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El País: STF restringe foro de parlamentares, mas não se manifesta sobre outras 54.400 autoridades

Em decisão unânime, Supremo entendeu que deputados e senadores só podem ser julgados por delitos cometidos durante o mandato ou em função dele

Por Afonso Benites, do El País

O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira restringir a prerrogativa de foro privilegiado aos 594 deputados federais e senadores brasileiros. A decisão, tomada por unanimidade, excluiu outras 54.400 autoridades que têm a prerrogativa de serem julgadas por tribunais, ao invés de terem seus casos analisados em primeira instância. Os ministros decidiram sobre um processo envolvendo um ex-deputado federal do Rio de Janeiro e, por essa razão, entenderam que não era o momento de se debruçar sobre os privilegiados que não são congressistas.

Entre os que ainda permanecem com foro privilegiado nas esferas estadual ou federal estão presidente e vice-presidente da República, ministros de Estado, juízes, membros do Ministério Público, deputados estaduais, governadores, prefeitos, comandantes das Forças Armadas, entre outros.

Apesar de não estar oficialmente em debate, a ampliação da restrição do foro foi discutida intensamente entre os magistrados nas últimas duas sessões do plenário, na quarta e na quinta-feira. “Não dá para fazer distinção. Por que parlamentar não terá mais foro, mas promotor de Justiça que fez concurso público terá? Se isso valerá para deputado, valerá para juízes e comandante do Exército?”, questionou o ministro Gilmar Mendes o último a votar.

Em maio do ano passado, os senadores aprovaram uma proposta de emenda constitucional (PEC) que reduzia a prerrogativa de foro apenas ao presidente e vice-presidente da República, aos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado e da Câmara dos Deputados. Todos os demais, em caso de cometimento de crimes, seriam julgados por um juiz de primeira instância. A PEC não foi analisada pelos deputados e não a será neste ano porque, com a intervenção federal do Rio de Janeiro, nenhuma alteração constitucional pode ser feita. “Talvez provocado por nós, o Congresso aprovou uma tábua rasa de todas as considerações feitas na Constituição de 1988”, criticou o ministro Ricardo Lewandovski.

A decisão desagradou até deputados que defendem o fim do foro privilegiado, como Daniel Vilela (MDB-GO), presidente da Comissão de Constituição e Justiça. “Tem que ser para todo mundo. Senão, faremos uma carta para os privilegiados. E a ideia é justamente o contrário”, reclamou.

Independentemente das críticas dos magistrados e de parte dos legisladores, a partir de agora os parlamentares só responderão aos crimes no STF caso tenham cometido o delito durante o mandato. Por exemplo, se um deputado empossado em 2019 estiver sendo processado por estelionato cometido em 2018, enquanto ainda não era parlamentar, ele será julgado no primeiro grau.

Apesar de os ministros terem sido unânimes nessa restrição do foro, houve divergências sobre um trecho do relatório do ministro Luís Roberto Barroso. O relator entendeu que os deputados federais e senadores só poderão responder a processos no Supremo caso tenham cometidos delitos relacionados à função. Esta tese prevaleceu pela votação de 6 a 5. Um caso hipotético: um congressista pode ser julgado no STF caso tenha recebido propina para aprovar um projeto de lei. No caso de cometer delitos considerados “comuns”, como o de ter se envolvido em um acidente de trânsito, responderá na primeira instância. Até a data do julgamento, todos os delitos envolvendo deputados e senadores eram julgados na Corte suprema.

“Lenda urbana”
Um dos principais críticos desse trecho do relatório de Barroso foi o ministro Dias Toffoli. Ele refutou a tese de que a prerrogativa de foro seja um benefício aos legisladores. “Não se trata, ao meu ver, uma questão de privilégio. Pelo contrário. Os que detêm a prerrogativa tem diminuídos as instâncias recursais e a redução da possibilidade de prescrição, já que o trânsito em julgado cabe ao Supremo”.

Em seu voto, Toffoli quis acabar com o que ele chamou de “lenda urbana”, que é o senso comum de que o Judiciário era conivente com o crime de corrupção. Segundo ele, apenas em 2001, após uma mudança legislativa, o STF teve condições de julgar diretamente os deputados e senadores. Antes, para qualquer processo tramitar na Corte era necessária a aprovação dos próprios legisladores, algo que jamais ocorrera.

Um levantamento feito junto ao STF mostra que entre 2002 e abril de 2018, entraram na casa 661 ações penais contra políticos. Em uma pesquisa menos ampla, que analisou o período entre 2006 e 2016, uma equipe do projeto Supremo em Números, da Fundação Getúlio Vargas, constatou que 95% dos casos envolvendo esses políticos com foro poderiam ser julgados em primeira instância, se a regra aprovada nesta quinta-feira já estivesse em vigor.

A mesma pesquisa da FGV concluiu também que, caso os processos desses políticos tramitassem em primeira instância, sua conclusão seria mais célere e as chances de prescrição dos crimes seriam menores. Em média, uma denúncia é analisada pelo STF em 591 dias, quando na primeira instância o prazo é de uma semana.

Ainda que o foro tenha sido restringido, nenhum dos casos que hoje tramitam no judiciário seguirá automaticamente para o juiz de primeiro grau. Cada processo será analisado individualmente.


El País: "É hora do MTST ocupar a política. Estamos em uma encruzilhada histórica, não é possível se omitir", diz Boulos

O pré-candidato à Presidência pelo PSOL diz que pretende construir uma nova forma de fazer política, que enfrente o mercado e os bancos, com a participação popular

Por Talita Bedinelli, do El País

A trajetória de Guilherme Boulos (São Paulo, 1982) poderia ser confundida com a de qualquer outro jovem de esquerda crescido na classe média paulistana. Filho de médicos, ele entrou no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e especializou-se em psicologia. No ano passado, concluiu um mestrado em psiquiatria. Mas, diferentemente da maioria dos jovens militantes de esquerda que circulam pelos corredores da fefeleche uspiana, ele não ingressou no movimento estudantil. Preferiu as bases do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que ocupa terrenos vazios nas metrópoles como forma de pressionar o poder público a disponibilizar moradia para quem não tem casa própria.

Seguindo os passos de Luiz Inácio Lula da Silva, e com a benção do ex-sindicalista, de quem é amigo, pretende agora levar sua participação para além do movimento social. Filiou-se ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para disputar a Presidência em outubro. E, assim como o petista antes de ganhar a quarta eleição presidencial que disputava, vai enfrentar o desafio de ser o que tem o discurso mais radical da competição. Sua estratégia será a de apostar no cansaço das pessoas com a velha política e apresentar "uma nova forma de fazer política", lastreada na participação popular. Assim, garante, será possível enfrentar o mercado e os interesses do Congresso Nacional.

Pergunta. Como foi a decisão de se candidatar?
Resposta. Não foi uma decisão apenas individual. Eu atuo no MTST há 16 anos, na Frente Povo Sem Medo, e, cada vez mais, com o agravamento da situação política do país, a política transbordou para as ruas. Para os movimentos sociais se tornou impossível falar apenas da sua pauta específica. Isso nos levou para um debate político mais amplo, que foi criando condições para uma aliança. Foi nos levando a uma aproximação com o PSOL, um partido que manteve uma coerência muito importante. A aliança que nós construímos, entre partido e movimento social, é algo, eu diria, inédito na política brasileira, ao menos no último período.

Você não fazia parte da militância do PSOL?
Minha relação com o PSOL vem de alguns anos, mas de se encontrar nas lutas. Foi uma aproximação que foi sendo construída com o tempo, mas a filiação ocorreu há poucos meses.

Setores do partido inicialmente ficaram insatisfeitos com a sua pré-candidatura. Diziam que não houve diálogo para escolher seu nome e temiam sua proximidade pessoal com o Lula, quando o PSOL vem justamente da crítica ao PT, às alianças e aos problemas éticos do partido. Como vê isso?
O PSOL se construiu a partir de críticas ao PT e nós, o MTST, também temos críticas ao PT em nossa trajetória. O MTST nunca fez parte do Governo. Sempre manteve mobilizações nos governos petistas. Aliás, muita gente que estava no Governo com o PT na hora de distribuir os cargos não estava no Sindicato dos Metalúrgicos às vésperas de o Lula ser preso. Nós fomos aqueles que não estávamos no momento de distribuir o poder, mas estávamos solidários no sindicato. Isso diz muito sobre o tipo de esquerda que a gente representa e quer construir. Em relação às questões internas do PSOL, é natural e desejável que todo partido tenha pluralidade. Ao mesmo tempo, o PSOL por suas instâncias tomou uma definição. No dia 10 de março, por mais de 70%, o partido decidiu pela nossa candidatura. E a partir deste momento o PSOL está unido e esta é uma página virada.

O MTST é um movimento que sempre se afirmou apartidário. Vocês não temeram que essa proximidade com um partido político pudesse desagradar a base?
Nós fizemos um debate amplo e cuidadoso dentro do MTST. Com os 14 Estados em que o MTST está presente, com as coordenações, com a base do movimento. E a definição pela nossa candidatura foi consensual. Foi uma decisão do movimento de compor uma aliança. E o movimento entra por inteiro por entender que estão colocados desafios políticos. Estamos em uma encruzilhada da história brasileira e não é possível se omitir. O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política também. De ocupar outros espaços para apresentar outro projeto de sociedade e de país. Isso não prejudica em nada a autonomia do movimento.

O MTST foi o primeiro a chegar com a militância na porta do sindicato e você esteve perto de Lula todo o tempo na véspera da prisão dele. Por que houve essa decisão de ir pra lá?
Entendemos que o país vive hoje a crise democrática mais grave desde a ditadura militar. É um momento muito preocupante. Uma escalada de violência política que se expressou sobretudo com o assassinato covarde e bárbaro da Marielle Franco, no Rio de Janeiro, que foi uma execução política. Essa crise democrática se expressa ainda com o avanço da militarização da sociedade na política, com a intervenção militar no Rio de Janeiro, com as declarações do comandante Villas Bôas às vésperas do julgamento do STF, e a politização do judiciário. Quando setores do Judiciário não fazem seu papel de forma isenta, para julgar com base em provas, respeitando presunção de inocência e se contaminam por um jogo político partidário, isso é muito grave. E foi isso que aconteceu no julgamento do Lula. Ele foi preso em uma prisão política. Estar em São Bernardo do Campo significava estar do lado certo da história, estar em defesa da democracia brasileira. Defender a liberdade do Lula não é uma defesa que caiba apenas ao PT, é de todos aqueles que são de esquerda e defendem a democracia no Brasil.

Você foi sondado pelo Lula para se filiar ao PT?
Tenho uma relação de muito respeito com o Lula, de admiração. Construímos uma relação política a partir do MTST. Mas eu tenho as minhas posições e sempre expressei para ele de forma transparente e clara. Inclusive as diferenças que tenho em relação ao PT.

Como quais?
Não ter enfrentado temas essenciais como uma reforma política, a democratização das comunicações, uma reforma tributária, combate a privilégios do andar de cima. Nunca deixei de colocar isso publicamente, nem em conversas com o próprio Lula. As posições que tenho e que expresso há algum tempo não são encampadas pela maioria do PT. Isso se expressa, por exemplo, na questão das alianças. Depois de um golpe como o que ocorreu, fazer alianças com o PMDB, como se está fazendo em vários Estados, o que para nós desde o princípio era uma política errada, agora para nós é algo completamente inadmissível. O Lula sempre soube dessas diferenças e sempre respeitou isso.

Existe algum espaço para uma candidatura única da esquerda nesta eleição?
Hoje nós temos uma crise democrática muito profunda e é importante que haja uma unidade democrática. A esquerda precisa ter a maturidade de estar junta nas questões fundamentais. Mas isso não pode significar jogar para baixo do tapete diferenças de pontos de vista, de projetos e de futuro que existem e são legítimas. O pensamento único não deve fazer parte da trajetória de quem quer transformar a sociedade. O que está colocado neste momento é a construção de uma unidade democrática e temos investido em relação a isso.

Não pode ser um erro estratégico dividir os votos?
Acho curioso quando se fala da pulverização dos votos da esquerda e não se fala da dos votos da direita. A direita tem mais de dez candidaturas hoje no Brasil.

Verdade, mas tem Jair Bolsonaro, que é um nome forte e pode chegar ao segundo turno.
Há uma quantidade enorme de candidaturas no espectro da direita. Algumas são Temer puro sangue, outras Temer disfarçado, mas todas defendem a política deste Governo que tem 4% de aprovação na sociedade. Não me parece razoável supor que o brasileiro vai colocar no segundo turno duas candidaturas que expressem a política do Governo mais rejeitado da história recente do país. Ao mesmo tempo, reitero: acho que a esquerda tem que discutir construções de unidade e programas. Isso não pode ser fruto de imposições. De aliança por tempo de televisão, de uma velha lógica de fazer aliança. Tem que ser fruto de um debate programático.

E quais seriam essas diferenças que impedem uma união neste momento?
Queremos pensar um projeto para a próxima geração. Um dos erros da esquerda foi de apenas se organizar ou construir programas e alianças pensando a eleição seguinte. Isso nos deixa vulneráveis em relação às mudanças do cenário político. Tem que ter uma democratização profunda da política brasileira, que aproxime o poder das pessoas. Isso significa colocar o povo no jogo, significa plebiscitos, referendos, conselhos. Formas de participação em que as pessoas não se limitem a apertar um botão a cada quatro anos. O Brasil se tornou ingovernável. Acreditamos que não dá para governar do ponto de vista das transformações sem jogar o PMDB pela primeira vez na Nova República na oposição. Este é um ponto que envolve trazer o povo para efetivamente apitar no poder.

E como fazer isso, em um Congresso onde o PMDB tem uma das maiores bancadas, onde há um centrão que tem poder de voto? Como se Governa sem ter a maioria dentro do Congresso?
Eleição não é cheque em branco. Não quer dizer que o político eleito pode fazer o que lhe der na telha. Seja o presidente da República sejam os representantes do Congresso Nacional. O povo tem que ser ouvido e consultado permanentemente. Isso faz bem à democracia. Antes que se diga que isso é ilusório, já existe em vários países do mundo. A Suíça é a que mais faz plebiscito no mundo. A Constituição do Brasil prevê isso há 30 anos e só houve dois plebiscitos. Qual é o medo que se tem do povo participar do jogo cotidiano da política? A sociedade tem que estar mais mobilizada, mais atenta ao que está acontecendo. O Congresso não vai abrir mão de seus próprios privilégios. Não quero diminuir a legitimidade do Congresso, nem da Presidência ou de qualquer outro cargo eletivo. Esta representação precisa funcionar. Agora, não podem decidir tudo. Não é cheque em branco. O povo tem que ser escutado e ter o poder de decisão.

Mas não é possível se regular tudo por plebiscito e referendo. O cotidiano não é mais complicado do que isso, especialmente em um Congresso cada vez mais conservador?
Eu acredito que há espaço para o crescimento do campo progressista neste processo eleitoral. O PSOL está apresentando uma chapa ampla de deputados e senadores no Brasil inteiro. Este Congresso está absolutamente desacreditado. E a renovação que nós esperamos é uma renovação que não seja apenas nominal, mas na forma de fazer política. Depois, vamos colocar as coisas claras na mesa: governar, ter maioria parlamentar, nos termos do Congresso atual significa participar de um balcão de negócios nada republicano. Significa comprar partidos em troca de cargos, ministérios, pedaços em estatais que muitas vezes se transformam em negócios escusos. Este é o modelo de governabilidade. Se alguém disser que vai mudar o Brasil com esse Congresso, negociando novamente, desconfiem. Pra nós, só vale a pena entrar no processo eleitoral se for para fazer algo profundamente diferente disso. Nós entendemos que essa forma é a participação popular. Plebiscitos e referendos são uma maneira, mas também com conselhos de políticas setoriais deliberativos. Um conselho de educação com a participação de professores, estudantes, técnicos da área, que tenha poder deliberativo sobre política de educação também orçamentária.

Mas como presidente como seria a sua relação com o Congresso, que ainda assim vai ter que decidir muitas coisas?
Temos que separar o joio do trigo. Existem parlamentares efetivamente representativos. Existem parlamentares extraordinários no Brasil que têm um trabalho comprometido com a maioria do povo brasileiro, de reconhecida honestidade, e existem máfias que atuam por meio de parlamentares no Congresso nacional. Nós não vamos nos submeter a máfia alguma, não vamos aceitar negociação do tipo a bancada ruralista não vai dar voto se fizer um decreto de demarcação de terras indígenas. Não vamos nos submeter a esse tipo de chantagem.

Se você, então, como presidente, faz uma demarcação de terra indígena e o Congresso trava a pauta, o que você vai fazer?
A sociedade precisa ser mobilizada. Agora, para um governo como o nosso ser eleito, isso já é a expressão de uma mobilização da sociedade. Para propostas como a que a gente defende ganhem corpo e tenham condições de ganhar uma eleição no Brasil significa que já houve uma ativação no processo de mobilização da sociedade. Isso começa já. O próprio processo de campanha já tem que começar assim. A nossa campanha vai ser uma campanha de mobilização, um debate de projeto para o país.

E você acha que é possível construir isso até outubro?
A sociedade está num processo de incertezas, de encruzilhada, o cenário é muito aberto. Tudo é possível. Veja que hoje quem ganha as eleições quando se tira o Lula são os indecisos, os nulos e os brancos. Muito a frente do Bolsonaro, que é colocado como o primeiro nas pesquisas. O nível de indefinição na sociedade, de insatisfação e cansaço com esse sistema político é enorme. Se as pessoas identificarem numa proposta a expressão da nossa indignação com o sistema político, se elas verem naquilo algo que não compactua com aquela velha forma de fazer política e está disposta a fazer de um outro jeito, isso pode, sim, gerar engajamento.

Seu discurso lembra muito o do PT e do Lula no início. E Lula perdeu a eleição presidencial três vezes. Em 1998, quando ele disputava com o Fernando Henrique, se dizia que se ele ganhasse os movimentos de moradia invadiriam as casas das pessoas e a classe média entrou em pânico. Você vem de um movimento que ocupa imóveis, que entrou recentemente no tríplex do Guarujá. Não teme que o discurso mais radical e sua atuação política assustem uma camada da população?
Nós não vamos fazer campanha guiada por marqueteiro. Isso vai assustar tal setor, tirar voto aqui ou acolá... Francamente, só vale a pena entrar em um processo como esse se for para sair com mais dignidade do que se entrou. Eu não vou abrir mão das bandeiras que eu acredito. O PSOL e essa aliança de movimentos populares não vão abrir mão das suas bandeiras. Aliás, muitas pesquisas mostram que isso não é um passivo eleitoral. Se nós olharmos o cenário eleitoral, vemos que onde a esquerda tem tido sucesso é onde não tem tido medo de dizer o que quer e onde quer chegar. Porque as pessoas estão descrentes desta política da maquiagem, onde os candidatos colocam uma máscara até as eleições e depois tiram e governam para os grandes interesses econômicos. As pessoas percebem quando é um discurso fabricado sobre medida. Também queria acrescentar que essa campanha vai ser uma oportunidade de quebrar preconceitos. O problema da moradia no Brasil é um escândalo. Nós temos seis milhões e duzentas mil famílias sem casa e mais de sete milhões de imóveis ociosos. Tem mais casa sem gente do que gente sem casa. Nós vamos mostrar para o país que quem ocupa não ocupa porque quer levar uma vantagem, porque é vagabundo e não quer trabalhar, como um certo preconceito difundido no senso comum tenta fazer crer. Uma mãe que leva seus filhos para uma ocupação, pisando no barro, para baixo de lona, não faz isso porque acha bonito. Faz isso porque todo final do mês tem que enfrentar a dura opção entre pagar aluguel e botar comida na mesa. Essa é a realidade de milhões de famílias nas periferias. É preciso desmistificar as ocupações. Na nossa campanha eu não vou em nenhum momento renegar aquilo que eu represento e o que eu fiz nos últimos 16 anos.

Então não pensa em fazer um aceno de não sou radical? Um aceno ao mercado como fez a campanha de Lula para que ele vencesse pela primeira vez?
Para governar para as maiorias no Brasil é preciso enfrentar o 1%. Não tem outra saída. Na situação em que estamos hoje não tem espaço para se avançar um milímetro em conquistas sociais, em avanços de direitos, em políticas públicas, sem enfrentar os privilégios do 1%. É preciso regular o sistema bancário.

A própria Dilma afirmou acreditar que sua derrocada começou pela falta de apoio do mercado. Como vai ser a sua relação com os bancos?
Se for para um presidente eleito governar para o mercado, cancela as eleições de uma vez. Deixa o mercado indicar. Reúne os quatro maiores bancos do país e define quem é o presidente do Brasil.

Mas você vai ter que conversar com os bancos...
Nós podemos conversar com quem for. A questão é: nós não vamos abrir mão de uma política de que banco vai ter que pagar imposto, de reduzir taxa de juros, esse spread bancário criminoso e violento, que é o maior do mundo. Esses privilégios têm que ser enfrentados. Não acho que a Dilma caiu porque fez o enfrentamento aos bancos. Acho que, em parte, ela tenha caído também porque não buscou ter um lastro popular. Para fazer política de enfrentamento com quem sempre mandou no Brasil é preciso estar lastreado. Eu não estou aqui defendendo inconsequências ou dando soluções mágicas, que eu vou chegar lá e vou fazer tudo o que os outros não fizeram. Isso é balela. Mas a forma de fazer os enfrentamentos que são necessários hoje no país é lastrear a política nas maiorias sociais. Em mobilização permanente da sociedade. Temos que levar o debate sobre tributação dos bancos. Este debate não pode ser feito entre o Banco Central, o representante dos banqueiros e o Ministério da Fazenda.

E qual seria a linha de sua política econômica?
Nossa política é primeiro a do enfrentamento das desigualdades. Uma política para enfrentar o abismo social brasileiro. Dado recente da Oxfam mostrou que seis bilionários têm mais riqueza do que cem milhões de pessoas no país. Isso precisa ser enfrentado. Precisamos de um novo modelo de desenvolvimento. O Brasil viveu nos últimos 30 anos uma reprimarização. Hoje a nossa pauta produtiva e de exportação está mais voltada para agroindústria, mineração, ligada a matérias-primas do que era 30 anos atrás. Nós hoje precisamos de um modelo de desenvolvimento econômico que não seja predatório, que seja totalmente conectado com questões ambientais, que respeite o direito das populações tradicionais. Um modelo que reveja a matriz energética e de transportes no país, que aumente as fontes de energias renováveis. Queremos construir um novo modelo de desenvolvimento, que invista em infraestrutura social. Não apenas para o capital, para a produção.

E como fazer isso?
Isso passa por uma retomada de investimento público no Brasil. Não se sai do abismo econômico que nós estamos sem investimento público. A ideia de ajuste fiscal que foi aplicada já em 2015, no Governo Dilma com Joaquim Levy, e depois aprofundada de maneira brutal depois do golpe parlamentar, fracassou por completo. Ela pressupõe que reduzir investimento público vai melhorar a situação fiscal. O que nós vimos foi o contrário. Reduzir investimento público fez com que a economia desaquecesse ainda mais, reduzisse a arrecadação e deteriorasse ainda mais a condição fiscal. Esse investimento em estrutura social e políticas públicas é o que pode permitir geração de emprego.

E como aumentar os investimentos em um Estado quebrado e com uma dívida pública altíssima que só cresce?
A dívida pública do Brasil não é altíssima, é abaixo de todos os padrões internacionais. Está em 74% do PIB. A dívida dos Estados Unidos está acima de 100% do PIB, da maioria dos países europeus é isso. Proporcionalmente aos padrões internacionais, é baixa. Nenhum país do mundo, tratando-se dos países de capitalismo avançado, se desenvolveu sem investimento público e sem endividamento. O problema da alta da dívida brasileira são duas questões: taxas de juros absolutamente fora dos padrões internacionais e a falta de crescimento econômico. A proporção dívida/PIB aumenta quando a taxa de juros para crescimento da dívida é maior do que a taxa de crescimento [do país]. Uma política de crescimento econômico reduz a dívida. Tivemos processo de redução da dívida recente, durante o Governo Lula, aliás com taxas de juros altíssimas naquele período, por conta do crescimento econômico.

E de onde vem o dinheiro?
Precisamos fazer uma reforma tributária profunda. A estimativa dos economistas que trabalham conosco é de que se poderia se arrecadar 120 bilhões ao ano só tributando lucros e dividendos, com uma escala progressiva, o que corresponde a 2% do PIB. Imposto sobre grandes fortunas, que é uma tributação sobre imposto que está parado, poderia render até 0,5% do PIB. Aumentar a alíquota de imposto sobre herança também aumentaria a arrecadação. É possível se fazer hoje com que se reduza o pagamento de impostos pelos mais pobres e pela classe média, aumentando, por exemplo, a faixa de isenção do imposto de renda e fazendo com que comecem a pagar impostos para financiar o Estado brasileiro aqueles que estão no topo da pirâmide, o 1%, e você ter condições de sustentar políticas públicas a partir daí. Fazer com que rico comece a pagar imposto é uma questão de justiça tributária.

Como vê a política de desoneração de impostos adotada pelos governos petistas?
Nós não defendemos esta política de desonerações. Aliás, achamos que isso foi um dos grandes erros da política econômica adotada pela Dilma no seu primeiro mandato. Nós achamos que a economia deve se construir de outra maneira, com um papel pró-ativo do Estado, com um papel fundamental de investimento público e uma política econômica voltada para a distribuição de renda e o desenvolvimento de outras formas produtivas que estejam sintonizadas com os interesses sociais e não das grandes corporações econômicas.

Vocês são críticos da reforma da Previdência. Mas a previdência representará um problema para o país. Como vocês pretendem lidar com essa questão?
A previdência tem que ser vista como uma política de segurança social, de assegurar renda para o povo mais pobre. A reforma proposta pelo Temer é absolutamente criminosa, propõe que as pessoas se aposentem no caixão e não mexe nos privilégios essenciais. Nós queremos mexer, sim, na previdência. Mas nos privilégios de altas cúpulas do poder que ganham acima do teto constitucional. Nós queremos mexer nos privilégios dos militares que têm uma previdência especial altamente injustificável, muito mais onerosa proporcionalmente que a dos civis. Nenhum desses pontos entrou na reforma do Temer. Queremos, sim, cobrar a dívida das grandes empresas com a previdência.

Você como psicanalista, como avalia o discurso do Bolsonaro em relação à violência?
Nós vivemos em um período de muita insegurança da sociedade. Uma crise econômica, política, ética, uma falta de perspectiva de futuro. Esse sentimento geral de insegurança, incerteza, gera medo nas pessoas sobre o amanhã. A psicanálise nos mostra que frequentemente o medo se converte em agressividade, em intolerância. Quando somos guiados pelo medo, somos presas fáceis de um discurso agressivo. Nós mesmos reproduzimos esse discurso como uma formação reativa de nosso medo, uma forma de escondê-lo, de abafá-lo. É aí que o Bolsonaro entra. Ele entra como alguém que mexe nos piores sentimentos das pessoas, que canaliza pela via do medo, do ódio, a fragilidade que as pessoas estão em um momento como esse. Ele é uma síntese do que a sociedade brasileira tem de pior, dos sentimentos mais negativos das pessoas em um momento de crise. Mas esse não é o único caminho e é isso que queremos mostrar na nossa candidatura. A insegurança própria desses momentos não flui apenas pelo caminho do medo. Ela flui também pelo caminho da esperança. Ela pode desaguar na construção de um novo projeto de futuro, que esteja baseado não em ódio, mas em valores, em solidariedade, em estar junto com as pessoas. O papel de uma alternativa política no Brasil hoje tem que ser a política da esperança, de construir senso de comunidade. É isso que vai nos dar uma alternativa de futuro.


El País: O fantasma de Pinochet paira sobre o Chile

 Semana no país sul-americano ficou marcada por diversos fatos relacionados ao ditador e seu regime

Passaram-se quase 45 anos do golpe de Estado de 1973 e a figura do falecido ditador Augusto Pinochet continua presente na conjuntura do Chile. Na quinta-feira, dia 19, no Congresso, o deputado de direita Ignacion Urrutia, do partido da situação UDI, insultou as vítimas da ditadura. Em meio a um debate sobre o projeto de lei que propõe reparações econômicas a presos políticos, que o Governo de Sebastián Piñera retirou do Parlamento, o congressista afirmou: “Mais do que exilados, foram terroristas”. Os deputados de oposição se retiraram da sala, enquanto que a representante da Frente Ampla de Esquerda, Pamela Jiles, atravessou o semicírculo para enfrentá-lo.

“Manifestações como as de Urrutia em países desenvolvidos seriam punidas”, afirmou a deputada comunista e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Carmen Hertz. O Governo, por sua vez, por meio de vários ministros, condenou as palavras do deputado da UDI. Para o titular da Justiça, Hernán Larraín, as declarações “revelam seu desprezo aos direitos humanos, a quem foi vítima de crimes e à necessidade de reconciliação”, escreveu no Twitter. “Reflete a profunda falta de critério, odiosa e contumaz.” Gonzalo Blumel, secretário-geral da Presidência e um dos ministros mais próximos de Piñera, condenou as palavras de Urrutia: “É uma frase não só infeliz como cruel, e fere profundamente milhares de vítimas”, afirmou do palácio La Moneda.

Depois de 28 anos da chegada da democracia em 1990, praticamente ninguém defende a ditadura nem as violações aos direitos humanos — pelo menos publicamente — apesar de ainda haver quem respalde o legado econômico do regime, em contraposição a quem considera inaceitável separar as atrocidades das políticas públicas. Nas eleições presidenciais de 2017, a exceção à regra foi José Antonio Kast, o candidato que chegou a 7,93% no primeiro turno apelando à figura de Pinochet e ao voto da extrema-direita. “Se estivesse vivo, votaria em mim”, chegou a dizer em campanha. “A parte de toda a questão dos direitos humanos, o Governo de Pinochet foi melhor para o desenvolvimento do país do que o de Sebastián Piñera [2010-2014]”.

Para Piñera, que neste segundo mandato aspira a fechar acordo com pelo menos cinco grandes grupos de oposição, é no mínimo incômodo que um membro de sua coalizão seja quem acenda o debate em torno de Pinochet. O próprio Chefe de Estado, diferentemente do resto da direita e de alguns dos atuais colaboradores, votou pela opção do 'não' no plebiscito de 1988 que selou o fim da ditadura.

Mas o incidente desta quinta-feira na Câmara não é o único a trazer Pinochet de volta à realidade atual chilena. No início da semana, um memorial em honra a 177 presos desaparecidos e executados políticos na cidade de Valparaíso, a cerca de 110 quilômetros de Santiago, apareceu pintado com os seguintes dizeres: “Viva Pinochet”. Os grupos de direitos humanos da região apresentaram uma petição para investigar o atentado, assim como o representante do Governo na região, o intendente Jorge Rodríguez. Localizado na avenida Brasil da cidade portuária, o memorial sofreu danos graves com a pixação.

Há dois dias, por sua vez, o jornal La Tercera divulgou um vídeo gravado pouco antes da morte de um violador de direitos humanos da ditadura que tinha pedido indulto presidencial por razões humanitárias durante o mandato de Michelle Bachelet (2014-2018). Condenado pela Justiça a 10 anos de prisão por homicídio qualificado, René Cardemil Figueró cumpria o quarto ano de prisão no presídio de Punta Peuco e faleceu de câncer de próstata com metástases em 7 de abril passado no Hospital Militar. “Esses selvagens da Unidade Popular, esses selvagens que se vingaram de nós, não vão ganhar de nós. Nunca vão nos derrotar”, afirmou Cardemil em referência à coalizão de partidos de esquerda que apoiou o derrotado Governo de Salvador Allende.

Em outubro de 1973, no mês seguinte ao Golpe, foi um dos três culpados pelo fuzilamento de seis pessoas em Santiago do Chile, cujos restos foram encontrados em plena rodovia para Valparaíso com múltiplos ferimentos de bala: uma mulher grávida e seu marido — ambos argentinos —, um funcionário do Fundo Monetário Internacional, um empresário, um dentista e um estudante de Pedagogia.


El País: A autêntica revolução foi no período Neolítico

Em uma época de mudança ambiental, os olhares dos especialistas se voltam para o Neolítico, o período em que a humanidade experimentou sua transformação mais radical

Por Guillermo Altares, do El País

O Neolítico é o período mais importante da história e um dos mais desconhecidos do grande público. Com a adoção da pecuária e da agricultura foram criadas as primeiras cidades, nasceu a aristocracia, a divisão de poderes, a guerra, a propriedade, a escrita, o crescimento populacional... Surgiram, em poucas palavras, os pilares do mundo em que vivemos. As sociedades atuais são suas herdeiras diretas: nunca fez tanto sentido falar de revolução porque deu origem a um mundo totalmente novo. E talvez tenha sido também o momento em que começaram os problemas da humanidade, não as soluções.

Ponderar se foi uma desgraça ou uma sorte algo que aconteceu há 10.000 anos e que não podemos reverter pode ser absurdo, mas é importante tentar saber como aquela passagem aconteceu e saber se a vida das populações melhorou. O motivo é que foi naquele período que a humanidade começou a transformar o meio ambiente para adaptá-lo às suas necessidades, e quando a população da Terra começou a crescer exponencialmente, um processo que só se acelerou desde então. Os estudos sobre o Neolítico se multiplicaram nos últimos tempos e não é por acaso: hoje vivemos a passagem para uma nova era geológica, do Holoceno ao Antropoceno, uma mudança planetária imensa. De fato, alguns estudiosos acreditam que esse salto começou no Neolítico.

“O crescimento demográfico constante, que ainda está fora de controle, provocou concentrações humanas, tensões sociais, guerras, desigualdades crescentes”, escreve o arqueólogo francês Jean-Paul Demoule, professor emérito da Universidade de Paris I-Sorbonne em seu recente ensaio Les Dix Millénaires Oubliés Qui Ont Fait l’Histoire. Quand On Inventa l’Agriculture, la Guerre et les Chefs (Fayard, 2017) [Os Dez Milênios Esquecidos Que Fizeram a História. Quando Inventamos a Agricultura, a Guerra e os Chefes]. “Acredito que é a única verdadeira revolução na história da humanidade”, explica Demoule por telefone. “A revolução digital que estamos vivendo atualmente não é mais do que uma consequência de longo prazo daquela. Mas, curiosamente, é a menos ensinada na escola. Começamos com as grandes civilizações, como se fossem óbvias, mas é muito importante perguntar por que chegamos até aqui, por que temos governantes, exércitos, burocracia. Acho que no nosso inconsciente não queremos fazer essas perguntas.”

O capítulo que o ensaísta israelense Yuval Noah Harari dedica ao Neolítico em seu célebre livro Sapiens – Uma Breve História da Humanidade (Harper, 2011), um dos ensaios mais lidos dos últimos anos, intitula-se ‘A maior fraude da história’. “Em vez de anunciar uma nova era de vida fácil, a revolução agrícola deixou os agricultores com uma vida geralmente mais difícil e menos satisfatória do que a dos caçadores-coletores”, escreve Harari. O antropólogo da Universidade de Yale, James C. Scott, professor de estudos agrícolas, se pronuncia num sentido semelhante: “Podemos dizer sem problemas que vivíamos melhor como caçadores-coletores. Estudamos corpos de áreas onde o Neolítico estava sendo introduzido e encontramos sinais de estresse nutricional em agricultores que não encontramos em caçadores-coletores. É ainda pior nas mulheres, onde identificamos uma clara carência de ferro. A dieta anterior era sem dúvida mais nutritiva. Encontramos também muitas doenças que não existiam até os humanos passarem a viver mais concentrados e com os animais. Além disso, sempre que ocorreram assentamentos de populações, começaram guerras”.

Scott percebeu que todas as ideias que tinha sobre o Neolítico estavam erradas enquanto preparava um curso sobre a domesticação de plantas e animais. “Passei três anos estudando tudo o que havia sido publicado tentando entender o que realmente havia acontecido”, explica por telefone desde seu escritório. Assim, escreveu Against the Grain: A Deep History of the Earliest States (Yale University Press, 2017) [Contra As Sementes: uma História em Profundidade dos Primeiros Estados], livro que teve grande impacto no mundo anglo-saxão. “A versão que contamos do Neolítico nas escolas, que aprendemos a domesticar as plantas, então criamos as cidades e a fome acabou é falsa”, diz Scott.

Os habitantes das sociedades agrícolas sofriam mais estresse nutricional do que os caçadores

Sua leitura desse período é a mais revolucionária e nem todos os estudiosos concordam com sua interpretação, mas podemos falar de uma reavaliação geral daqueles milênios, provocada, entre outras razões, porque o estudo do DNA antigo permitiu conhecer populações do passado como nunca até agora. Em seu ensaio, Scott argumenta que já se utilizava a agricultura e a irrigação antes do nascimento dos Estados, e que diferentes catástrofes como epidemias ou desmatamento, e a salinização do solo, fizeram que o Neolítico fosse um processo de ida e volta e que sociedades agrícolas voltassem a ser caçadoras-coletoras. “Durante 5.000 anos passaram de um estado a outro dependendo das condições climáticas. Houve muita fluidez entre essas duas formas de vida”, afirma.

Perguntado se isso esconde lições para o presente, o professor diz que é uma questão que levantam o tempo todo, mas ele não quer “ser profeta”. Como leitor, é muito difícil abstrair essa tentação: a ideia de que o avanço da humanidade pode ser reversível se brincarmos de aprendiz de feiticeiro, ao colocar em marcha processos que não somos capazes de controlar, é muito inquietante. Especialmente porque vivemos um momento em que estamos rodeados por fenômenos (dos plásticos no mar aos avanços em inteligência artificial ou o aquecimento global) cujas consequências a longo prazo estamos apenas começando a vislumbrar. Aquelas primeiras populações que deixaram o nomadismo para se assentar e viver da agricultura e da pecuária tampouco podiam ter uma ideia do que estava acontecendo.

Outros livros publicados recentemente que questionam algumas verdades adquiridas sobre o Neolítico são La Forja Genética de Europa. Una Nueva Visión del Pasado de las Poblaciones Humanas (Edicions Universitat de Barcelona, 2018), do geneticista espanhol Carles Lalueza-Fox, professor do Instituto de Biologia Evolutiva (CSIC-UPF) e Les Chemins de la Proto-Histoire. Quand l’Occident s’Éveillait (Odile Jacob, 2017) [Os Caminhos da Proto-História. Quando o Ocidente Despertava] de Jean Guilaine, que aos 81 anos é uma referência nos estudos de pré-história na Europa e atualmente é professor emérito do Collège de France. “O Neolítico nos deixou uma mensagem clara: um ambiente natural transformado e bem regulado pode alimentar um grande número de bocas”, explica Guilaine. “Mas essa mensagem sublime também foi pervertida pelo homem, ávido por dominar seus semelhantes: exploração irracional do meio, acumulação de sementes, desigualdades sociais, espírito de supremacia sobre os mais fracos. A esperança de uma sociedade em harmonia com a nova economia fracassou por causa da recusa a compartilhar.”

Os historiadores continuam procurando respostas para muitas perguntas. A primeira delas é saber por que a agricultura foi inventada se nos alimentávamos melhor quando éramos caçadores-coletores. O que está claro é que coincidiu com um período de aquecimento global do planeta depois da última glaciação, há cerca de 10.000 anos, e foi um processo gradual que ocorreu em diferentes pontos ao mesmo tempo e que desembocaria em alguns lugares, como a Europa, no florescimento de civilizações como a etrusca e a romana. A introdução da agricultura e da pecuária foi seguida pelo trabalho com os metais, a fundação de cidades, o surgimento de aristocracias... “O Neolítico é a grande revolução que inaugura o nosso mundo histórico”, diz Guilaine. “É um período sobre o qual temos muitos dados, mas que é muito pior explicado do que outros momentos. Gostamos mais de ensinar as origens do homem, porque isso levanta problemas filosóficos, ou as civilizações da antiguidade, consideradas brilhantes por causa de suas realizações arquitetônicas. Podemos achar impressionantes as pirâmides e o Parthenon, mas o que representam quando comparados à passagem de toda a humanidade à agricultura?”.

Quase ninguém mais acredita que houve uma única revolução neolítica que eclodiu no Oriente Médio com a domesticação do trigo e que daí se espalhou a todo o planeta. A ideia mais difundida é que houve vários pontos de partida mais ou menos simultâneos, na China com o arroz ou na América com o milho. Por outro lado, existe a certeza, graças à genética, de que o trigo chegou à Europa por meio das migrações dos primeiros camponeses, em um momento de grandes movimentos populacionais.

“Se o Neolítico é algo, é um movimento de pessoas do Oriente Médio, porque é um tipo de economia que provocou um crescimento demográfico que até então não existia”, diz Carles Lalueza-Fox, cujo livro reúne décadas de avanços nas pesquisas genéticas. Essas técnicas “supuseram uma mudança revolucionária”, explica, “porque agora estamos em condições de estudar o genoma dos protagonistas dos acontecimentos do passado. Quando questionamos se um horizonte cultural ou outro envolveu migrações de pessoas ou movimentos de ideias, agora podemos perguntar isso diretamente às pessoas que viveram esses processos”.

Eva Fernández-Domínguez, professora associada do Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham (Reino Unido), onde dirige o laboratório de DNA arqueológico, e especialista no processo de transição para o Neolítico na Península Ibérica e no Oriente Médio, explica assim os novos caminhos abertos pelo estudo do DNA antigo: “Por meio da arqueologia podemos saber se as populações eram caçadoras-coletoras ou agrícolas-pecuárias mediante o estudo dos restos arqueozoológicos e arqueobotânicos do sítio, da tipologia lítica (técnica e estilo de fabricação de ferramentas), do tipo de assentamento. No entanto, essas técnicas não possuem resolução suficiente para nos dizer como o processo de transição ocorreu; isto é, se grupos locais de caçadores-coletores aprenderam a cultivar ou se a agricultura foi levada por imigrantes de outras regiões, e se esses imigrantes substituíram completamente a população autóctone ou se misturaram com ela e em que proporção. Esse tipo de informação só é acessível através da genética. Graças às novas técnicas de sequenciamento massivo, hoje possuímos uma boa representação da informação genética dos indivíduos envolvidos no processo de transição para o Neolítico”.

Um caso fascinante que ilustra como o Neolítico se estabeleceu é o da cerâmica campaniforme, que se expandiu em grande parte da Europa durante a Idade do Bronze, há cerca de 4.900 anos. A partir da Península Ibérica, especificamente do estuário do Tejo, chegou ao norte e ao leste da Europa, às Ilhas Britânicas, mas também à Sicília e à Sardenha. Além de Portugal e Espanha, essa cerâmica, que não está associada ao uso cotidiano, mas ritual, apareceu na França, Itália, Reino Unido (incluindo a Escócia), Irlanda, Holanda, Alemanha, Áustria, República Tcheca, Eslováquia, Polônia, Dinamarca, Hungria e Romênia. “Sua escala geográfica não tem precedentes no continente até a chegada da União Europeia”, escreve Lalueza-Fox em seu ensaio. Guardando todas as proporções, seu alcance geográfico poderia ser comparado ao de um Tok &Stok do fim da pré-história.

Durante décadas existiram duas teorias opostas: a cerâmica teria chegado com populações que migraram ou teria existido algum tipo de transmissão oral. Ao longo de 2016, equipes do Instituto de Biologia Evolutiva do CSIC, do Wolfgang Haak, do Instituto Max Planck, e David Reich, que dirige em Harvard um laboratório de genética e que acaba de publicar o ensaio Who We Are and How We Got Here: Ancient DNA and the New Science of the Human Past (Pantheon, 2018) [Quem Somos e Como Chegamos até Aqui: o DNA Antigo e a Nova Ciência do Passado Humano], analisaram amostras de indivíduos que pertenciam a essa cultura, coletadas em todo o continente. “Descobrimos que não estava associado a movimentos de genes e, portanto, de pessoas, mas que se tratava do primeiro exemplo de difusão maciça de ideias”, explica Lalueza-Fox. Posteriormente houve um movimento maciço de população para as Ilhas Britânicas, que levou a essa cultura e, de fato, substituiu as populações então existentes.

O Neolítico começou há cerca de 10.000 anos, em um período de aquecimento global

Esse período é particularmente importante porque é a partir desse momento que começam a surgir sinais arqueológicos claros da existência de uma aristocracia e, portanto, de desigualdades sociais. “É um momento crítico de mudança social, caracterizado pela emergência de uma classe aristocrática guerreira que perdura além da própria cultura”, escreve o pesquisador catalão em seu ensaio.

Nem a genética nem a arqueologia ainda conseguiram desvendar todos os mistérios cruciais que esse período esconde. Também chegou nesse período à Europa o indo-europeu, do qual derivam as línguas faladas por metade da população mundial, um processo sobre o qual ainda existe um intenso debate. A única certeza é que aquela revolução remota mudou tudo e que ainda não acabou.

As lições que esconde podem ser muito úteis para um presente em que a humanidade está levando a natureza e seus recursos ao limite de suas possibilidades.


El País: Grupo espanhol ETA pede “perdão” a vítimas por ações terroristas do passado

Separatistas admitem que a sociedade basca foi submetida a um “sofrimento desmedido”. Mais de 850 pessoas foram mortas por Etarras em cinco décadas de atuação

A organização terrorista ETA, que causou a morte de mais de 850 pessoas em cinco décadas de assassinatos, sequestros e sabotagens, pediu perdão – limitado a “cidadãos e cidadãs sem responsabilidade alguma no conflito” – e reconheceu o “dano causado no transcurso de sua trajetória armada”, segundo um comunicado divulgado nesta sexta-feira pelos jornais bascos Gara e Berria. O ETA, que lutava pela independência do País Basco (uma região dividida entre o norte da Espanha e o sudoeste da França) interrompeu sua ação armada em 2011 e deverá anunciar sua dissolução no primeiro fim de semana de maio.

No texto, com uma linguagem distante da usada tradicionalmente em seus comunicados, a organização admite que nas últimas décadas de terrorismo houve um “sofrimento desmedido” e reconhece sua “responsabilidade direta” nessa dor. “Não deveria ter ocorrido jamais, nem se prolongado no tempo”. “Estamos conscientes de que neste longo período provocamos muita dor, incluindo muitos danos que não têm solução. Queremos mostrar respeito aos mortos, aos feridos e às vítimas que as ações do ETA causaram. Sentimos seriamente”. Mas o texto faz uma distinção entre certas vítimas. “Sabemos que, premidos pelas diversas necessidades da luta armada, nossa atuação prejudicou cidadãos e cidadãs sem responsabilidade alguma. Também provocamos graves danos que não têm mais volta. A estas pessoas e a seus familiares pedimos perdão.”

O grupo argumenta que, “neste conflito político e histórico”, o sofrimento imperava antes que o ETA surgisse e continuou depois que a organização deixou de matar. “As gerações posteriores ao bombardeio de Gernika [pelas forças aliadas do franquismo, em 1937] herdamos aquela violência e aquele lamento, e corresponde a nós que as gerações vindouras encontrem outro futuro”.

O ETA (sigla de “pátria basca e liberdade”, no idioma basco) – que se situa agora junto aos militantes que a organização expulsou em 2012 por aceitarem a reinserção na vida institucional – pede perdão também às vítimas que considera “alheias ao conflito”, mortas em “consequência de erros”, e às suas famílias. O Gara publicou a declaração e uma “nota explicativa” que contextualiza a decisão. “No transcurso desse debate, a militância do ETA considerou necessário mostrar empatia com relação ao sofrimento originado”, diz esse texto, “e seu compromisso com a superação definitiva das consequências do conflito e com a sua não repetição”.

Nesse esforço de empatia com as vítimas, os separatistas afirmam compreender quem “considere e expresse que nossa atuação foi inaceitável e injusta”, pois ninguém pode ser obrigado a dizer o que não pensa ou sente. Mas o ETA alega que também houve outro tipo de agressão. “Para muitos outros também foram totalmente injustas, apesar de utilizarem o disfarce da lei, as ações das forças do Estado e das forças autonômicas [regionais] que agiram conjuntamente, e tampouco esses cidadãos e cidadãs merecem ser humilhados”.

A formação recorda o “sofrimento desmedido” que o País Basco sofreu. “O ETA reconhece a responsabilidade direta que adquiriu nessa dor, e deseja manifestar que nada disso deveria jamais ter ocorrido nem se prolongado tanto, pois já faz muito tempo que o conflito político e histórico deveria contar com uma solução democrática e justa”, afirma o comunicado.


El País: Facebook, a máquina de fazer dinheiro agora se prepara para se enquadrar à lei

Zuckerberg abraça perspectiva de uma regulação mais dura, como a da União Europeia. Brasil ainda não tem uma lei para proteger melhor a privacidade dos usuários de redes sociais

Por Fernanda Becker, do El País

A necessidade de uma regulação mais rígida sobre dados pessoais está no centro do debate, após o escândalo pelo uso ilegal de informações privadas para campanhas políticas. O próprio fundador de Facebook, Mark Zuckerberg, reconheceu que a implementação de novas normas será “inevitável” ao falar ante o Congresso dos Estados Unidos. Naquela sabatina, muitos parlamentares citaram como referência a legislação recentemente adotada pela União Europeia, que pode se consolidar como um padrão internacional. Mais rigorosas. as regras exigiriam mudanças nas práticas comerciais da maior redes social do mundo. No Brasil, até que seja aprovada uma nova legislação, os usuários da internet estão gravemente expostos, segundo os especialistas.

Facebook corre contra o tempo para dar fim a algumas das mais polêmicas práticas que estruturam seu modelo comercial. Um dos movimentos mais eloquentes da rede social foi o fim das parcerias com empresas especializadas na comercialização de dados pessoais, entre elas a Serasa Experian, que fornecia o perfil de renda dos brasileiros à plataforma de Zuckerberg. No dia 21 de março, o Facebook fez um anúncio global divulgando suas novas medidas "contra uso abusivo da plataforma". Uma semana depois, com maior discrição, anunciou o fim de chamada categoria de parceiros. Duas semanas mais tarde, em 4 de abril, o Facebook divulgou uma atualização das alterações que estava promovendo, principalmente em seus termos de uso e políticas de dados. Neste mesmo dia, publicou também a estimativa de que a Cambridge Analytica - a empresa que deu origem oo escândalo - teria obtido informações pessoais sobre aproximadamente 87 milhões de perfis. Os dados foram usados nas campanhas para a eleição de Donald Trump nos EUA e para o referendo sobre o Brexit no Reino Unido. A plataforma também anunciou mudanças na forma de autenticação de páginas e anunciantes, além de esforços para tornar seus mecanismos mais transparentes.

Durante a sabatina de Zuckerberg na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos na última quarta-feira (11), o deputado Greg Walden apontou que o modelo de negócios do Facebook está lastreado no valor dos dados pessoais de seus usuários. “Eu compreendo que o Facebook não comercializa os dados de seus usuários per se, no sentido tradicional”, afirmou Walden. "Mas também é verdade que os dados de usuários do Facebook são, provavelmente, o bem mais valioso da empresa. Talvez, a única coisa realmente valiosa em todo o Facebook”.

O modelo de negócios do Facebook é baseado na coleta de uma ampla variedade de dados fornecidos de maneira direta ou indireta pelos próprios usuários, sua rede de amigos e até empresas parceiras da rede social. Além dos dados de cadastro que as pessoas oferecem ao criar uma conta, a empresa também coleta outros menos óbvios como informações sobre os aparelhos onde são instalados seus aplicativos, dados específicos de localização (que podem ser deduzidos via GPS, Bluetooth ou WI-FI) e metadados associados a conteúdos partilhados nestas redes, como o lugar onde uma foto foi tirada ou a data de criação de um arquivo enviado via messenger. Além disso o Facebook colhe informações sobre o comportamento dos usuários em sites de parceiros que utilizam os seus serviços, a exemplo de sites que oferecem um botão de “curtir” ou aplicativos que permitem ao usuário fazer login a partir da conta da rede social. E também os dados fornecidos por outras pessoas, inclusive quando terceiros sincronizam ou importam seus contatos para o Facebook.

Trata-se de um modelo de negócios similar ao das data brokers, empresas que coletam, compilam, compram, cruzam e vendem dados pessoais. Essas empresas comercializam informações relacionadas ao comportamento de consumidores, estilo de vida, geolocalização e outras capturadas a partir do rastro digital deixado pelas pessoas cotidianamente em operações ou ações online, como utilizar um bilhete eletrônico para uma viagem de transporte público ou fazer uma compra em uma loja física utilizando cartão de crédito.

O mercado de dados pessoais não é uma novidade e já movimenta um grande volume de recursos em todo o mundo. Em maio do último ano, um relatório da Anistia Internacional revelou que a empresa Exact Data ofertava dados pessoais de 1,8 milhão de muçulmanos por 138.380 dólares (cerca de 430.000 reais), ou seja, aproximadamente 7,5 centavos de dólar por pessoa. O relatório também detalhava que a empresa tinha uma base de dados com cerca de 200 milhões de contatos de pessoas nos Estados Unidos. A Anistia Internacional estima que apenas na Europa existam pelo menos 50 data brokers em operação.

O Facebook não funciona exatamente como essas empresas. A principal diferença é que o Facebook comercializa os dados agrupados e, portanto, sem identificação individual de quem é o dono de tal conjunto de informações, enquanto muitas data brokers acabam fornecendo dados específicos de indivíduos. O modelo de negócio do Facebook, de fato, fornece um serviço de natureza distinta, mais relacionado com distribuição de conteúdos, tendo como foco o microdirecionamento de anúncios, seu principal produto, que permite customizar anúncios para públicos específicos de acordo com informações detalhadas sobre o comportamento e estilo de vida. As informações coletadas pelo Facebook são agrupadas, processadas e utilizadas tanto para garantir o funcionamento da plataforma, a exemplo do algoritmo que seleciona os conteúdos que serão exibidos na timeline de cada usuário, quanto para a venda destes anúncios direcionados.

Este elemento aparentemente ético do modelo também tem seu aspecto rentável: ao vender os dados agrupados, o Facebook intermedeia a relação entre anunciantes e seu público alvo sem jamais entregar essas informações abertamente, o que obriga os anunciantes a estabeleceram uma relação de longo prazo com a plataforma. Ao restringir o acesso de outras empresas aos dados brutos de seus usuários, o Facebook pode revendê-los sistematicamente.

A rede social também intermedeia a comercialização de dados coletados por terceiros por meio das chamadas "categorias de parceiros", que são categorias de microdirecionamento de anúncios baseadas nas informações fornecidas pelos parceiros comerciais da rede social, particularmente data brokers. Essas categorias permitem aos anunciantes refinar o direcionamento de seus conteúdos de acordo com as informações compiladas por empresas como a Serasa Experian, que dizem respeito a variáveis demográficas ou informações sobre o comportamento dos usuários da rede social fora dela, como histórico de compra.

Até o mês de março deste ano, estas "categorias de parceiros" estavam disponíveis para o Brasil e mais seis países: Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido, Austrália e Japão, mas no dia 28 de março a matriz global do Facebook anunciou o seu desmonte para "ajudar a ampliar a privacidade das pessoas". O fim destas parcerias comerciais entre o Facebook e outras empresas pode ser interpretado como um desdobramento do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica. O Facebook não se posicionou, entretanto, a respeito das eventuais vulnerabilidades que este modelo poderia representar para a privacidade, mas garantiu que as empresas parceiras não tinham acesso aos dados brutos dos usuários da rede social.

Ainda assim, outros tipos de parcerias permanecem disponíveis, como as que servem para auxiliar os clientes do Facebook a fazer campanhas de cadastramento de usuários custumizadas, ou as de marketing, que oferecem serviços para monitorar marcas na plataforma. O Facebook informou em comunicado que esses parceiros só têm acesso a dados públicos, ou seja, que ficam fora posts, fotos ou curtidas privadas.

Pouca proteção no Brasil
Dennys Antonialli, professor da Faculdade de Direito da USP e diretor do InternetLab, centro independente de pesquisa em direito e tecnologia, explica que embora o Marco Civil da Internet estabeleça algumas regras importantes, como a exigência de consentimento para as atividades de coleta e tratamento de dados pessoais, ele não é suficiente para proteger os brasileiros de atividades como as da Cambridge Analytica, por exemplo. “Apesar de a Constituição tutelar o direito à privacidade, ainda não existe, no Brasil, uma lei geral que discipline as atividades de coleta e tratamento de dados, e muito menos um órgão para fiscalizá-las, o que poderia oferecer limites para essas atividades”.

Mais de 100 países já aprovaram legislações nesse sentido. Mas um dos problemas para os Estados atuarem é que muitas vezes as empresas estão sediadas em outros países. Na Europa há uma nova regulamentação que obriga também as empresas que não possuem sede na União Europeia quando os serviços são para usuários desse continente ou para monitorar seu comportamento.

"A comercialização de dados pessoais sem o consentimento dos usuários é um grande desafio. Como impedir que empresas que tenham coletado dados a partir de um teste oferecido no Facebook não acabem repassando esses dados a terceiros se essa empresa não tem nem sede no país?”, questiona Antonialli. Desde 2007, o Brasil discute projetos nesse sentido, mas até o momento, nenhum foi aprovado. “Atualmente, o PL 5276/2016 está em tramitação na Câmara dos Deputados, mas sem previsão para aprovação. Enquanto isso, os brasileiros continuam expostos à perfilação e comercialização de seus dados pessoais, inclusive para fins eleitorais, o que é muito grave”, alerta. O caráter global do mercado de dados impõe outro um desafio regulatório. “Dados da minha pesquisa de doutorado indicam, por exemplo, que dos 100 aplicativos mais baixados no Brasil em outubro de 2016, 67% deles foram desenvolvidos por empresas que não tinham representação no Brasil, no caso do sistema Android, e 45%, no caso da Apple”, revela Antonialli.

Em setembro de 2017, o Facebook foi multado em 1,2 milhão de euros por usar informações de usuários sem autorização na Espanha. De acordo com as constatações da Agência Espanhola de Proteção de Dados, a rede social estava coletando dados derivados da interação realizada pelos usuários na plataforma e em sites de terceiros sem que estes possam notar claramente a informação que o Facebook recolhe sobre eles nem com qual finalidade vai usá-la.

A saúde da concorrência
Quando a rede social de Zuckerberg divulgou o fim de sua “Categoria de Parceiros" empresas como a Experian (matriz internacional da Serasa) e Acxiom sofreram quedas importantes em suas ações. A data broker Acxiom despencou 23% após o anúncio. O Facebook, em contrapartida, conseguiu reverter a queda que havia sofrido com o escândalo da Cambridge Analytica após este movimento. A medida gerou debate tanto sob uma perspectiva ética, discutindo o significado da parceria comercial da rede social com essas data brokers, quanto críticas de analistas e executivos do mercado, que acusaram a empresa de aproveitar a crise para consolidar uma espécie de duopólio no mercado de dados pessoais entre o Facebook e seu principal rival, o Google.

O analista Brian Nowak da Morgan Stanley escreveu em nota a seus clientes que "o Facebook e o Google estão, de algumas maneiras, ‘murando’ seu jardim. As duas maiores plataformas de anúncios online estarão mais alinhadas agora, focando em comercializar os dados que obtém em primeira mão, além de ferramentas e soluções próprias que criam uma expectativa de que Google e Facebook continuaram dirigindo 90% do mercado de anúncios online", conforme repercutiram a Bloomberg e a Business Insider. Muitos analistas acreditam que as duas gigantes do mercado podem sofrer um pouco com regulações mais duras que já começaram a ser implementadas na Europa, mas que empresas menores devem sucumbir às novas regras.

De fato, nenhuma das medidas implementadas pelo Facebook após o escândalo da Cambridge Analytica é inconsistente com sua estratégia comercial, muito pelo contrário. Essas medidas vão no sentido de restringir cada vez mais o acesso aos dados e, em momento algum, no sentido de parar de comercializá-los. Ao fechar suas 'Interfaces de Programação de Aplicativos' (APIs), que permitem que outros programadores desenvolvam produtos associados aos serviços para a rede social, o Facebook acaba minando um série de empresas que dependem dos dados obtidos por meio delas para manter seus modelos de negócio. Estas empresas oferecem ao mercado soluções como ferramentas de agendamento de postagens no Facebook e no Instagram, soluções para monitoramento do desempenho de páginas, jogos e, em alguns casos, os testes maliciosos como os utilizados pelo polêmico cientista Alexander Kogan, que teria vendido a base de dados que obteve a partir de um aplicativo para a Cambridge Analytica.

As APIs do Facebook também permitia à pesquisadores de todo mundo extrair dados (em grande parte classificados como “públicos” pela plataforma) para estudos de diversas naturezas, que vão desde análises sobre sociabilidade e aspectos comportamentais dos usuários da rede social até estudos sobre disseminação de notícias falsas ou o impacto do famigerado algoritmo de Zuckerberg sobre o debate político durante processos eleitorais, entre outros temas. É bem verdade que a ética com que estes dados serão utilizados por empresas e pesquisadores pode ser discutida, mas o fato de não haver legislações mais rigorosas sobre aspectos como o período de tempo no qual as companhias podem manter essa informação, quais os limites do uso e comercialização dos mesmos vale tanto para a enorme operação do Facebook e outras gigantes da internet quanto para pequenos grupos de pesquisa e desenvolvedores de aplicativos.

Por outro lado, as medidas de restrição do acesso aos seus dados adotadas pela empresa abrem espaço para um debate sobre os limites da transparência. Se antes qualquer grupo de pesquisa poderia acessar um conjunto de dados públicos no Facebook, agora o acesso passa a ser controlado pela própria empresa, o que pode inibir determinados tipos de iniciativa tornando-a ainda menos auditável. Enquanto isso, a rede social segue coletando e comercializando informações sobre seus usuários da mesma maneira, enquanto enfrenta enormes desafios para tentar contornar problemas como disseminação de discurso de ódio, notícias falsas e fraude eleitoral dentro da plataforma.


El País: Fé evangélica abraça as urnas na América Latina

Doutrina se transformou em um ator político determinante em muitos países da região, impondo valores ultraconservadores e fazendo retroceder as liberdades, escassas em muitos lugares

Por Talita Bedinelli, do El País

Nos próximos meses, com a proximidade das eleições no Brasil, as igrejas evangélicas devem se tornar um dos principais pontos de peregrinação política. É um dos efeitos da dependência do apoio evangélico, que migrou do PT às vésperas do impeachment, e hoje está livre para o candidato que conseguir convencer que está apto a atender os anseios de uma comunidade que já representa mais de dois em cada dez brasileiros. Feito isso, poderá levar um palanque que o expõe a uma atenta multidão e que não tem os custos de um programa eleitoral. Em janeiro, o à época ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, provável candidato à presidência pelo partido de Michel Temer, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), deu a largada do ano: visitou a Igreja Sara Nossa Terra, em Brasília, onde foi apresentado como o responsável pelo “maravilhoso milagre da economia brasileira”.

A aproximação entre a política e a religião evangélica é uma constante que se estendeu por toda a América Latina, onde a doutrina se expande a um ritmo vertiginoso. Em uma região onde existem 425 milhões de católicos (40% da população católica mundial), em um contexto em que a Igreja Católica é liderada pelo primeiro papa latino-americano, os evangélicos somam 20%, quando há seis décadas mal chegavam a 3%, de acordo com dados do Pew Research Center, um fact tank norte-americano que conduz pesquisas sobre temas sociais.

A ascensão fez com que estes grupos religiosos se transformassem em um ator político determinante, à custa de impor na agenda valores retrógrados e com o risco de fazer retroceder liberdades que, na maioria dos países, mal começavam a ser implementadas. O Brasil, a Colômbia e o México, as três grandes potências que nesse ano realizam eleições, serão o termômetro para avaliar o poder da doutrina além dos centros onde é praticada. Se nos dois primeiros esse poder já é notável, no México, encravado entre um país (os Estados Unidos) e uma região (América Central) onde os evangélicos a cada dia têm mais poder, é um enigma o papel que desempenharão. Nos três casos, os candidatos, de esquerda e conservadores, fizeram sinais, quando não alianças, para garantir seu voto.

Os grupos evangélicos foram capazes de abrir de maneira intermitente o debate sobre o que é família e atacar qualquer vislumbre de legalização do aborto e de casamentos igualitários. E mais, esses grupos apelam à fé para erigir-se como ativos na luta contra a corrupção, a mácula que carcome a região de norte a sul. Com essa premissa Fabricio Alvarado quase chegou ao poder na Costa Rica há duas semanas. A fulgurante ascensão do pastor evangélico no pequeno país centro-americano também evidenciou como esses grupos contam, a seu favor, com um fator que os partidos tradicionais não têm, especialmente os mais conservadores: a proximidade com classes populares, fartas das elites, e que tradicionalmente optavam por partidos de esquerda.

Luiz Inácio Lula da Silva foi talvez quem melhor soube entender esse fenômeno. O Brasil é o exemplo mais claro de como os evangélicos permearam a política. No final da década de 80 os representantes dessa religião conseguiram eleger 32 parlamentares com a campanha “irmão vota em irmão”. Nas últimas eleições o número chegou a 77 (incluindo três senadores). O PT de Lula se beneficiou durante os últimos anos desse apoio improvável, muitas vezes à custa de políticas públicas caras à esquerda. A chegada de Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil, por exemplo, trouxe esperança às feministas de que assuntos de saúde pública importantes ao movimento, como o aborto, fossem finalmente tratados pelo Governo. Mas a dependência do apoio evangélico no Congresso impediu que isso ocorresse.

O caso do PT se repete no México. O favorito em todas as pesquisas, o duas vezes candidato presidencial Andrés Manuel López Obrador, decidiu unir seu partido, o Morena, considerado de esquerda, a um partido ultraconservador, o Encontro Social, que defende a família como um pilar. A aparente aliança antinatural inquietou boa parte dos potenciais eleitores e as bases do Morena, mas ainda não teve consequências nas pesquisas. Como Lula, López Obrador é consciente de que pode chegar a precisar do apoio da comunidade evangélica, apesar de não ser tão numerosa como no Brasil. O líder do Morena em meio ano passou de dizer que nunca estaria ao lado do Encontro Social a propor, no dia em que foi escolhido como candidato pelos ultraconservadores, uma Constituição moral ao país.

O poder dos evangélicos não será determinante no México a não ser que a votação seja muito apertada e contar com seu apoio se torne crucial. O caso mais recente é o da Colômbia. Na noite de 2 de outubro de 2016, os colombianos recusaram em plebiscito, por uma pequena diferença, o acordo de paz negociado com à época guerrilha das FARC. Naquele dia, a comunidade evangélica, sobre a qual poucos haviam colocado os refletores, saiu para comemorar. Haviam conseguido com que dois milhões de fiéis, de acordo com cálculos das principais igrejas dessa doutrina, votassem não. Lembraram ao país que são capazes de fazer frente à cifra de 70% de pessoas que se dizem católicas e mudar uma eleição. As autoridades avaliam que existem seis milhões de evangélicos, mas os pastores sobem a aposta com cálculos de 8 a 12 em uma população de 48 milhões de habitantes. É o credo que mais cresce, não só em número, também em repercussão. Contam com um poderoso alto-falante: 145 emissoras e 15.000 centros religiosos, de acordo com dados do Conselho Evangélico.

Na noite de 27 de maio as urnas demonstrarão se seu poder também é determinante para colocar e retirar presidentes. O resultado na disputa legislativa de março demonstrou que a força demonstrada durante o plebiscito se dilui quando não há um inimigo único a combater. O voto evangélico se divide no mesmo número de candidatos de sua crença. A priori, Iván Duque, candidato do Centro Democrático, o partido criado pelo ex-presidente Álvaro Uribe, é quem está mais próximo de ganhar o apoio evangélico, já que é apoiado por Alejandro Ordóñez, o ex-procurador da Colômbia, que defende que “a restauração da pátria passa pela restauração da família”. Um único modelo de família formada por um homem e uma mulher. O candidato Duque, por enquanto, não se pronunciou sobre esse assunto em um aparente exercício de neutralidade.

Os principais pastores evangélicos da Colômbia sempre manifestaram, assim como os do Brasil, que não orientam seus fiéis a escolher algum candidato, mas a votar conscientemente para defender seu modelo de família. Ainda que ao mesmo tempo mandem uma mensagem clara ao país: “Estamos presentes nos setores políticos, culturais, econômicos e sociais”.

O fato dos evangélicos serem mais fiéis ao poder do que a uma tendência política ficou claro no Brasil. O processo que levou ao impeachment de Dilma diluiu o poder político do PT e, com isso, os apoios evangélicos ficaram pelo caminho. A dúvida, agora, é para onde migrarão esses apoios nas eleições presidenciais de outubro. Por ter posições semelhantes às defendidas por boa parte dos evangélicos, Jair Bolsonaro, o candidato da extrema direita, se coloca como o que pode ter mais oportunidades de atrair seu apoio. Bolsonaro, um militar da reserva que defendeu publicamente torturadores da ditadura e quer que a população tenha o direito de portar armas, foi até batizado por um pastor, em 2016, nas águas do Rio Jordão, em Israel.

 


El País: “Joaquim Barbosa se tornou o único ‘outsider’ com chances de disputar e ganhar”, diz Fernando Luiz Abrucio

Para cientista político Fernando Luiz Abrucio, levantar a bandeira do anti-Lula é perigoso para a centro-direita, especialmente no segundo turno. Professor da FGV diz que PT tem até junho para definir plano B para candidatura Lula

Por Talita Bedinelli, do El País

A condenação de Luiz Inácio Lula da Silva e sua prisão no início deste mês prometem embaralhar ainda mais o cenário eleitoral deste ano. Ainda que o ex-presidente possa estar fora do jogo, ao enquadrar-se na Lei da ficha Limpa, ele será um dos influenciadores mais importantes da disputa. E isso vale para ambos os lados do jogo, explica o chefe do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP, Fernando Abrucio. Enquanto a esquerda depende do apoio de Lula para a transferência de votos, a direita precisa evitar atacá-lo com muita veemência, pois isso pode impactá-la no segundo turno.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Acha que o PT consegue manter a ideia de não ter um plano B com Lula preso?
Sempre esteve na cabeça do PT que seria muito difícil que o Lula se tornasse candidato. E não tem a ver com a prisão em si, já que é possível que ele seja solto antes da eleição. Mas ele não será candidato por conta da Lei da Ficha Limpa. O que está jogo depois desse episódio da prisão é o quanto ele terá de influência na eleição. E isso é realmente muito difícil de saber porque estar dentro da prisão não quer dizer que ele perderá influência sobre os eleitores. Por isso me estranha muita gente do centro para a direita tentar comemorar a prisão do dele porque quando forem para a eleição, no mínimo, entre 20% a 25% dos eleitores vão estar muito próximos do lulismo. E esses eleitores podem definir quem vai ser o presidente no segundo turno. É preciso ter uma certa inteligência estratégica para perceber que não é preciso ficar ao lado do Lula, para quem não está vinculado ao PT ou a partidos próximos, mas estar contra ele é burrice.

Mas existem candidatos que se fortalecem com o discurso anti-Lula.
O anti-Lula do país já foi construído pelo eleitorado e ele tem nome: chama-se Jair Bolsonaro. Todos os outros que tentarem se construir igualmente ao Jair Bolsonaro vão ter dificuldade de roubar os votos dele.

Como acredita que ficará o cenário eleitoral sem Lula?
Ainda há várias hipóteses. É possível ainda que essas candidaturas, que estão hoje na casa de 15, se transformem num número menor. A gente ainda não sabe quais dessas vão sobreviver. Parcerias como a de Joaquim Barbosa e Marina Silva não são impossíveis. Joaquim Barbosa conseguiu um partido grande, que vai ter chance eleitoral em alguns Estados. A marca do Joaquim Barbosa nesta pesquisa Datafolha (até 10%) já era esperada. Ele se tornou o único outsider com chances de disputar e ganhar: ele consegue ter votos de todos os lados. Já a Marina está em um partido que reduziu de tamanho recentemente a ponto de, olhando a lei, não ter nem direito de participar de um debate presidencial na TV. Pode ser também que saia uma parceria entre o Ciro e o PT. Só depois de junho a gente vai ter um cenário mais claro. Mas certamente será o mais fragmentado das eleições desde 1989. Isso significa que com certeza haverá segundo turno e que há grande chance de um candidato ir para o segundo turno com menos de 20% dos votos. Há uma possibilidade de se haver um segundo turno com um candidato mais do centro para a direita e outro mais do centro para a esquerda. Mas isso não são favas contadas, nem para um lado, nem para o outro.

Por quê?
Depende um pouco dessas combinações entre os candidatos. Se a centro-direita se fragmentar demais e fizer um processo de autodestruição, ela poderá perder. E do outro lado isso também pode acontecer. Não é impossível que esses setores se digladiem de tal maneira que você possa ter candidatos mais próximos apenas de um dos polos. O candidato que tem o nome mais consolidado hoje, e isso não significa que vá para o segundo turno, é Bolsonaro. Ele tem algo em torno de 15% dos votos e se torna um dos polos da eleição. Um dos polos da eleição vai ser bater no Bolsonaro, tanto os candidatos do centro para a esquerda como os candidatos do centro para a direita. O Bolsonaro vai ser o candidato a ser derrotado.

E o Governo de Michel Temer? Que papel pode ter?
Acho que vai ser outro dos polos importantes para a definição de votos. A tendência do pessoal do centro para a esquerda é dizer que todos os candidatos do centro para a direita são candidatos do Temer. Henrique Meirelles, Rodrigo Maia, Geraldo Alckmin, Bolsonaro, Rodrigo Rocha. E livrar-se do Temer será o segundo espantalho da eleição. Quem conseguir terá mais chance eleitoral. Há ainda um terceiro polo, que é a definição em relação ao lulismo. Se o PT tiver um candidato, a eleição vai ser 'eleitores, olhem o que fizeram com o Lula. Então, salvem o Lula'. Mas o restante da centro esquerda como Ciro Gomes, Marina, Joaquim Barbosa, vão ter mais chances quanto mais captarem o lulismo. O que não significa transformar a eleição no 'salvem o Lula', mas captarem um discurso que a saída para o país é mais próxima do que aquilo que existia nos dois governos Lula.

Nesta eleição qualquer um parece acreditar ter esperança. Acredita mesmo que as legendas queiram se aglutinar?
O sistema político de 1993 para cá era estruturado em torno do PT e do PSDB e tinha o PMDB como linha auxiliar. PT e PSDB perderam muito com a crise. PT fortemente, com o Lula impedido de ser candidato. E o PSDB, mesmo tendo um candidato com chance, como o governador Alckmin, não é a sombra do que foi entre 93 e 2014. E o PMDB é o Temer. Se você for ao Nordeste, os líderes do PMDB dizem que nem conhecem o Temer. O Eunicio Oliveira vai apoiar o candidato do PT no Ceará. O Renan Calheiros só fala mal do Temer em Alagoas. Em Pernambuco eles estão completamente divididos. No Piauí há uma boa chance de uma parte do PMDB apoiar o candidato do PT a governador. Esse tripé que sustentava o sistema político se quebrou. Não é que esses partidos não vão mais ter importância. Eles vão. Mas não mais organizados neste tripé. E diante deste cenário muita gente colocou as manguinhas de fora. Disse: 'é minha vez'. Mas o que a gente não sabe é se eles são capazes de sustentar essa campanha até o final. Porque é uma campanha presidencial com menos dinheiro do que no passado, uma eleição casada, com eleição nos Estados e no Congresso, e uma eleição em que grande parte dos partidos vai querer priorizar no seu financiamento os candidatos ao Congresso Nacional e Assembleias Legislativas. Mas, mesmo assim, dada a quebra do tripé, nós vamos ter mais candidatos do que tivemos nos anos anteriores.

Agora se fala que o PT poderia abrir mão da cabeça de chapa em nome do Ciro Gomes. Acredita que é possível?
Possível é. Mas não dá para cravar qual é a decisão. O PT tem três opções hoje. Uma é fazer uma anticandidatura, não disputar, algo que alguns líderes do partido defendem, mas acho que a chance de isso sobreviver é quase zero. As duas chances mais efetivas mesmo são: ou apoiar candidato próprio ou apoiar candidato de outro partido. Claro que a tendência maior seria lançar candidato próprio se a gente levar em conta a história do PT. O PT sempre teve um tino mais majoritário, de querer comandar o processo político. Mas desta vez há um temor muito grande de não conseguir construir um candidato que substitua Lula. Os nomes do Jaques Wagner e do Fernando Haddad estão muito distantes do peso que o Lula tinha. Jaques Wagner tem problemas porque é investigado e tem uma eleição ao Senado garantida na Bahia. E Haddad é mais jovem na política, ganhou uma prefeitura importantíssima por São Paulo, mas a perdeu em primeiro turno. A aliança com Lula pode ocorrer por duas razões: uma é que não se consiga construir um substituto e outra é que Lula perceba que é melhor uma lógica de frente ampla do que de partido majoritário.

A pesquisa Datafolha mostrou uma queda na intenção de voto de Lula e o PT segue dizendo que ele será candidato até o fim. O PT tem um prazo limite para definir um plano B para a candidatura do ex-presidente antes de esse apoio se desidratar ou ainda é cedo para cravar isso?
Acho que o PT tem até junho para definir. Aí a decisão vai depender se Lula estará livre para fazer campanha para um candidato do PT, com bom potencial para transferir votos, nas ruas, sobretudo no Nordeste. Mas se ele continuar preso, nesse caso o apoio a um candidato (fora do PT) pode ser mais eficaz. Com ele preso é mais fácil e mais efetivo apoiar outro candidato de outro partido, alguém mais conhecido, como o Ciro ou o Joaquim Barbosa.

A decisão de Ciro Gomes de não visitar o Lula no sindicato na véspera da prisão não pode prejudicar esse plano de tê-lo como cabeça de chapa?
Pode atrapalhar. Mas Ciro tem defendido, ainda que de forma mais moderada, o Lula. Não tem feito o discurso de outros candidatos do centro para a direita, que é o de comemorar a prisão. Acho que a aposta do Ciro é que o PT lançará mesmo um candidato e que ele quer o apoio do partido em um eventual segundo turno. Por isso que ele tem uma relação ambígua. De um lado, ele critica a decisão relativa ao ex-presidente, mas, de outro, não se aproxima completamente do PT porque acha que o partido vai lançar um candidato próprio e não adianta ele estar lá.

Quando a gente olha para a Argentina, a gente vê que Mauricio Macri conseguiu unir aqueles que odiavam o peronismo. Por que no Brasil a direita não conseguiu fazer isso?
A maneira como o Temer chegou ao poder é muito diferente. Macri ganhou uma eleição democraticamente. A população o escolheu como substituto do peronismo, ninguém escolheu Temer como substituto do lulismo. Temer chegou ao poder como um traidor para uma parte da população e, ao longo do mandato, não conseguiu construir essa legitimidade, seja pelas denúncias de corrupção, seja pelo lado econômico e social.

Mas e os outros candidatos?
Há vários candidatos a Macri no Brasil. Candidatos que querem substituir o que foi a hegemonia do PT nos últimos anos. Alckmin, Meirelles, Maia, Flávio Rocha, o próprio Bolsonaro. E eles vão buscar os votos para se colocar como o substituto do lulismo. Só que é mais complexo no Brasil do que no peronismo. Para além da prisão do Lula, existe o fato de que o Brasil não é quase bipartidário como a Argentina. O Brasil é um país muito mais pluripartidário, no qual o segundo turno dá um peso importante na decisão final a grupos que são minoritários do ponto de vista do voto. O lulismo pode ser minoritário nesta eleição, mas ainda tem 25% dos votos. Colocar-se como substituto do lulismo pode ser bom. Dizer-se completamente anti-lulista pode ser ruim. Esse dado eleitoral que tem que ser friamente interpretado por todos aqueles que querem substituir o lulismo. Vão ter que pensar numa estratégia em que se coloquem como substitutos, mas que não se coloquem como completos inimigos.

Pensando para além da eleição: como se governa em um cenário como esse em que está tudo tão fragmentado?
A gente pode esperar sair desta eleição com um Congresso Nacional muito fragmentado. Com Governos estaduais com vários partidos governando pelo país. Vai ser um cenário em que a gente precisa fazer reformas que racionalizem o Estado e garantam um ajuste fiscal e ao mesmo tempo teremos que melhorar os serviços públicos urgentemente porque a desigualdade está aumentando. E fazer a mesma coisa ao mesmo tempo, não será fácil. E, por fim, a gente não sabe como esse presidente eleito vai sobreviver ao enorme tiroteio que vai ter nessa campanha. O quanto o Brasil vai conseguir ter um presidente em 2019 que assuma num cenário diferente do que assumiu Dilma Rousseff. Ela assumiu em um cenário em que as forças políticas não conseguiam entrar numa sala, sentar numa mesa e conversar. Acho que se não construirmos um cenário diferente será muito difícil governar o país. A grande questão é saber o quanto esse presidente eleito vai conseguir reduzir esse grau de polarização que existe na sociedade e dentro da política brasileira. Quanto mais ele reduzir e quanto mais ele abrir as portas para forças diferentes, mais chances ele terá de governar.


Mario Vargas Llosa (El País): Lula atrás das grades

Graças à coragem de juízes e promotores está se perseguindo o grande inimigo latino: a corrupção

A entrada de Lula, ex-presidente do Brasil, em uma prisão de Curitiba para cumprir uma pena de doze anos de cadeia por corrupção deu origem a grandes protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela e da Nicarágua, o que era previsível. Mas menos do que o fato de muita gente honesta, socialistas, social-democratas e até liberais considerarem que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que se preocupou muito em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, ao que parece, aproximadamente 30 milhões de brasileiros da miséria quando esteve no poder.

Os que pensam assim estão convencidos, pelo visto, de que ser um bom governante tem a ver somente com realizar políticas sociais avançadas e que isso o exonera de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi preso pelas boas coisas que fez durante seu governo, mas pelas ruins, e entre essas se encontra, por exemplo, a gigantesca corrupção na empresa estatal Petrobras e suas empreiteiras que custou à sofrida população brasileira nada menos do que dez bilhões de reais (desses, 7 bilhões em propinas).

Quem pensa tão bem de Lula, aliás, se esquece do feio papel de leva e traz que ele representou como emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes e ministros para que favorecessem a transnacional com bilionários contratos de obras públicas.

É por essa razão e outros casos que Lula tem não só um, mas sete processos por corrupção em andamento e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari Neto e José Dirceu, seu chefe de Gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, esquemas ilícitos e outras operações criminosas. Entre as últimas acusações que pendem sobre sua cabeça está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em Guarujá.

Os protestos pela prisão de Lula não levam em consideração que, desde que ocorreu a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava asfixiar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários e banqueiros foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e várias dezenas deles o serão em um futuro próximo.

Jamais algo parecido havia ocorrido na história da América Latina: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais que, partindo de São Paulo, se estendeu depois por todo o país, não contra uma empresa, um político, mas contra a desonestidade, a enganação, os roubos, as propinas, toda a enorme corrupção que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a atividade política, em todo o país. Um movimento popular cuja meta não era a revolução socialista e derrubar um governo, mas a regeneração da democracia, que as leis deixassem de ser coisa sem importância e fossem verdadeiramente aplicadas, a todos por igual, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.

O extraordinário é que esse movimento plural encontrou juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, lhe deram uma via judicial, investigando, denunciando, enviando à prisão diversos executivos, comerciantes, industriais, políticos, autoridades, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é realizável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo se existe a vontade e o apoio popular para isso. Cito sempre Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nesses últimos anos vimos no Brasil como seu exemplo foi seguido por incontáveis juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e na liberdade que quase havia perdido.

O ex-presidente teve acesso a todos os direitos de defesa que existem em um país democrático

Há muitos brasileiros admiráveis; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de uma ação digna de punição; e atletas e esportistas cujos nomes correram o mundo. Mas, se eu precisasse escolher um deles como modelo exemplar ao restante do planeta, não hesitaria um segundo em eleger Sérgio Moro, esse modesto advogado natural do Paraná que, após se formar em advocacia, entrou na magistratura na oposição em 1996. Como já confessou, o que aconteceu na Itália nos anos noventa, a famosa Operação Mãos Limpas, lhe deu as ideias e o entusiasmo necessário para combater a corrupção em seu país, utilizando instrumentos parecidos aos dos juízes italianos da época, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada em troca da redução da pena e a colaboração da imprensa. Tentaram corrompê-lo, obviamente, e sem dúvida é um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos infelizmente não são uma exceção. Mas lá está, fazendo parte do que vem sendo uma verdadeira, apesar de ninguém ainda a ter nomeado assim, revolução silenciosa: o retorno da legalidade, o império da lei, em uma sociedade que a corrupção generalizada estava desintegrando e impedindo-o de passar de ser o “grande país do futuro” que sempre foi a ser o grande país do presente.

A decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo

O grande inimigo do progresso latino-americano é a corrupção. Ela faz estragos nos governos de direita e esquerda e um enorme número de latino-americanos chegou a se convencer de que ela é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não há defesa: os terremotos, as tempestades, os raios. Mas a verdade é que a defesa existe e justamente o Brasil está demonstrando que é possível combater a corrupção, se existirem juízes e promotores corajosos e responsáveis e, claro, uma opinião pública e imprensa que os apoiem.

Por isso é bom, para a América Latina, que homens como Marcelo Odebrecht e Lula tenham sido presos após ser processados, recebendo todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a Justiça é igual para todos, os pobres diabos do povo que são a imensa maioria, e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro e seus cargos. E são justamente esses últimos que têm maior obrigação moral de obedecer às leis e mostrar, em sua vida diária, que não é preciso transgredi-las para ocupar as posições de prestígio e poder que obtiveram, que elas são possíveis dentro da legalidade. É a única forma de uma sociedade acreditar nas instituições, repelir o apocalipse e as fantasias utópicas, sustentar a democracia e viver com a sensação de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la cada dia mais.


Eliane Brum: Lula, o inconciliável

Qual é a relação entre o ódio de uma parcela dos brasileiros contra o maior líder popular da história recente e a fratura do projeto de conciliação que ele representou nos anos que ocupou o poder?

Lembro duas cenas da conciliação que Lula promoveu no Brasil da primeira década do século.

Na primeira, ocorrida durante a campanha presidencial de 2002, só há três testemunhas. Uma delas sou eu. É uma cena pequena, mas ela sempre teve uma enormidade para mim, porque não acredito nem em deus nem em diabo, mas acredito que ambos vivem nos detalhes.

Eu entrevistava uma mulher da elite paulistana que namorava um dos principais industriais de São Paulo. Juntos, eles foram decisivos para que Lula conversasse com uma parte da elite, a que era conversável, e costurasse um apoio fundamental para a vitória do PT em 2002, depois de três derrotas consecutivas. Apoio que se concretizou na “Carta Ao Povo Brasileiro”, na qual Lula se comprometeu não com o povo, mas com o mercado, a manter as principais linhas da política econômica.

É preciso lembrar que, naquela eleição, Lula vestiu Ricardo Almeida e circulou pelos salões da elite de São Paulo, uma porta dourada aberta por Marta Suplicy, hoje no (P)MDB. Não apenas circulou, como encantou. Lula tornou-se pop para milionários que acreditavam ser esclarecidos, empreendedores, modernos e cosmopolitas. Havia algo de muito sedutor num operário, num líder sindical, que gostava deles.

E havia uma pressão social crescente no Brasil. Após o deslumbramento com a volta da democracia, o país vivera o impeachment de Fernando Collor, com os carapintadas nas ruas, e vivia um final de segundo mandato bastante penoso de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Cidade de Deus, o filme de Fernando Meirelles e Katia Lund, era a expressão do Brasil de 2002.

Uma parcela da elite econômica de São Paulo desfilou Lula pelos salões para provar aos pares que ele era tão palatável quanto seu caviar

Uma parcela da elite econômica do país compreendeu a delicadeza do momento e costurou apoios e acordos, desfilando Lula pelos salões para provar aos pares que ele era tão palatável quanto seu caviar. E Lula, inteligente como é, desempenhou seu papel com brilhantismo.

Eu estava numa dessas mansões do Jardim Europa, onde só vivem os ricos muito ricos de São Paulo, e os ricos muito ricos de São Paulo são muito ricos em qualquer lugar do mundo. Entrevistava uma das principais anfitriãs de Lula. E ela me dizia o quanto Lula era fascinante e o quanto o Brasil precisava mudar.

De repente, interrompeu a fala. E chamou alguém. Num tom elegante, mas imperativo. A empregada doméstica estava no andar de cima, mas foi instada a descer para fechar a cortina da sala onde nós duas estávamos. Percebi que de fato não ocorrera à dona da casa que ela mesma poderia se levantar do sofá e andar alguns passos. Era a vida dela, sempre tinha sido. Não poderia haver outra.

Ali estava posta a mágica de Lula. Essa mulher podia circular pelos salões com o candidato do PT vestido em ternos de grife e ao mesmo tempo chamar a empregada para fechar a cortina. Pelo toque alquímico de Lula, as contradições por um momento apagavam-se.

Salto para 2006.

rapper MV Bill, um dos criadores da Central Única das Favelas (CUFA), está na Villa Daslu, que então era chamada de “templo do luxo” ou “meca dos estilistas”. Uma construção de 20 mil metros quadrados e colunas neoclássicas na Marginal Pinheiros, que vendia de roupas de grifes internacionais a helicópteros. Na época, Eliane Tranchesi, a proprietária, já estava às voltas com denúncias de sonegação de impostos, mas apostava alto na conciliação com o outro lado dos muros.

Se, em 2002, a expressão cultural do Brasil era Cidade de Deus, o filme, em 2006 a expressão cultural foi Falcão, meninos do tráfico, o documentário de MV Bill e Celso AthaydeA obra havia sido exibida três semanas antes no programa Fantástico, da TV Globo, em horário nobre do domingo. Ao mostrar a vida – e a morte – dos “soldados” do tráfico em favelas pelo Brasil, Falcão causou enorme impacto em pessoas que não costumavam se impactar com o genocídio dos meninos negros e pobres das comunidades e periferias: dos 17 entrevistados, todos muito jovens, apenas um havia sobrevivido para assistir ao programa naquela noite de domingo.

Lula estava há quase quatro anos no poder, era candidato à reeleição e o PT já enfrentava as denúncias do mensalão, esquema de compra de votos de parlamentares que Lula afirmava desconhecer. A “conciliação” era ainda uma tese em vigor, com um presidente que não só havia cumprido rigorosamente o acordado na Carta ao Povo Brasileiro, ao não mexer na condução da economia, como ainda mantinha muito da sua mística apesar das primeiras denúncias de corrupção do PT no poder.

“Não estamos aqui para encontrar culpados pela tragédia em que vivem essas crianças (mortas pelo tráfico). Estamos aqui para juntar ricos e pobres”, disse a dona da Daslu

Para lançar o livro Falcão, meninos do tráfico na Villa Daslu, MV Bill subiu ao quarto andar com 30 moradores de favelas. A loiríssima Eliana Tranchesiresumiu, com clareza poucas vezes vista, o tom da conciliação costurada no Brasil de Lula: “Não estamos aqui para encontrar culpados pela tragédia em que vivem essas crianças. Estamos aqui para juntar todo mundo, ricos e pobres, as forças de todo mundo”.

Essa era a mágica. Juntos, o rapper negro da Cidade de Deus, no Rio, e a loira empresária paulistana que fraudava o fisco celebravam a possibilidade da conciliação de dois países apartados. O Brasil, um dos lugares mais desiguais do mundo, deveria se conciliar sem olhar para o que causava a desigualdade. Ou, o tema mais sensível, sem tocar na renda dos mais ricos nem fazer mudanças estruturais que atingissem seus privilégios.

Estavam, como anunciou Eliana Tranchesi, “todos juntos, ricos e pobres”. E cada um no seu lugar. Na Villa Daslu, os negros eram trabalhadores uniformizados e os o moradores de favelas que ali entraram naquele dia voltariam em seguida para suas casas sem saneamento básico e jamais poderiam comprar sequer um botão no “templo do luxo”. Mas, deslocados por um momento do seu lugar apenas para reafirmá-lo, eram bem-vindos e até amados. A imagem produzida era vendida como se realidade fosse. Era uma cena poderosa e é possível que muitos acreditassem nela. O Brasil vivia um momento muito particular.

Diante da mistificação, uma voz se levantou na plateia: “O consumismo é uma das causas dessa tragédia. Estamos no templo do consumo. Isso aqui é o responsável. Se eu lembrar do país e da desigualdade em que vivemos, esse local é uma violência”.

O mal-estar se instalou. O idílio acabara de partir-se. “Para satisfazer o sonho de consumo de comprar um tênis, quem está na favela às vezes tem que matar. Mas não para comprar um tênis da Daslu, porque aí tem que matar muito mais”, somou outra voz. Farpas verbais foram trocadas, a plateia branca fez sinal para cortarem o microfone.

A líder da favela Coliseu, uma mulher negra e desempregada, levantou-se então para defender a anfitriã: “Ela é rica porque trabalhou muito para ser rica”.

Apoteose. Gritos e palmas. A conciliação estava salva no Brasil de Lula. Mais tarde, Eliana Tranchesi seria presa por sonegação fiscal e outros crimes, condenada a 94 anos de prisão, e a Villa Daslu deixaria de existir. Outros “templos de consumo” tão seletos quanto, mas mais discretos, foram erguidos em São Paulo. Inclusive no próprio local da então gloriosa Villa Daslu.

A mística da conciliação sobreviveria por mais tempo.

O Brasil governado por Lula teve aumento real de salário mínimo, teve redução significativa da miséria, teve ampliação do acesso à universidade, teve melhorias importantes no Sistema Único de Saúde (SUS), teve Estatuto da Igualdade Racial, teve garantia de crédito para os mais pobres. Isso não é pouco e fez enorme diferença na vida de quem nem sempre podia comer.

Em parte só foi possível melhorar a renda dos mais pobres, sem tocar na renda dos mais ricos, pela exportação de matérias-primas para a China: e quem pagou por isso foi a Amazônia

Em grande parte, a melhoria da renda dos mais pobres, sem tocar na renda dos mais ricos, foi possível pela exportação de matérias-primas para a China, que vivia anos de crescimento acelerado. Mas esse tipo de desenvolvimento teve um custo alto para a Amazônia, um tipo de custo que não é recuperável – e num momento em que o planeta vive a mudança climática causada por ação humana. É o custo-natureza, aquele que alguns autores definem como “o trabalho não pago da natureza”.

É por essa razão que as contradições apareceram primeiro na Amazônia, na construção das grandes hidrelétricas e, com mais impacto, na maior de todas elas: Belo Monte. Em Altamira e região do Xingu todo o ovo da serpente já estava desenhado há muitos anos, mas era convenientemente longe demais. Lula e depois Dilma, assim como o PMDB, poderiam sempre contar com a desconexão do centro-sul urbano com relação à floresta. E o centro-sul não decepcionou também desta vez. Nem a parte da esquerda ligada ao PT, que mostrou a seletividade de sua preocupação com os direitos humanos e sua ignorância com relação à mudança climática e ao meio ambiente. Há uma parcela do PT e da esquerda que está cimentada no século 20. Sequer chegou a maio de 1968.

Era nas regiões amazônicas atingidas pelas grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que os povos seriam sacrificados em nome de algo supostamente maior, o desenvolvimento. A conciliação tinha sangue, suor e lágrimas, mas bem longe das capitais.

Os brasileiros que se importam de fato com a Amazônia, para além dos ufanismos de ocasião, são uma minoria. E um número menor ainda consegue fazer a relação entre o mal-estar cotidiano nas cidades e a destruição da floresta e de outros ecossistemas. Os brasileiros, assim como a maioria dos habitantes do planeta, vivem a catástrofe ambiental mas dão outros nomes a ela.

Se a água não presta ou se a água falta, acham que basta ter aumento de salário, para poder comprar água no supermercado, ou o governo do momento fazer uma obra, para que a água volte para as torneiras. Ainda não compreenderam que a água será a maior preocupação de seus filhos e netos.

O tema da corrupção foi sequestrado pela direita, e a esquerda ligada ao PT se omitiu diante da violação de direitos humanos em Belo Monte e outras grandes obras do PAC e da Copa de 2014

Também por isso Belo Monte e outras grandes obras tornaram-se possíveis e raramente são citadas como um passivo de Lula e de Dilma, mesmo por seus odiadores. Exceto quando aparecem ligadas ao propinoduto denunciado pela Operação Lava Jato. O tema da corrupção foi sequestrado pela direita – e a esquerda ligada ao PT preferiu se omitir diante das violações de direitos humanos nas grandes obras do PAC, como Belo Monte, e também da Copa de 2014.

A conciliação de Lula só podia ser provisória. Num país tão desigual como o Brasil, não é possível fazer justiça social sem mudanças estruturais – ou sem pelo menos mexer na renda dos mais ricos, redistribuindo a riqueza existente.

Há uma pergunta, sempre repetida, e que após a prisão de Lula se torna ainda mais ruidosa: “por que odeiam tanto Lula?”

É uma pergunta legítima. E tem sido respondida com frequência pelo preconceitodas elites com o que Lula representa: o nordestino, o trabalhador braçal, o pobre. Faz sentido. Mas acredito existir mais do que isso. Por várias razões e também porque, se essa fosse toda a explicação, Lula não teria terminado o segundo mandato – oito anos no poder e o escândalo do mensalão em curso – com quase 90% de aprovação.

Suspeito que mesmo os mais ricos se incomodam com a miséria. A não ser que você seja um psicopata, é duro ver pessoas destruídas nas ruas. Ou, sendo mais cínica, a imagem da miséria pode ser perturbadora porque contamina o cenário dos dias, nos faróis e nas calçadas. E pode ser perturbadora porque, por mais seguranças que se bote na porta, por mais vidros blindados nos carros, a miséria acaba transpondo os muros e ameaçando a paz armada do Brasil.

Ainda que os brasileiros, e aí não só os mais ricos, tenham alcançado uma desconexão espantosa com relação à vida torturante dos mais pobres, em especial à dos negros, não me parece que alguém goste que o Brasil tenha tanta miséria e desespero. E também me parece que mesmo os mais ricos gozaram com a popularidade internacional do Brasil de Lula, visto como o país que tinha superado o passado e se transformava numa potência do presente. Sem contar que os mais ricos ficaram mais ricos neste mesmo Brasil.

Se a conciliação vendida por Lula era provisória, isso só ficou claro no governo de Dilma Rousseff: a perda dessa ilusão teve grande impacto subjetivo sobre o país

Se a conciliação vendida por Lula era provisória, isso só ficou claro no governo de Dilma Rousseff. E talvez seja essa perda da ilusão que os mais ricos e setores da classe média não perdoem em Lula, acentuada pela piora na economia quando se acreditava que o Brasil já não poderia retroceder. Os protestos que irromperam em 2013 tiveram muitos sentidos, muitos deles contraditórios. Um dos sentidos – e só um deles – pode ter sido esse, o da perda da ilusão, que se materializou nessa rua polifônica, onde só o que ficava claro era uma furiosa e confusa insatisfação.

A ilusão de que é possível reduzir a pobreza sem perder privilégios, que vigorou na primeira década deste século e foi amplamente propagandeada pelo maior líder popular da história recente, é muito, mas muito sedutora. É necessário incluir na análise deste momento histórico o peso subjetivo que essa ideia de conciliação exerceu nesses anos de magia, em que o que era impossibilidade foi vendido como possibilidade em exercício. E o quanto essa subjetividade impactou nos fatos objetivos que fizeram do Brasil um país aos espasmos.

Uma imagem-síntese desse momento ocorreu em 2010, no último ano do segundo mandato de Lula. O então bilionário Eike Batista, símbolo da pujança do Brasil da primeira década, comprou o terno que Lula usou na posse, em 2003, com um lance de meio milhão de reais. O dinheiro foi destinado a um projeto de alfabetização na favela de Paraisópolis, em São Paulo. E o terno foi doado pelo bilionário ao acervo de Lula.

O leilão, na Daslu, foi promovido por Wanderley Nunes, cabeleireiro da então primeira-dama Marisa Letícia. Ela e Eike dividiram uma mesa. Estas são também imagens que fazem parte dos oito anos de governo de Lula, tanto quanto as dele com o povo do semiárido nordestino. Uma parte não fica completa sem a outra.

O poder dessa conciliação provisória sobre a subjetividade da vida brasileira não pode ser subestimado. A subjetividade é seguidamente esquecida nas análises dos contextos históricos, mas em geral ela é tão ou mais importante que os acontecimentos objetivos – e os determina.

É possível que parte do ódio destinado a Lula pelas elites que em 2015 desceram à Paulista para protestar com a camisa da seleção, acompanhando centenas de milhares de brasileiros, pode ser atribuído à suspensão dessa ilusão. Afinal, não seria possível conciliação sem perda de privilégios. E privilégios, dos mais evidentes a ter uma empregada que aceite descer para fechar a cortina da sala, a elite brasileira – econômica, política, intelectual – não está disposta a perder. A corrupção era a justificativa perfeita, porque elevava moralmente o portador da crítica e o salvava de perguntas cujas respostas lhe devolveriam uma imagem menos límpida.

A reação à maior presença dos negros nos espaços de poder marcou o momento em que as fissuras do projeto de conciliação se tornaram explícitas

Nos últimos anos de Lula e nos primeiros de Dilma Rousseff, os efeitos de algumas medidas sociais começaram a se fazer sentir. A ampliação do acesso dos negros às universidades talvez tenha sido o momento em que os privilégios foram colocados em xeque. Tratava-se ali de mexer em algo estrutural no Brasil, o racismo. E naquele momento a tensão tornou-se explícita, sinalizando que havia fissuras no projeto de conciliação.

Os lucros eram ótimos quando o Estatuto da Igualdade Racial, ainda em fase de elaboração, foi combatido com fúria por setores da elite. Os negros, cada vez mais presentes nos espaços de poder, avançavam sobre lugares simbólicos muito caros também para parte da classe média. Haveria que perder: objetivamente, vagas para brancos nas universidades e em concursos públicos; subjetivamente, muito mais. As reações foram imediatas.

Nos últimos anos, o avanço do protagonismo negro tem mostrado o quanto mexer nos privilégios mais subjetivos, como o de falar sozinho nos espaços de poder, é um tema explosivo no Brasil. Mesmo pessoas que se consideram de esquerda reagem mal, em especial quando o privilégio a ser perdido é o de se considerar um branco bacana.

A ampliação das ações afirmativas contra o racismo, assim como o Bolsa Famíliapriorizando as mulheres como titulares do programa, colocaram algo muito potente em movimento no Brasil, algo que seguirá se movendo para muito além dos fatos do momento. Isso pertence aos governos do PT. Neste sentido, se Lula mantinha os bolsos das oligarquias e dos rentistas cheios, por um lado, por outro solapava algumas bases pelas beiradas.

Ao mesmo tempo, não é permitido esquecer, seu partido se corrompia. A corrupção não é um dado a mais, na medida em que ela define escolhas de desenvolvimento. Não há nada mais eficiente para gerar propinas e caixa dois do que obras, em especial se elas forem grandes. Como Belo Monte.

A questão mais profunda do Brasil continua a ser a mesma: para ter conciliação de fato será preciso perder privilégios

Os programas sociais e as ações afirmativas dos governos do PT acabaram por colocar em risco a conciliação vendida por Lula. Essa fissura entre tantas expôs o óbvio. Não havia mágica. A questão mais profunda do Brasil continuava a ser a mesma: para ter conciliação de fato é preciso que uma parcela da população perca privilégios. E isso, para as elites e também para setores da classe média, era – e continua sendo – inaceitável.

Não me refiro aqui a qualquer privilégio. Aquilo que não custa perder não é privilégio. Privilégio custa. E mesmo quem tem bem poucos se agarra aos seus, o que explica um tanto de ódio mesmo entre pobres urbanos. Há sempre algo a perder, mesmo que seja uma pequena superioridade sobre o vizinho.

Assim, Lula tem alguma razão quando diz que o perseguem por ter colocado “negro dentro da universidade”. Mas o que ele precisa dizer também é que esta foi a conciliação que ele vendeu ao Brasil e na qual se lambuzou por vários anos. Esta foi a conciliação que o elegeu e o reelegeu mesmo após o mensalão, uma conciliação que tem sua expressão bem acabada na arquitetura político-financeira construída no segundo mandato, aquela que o PT chamou de “governabilidade”. Esta foi a “paz” pela qual possivelmente ele também tenha se deixado seduzir. E que nos trouxe até aqui.

O mágico precisa saber que sua mágica é truque, não realidade.

Não é possível saber qual é o tamanho do Lula que foi para a prisão. A memória é construída depois, a memória é dada pelo futuro tanto quanto pelo passado. Ainda vivemos o agora. E ele é furioso.

Para compreender o legado de Lula, o conciliador, é preciso enfrentar o inconciliável em Lula.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Brasil, um gigante abatido

A prisão do ex-presidente Lula chega num dos momentos mais frágeis da economia e da democracia do país que há poucos anos inspirava o mundo

“Em que momento o Brasil se ferrou? Em 1500, quando os portugueses chegaram.” A ironia de Clóvis Rossi, um dos mais respeitados jornalistas brasileiros, poderia ser ecoada por milhões de compatriotas. É uma sensação muito comum, como se algo estivesse dado errado desde o princípio, como se seus problemas estivessem tão arraigados na história que dificilmente terão uma solução. O saque colonial, um sangrento regime escravista que chegou até quase o século XX, uma independência sem heróis proclamada pelo herdeiro de um rei português... Com uma bagagem assim, são muitos os que pensam que seu país já nasceu ferrado e que a desigualdade social, a violência e a corrupção fazem parte de sua natureza.

Há apenas uma década, tudo era muito diferente. Em 2008, enquanto a Europa e os Estados Unidos mergulhavam numa crise econômica, o Brasil batia recordes de crescimento – 7,5% ao ano. O velho mito do país do futuro parecia a ponto de se tornar realidade. Aquilo era uma potência que despontava, um gigante com uma população de 200 milhões de pessoas que aspirava a desempenhar um papel crucial à frente da coalizão de nações emergentes. O mundo confiava tanto no Brasil, e os brasileiros estavam tão seguros de si mesmos, que de uma só tacada organizaram a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos. E no comando, um herói popular, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cortejado pela elite da política mundial.

Como se tudo aquilo tivesse acontecido em 1500, e não anteontem, o Brasil é hoje um país arrasado pela crise política e moral. Nem sequer o anúncio da retomada da economia, após três anos desastrosos, conseguiu aliviar os ânimos. O Brasil tem um presidente, Michel Temer, rejeitado por mais de 90% dos cidadãos. Tem um Congresso com dezenas de parlamentares, incluindo os líderes dos principais partidos, investigados por corrupção. Registra 60.000 homicídios por ano, com uma guerra cotidiana nas favelas e 725.000 presos amontoados nas cadeias – a terceira maior população carcerária do mundo. Até mesmo Lula, agora preso, condenado por corrupção e deixando para trás a imagem de um país devastado, entre a raiva de seus seguidores e a euforia dos que comemoram sua desgraça. Tudo isso em meio a um dos momentos mais frágeis da democracia e com uma atividade econômica que ainda não entrou no círculo virtuoso que um dia este país experimentou.

O Brasil afundou tanto que, pela primeira vez desde a volta à democracia, em 1985, os comandantes do Exército se permitem fazer pronunciamentos políticos e lançar ameaças veladas. Agora descobre-se que muitos brasileiros “perderam a vergonha” de defender a ditadura, como diz Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo. São os que colocaram em segundo lugar nas pesquisas para a eleição de outubro o ultradireitista Jair Bolsonaro, um sujeito que se negou a condenar o assassinato da vereadora e ativista Marielle Franco, no Rio de Janeiro, outra recente comoção no país.

Mas, sem voltarmos a 1500, quando foi que realmente tudo começou a dar errado? Há uma data fundamental: 2013. Já com Dilma no poder, a estratégia do PT de se proteger da crise mundial injetando dinheiro público na economia dava sinais de cansaço. E, de repente, o mal-estar explodiu. A fagulha foi algo que parecia insignificante: o aumento da tarifa do transporte público. Mas aquilo acendeu um pavio que se espalhou pelo país inteiro, com mobilizações protagonizadas por jovens de esquerda. Dilma ainda venceu as eleições do ano seguinte com a diferença de votos mais apertada da História, mas a situação piorou rapidamente. O Brasil mergulhou na pior crise econômica em 100 anos. Para completar o que Rossi chama de “combinação letal”, as investigações dos contratos da Petrobras revelaram que o sistema político se alimentava de um gigantesco esquema de corrupção.

“Nos anos anteriores o consumo havia se ampliado, e surgia uma nova mentalidade de exigência da qualidade dos produtos”, explica a socióloga Fátima Pacheco. “Essa ideia se trasladou à política. O antigo ditado “rouba, mas faz” se transformou em “se rouba, não faz”. A tensão ganhou as ruas entre 2015 e 2016. Agora os manifestantes eram outros: a classe média, que sofria a crise e se indignava com os escândalos.

Os até então sócios de centro-direita do PT reagiram destituindo Dilma. Para a esquerda, foi o equivalente a um golpe de Estado, golpe este que seria completado agora, segundo Lula, com a sua prisão. A presidenta foi substituída por alguém tão impopular quanto ela, seu vice, Michel Temer. “E a perda de credibilidade se estendeu por todo o sistema político”, afirma Pacheco.

Clóvis Rossi tem 75 anos e, pela primeira vez na vida, assistirá em outubro a uma eleição direta sem Lula. Com a ausência daquele que apesar de tudo continuava sendo favorito, ninguém tem a menor ideia do que pode acontecer. Com um debate público cada vez mais violento e a ameaça de Bolsonaro, muitos brasileiros temem que o pior ainda está por vir.


El País: A desabalada carreira de Sérgio Moro em busca de seu troféu da Lava Jato

De vazamento de áudios ao decreto de prisão, processo do juiz de Curitiba contra petista tem momentos controversos, inclusive pela rapidez em alguns procedimentos

Tudo aconteceu depois de dias em que a informação oficial fornecida pelo TRF-4 era a de que o tribunal seguiria a praxe: esperaria ao menos até a terça-feira, quando se esgotaria o prazo oficial para a entrada do último recurso da defesa de Lula. Ao que parece, os cálculos mudaram para que o relógio andasse mais rápido contra o petista. O TRF-4 emitiu a ordem e Moro justificou porque não esperou o último trâmite: o magistrado disse que se trata de "uma patologia protelatória e que deveria ser eliminada do mundo jurídico". Acrescentou ainda que "embargos de declaração não alteram julgados, com o que as condenações não são passíveis de alteração na segunda instância".

Um dos motivos para a pressa pode ser o temor de que o Supremo acabe por julgar ações que podem livrar o ex-presidente da cadeia. O ministro Marco Aurélio, que foi favorável ao habeas corpus do petista, tem nas mãos um pedido de liminar que cobra que o STF vete qualquer "prisão injusta" até que a mais importante corte do país julgue a questão de fundo no caso Lula: afinal, viola ou não o princípio da inocência de um réu prendê-lo antes que ele tenha tido o direito de recorrer de uma condenação? Há duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) neste sentido - Marco Aurélio é o relator - que tratam da questão. E esperança do partido PEN, que as moveu, era a que o ministro do Supremo concedesse a liminar. Questionado, porém, o magistrado demoveu os mais otimistas: "Eu não posso levar em conta nesse exame a situação de um caso concreto, de Luiz Inácio Lula da Silva", disse ao jornal Estado de S. Paulo. Não, descarta, porém, trazer o tema a todo o Supremo, mas só na semana que vem.

Um processo mais rápido que a média

Flávio Dino

@FlavioDino

O juiz acha que um recurso é uma "patologia a ser varrida". Então resolve ele mesmo "varrer". Ocorre que ele não tem essa competência constitucional, pois ele não foi eleito membro do Congresso Nacional, nem é ministro do Supremo.

Além dos lances dessa quinta-feira, o próprio histórico de Moro e do TRF-4 na Lava Jato mostram que a ação contra Lula andou mais rápido do que a média - e isso considerando que, de fato, a operação, com um juiz exclusivo na primeira instância, anda mais rápido do que boa parte dos processos na morosa Justiça brasileira. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, a tramitação do processo do petista no tribunal de Porto Alegre foi a segunda mais rápida da Lava Jato, ultrapassando outras sete ações da operação. Nos outros 8 casos em que Moro determinou a prisão de réus que respondiam ao processo em liberdade, as ordens de detenção levaram entre 18 e 30 meses para serem expedidas. No caso de Lula, foram menos de 9 meses.

A condução de Sérgio Moro também tem sido marcada por outras jogadas ousadas e rápidas - muitas delas consideradas inadequadas. No dia 4 de março de 2016, ele decretou a condução coercitiva do ex-presidente, que teve de depor no aeroporto de Congonhas. O magistrado afirmou que havia feito para garantir a segurança do petista, mas acabou incendiando o país por um dia.

Dias depois, no dia 16 daquele ano, Lula decidiu assumir o ministério da Casa Civil à convite da então presidenta Dilma Rousseff. Moro recebeu um relatório da Polícia Federal com um enorme conjunto de grampos do caso Lula e decidiu, uma hora depois, às 16h21 daquele dia, quebrar seu sigilo e liberá-los ao público. Entre os áudios estava uma conversa gravada horas antes, às 13h32, em que Dilma falava de um termo de posse que deveria ser usado pelo ex-presidente "em caso de necessidade". Era a prova que os investigadores precisavam para demonstrar que Dilma buscava proteger Lula das mãos de Moro ao nomeá-lo como ministro.

A conversa foi vazada diretamente para a Globo News - Moro mais uma vez incendiaria o país. Ruas foram abarrotadas por manifestantes contrários a posse do petista, que acabou não ocorrendo após a interferência direta do ministro do Supremo Gilmar Mendes. Os grampos trariam não só a conversa central, mas milhares de outros diálogos sem nexo com a investigação, como uma conversa da mulher de Lula, Marisa, com o filho. O juiz precisou dar explicações públicas e inclusive se desculpou com o então ministro do STF Teori Zavascki, que criticou a decisão. Mas, a essa altura, o estrago e seu impacto político já estavam feitos. Apesar da advertência formal do STF, Moro pediu desculpas só a Teori, mas jamais disse ter se arrependido da decisão de divulgar os áudios. Pelo contrário, em recente entrevista no programa Roda Viva, reafirmou sua decisão: “Jamais pedi escusas.”

Agora, parece usar um cálculo semelhante em sua autodeclarada cruzada contra a corrupção. Preferiu o ônus da crítica por eventual açodamento a ver o maior troféu da Lava Jato escapar entre seus dedos. Com o atual cronograma, só um lance de último minuto ou uma reviravolta que faça Lula não se entregar podem estragar a imagem estampada nos jornais: Lula detido nas celas da Polícia Federal em Curitiba. Nem que seja por alguns dias.