidas.
“EU NÃO OFEREÇO A VERDADE ABSOLUTA: ESCREVO O QUE VI E OUVI”
Pergunta (P). O sr. foi criticado por não comprovar os dados.
Resposta (R). Há apenas alguns erros.
P. Foram corrigidos?
R. Foram corrigidos e eram menores. Mas não há mais erros do que em qualquer livro dessas características e de 325 páginas. É uma obra que se tornou um fenômeno e que todos querem destruir. Mesmo que não seja possível.
P. O livro está repleto de citações suculentas, cuja procedência se desconhece. Aí há um problema de fontes.
R. Não, nada disso. Uma obra desse tipo, em que se oferece uma visão interna da Casa Branca, tem esse custo. Você fecha acordos com muitos que te dirão coisas só se forem protegidos. É o estilo Woodward. O sucesso do livro fez pensar que eu tenho que estar de posse da verdade. Da verdade absoluta. Mas não posso oferecer a verdade absoluta: o que faço é escrever o que vi e ouvi. Meu trabalho é diferente do repórter policial. Sou um escritor. Meu talento vem de pegar personagens, experiências e cenas e colocá-las na página de forma que o leitor possa lê-las e dizer: “Sinto que estou aí e que posso entender”. É isso que faço.
P. Então há um certo nível de ficção...
R. Não acho.
P. Mas o sr. diz que é escritor, que usa a recriação para explicar o que ocorreu.
R. Ninguém tem a chave da verdade. Escrevo sobre o que presenciei ou o que me foi descrito. E faço com a precisão que consigo e da forma mais real e vibrante de que sou capaz. E isso é tudo que posso fazer. Ao ler, tem-se a sensação de uma certa onisciência, mas eu não sou onisciente. É uma técnica. Muita gente me perguntou como sabia isso ou aquilo, ou como reproduzia essa conversa. Aconteceu sobretudo com uma reunião entre Bannon e Roger Ailes. A polêmica acabou quando alguém que também tinha estado presente tornou público que essa reunião aconteceu na minha casa. Isso acontece ao longo de todo o livro.
P. Mudaria alguma coisa?
R. Não sei, tudo pode mudar, inclusive Trump pode se tornar Roosevelt. Mas a essas alturas, deixo como está.
El País: As ideias, por ora frustradas, que moviam Luciano Huck à presidência
Apresentador da TV Globo, que deve confirmar sua desistência alegadamente definitiva, vinha agrupando nomes do mercado, intelectuais liberais e progressistas
Por Felipe Betim, do El País
O apresentador da TV Globo Luciano Huck deve anunciar nesta sexta-feira que mantém sua decisão de não concorrer às eleições presidenciais em outubro deste ano. A informação, adiantada pelo site O Antagonista, deixa, de momento, órfãos um conjunto de forças - de nomes do establishment político e do mercado financeiro a intelectuais da elite progressista nos costumes e liberal na economia - que viam sua candidatura como um oxigênio nas eleições de 2018, capaz de ao mesmo tempo ser competitiva no eleitorado mais pobre, ainda mais com a virtual ausência de Luiz Inácio Lula da Silva, e renovadora de um quadro político brasileiro em crise.
Huck já havia dito em novembro, em artigo no jornal Folha, que não iria concorrer. Mas uma possível candidatura voltou ao holofote após a condenação em segunda instância do ex-presidente Lula (PT). O projeto ganhou força nas últimas semanas com a bênção e o impulso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), alçado a conselheiro político de Huck para o desgosto do governador de São Paulo e presidenciável tucano Geraldo Alckmin.
Influenciou na decisão do apresentador - por ora, definitiva, ainda que o prazo para associação a partidos para concorrer só termine em abril - o prazo que a Globo havia dado, até esta sexta-feira, para que ele comunicasse sua decisão. Caso optasse pela candidatura, ele e sua esposa, a também apresentadora Angélica, estariam fora da emissora, com todo o peso de perda financeira que a decisão acarretaria, e não voltariam mais. O apresentador também teve amostras de como é estar no olho do furacão. Na última semana, por exemplo, foi revelado pelo blog O Tijolaço e confirmado pela Folha de S. Paulo que ele adquirira seu jatinho particular através de um empréstimo junto ao BNDES com juros de 3% ao ano (abaixo da inflação). Além disso, não raro circulavam nas redes sociais fotos suas com políticos como Aécio Neves e empresários como Joesley Batista, dono da JBS e preso pela Operação Lava Jato.
Os esforços de Huck para a corrida ao Planalto não foram poucos. Ele ouvia especialistas em marketing político há quase um ano sobre suas eventuais chances. Em rara apresentação no programa do colega de emissora Faustão, ele soou como candidato. Além de FHC, o apresentador recorreu um bom leque da elite brasileira. Já faz alguns meses que Huck vinha se reunindo com acadêmicos, empresários e ativistas políticos.
Com bom trânsito nos círculos liberais na economia, junto com o economista e ex-ministro da Fazenda, Armínio Fraga, o publicitário Nizan Guanaes e o empresário Eduardo Mufarej, presidente do Somos Educação e sócio da Tarpon Investimentos, ele se tornou um dos financiadores do RenovaBR, que reúne especialistas de diversas áreas com o objetivo de formar e acelerar “novas lideranças políticas e renovar o nosso Congresso Nacional”.
Também aglutinava setores dos círculos progressistas. É irmão do cineasta Fernando Grostein Andrade, que em 2011 lançou o documentário Quebrando Tabu, que discutia alternativas para a guerra às drogas. O filme se transformou na marca de uma das principais páginas progressistas do Facebook, ao abordar temas tabus na sociedade: direito das mulheres e feminismo, direitos da população LGBTQI+, racismo, entre outros. Além disso, Huck entrou, no ano passado, no Agora!, um movimento formado por profissionais técnicos, acadêmicos e empresários que pretende renovar a política brasileira elegendo novos quadros para o Legislativo. Ainda que se defina como apartidário, plural e sem fins lucrativos, o grupo tem uma agenda inicial que mistura políticas progressistas e liberais, tais como reduzir drasticamente a desigualdade, uma nova política de segurança e de drogas e garantir oportunidades iguais a todos, ainda que até agora não tenha se definido sobre questões cruciais e urgentes como rotas de saída para a crise fiscal do Estado ou sobre a reforma da Previdência.
“Ele viu a nossa agenda e disse 'nossa, mas eu concordo com isso tudo", disse Ilona Szabó ao EL PAÍS no começo do ano. Além de ser uma das fundadoras do Agora!, ela é especialista em segurança pública e diretora-executiva do Instituto Iguarapé, um think tank que se opõe abertamente à política de guerra às drogas. “A gente sabia que para o movimento ganhar as ruas a gente precisava ter tradutores, pessoas que tenham mais capacidade e experiência de conversar com a população, e o Luciano tem muita capacidade e experiência para isso”, disse ao jornal. Também admitiu, entretanto, que o movimento ainda não tinha cacife para disputar a presidência da República e reafirmou o foco no Legislativo. O movimento mantém conversas avançadas com o PPS para abrigar os membros que queiram concorrer neste ano.
Eleitorado não ideológico de LulaPara Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisa Locomotiva e fundador do Data Popular, a candidatura do apresentador representava o liberalismo econômico clássico. "São os que defendem que não há meritocracia sem igualdade de oportunidades. Defendem as cotas e o melhor pra quem mais precisa, consertar desigualdades históricas em regiões do país", explica ele. "Ele traria um debate que que vai além do tamanho do Estado. São políticas que foram implementadas aqui por Governos de esquerda e que são encontrados em países liberais e sociais-democratas", argumenta.
Meirelles acredita que uma possível candidatura de Huck poderia encontrar eco em diversos setores da sociedade, mas principalmente nas classes C e D, muito concentradas no Nordeste. O apresentador poderia ocupar um vácuo deixado por Lula, que deve sair inelegível de sua condenação na Lava Jato. Mauricio Moura, CEO da Ideia Big Data, uma consultoria com experiência em campanhas nos EUA e no Brasil, segue o mesmo raciocínio: "Quem mais admira o Huck é o campo popular. Estamos falando do eleitor que é fiel ao Lula, mas não é ideológico". Esse imenso campo segue em aberto.
"Lula sai na frente nas pesquisas porque, num cenário sem renovação, ele aparece como o presidente na última vez que a vida das pessoas melhoraram", explica Meirelles. No entanto, uma pesquisa do Locomotiva para o RenovaçãoBR identificou que 96% dos brasileiros não se sentem representados pelos políticos em exercício, enquanto que 93% acredita que formar novas lideranças é necessário para mudar o país. "Então a grande maioria quer uma renovação, tanto na forma de fazer política como nos rostos que estão sendo colocados", diz Meirelles.
É por isso que a candidatura de Huck soava atrativa, ainda que com ressalvas, para Luiz Carlos Guedes, de 25 anos. Engajado politicamente, trabalha há anos com políticas públicas e passou pela prefeitura do Rio e pela ONU. Hoje está na Fundação Cidadania Inteligente e foi aprovado no processo seletivo do RenovaBR com a ideia de começar ele mesmo a se envolver na política tradicional. "Uma candidatura dele pode ser melhor que uma possível eleição. Poderia simbolizar uma oxigenação da personalidade política, de que a liderança na política ela não passa necessariamente por processos tradicionais e, ao mesmo tempo, ela consegue representar um compromisso com a sociedade", argumenta Guedes. Mas pondera: "Ao mesmo tempo é muito perigoso as pessoas que entram na arena da política para negar a política. Ela é fundamental para reduzir as desigualdades. Acho que há o risco de uma falsa tecnocracia, de despolitizar a visão de país, a desigualdade e o serviço público".
Afinado com o liberalismo econômico, Huck mostrava potencial na elite empresarial, como é o caso de Fábio Cristilli, executivo de uma multinacional, investidor e residente nos Estados Unidos. “Enxergo nele um possível agente de mudança, pois é também um empresário de sucesso, que trafega em todos os setores da sociedade. Estamos em um momento em que a conversa no mundo já mudou de patamar. Vá explicar o que é a necessidade de investir em inovação e os seus benefícios a um político?! Estão todos atrasados”, explicou Cristilli à redatora-chefe do EL PAÍS Carla Jiménez.
Reações à candidatura e a busca do 'outsider'Os holofotes sobre Huck não deixaram a classe política indiferente. Enquanto parte do establishment político, como FHC, queria apostar no outsider até como falta de alternativa ante a grande incerteza no quadro eleitoral, outros mostravam desconforto. Se nos bastidores Alckmin parecia incomodado com as pressões do grande nome do seu partido diante de seu baixo desempenho nas pesquisas, publicamente ele deu as boas-vindas protocolares a Huck: "Se ele for candidato, ótimo, é o povo que decide, não tem nenhum problema. No PSDB, nós vamos ter a primária em 11 de março. Ele não é filiado ao PSDB, aliás nem sei se tem alguma filiação partidária. Quem quiser ser candidato, tem que se filiar agora em março. Eu nunca desestimulo as pessoas a participarem da política", disse na semana passada.
Já o senador Cristovam Buarque, que lançou sua pré-candidatura pelo PPS, o mesmo partido que abriu suas portas para o apresentador da Globo, disse ao EL PAÍS: "Eu fiquei muito satisfeito dele querer entrar na política, mas já como candidato a presidente não era melhor para o partido. Talvez como deputado ou qualquer outra coisa. Acho que ele não tem a proposta para o Brasil que precisamos agora. Eu vi como mais um dos candidatos que procura atender a raiva que o povo tem dos políticos, e não a esperança que o povo precisa ter para o futuro". Por sua vez, a presidenciável Marina Silva (REDE) declarou para este jornal: "Não deu certo com a Dilma. Tem aquilo 'ah, é um gestor que está acima do bem e do mal', e olha o que aconteceu com o Rio de Janeiro. Mas eu saúdo os que querem melhorar a qualidade da política".
El País: A mulher que inventou a arte moderna no Brasil chega ao MoMA
Museu de Arte Moderna de Nova York apresenta retrospectiva com obra de Tarsila do Amaral
“Quero ser a pintora do meu país”. Com essa frase começa a retrospectiva que o Museu de Arte Moderna de Nova York dedica este mês à mulher que escreveu essa frase em 1923: a brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973). A exposição é uma viagem de ida e volta entre São Paulo, seu estado natal, e Paris, onde a artista estudou na famosa escola internacional Académie Julian e misturou as ideias da arte moderna com a estética de seu país. Quando terminou o experimento, ela tinha se tornado uma das pintoras mais importantes da história do Brasil e, por extensão, de toda a América Latina.
A amostra tem o valor especial de ser a primeira vez que a autora chega aos Estados Unidos. Já havia sido reconhecida em outras partes da Europa, como quando a Fundação Juan March dedicou-lhe uma exposição em 2009, em Madri, que foi o grande sucesso da temporada. Mas esta é uma das poucas retrospectivas que mostram toda a obra e como sua linguagem visual amadureceu, desde que em Paris aprendeu lições de André Lhote, Albert Gleizes e Fernand Léger até fazê-las suas com as cenas cotidianas e as cores brasileiras.
Luis Peréz-Oramas, ex-curador de arte latino-americana do MoMA, aponta um quadro que, segundo ele, sintetiza a exuberância pela qual se pode reconhecer Tarsila: A Cuca, de 1924. Alude a uma criatura que no folclore brasileiro se dedica a assustar crianças (como o coco espanhol). No quadro, é um bicho inquietante, mas nem um pouco grotesco, que também se encaixa perfeitamente na paisagem, estilizada no estilo cubista, mas a combinação é a mais brasileira possível: linhas curvas e cores fortes. “Ela inventou uma nova forma de figuração para a arte moderna brasileira”, aponta. Outra imagem arquetípica da artista é A Negra, que mostra uma mulher negra inexistente, extraída das (geralmente racistas) lendas brasileiras: alguém com lábios e braços enormes, olhar estático e seios caídos. Atrás dela, as formas abstratas que Alfredo Vopi aperfeiçoaria mais tarde e que se tornariam a norma da arte brasileira a partir da década de quarenta. “Evoca a emancipação racial e política”, diz o curador da exposição.
Também faz parte da retrospectiva aquela que talvez seja sua obra mais famosa, Abaporu, pintada em 1928 como um presente para o marido, o poeta Oswald de Andrade. Representa – por meio de um humanoide desproporcionado, com um pé grande como uma montanha – uma criatura que come carne humana. A antropofagia era uma obsessão da avant-garde parisiense da década de 1920, obcecada com as práticas do canibalismo. “Nasceu assim um estilo distintivamente novo e distintivamente brasileiro”, explica Pérez-Oramas. Mas no Brasil, o quadro foi decisivo para o lugar que Tarsila ocuparia no imaginário coletivo. Como o trabalho pretendia ser um símbolo de como a cultura brasileira ressurgia da “digestão” das influências externas, o célebre sociólogo Sérgio Buarque de Holanda escolheu essa imagem para a capa de seu livro fundamental, Raízes do Brasil, ainda hoje o compêndio definitivo das psicoses do país. Oitenta anos e inúmeras edições com o Abaporu na capa depois, Tarsila é, por irremediável associação, a retratista oficial da alma brasileira.
Tarsila do Amaral ajudou a estabelecer a ideia de que o Brasil pode não ter uma grande tradição de criar tendências, mas pode absorvê-las antes e torná-las mais próprias do que ninguém, talvez a característica mais distintiva de sua cultura. A mostra tem também O Sono, um dos seus poucos flertes com o surrealismo. Embora o conteúdo seja indescritível por natureza, não custa nada associá-lo a outras obras da artista (a palmeira estilizada com sete folhas, presente em muitas de suas pinturas, ajuda a dissipar todo tipo de dúvidas).
A exposição também inclui a pintura Operários, a maior feita pela artista. A própria Tarsila a considerava como sua obra mais importante. Representa uma mudança radical em seu trabalho. Ela abandona o exercício formal da arte moderna para se tornar uma artista mais comprometida com o ativismo político e social. É uma representação da sociedade brasileira moderna.
O destino de Tarsila foi o mesmo de quase todos os que têm uma ideia nova no Brasil: chocar-se contra a opinião da burguesia, que, como lembra Pérez-Oramas, tinha uma visão muito limitada da arte e considerava o trabalho de Tarsila de mau gosto. “Até a década de 1960, o país não estava pronto para aceitar a maneira pela qual ela integrou todos os elementos da cultura brasileira para produzir uma identidade artística distinta”, conclui. “Foi quando uma nova geração de artistas descobriu o poder de sua arte”.