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El País: O estoque oculto de votos de Fernando Haddad

É possível imaginar que a reserva de votos no petista esteja acima do que as pesquisas apontam. Ele terá, entretanto, alguns desafios, como o fato de o PT não contar com a mesma estrutura de campanha e apoio de outras eleições

Por Oswaldo do E. Amaral, do El País

O Ibope divulgou, no dia 20, sua primeira pesquisa nacional de intenção de voto para a Presidência após o registro das candidaturas junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Confirmando outras sondagens realizadas no mesmo período, o instituto apontou que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lidera a corrida com 37%, seguido de Jair Bolsonaro (PSL), com 18%, e Marina Silva, com 6%. Geraldo Alckmin (PSDB) e Ciro Gomes (PDT) apareceram com 5% cada. Dada a margem de erro da pesquisa, de dois pontos percentuais, os três últimos encontram-se tecnicamente empatados.

O Ibope também testou outro cenário, no qual Fernando Haddad (PT) substitui Lula na urna eletrônica. Nesse caso, Jair Bolsonaro lidera com 20% das intenções de voto, seguido por Marina Silva, com 12%, e Ciro Gomes, com 9%. Dada a grande possibilidade de impugnação da candidatura de Lula, nesse texto tentamos avaliar as possibilidades de crescimento de uma eventual candidatura de Fernando Haddad.
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Quando apresentados os candidatos no cenário sem Lula, Fernando Haddad obtém 4% das intenções de voto, com pouca variação nos segmentos sociodemográficos. Já quando a pergunta indica que Haddad seria o candidato apoiado por Lula, 13% dos entrevistados responderam que votariam nele “com certeza”, enquanto 60% disseram que não votariam “de jeito nenhum”. Observando os dados por segmentos sociodemográficos, o apoio a Haddad, quando vinculado a Lula, fica mais parecido com o perfil do apoio dado ao ex-presidente. Na região Nordeste, 22% dos respondentes afirmaram que votariam nele “com certeza”, contra apenas 9% na região Sul. Entre os que possuem renda familiar de até um salário mínimo, 17% declararam que votariam nele seguramente e entre os que estudaram até a quarta série do ensino fundamental, 18%.

É interessante notar também que, na pesquisa Ibope, o Partido dos Trabalhadores (PT) foi mencionado por 29% dos eleitores brasileiros como a agremiação favorita, em pergunta estimulada. Em segundo lugar, aparece o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), com 5%. Na pesquisa realizada pelo Datafolha em junho, o PT aparecia com 19% e o PSDB, com 3%. No entanto, a pesquisa Datafolha realizou a pergunta de forma espontânea. Nos dados divulgados pelo Ibope, a preferência pelo PT se dá de maneira mais forte entre os habitantes da região Nordeste (46%), entre pretos e pardos (34%), pessoas que frequentaram até a quarta série (34%) e indivíduos cuja renda familiar é inferior a um salário mínimo (36%).

Segundo dados obtidos por duas rodadas do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), em 2010 e em 2014, cerca de 80% dos que afirmaram gostar do PT acabaram votando em Dilma Rousseff, candidata apoiada por Lula, em ambos os pleitos.

Dessa forma, é possível imaginar que o estoque de votos de Fernando Haddad esteja acima do que as pesquisas apontam até o presente. Se partirmos dos dados do Datafolha, estaria em torno de 16%. Se tomarmos a sondagem do Ibope, em algo como 23%.

A variação verificada nos segmentos sociodemográficos entre aqueles que afirmaram que votariam em Haddad “com certeza” também indica que há espaço para o crescimento entre os setores em que o ex-presidente Lula é bem apoiado.

No entanto, embora os dados indiquem a possibilidade de crescimento de uma eventual candidatura de Fernando Haddad, alguns elementos precisam ser destacados. Primeiro, o candidato não compete sozinho. Ou seja, os outros competidores tentarão evitar que esse potencial se concretize. Segundo, o PT não conta com a mesma estrutura de campanha e apoio de outras eleições. Terceiro, com os dados de que dispomos no momento, não é possível ter certeza se o padrão de lealdade dos petistas se mantém no mesmo nível dos verificados nos últimos pleitos.

Oswaldo E. do Amaral é professor da Unicamp e diretor do Centro de Estudos Opinião Pública (Cesop) da mesma instituição. Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2018, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.org


El País: “Bolsonaro representa a classe média, agredida e abandonada pela esquerda”, diz Paulo Guedes

Economista e principal assessor do candidato ultraconservador defende que "a expansão dos gastos públicos nos últimos 30 anos corrompeu a democracia e estagnou economia"

O economista Paulo Roberto Nunes Guedes (Rio de Janeiro, 1949) é o principal conselheiro do candidato Jair Bolsonaro (PSL), que já admitiu em diversas ocasiões não entender de economia e recorrer sempre que precisa a seu "Posto Ipiranga" — uma referência a um comercial da TV no qual o posto é a resolução para tudo. Trata-se de uma parceria que até pouco tempo atrás parecia improvável, já que Bolsonaro, nostálgico da ditadura militar, sempre adotou posições estatizantes e intervencionistas na economia. Já Guedes é PhD pela Universidade de Chicago, berço dos Chicago Boys, economistas que na segunda metade do século XX influenciaram as reformas liberais de países como Chile, EUA e Reino Unido. Ele concedeu na última terça-feira uma entrevista ao EL PAÍS no escritório da Bozano Investimentos, da qual é sócio, localizado no nobre bairro do Leblon, na zona sul do Rio.

Vestindo um paletó xadrez que lhe confere ainda mais um ar de (neo)liberal inglês de meados dos anos 80, Guedes chega falante na sala de reunião onde ocorreria a conversa. Começa protestando sobre um artigo de opinião publicado pelo EL PAÍS em julho deste ano repercutindo uma entrevista que havia dado ao jornal Valor Econômico. Nela, ao ser questionado sobre a possibilidade de se afastar de Bolsonaro caso este representasse uma ameaça para a democracia, disse não acreditar que ele fosse capaz de dar esse passo. “Posso estar errado”, concluía. “Eu estava justamente dizendo que existe quase 0% de chance de ele ser um risco, mas o texto do EL PAÍS dizia que eu admitia a possibilidade de que ele fosse uma ameaça a democracia”, esclarece.

Professor universitário e um dos fundadores do IBMEC, do think tank Instituto Millenium e do Banco Pactual, o economista se apresenta em diversas ocasiões como um visionário incompreendido pelos seus pares. Por exemplo, diz que quando o Brasil aplicava “planos bolivarianos” nos anos 80 para conter a inflação, ele já defendia uma solução que passasse por uma meta fiscal, meta de inflação e câmbio flutuante —o chamado tripé macroeconômico aplicado a partir do segundo Governo FHC. Também mostra seu lado apostador quando conta que, até meados do ano passado, auxiliava o apresentador Luciano Huck em suas ambições políticas. “Ele foi uma descoberta. Eu falei para ele: 'Um tsunami vai invadir sua vida. Você vai ser arrastado para a política'. Foi uma previsão, eu deduzi. Não estava procurando alguém, apenas o ajudei. Ele era um outsider, jovem, sem história política, e me parecia um candidato imbatível, mas ele acabou desistindo”. Só então, a partir do final do ano, depois que escreveu um artigo no jornal O Globo prevendo um embate entre Bolsonaro e “o mais legítimo herdeiro das correntes políticas de esquerda no Brasil, Ciro Gomes”, foi apresentado ao deputado. Vendeu-lhe então planos, ideias e objetivos econômicos —tudo o que sua candidatura até então não possuía— como quem oferece casa, comida e roupa lavada.

O provável ministro da Fazenda de Bolsonaro lembra: “Escrevi que essa eleição me lembrava muito a de 1989, quando o establishment perdeu a decência. Quando uma classe política deixa a inflação ir para 5.000%, ela não faz um sucessor. Naquela época surgiram à esquerda e à direita duas opções: Lula, um operário de um partido pequeno, e Collor, um jovem outsider também de um partido pequeno”, explica. “Acho que hoje o establishment também perdeu a decência, não por causa da hiperinflação, mas por causa da corrupção que pegou todo o espectro político brasileiro”. Para ele, Bolsonaro representa “uma classe média esquecida e abandonada, agredida em seus princípios e valores, e que quer ordem”. Suas respostas sobre o fenômeno Bolsonaro tornam-se longas divagações filosóficas e históricas, da Revolução Francesa até nossos últimos 30 anos de democracia. Diante das tentativas deste jornalista de voltar ao tema da pergunta, repete várias vezes: “Calma, nós vamos chegar lá”.

Pergunta. Bolsonaro está há 27 anos no Congresso, a maior parte desse tempo pelo Partido Progressista (PP), um dos mais atingidos pela Lava Jato. Sua família entrou na política e reportagens mostram que enriqueceu nesse período. Ele não é mais um membro do establishment?
Resposta. Você ficar todo esse tempo no Congresso sem um escândalo de apropriação de recursos... Não sei se ele pode ser chamado de um membro do establishment ou de um sobrevivente num mar de lama. Cristovam Buarque é um social-democrata de esquerda que não está envolvido em nenhum escândalo também, merece respeito. Não é porque é de direita ou de esquerda. Tem pessoas muito sérias lá em cima e que são igualmente respeitáveis.

"Uma democracia exige alternância de poder. E no Brasil essa alternância não ocorre há 30 anos. PT e PSDB sempre foram parecidos"

P. Como a social-democracia se esgotou se nem chegamos ainda a ter saneamento básico, saúde e educação universais e de qualidade?
R. Não é o fim dela. Mas uma democracia exige alternância de poder. E no Brasil essa alternância não ocorre há 30 anos. PT e PSDB sempre foram parecidos, e eu escrevo isso há 30 anos. Na política brasileira, depois de 20 anos de um regime militar associado politicamente à direita, houve uma reação a isso que foi de esquerda. Ela foi absoluta, hegemônica, e é natural e compreensível que assim tenha sido. O que você pode perguntar é por que foram tão incompetentes e depois de 30 anos não chegaram a resolver o problema da educação, saúde... O Brasil tem uma dívida de quatro trilhões de reais e paga 400 bilhões por ano em juros. Isso corresponde ao Plano Marshall do pós-guerra. O Brasil reconstrói uma Europa por ano só em juros, sem amortização da dívida. Essa foi a areia movediça que engoliu as melhores intenções. E de onde vem isso tudo? Não é a social-democracia por si, é a incapacidade de resposta aos desafios que surgiram. É fútil, tola, a discussão sobre se o Estado é grande no Brasil. Se você olhar do ponto de vista de necessidade do financiamento do setor público, é enorme e disfuncional. Ele consome 45% do PIB, somando impostos mais o déficit. Mas ele gasta mais com ele mesmo e com o passado inepto dele, ou seja, os juros da dívida, os privilégios previdenciários do setor público e com a máquina pública. Gasta 6% do PIB em educação e 5% em saúde, mais que alguns países desenvolvidos, e não é o suficiente. E não conseguimos cumprir uma função básica do Estado que vem antes, que é a preservação de vidas e propriedades. Então o Brasil está dando um grito desesperado.

P. Como chegamos a esse quadro?
R. No regime militar você centralizou o poder e os recursos e desidratou a classe política. Isso é dirigismo econômico. E o projeto qual foi? Desenvolver a infraestrutura brasileira. Foi um modelo de desenvolvimento baseado em um planejamento central que sempre funciona por certo tempo, mas depois se esgota. É o mesmo desafio que está esperando a China. Esse dirigismo já causou vários episódios históricos de descarrilamento, de crise política e econômica. Eu lembro da Revolução Francesa, da crise da social-democracia alemã, do fim da União Soviética... Em um modelo dirigista, esquerda e direita estão muito próximos. Não quero saber quem é um ou outro, para um liberal são totalitaristas, a tragédia é a mesma. As modernas democracias liberais saíram dessa zona totalitária: temos democratas e republicanos nos EUA, conservadores e trabalhistas no Reino Unido, democratas-cristãos e sociais-democratas na Alemanha, Bachelet e Piñera no Chile. Os dois lados aceitam o mercado e aceitam a função do Governo de atenuar as desigualdades.

P. Acredita que o Brasil está mais próximo desse modelo ou do modelo totalitarista anterior, respaldado por Bolsonaro em diversas ocasiões?
R. O Brasil, ainda que só um lado tenha prevalecido nos últimos 30 anos, é uma democracia emergente virtuosa, uma sociedade aberta, de Karl Popper, em construção. A gente já está muito longe do totalitarismo. E a Lava Jato está nos remetendo para esse campo da liberal-democracia. Saímos do regime militar com uma eleição indireta. Tivemos então uma eleição direta, e aí fizemos o impeachment de Collor. Não foi por causa da roubalheira, mas acabou sendo uma declaração de independência do poder Legislativo. Na hora que ficou independente, o Executivo comprou o Legislativo. E agora houve o despertar, a declaração de independência, do Judiciário. Primeiro com Joaquim Barbosa no Mensalão, e agora com o Sérgio Moro. O Brasil está muito mais forte como democracia, está tendo um processo de aperfeiçoamento institucional. Não sei se o presidente vai ser Ciro, Bolsonaro ou Alckmin... Não estou preocupado. Confio no processo democrático brasileiro. Nosso grande desafio agora é transformar o Estado dirigista moldado pelo regime militar num Estado social que tanto a social-democracia como a liberal-democracia aprovariam. Mas no Brasil, a expansão ininterrupta dos gastos públicos nos últimos 30 anos corrompeu a nossa democracia e estagnou nossa economia. O país está preso. É uma armadilha de baixo crescimento e corrupção sistêmica. Nós já sabemos que foi culpa do dirigismo econômico. “Ah, mas as pessoas não foram corretas, não foram utópicas”. Bom, esse foi o discurso do Fernando Henrique, do Lula... Acabou isso. Não dá agora para o PSOL chegar e falar que faltou ética. Não foi por falta de ética.

P. Mas esse é precisamente o argumento do Bolsonaro.
R. Mas a força dele não foi essa. Não foi por isso que ele subiu. A mídia não está entendendo que há um pedido pela função básica do Governo, que é garantir ordem. Bolsonaro está representando uma classe média esquecida e abandonada, agredida em seus princípios e valores, e que quer ordem. A esquerda se perdeu no andar de cima com a corrupção, com todos setores da economia cartelizados, e um assistencialismo lá embaixo para as classes mais pobres. E abandonou os valores e princípios de uma classe média emergente, B e C. Não é razoável viver num lugar onde tudo está relativizado. Você tem coragem de colocar um relógio e andar na praia? Isso significa que você não tem direito a uma propriedade, a um bom relógio. E agora vamos para a coisa pública: está certo tirar um bilhão da Petrobras? As pessoas também estão dizendo que não querem essa roubalheira. Enquanto isso, a social-democracia está preocupada com outras coisas, como a legalização da maconha. Fernando Henrique tem falado mais sobre isso do que sobre segurança.

P. Ainda assim, as pesquisas indicam que Lula é está muito à frente nas pesquisas, com 37% dos votos, segundo o IBOPE. Muitos especialistas acreditam que teremos mais um duelo entre PT e PSDB no segundo turno.
R. Isso daí não me impressiona e não são os números em que eu acredito. Não é o que estou vendo. Isso para mim é a bolha. Rio, São Paulo e Brasília, onde a elite conversa e se acerta, troca de candidato, prende e solta. Mas tem o Brasil profundo. A minha convicção é que Lula tem 25%, ele não passa disso. E o Bolsonaro tem outros 25%. É o que eu acredito. O resto para mim é fumaça. Se dizem que o Lula tem 30%, eu digo que quero ver. Só acredito nisso se a votação for com urna que não seja eletrônica.

P. Acredita que a urna eletrônica é fraudada?
R. Digo que com a urna eletrônica quero ver os 37%. Com o voto impresso Lula não passa de 25%. Essa é minha opinião. É um direito meu [achar isso]. É uma convicção minha.

P. Você mencionou a questão da regulamentação das drogas, que é também um tema sobre segurança. Seus defensores argumentam que justamente a atual política de confronto nos levou ao quadro de insegurança pública. E para o liberalismo, para a defesa das liberdades individuais, esse debate também deveria ser importante, não?
R. Sim, mas a preservação da vida é mais importante do que a legalização da maconha. São 60.000 pessoas por ano morrendo, não dá. Qual é a melhor forma de lidar com isso? Um liberal pode dizer que é legalizar tudo. Um conservador pode dizer “de jeito nenhum”, que isso pode destruir as famílias. Existe uma disputa de princípios e valores, e aparentemente os conservadores estão levando vantagem.

P. Bolsonaro fala em garantir segurança jurídica para a polícia, algo interpretado como uma licença para matar. Mas foram justamente os liberais clássicos que colocaram limites no uso da força do Estado, de modo a não atropelar liberdades e garantias individuais.
R. Sim, mas se o sujeito estiver com um fuzil na mão, fica difícil dizer que aquele cara é só um suspeito. Não é suspeito. E não é proibido usar arma? Aliás, houve um plebiscito no Brasil e a população votou por ter armas. E aí Bolsonaro chega e fala "acho que todo mundo quer ter arma". E sabe por que estão votando nele? Porque votaram para ter arma e não estão deixando ter arma.

P. Mas o brasileiro pode adquirir armas, ainda que existam regras bastantes rígidas. Não pode andar armado, mas pode ter em casa para se defender.
R. As pessoas votaram para ter arma. Aí regulam, não pode isso, não pode aquilo... Mas a maioria da população está dizendo que quer, como você vai dizer que não?

P. Como você se posiciona pessoalmente no debate sobre costumes?
R. Intelectualmente, um liberal é bastante liberal. Se você é íntegro intelectualmente, você delega ao Governo muito poucos poderes. Agora, existem conservadores que acham que a esquerda faz isso ideologicamente, para desestabilizar os valores deles e minar a família, as crenças religiosas...

P. Acredita que no Brasil há conservadores que se dizem liberais e não são?
R. Dentro do centro estão conservadores oportunistas e conservadores realmente conservadores. Os oportunistas querem preservar os privilégios, e os de verdade acreditam nos princípios, querem uma estabilidade política, etc. A esquerda comprou os conservadores oportunistas. É o MDB do Sarney. O que Bolsonaro está propondo é uma a aliança política de centro-direita em torno de um programa liberal na economia e conservador de costume. Ele quer alguém com princípio, sem o toma-lá-dá-cá. Quer pessoas que estejam indignadas com a educação com viés socialista e com a ruptura dos costumes. Porque uma coisa é o homossexual respeitar o heterossexual e vice-versa. O que não pode é um debochar do outro, do tipo "ah, esse cara está casando com uma menininha, é um conservador, um burguês". Tem que ter respeito. E outra coisa é a propaganda. Você não deve na escola tentar converter alguém para um estilo de vida. A escola não pode discriminar ou reprimir o homossexual, mas também não pode tentar levar a qualquer tipo de comportamento. Cada um deve ser livre e respeitado, sem ser persuadido a ir em uma direção ou outra.

P. Você acredita que isso, de fato, ocorra?
R. Não é que eu acredito, eu vejo. Eu sei que há. Eu sou liberal, mas não sou cego. Posso até estar a favor de determinando tema, mas não a ponto de ver o que estou vendo, como um sujeito entregar o manual do Marighella dentro de uma universidade ou botar um menino de 5 ou 6 anos para cantar a internacional socialista. Isso é lavagem cerebral. Eu ria disso, achava engraçado, pitoresco. Mas estando fora da bolha, você começa a receber esse tipo de material. Tem coisas que não são razoáveis. Mas não quero mais falar disso, meu assunto é economia.

"Se quisermos educação e saúde, temos que acabar com privilégios"

Guedes se mostra mais sucinto ao falar sobre os temas econômicos. É cauteloso e não detalha nenhum dos planos. Seu projeto ainda está em construção. Defende, por exemplo, um sistema previdenciário de capitalização individual —isto é, que cada pessoa ganhe de aposentadoria aquilo que economizou— ao invés do atual, de repartição. No entanto, reconhece sua dificuldade em implantá-lo e não diz como faria essa transição, considerada bastante custosa por economistas, uma vez que o Governo deixaria de arrecadar e não teria como pagar as pensões dos atuais aposentados. Também encampa o discurso do candidato contra políticas públicas para proteger minorias e corrigir injustiças históricas, como as cotas para negros nas universidades públicas. Defende que o critério para conceder ajudas deve ser sempre o econômico e social, mas não racial ou por gênero. Ao mesmo tempo, diz acreditar "na sociedade aberta que não discrimina, aceita a diferença de opinião e acha que a humanidade avança exatamente por causa da diversidade".

Também fala em lições aprendidas. "Não adianta negar as capacidades das economia de mercados e atacar os economistas que sabem economia do ponto de vista ideológico. Isso é obscurantismo. Já paguei a minha vida toda por essa discriminação, por estar num país onde todo mundo era de esquerda”, explica. E reivindica a legitimidade da candidatura de Bolsonaro. “Dilma foi uma guerrilheira, então ela pode ser presidente, e o Bolsonaro, por ter sido capitão, não pode? Isso é a negação da democracia”.

P. O mundo liberal vem demonstrando bastante desconfiança com Bolsonaro, dentro e fora do Brasil. O Estado de S. Paulo e a The Economist lançaram editoriais duríssimos questionando sua capacidade para ser presidente. Diplomatas estrangeiros disseram recentemente ao EL PAÍS que ele pode espantar investimentos e se isolar. Por que o mundo liberal anda tão desconfiado?
R. Qual é o presidente que entendia de economia? O Sarney fez as maiores atrocidades, fez planos bolivarianos. O FHC é um sociólogo que não tinha a menor noção do que era o Plano Real. Lula entendia alguma coisa de economia? Ou só assinou uma carta aos brasileiros e seguiu a política anterior? Dilma, que era economista, fez uma tragédia. Qual é a novidade de Bolsonaro não conhecer economia?

P. Mas por que o mundo liberal, do qual você faz parte, questiona tanto ele?
R. Acredito na dinâmica de uma sociedade aberta. Não acho que Bolsonaro é um salvador da pátria e nem que vou resolver tudo para ele. É uma aliança política de centro-direita depois de 30 anos de social-democracia. Portanto, acredito que é uma deselegância, um descrédito que estão lançando contra a democracia brasileira, que eu tenho vivido e que sou testemunha de que tem funcionado. Eu só posso lamentar. Lamento que um processo virtuoso no Brasil esteja sendo questionado.

P. Mas economia depende de confiança, como repetem vocês economistas. E está havendo uma desconfiança dentro e fora do país.
R. Com a informação que eu tenho, com o que eu tenho observado... Eu vi uma ameaça à democracia chamada Lula ser inteiramente absorvida e ter feito um primeiro Governo bom e o segundo razoável. Então todo o receio que existia contra o que seria um radical de esquerda não aconteceu.

P. Mas quando Bolsonaro propõe aumentar o número de ministros do STF, isso não gera uma insegurança jurídica que afeta também a economia?
R. Ele já revisou sua opinião, para você ver o que é uma sociedade aberta. Ele foi alertado pela Janaína Paschoal, que disse "você vai ser mal interpretado, vão achar que você está querendo interferir no parecer do Supremo". Ele mudou de ideia no dia seguinte. Eu o convenci a respeito de Banco Central independente, que ele era contra. Nós conversamos e em 24 horas ele falou "sou a favor de Banco Central independente".

P. O que te leva acreditar que Bolsonaro se tornou um liberal? Foi ele quem disse que FHC deveria ser fuzilado, na época da privatização da Vale.
R. Eu nunca disse que ele é liberal. Mas da mesma forma que Fernando Henrique era um sociólogo de esquerda e 20 anos depois ficou mais liberal, da mesma forma que os economistas social-democratas eram contra política monetária e privatizações... Da mesma forma que esse povo aprendeu, por que eu vou supor que o Bolsonaro não aprende? Por que ele não pode ser presidente? A Dilma foi uma guerrilheira, então ela pode ser presidente, e o Bolsonaro, por ter sido capitão, não pode? Isso é a negação da democracia.

P. É você quem vai ensiná-lo?
R. Não, é a sociedade quem está ensinando. Nós todos estamos aprendendo. Ele tinha votado primeiro contra a privatização das distribuidoras da Eletrobras, mas seu último voto foi a favor. Ele tinha votado contra o cadastro positivo, mas ele me deu uma explicação muito boa: não havia garantia de sigilo. No dia em que deram essa garantia, ele apoiou. Outro dia ele disse que se não resolverem a crise da gasolina, iria privatizar inclusive a Petrobras. Mas está claro para mim que o mais importante para ele são os princípios e valores. É inadmissível para ele uma elite política que rouba.

P. Bolsonaro vai enfrentar esse mesmo Congresso, que tende a não se renovar. Também terá que comprá-lo para não cair, da mesma forma que os governos anteriores?
R. A classe política vai se reinventar agora. Ela chegou à exaustão do modelo antigo. Os mesmos personagens vão trabalhar diferente. Essa eleição já está sendo temática. Ninguém está perguntado de que partido você é, mas sim qual é a sua posição sobre segurança, aborto, educação... Vai acabar o tomá-lá-dá-cá. O apoio agora será temático, baseado na reidratação da classe política.

P. Um ponto que chama atenção no programa de Bolsonaro é que se fala em aumentar o Bolsa Família e chegar a uma renda mínima. Como seria isso?
R. Isso é uma coisa complexa. O pai desse conceito de renda básica é o [economista] Milton Friedman. O Bolsa Família é uma versão disso. Evidente que isso está no nosso mapa. Essa renda mínima foi desenhada de modo a deixar o mercado funcionar, com salários livres e sem esse negócio de Justiça trabalhista... Caso alguma categoria profissional, por qualquer motivo, não tem aquele salário, aquela renda básica que a gente considera justa então recebe uma ajuda. Com instrumentos como o chamado imposto de renda negativo.

P. Qual modelo de Previdência você defende?
R. Nós preferimos o modelo de capitalização, mas reconhecemos a dificuldade [de implantá-lo]. Com uma renda básica, um mínimo estaria garantido. Mas essa é uma conversa longa. Nosso sistema de Previdência é uma bomba relógio: tem o problema da idade mínima; é uma fábrica de privilégios que promove desigualdade de renda; destrói os recursos, porque o jovem paga e o velho consome, e não bota o país para crescer; como não leva para o futuro, tem uma péssima alocação de capital e não democratiza a riqueza; a forma de financiamento é brutal, selvagem, porque os encargos trabalhistas destroem dois empregos para cada um que cria... É um desastre, é um avião que está caindo. Querer manter esse sistema aí é um massacre.

P. Bolsonaro foi militar, ele vai combater os privilégios dessa classe?
R. Olha, é evidente que ele vem sendo representante deste segmento por muito tempo, então ele tem uma visão que vem dele. Mas ao mesmo tempo ele tem um desafio novo, que é o da presidência da República. Dito isso, há funções clássicas de Governo. Garçom do Senado não é. E militar é. E ele não faz greve, etc. Existe alguma diferença. Mas outro dia, até mesmo o general Mourão [vice na chapa de Bolsonaro] disse em uma palestra que precisamos combater privilégios.

P. O que acha do teto de gastos? Vai propor sua revogação?
R. O teto de gastos faz total sentido. É a última barreira do total colapso das finanças públicas. Foi por não decifrar essa limitação de gastos que a classe política foi devorada. É triste ver a redemocratização devorando seus próprios filhos, botando Lula e todo mundo na cadeia. Eu sou a favor do império da lei, mas é trágico. Se quiserem tirar o teto, tirem. Mas em cinco ou dez anos vai todo mundo preso de novo. Essa é a minha tese. O excesso de gastos públicos corrompeu a democracia e estagnou a economia.

P. Como garantir então os investimentos necessários em saúde e educação?
R. A ideia é manter o teto, mas tentar diminuir os gastos de baixa qualidade, que são os juros da dívida, os privilégios do sistema previdenciário e descentralizar os recursos para Estados e municípios, para que possam justamente investir nessas áreas sociais que são legítimas. Precisa também de uma gestão melhor. O que gastamos em saúde e educação é comparável ao que se gasta em países desenvolvidos, então evidentemente há um problema de gestão. Por exemplo, o foco de educação tem que ser ensino básico. O período mais importante da criança vai de zero aos 3 anos. É creche. Mas o Governo brasileiro faz o contrario, gasta 60% em ensino superior. E o segredo de uma educação bem sucedida é professor e gestão, além de uma variável nova, que é a inclusão digital.

Isso tudo significa que se quisermos fazer educação e saúde, a gente tem que acabar com os privilégios. Se a gente quiser fazer saneamento e segurança, temos que privatizar algumas empresas. O Estado máquina tem que começar a virar o Estado vontade, do povo. Não adianta ficar com uma estrutura enorme, centralizada. Nosso programa é isso: mais Brasil, menos Brasília. Descentralizar poderes e recursos e atribuições. A sociedade saudável, liberal-democrata, ela é construída de baixo pra cima. O dinheiro fica lá embaixo. A União vem para poderes muito limitados e muito bem definidos, como o Exército. Mas o Brasil já nasceu capitania hereditária.

"Se quisermos educação e saúde, a gente tem que acabar com os privilégios. Se quisermos saneamento e segurança, temos que privatizar algumas empresas. Nosso programa é mais Brasil, menos Brasília"

P. Defende a cobrança de mensalidade na graduação para universidade pública?
R. Para quem tem recursos, certamente. O raciocínio do liberal é dar acesso aos que não podem. Se o cara tem recursos, ele tem que pagar. Não interessa se é pública ou privada. Quem não tem recursos precisa ter acesso as duas. Na pública ele não paga; na privada ele ganha um voucher.

P. Hoje vemos grupos de mulheres, movimentos LGBTI e negro pedindo políticas públicas voltadas para esses grupos que lhes garantam igualdade de oportunidade, pregada pelo liberalismo. O que você acha disso?
R. Você não pode discriminar alguém por ser negro. Mas isso de que o branco não pode entrar porque ele tem mérito, mas não tem vaga por causa da cota... Então você está descriminado o branco, dizendo que ele não pode entrar. Do ponto de vista liberal, a linha divisória é o acesso econômico. Se o sujeito vai entrar para a universidade pública, não quero saber se ele é preto, branco, gay, homem ou mulher. Quero saber do mérito. Ah, 'mas ele é preto e não tem dinheiro'. Então dá o dinheiro para ele. O negro objetivamente está prejudicado por causa da escravidão? Está. Está sem acesso a escola. Mas a condição social é o critério, não é a cor. "Ah, mas ele não consegue passar na prova para entrar por mérito". Então faltou um voucher numa etapa anterior, pra ele escolher uma boa escola e conseguir um bom treinamento para entrar na universidade. Se ele foi prejudicado porque a mãe não dava leite quando ele tinha dois anos, então temos que dar voucher para que as crianças estejam na creche bem alimentadas. Se não você cai na armadilha da discriminação. Do mesmo jeito que você não quer discriminar o negro e o homossexual, você não pode descriminar o branco e o heterossexual. Acredito na sociedade aberta que não discrimina, aceita a diferença de opinião, acha que a humanidade avança exatamente por causa da diversidade.

P. Como pretende fazer para baixar os juros?
R. Primeiro você tem que zerar o déficit fiscal. Essa história de combater a inflação durante 20 anos com os gastos públicos crescendo é o que produziu essa trajetória de juros muito altos. E isso produziu o endividamento de bola de neve. Então você primeiro tem que desmontar o déficit fiscal. E também reduzir o grau de concentração bancária. Uma coisa é você agir sobre o fluxo, reduzindo o déficit para derrubar os juros. Outra coisa é agir sobre o estoque da dívida. Então temos que acelerar a privatização para reduzir esse estoque. E tem um terceiro fator: a desestatização do mercado de crédito. Tem dinheiro barato para os amigos do rei, para a Odebrecht e JBS, mas caro para a população.

P. Concorda com o termo "bolsa banqueiro", empregado pelos demais candidatos?
R. Tenho uma outra expressão. O Brasil é o paraíso dos rentistas e o inferno dos empreendedores. Temos que inverter isso aí. O Brasil precisa ir em direção a uma economia de mercado. Tem que acabar com a disfuncionalidade do governo. Ele é uma gigantesca agencia de privilégios para grandes empresas no BNDES, privilégios pra funcionários na Previdência...

P. Você tem ido a Brasília conversar sobre um eventual Governo Bolsonaro?
R. Estou conversando com os ministros da área econômica. Essas conversas iniciais servem para lançar essa visão de que não existe um salvador da pátria ou um economista que vai resolver tudo. Estou vendendo o peixe da aliança de centro-direita em torno de um programa liberal democrata na economia. É que os Chicago Boys fizeram lá no Chile. Conversei com ministro do Planejamento, da Fazenda, presidentes do Banco Central e do BNDES... Estou mapeando o território, examinando os números e simulando.

 


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Volatilidade do Ibovespa costuma subir 10% em ano eleitoral, mas a variação dobrou neste ano. Analistas apostam que as incertezas começam a se dissipar após início da campanha na televisão

Por Rodolfo Borges, do El País

O dólar chegou a valer 4,13 reais nos últimos dias, numa valorização de 24% só neste ano. E deve subir mais ao longo das próximas duas semanas — mais precisamente, até a divulgação da primeira pesquisa de intenção de voto após o início da campanha de televisão, mais ou menos por volta do dia 10 de setembro. É na subida do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) nas pesquisas que o mercado aposta para aplacar as incertezas quanto ao futuro da agenda de reformas iniciada pelo Governo Michel Temer. A expectativa é de que Alckmin aproveite seu robusto tempo de propaganda televisiva para melhorar os índices eleitorais. Caso isso não aconteça, a turbulência se estenderá pelo menos até a data de publicação do resultado eleitoral. Neste conturbado ano eleitoral, contudo, qualquer previsão parece precipitada.

O gráfico do Santander expõe os resultados do Ibovespa durante anos eleitorais.
O gráfico do Santander expõe os resultados do Ibovespa durante anos eleitorais.

Vários fatores contribuem para o aumento da tensão neste ano. Ao contrário dos últimos anos, o Governo Michel Temer não tem popularidade o bastante para participar da disputa eleitoral, o que por si só deprime o ambiente. Ao ponto do candidato do Governo, o ex-ministro Henrique Meirelles (MDB), inexpressivo nas pesquisas de intenção de voto, preferir ligar sua imagem à do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) do que à atual administração. Além disso, Lula, apesar de preso, segue no jogo pelo menos até sua candidatura ser invalidada, o que recheia de incertezas uma campanha eleitoral feita em moldes inéditos, com menos tempo e sem dinheiro de empresas. A redução do período eleitoral jogou as propagandas de televisão para o fim de agosto. Neste ano, o horário eleitoral gratuito será exibido por apenas 35 dias. Em 2002, eram 50.  Na última eleição, em 2014, o horário eleitoral gratuito, que marca o início da corrida de fato, começou 12 dias antes, em 19 de agosto, e ocupava o dobro dos 12 minutos e meio que serão reservados neste ano.

Será tempo o bastante para Alckmin, titubeante nas pesquisas e queridinho do mercado, alcançar votos e passar ao segundo turno? O tucano é quem mais tempo tem reservado para a propaganda de TV, com 5 minutos e 32 segundos. E fica no ar a dúvida se a TV terá o mesmo papel nesta eleição como teve em outras disputas. Para os analistas, é inegável o peso da televisão. E mesmo com todas as nuances diferentes, ela terá o potencial de afirmar nomes ou virar resultados rapidamente. Olhando pelo retrovisor, é possível lembrar quadros como o de 2002, quando Lula tinha 37% das intenções de voto antes do início da propaganda na tevê, enquanto Ciro Gomes, então do PPS, aparecia em segundo lugar, com 27%, e José Serra (PSDB) tinha 13%. O tucano, que começou seu programa expondo uma gravação em que Ciro chamava um ouvinte de "burro", precisou de apenas 10 dias de campanha de televisão para encostar no adversário, com 19% contra 20% do ex-governador do Ceará. Mais dez dias depois, Serra já tinha alcançado 21% contra 15% de Ciro. O tucano iria para o segundo turno com 23% dos votos, enquanto Lula, alheio à batalha entre os dois, terminou com 46%. Ou seja, uma campanha bem feita tem o poder de mexer no tabuleiro eleitoral, e de forma rápida.

Segundo José Faria Júnior, sócio da Wagner Investimentos, o cenário deste ano se aproxima mais da eleição de 2014 do que das outras disputas recentes. As pesquisas que mostravam o senador Aécio Neves (PSDB) melhorando nas intenções de voto tendiam a baixar o preço do dólar e elevar o índice da Bolsa, ao contrário do que ocorria quando as notícias eram boas para a campanha de Dilma Rousseff (PT). Nenhuma das duas corridas eleitorais lembra, contudo, os abalos causados no mercado nacional pela campanha de 2002, vencida por Lula. Naquele ano, o Ibovespa acumulou 17% de perda — neste ano, até julho, o índice acumula valorização de 3,69%. “Não teve volatilidade em 2002, foram só perdas. Tinha crise externa, tinha inflação elevada, [taxa] Selic alta, as contas externas eram um problema grande", lembra Júnior.

A situação, de fato, é outra hoje. Apesar da crime econômica, o Brasil vive uma conjuntura econômica bem mais confortável, e isso permite avaliar melhor o impacto da corrida eleitoral na valorização do dólar. "Nos últimos dias, apesar de Argentina e Turquia estarem sofrendo com suas moedas, a gente observou que o dólar recuou contra as principais moedas do mundo, mas não aqui. Isso é problema adicional, porque ele deve continuar se fortalecendo lá fora. Se continuar subindo, diminui muito o espaço para recuar no Brasil", diz Júnior, para quem, diante dos resultados das últimas pesquisas, a ex-ministra Marina Silva (Rede) já começa a ser vista como uma boa opção pelo mercado. Segundo o economista, o valor da moeda norte-americana ainda não chegou ao pico e pode ultrapassar os 4,20 reais.

André Perfeito, economista chefe da Spinelli, enxerga o dólar a 4,15 reais nos próximos dias e lembra que o valor de 4 reais já teria sido ultrapassado há mais tempo se não fossem as intervenções do Banco Central. “É engraçado que o mercado diga que a incerteza está aumentando, porque ela está diminuindo. O candidato preferido do mercado, que tem levado para a frente a bandeira das reformas, não melhora. A população já mostrou que não tem interesse em reformas", diz Perfeito, que aposta em um segundo turno entre o deputado Jair Bolsonaro (PSL) e o candidato do PT, que deve ser o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad após o esperado bloqueio da candidatura do ex-presidente Lula.

Em um cenário como esse, o que aconteceria com o dólar? "Se Bolsonaro ganhar, é possível que o real até se aprecie, por conta do discurso liberal de Paulo Guedes [o prometido ministro da Fazenda de um Governo Bolsonaro]. Mas quando começar a articulação, vai ficar evidente que ele não vai conseguir fazer as reformas na velocidade esperada. Se Haddad ganhar, o dólar pode subir ou cair, a depender do discurso", prevê André Perfeito.

Apesar das dúvidas quanto ao desfecho da eleição deste ano, há também quem aposte que as reformas sairão mesmo no pior cenário imaginado. "Há boas razões para acreditar que as reformas necessárias para que o país acelere o crescimento serão levadas para votação no Congresso ainda no primeiro ano de governo de quem quer que seja o eleito em outubro", escreveu Frederico Sampaio, diretor de renda fixa da Franklin Templeton, em relatório recente.


Eliane Brum: Alckmin quer conquistar a soja

A disputa da eleição pela direita, como aponta Geraldo Alckmin (PSDB), é quem vai levar o apoio do agronegócio rifando a Amazônia

A realidade, como se sabe, é um delírio. É a partir dessa consciência que podemos analisar a atual disputa pela presidência do Brasil. Como o que vale são os espasmos, as cenas que rendem emoção, como a de Marina Silva (Rede) dando pito em Jair Bolsonaro (PSL) no debate de 17/8, ou memes, como qualquer aparição do Cabo Glória a Deus Nação Brasileira Daciolo, o que acontece em tom moderado e com os bons modos das elites que se empenham em parecer limpinhas vai passando batido. Só assim Geraldo Alckmin (PSDB+Centrão+3) pode representar uma direita moderada. Metido em ternos muito bem cortados, camisas brancas impecáveis, toda aparência dele é asséptica, como se emergisse diariamente de uma banheira de desinfetante. É com essa imagem imaculada, falando como um padre não carismático, que ele vai desfiando tanto afirmações arrepiantes quanto declarações nonsense, com a impassibilidade de quem pronuncia provérbios e parábolas.

Até a aparição de Jair Bolsonaro, o terror da maior parte da esquerda e mesmo daqueles que de fato se identificam com o centro ideológico, e com razão, era Geraldo Alckmin. E então aparece o tosco dos toscos e todas as atenções se voltam para a performance daquele que não consegue articular uma frase com sentido em qualquer assunto que não envolva bater ou atirar em alguém, mas que sem Lula lidera as intenções de votos. E Alckmin pode voltar a fingir ser um “picolé de chuchu”.

Alckmin promete transformar uma das regiões mais sensíveis da Amazônia em “canteiro de obras”

Para quem chegou de fato ao século 21, a afirmação mais perigosa do último debate foi dita por Alckmin, quando escolheu Ciro Gomes (PDT) para responder à sua pergunta. “Quero ser o candidato que vai recuperar o emprego. Um dos setores mais pujantes da economia é o agronegócio. (...) No caso do agronegócio, infraestrutura. Estou indo amanhã cedo para o Pará para ir lá na beira do rio Tapajós, lá em Itaituba, para integrar. Vamos fazer um grande canteiro de obras, de ferrovias, de hidrovias, trazendo a iniciativa privada pra investir no Brasil”.

A região que Alckmin escolheu para fazer a primeira viagem oficial como candidato a presidente é uma das mais sensíveis da Amazônia. É no Tapajós que Lula e Dilma Rousseff, do PT, tentaram fazer as grandes hidrelétricas de São Luís e de Jatobá, além de outras no Rio Jamanxim, um afluente do Tapajós, seguindo com seu projeto de construir grandes barragens nos rios amazônicos, custasse o que custasse. E sempre custou demasiado, em todos os sentidos. Quem conseguiu impedir, até agora, que as usinas se materializassem na bacia do Tapajós foram os guerreiros e guerreiras do povo Munduruku.

Como os governos do PT se recusaram a demarcar a terra, eles mesmos fizeram a demarcação, com a ajuda dos ribeirinhos da comunidade de Montanha e Mangabal, que também seriam atingidos pelas hidrelétricas. Depois, foram os ribeirinhos de Montanha e Mangabal que começaram a fazer a autodemarcação de sua terra ajudados pelos Munduruku. Este é um mérito dos 13 anos do PT no poder: seu projeto de construir obras megalômanas na Amazônia uniu povos da floresta que durante mais de um século se encaravam com mútua desconfiança. Diante do tamanho da ameaça, escolheram superar divergências profundas e apostar no que têm em comum. Indígenas e ribeirinhos hoje lutam lado a lado contra aqueles que querem destruir sua casa.

O PT – e o PMDB – conseguiram fazer as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. Fizeram ainda as usinas de São Manoel e Teles Pires, no Rio Teles Pires. Só um total desinformado não conhece os custos humanos e ambientais dessas obras, sem contar as suspeitas de corrupção investigadas pela Operação Lava Jato especialmente em Belo Monte. Mas PT e PMDB não conseguiram fazer as hidrelétricas no Tapajós. Alckmin, que de bobo não tem nada, não citou hidrelétricas na sua manifestação no debate. Mas falou as palavras mágicas: “agronegócio”, “ferrovia” e “canteiro de obras”.

A disposição de construir uma ferrovia para transportar especialmente soja rendeu algumas das piores notícias internacionais no desgoverno de Michel Temer (MDB), o presidente mais impopular desde a redemocratização. A Ferrovia do Grão, com 1.142 quilômetros de extensão, foi planejada para ligar a região produtora do Centro-Oeste do Brasil ao Rio Tapajós, principal afluente do Rio Amazonas, para a exportação de soja e outras matérias-primas para mercados estrangeiros.

Para construir a Ferrogrão, vários setores se empenham em desproteger a floresta

Para que seja possível construir a Ferrogrão, como é chamada, e responder à pressão de grileiros que querem se legalizar e comercializar as terras públicas que roubaram, o desgoverno Temer desprotegeu a floresta amazônica. Como fez isso? Reduziu o tamanho das áreas protegidas do Parque Nacional do Jamanxim e da Floresta Nacional do Jamanxim através de medidas provisórias. A resistência dos povos da floresta e a pressão internacional contra a destruição da Amazônia obrigou Temer a recuar. Ainda assim, ele retirou a proteção de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, por onde deve passar a ferrovia. Em seguida, o ministro do meio ambiente José Sarney Filho apresentou ao Congresso um projeto de lei mudando o status de 394 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim. Essa imensa área de floresta, equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo, passaria a ser Área de Proteção Ambiental (APA) – e não mais Floresta Nacional.

O que isso significa? A APA é um tipo de unidade de conservação que permite um número muito maior de atividades humanas na área de floresta, inclusive compra e venda de terras. Os grileiros, como são chamados aqueles que roubam grandes quantidades de terras públicas, poderão reivindicar a legalização das terras – ou seja, a legalização do crime contra o patrimônio público e contra o meio ambiente –, para comercializar a terra que deixou de ser pública para se tornar privada. Na prática, o desgoverno Temer pareceu recuar para apaziguar os ânimos internacionais, mas para pagar sua conta impagável com a bancada ruralista, grande fiadora do sua manutenção no Planalto, pegou outro caminho para fazer a mesma coisa.

É nessa cumbuca que Alckmin meteu sua mão de apóstolo. Mas não porque é bobo. E sim porque o chuchu quer ser o melhor amigo da soja. Mais do que isso. Quer mudar o status no Facebook para relacionamento sério com o agronegócio, o que para alguém tão religioso na política quanto Alckmin significa casamento com comunhão total de bens.

Ele não é o único. Ciro Gomes tem se empenhado ao máximo para ser o noivo escolhido, tanto que botou como vice uma latifundiária, Katia Abreu, ex-ministra da Agricultura e amiga pessoal de Dilma Rousseff. Entre as pérolas pronunciadas por Katia Abreu vale lembrar a seguinte, em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo: “O problema é que os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção”.

Para expandir a área de soja, ruralistas avançam sobre o Cerrado e a Floresta Amazônica

A vice de Ciro poderia ter dito que o problema é que os indígenas tiveram o mau gosto de estarem em casa quando os europeus invadiram o território que chamariam de Brasil. Mas não é preciso voltar cinco séculos. A questão segue bastante atual, porque Katia Abreu inverte também a história recentíssima. A produtividade da soja não se alterou desde o início deste século, como mostra reportagem de Mauricio Torres e Sue Branford para a série “Tapajós sob ataque”, no The Intercept. Para aumentar a produção da monocultura, os latifundiários precisam aumentar o seu latifúndio. E quais são as regiões que consideram “disponíveis” para sua expansão privada? A floresta amazônica e o Cerrado.

Em apenas dois meses, entre abril e maio deste ano, a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, perdeu 57 quilômetros quadrados de cobertura vegetal, o equivalente a 36 parques do Ibirapuera, o principal de São Paulo. O cálculo é do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O aumento do desmatamento se deve em grande parte à expectativa do afrouxamento da proteção da unidade de conservação que está em curso no Congresso. É o processo costumeiro na Amazônia. A cada frase pronunciada em Brasília, os grileiros aumentam a pressão sobre a floresta, derrubando árvore e colocando boi. E novos invasores aparecem. Sabem que tudo indica que terão seu crime legalizado. Então tratam de invadir e desmatar para consolidar a ocupação. A Floresta Nacional do Jamanxim foi criada por Lula em 2006 exatamente para servir de proteção para o avanço do desmatamento trazido pelo asfaltamento da BR-163, obra levada adiante pelo seu governo para beneficiar os grandes produtores de soja e de gado. É assim que a floresta vai sendo colocada abaixo. Avança por um lado, avança pelo outro, avança pelo meio. Já não há qualquer pudor.

Em janeiro de 2018, o Ministério do Meio Ambiente divulgou que a soja ocupou ilegalmente 47,3 mil hectares de floresta desmatada na Amazônia na última safra, quase 30% a mais do que no ano anterior. Mesmo assim, ministro e parte das organizações ambientais comemoraram o resultado porque o plantio em área ilegal corresponderia a pouco mais de 1% do total de soja plantada. A conclusão é que a soja impactaria pouco no desmatamento da Amazônia. O que se esquecem de mencionar é que parte significativa das terras de agropecuária na Amazônia, produto de pilhagem do patrimônio público e de destruição da floresta, tem sido legalizadas pelos últimos governos e pelo Congresso mais corrupto da história recente. O que é legal hoje era roubo ontem.

É assim que grileiros viram fazendeiros, eliminando o crime por força de um Congresso e um governo dominados pela bancada ruralista. O agrobanditismo vira agronegócio. Basta uma canetada, como aconteceu com aquela que ficou conhecida como a Lei da Grilagem, a número 2, sancionada por Temer em julho de 2017: a partir dela, grileiros que ocupavam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 – ontem – “regularizaram” seus grilos até 2.500 hectares, o equivalente a cinco Vaticanos. De 2.500 em 2.500 a floresta vai sendo tomada, e bandidos, com grande números de laranjas a seu serviço, viram “produtores rurais” e formam latifúndios em plena floresta. Antes, em 2009, ainda no governo de Lula, já havia sido aprovada aquela que foi batizada como Lei da Grilagem, a número 1, também conhecida como “Terra Legal”, que beneficiava os grileiros que tinham invadido terras até 2004, no limite de 1.500 hectares por vez. Temer ampliou o processo de legalização do crime que já havia começado nos governos do PT.

Os crimes contra a floresta compensam cada vez mais para uns poucos, mas poderosos. E a disputa desesperada de candidatos pelo apoio do agronegócio mostra que a ideia é que compensem ainda mais. Em apenas dez anos, a área de soja multiplicou-se quatro vezes na Amazônia, passando de 1,14 milhão de hectares na safra de 2006/07 para 4,48 milhões de hectares na safra 2016/17. A soja não alimenta a população. Cerca de 80% da soja produzida e exportada é usada para fazer ração animal. Ou seja, para a produção de carne.

A pecuária é a atividade que mais contribui para o desmatamento da floresta

A pecuária é a atividade que mais contribui para o desmatamento da Amazônia, ocupando 65% da área desmatada. O rebanho bovino na Amazônia legal, segundo o Imazon, saltou de 37 milhões de cabeças em 1995, o equivalente a 23% do rebanho nacional, para 85 milhões em 2016, quase 40% do rebanho nacional. Os bois, por meio de seu processo digestivo (basicamente puns e arrotos) são responsáveis pela liberação de grande quantidade de metano na atmosfera, um gás de efeito estufa com potencial de aquecimento 25 vezes maior que o CO2. Mesmo sem se preocupar com o sofrimento dos animais criados em campos de concentração, consumir carne é um péssimo negócio para a Amazônia, para o planeta e para todas as espécies, incluindo a humana. Os criadores de gado são grandes clientes das terras de floresta, mas pagam bem mais no mercado por áreas já desmatadas. Soja e boi formam um círculo íntimo na destruição da floresta amazônica.

Estima-se que até 2024 a demanda chinesa por soja, segundo Torres e Branford, chegue a 180 milhões de toneladas por ano: mais do que a soma dos três produtores mundiais – Estados Unidos, Brasil e Argentina. É o Brasil que supostamente teria mais condições de aumentar a sua produção, avançando ainda mais sobre o Cerrado e a Floresta, situação que se acirra com as recentes divergências entre a China e os Estados Unidos de Donald Trump.

Num país que depende da exportação de matérias-primas em pleno século 21, como o Brasil, o peso da soja na balança comercial dá ao agronegócio um enorme poder de chantagem. É o que temos testemunhado nas últimas décadas no Brasil, de forma sempre crescente e cada vez mais desavergonhada, o que determina tanto o desmantelamento da Funai e o loteamento dos órgãos de proteção socioambiental e de fiscalização da questão agrária quanto o afrouxamento das regras do licenciamento ambiental.

Este é o grande impasse do momento atual do Brasil e vai determinar seu futuro: em tempos de crise climática, a maior floresta tropical do mundo, fundamental para a regulação do clima, vai seguir sendo convertida em soja, boi, minério e hidrelétricas? É o que apontaram os últimos governos e é também o objetivo explícito de alguns dos principais candidatos desta eleição.

É por isso que Geraldo Alckmin passou o último final de semana na região do Tapajós tentando fazer amigos. Estava lá para garantir que o agronegócio, parte dele agrobanditismo, continuará a ser fiador do governo, mesmo com a mudança do inquilino no Planalto. Michel Temer não mentiu quando disse, em entrevista à Folha de S. Paulo, que Alckmin era o candidato mais identificado com o seu governo. A promessa é de que tudo continuará ainda melhor do que já está para quem quer derrubar a floresta para que ela vire soja, boi, minério e hidrelétrica.

A maioria dos fazendeiros e também dos agrobandidos parece preferir Bolsonaro a Alckmin

A pedra nos impecáveis sapatos de Alckmin é que grileiros e grandes fazendeiros de várias regiões do país se identificam bem mais com o estilo de Bolsonaro. No Pará, as caminhonetes estão coalhadas de adesivos do candidato de extrema-direita. Notórios expoentes da grilagem se alinharam com ele, alguns com uma folha corrida de serviços prestados às funerárias da região. E alguns prefeitos do PSDB, mesmo que não declarem publicamente, se abraçam a Bolsonaro. Alckmin é coxinha demais para quem demarcou as terras com sangue de camponeses e de índios. Mas a devoção por Bolsonaro pode mudar se valer mais a pena. Não há setor mais pragmático do que o “agro”. Nenhum grileiro que limpou sua biografia com a ajuda de deputados virou “produtor rural” ou “fazendeiro” por lealdade.

É para agradar a esse público eleitor e fiador de candidaturas e de governos que Alckmin, o sereno, promete “flexibilizar” o uso de armas na zona rural para proteger os “produtores rurais”. Qualquer anta passeando pela floresta sabe que não faltam armas nas mãos dos que são chamados de fazendeiros ou mesmo “desbravadores”, mas que, a rigor, são grileiros. Os fazendeiros reais deveriam ser os primeiros a se esforçar para se diferenciar dos bandidos, denunciando esse tipo de prática, mas não é o que em geral tem acontecido.

A questão é que a Amazônia já está armada. Desarmá-la é mais do que urgente. A violência não é contra os proprietários rurais, mas sim contra camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos. E multiplicou-se desde o aumento do poder do PMDB no governo de Dilma Rousseff, ampliando-se quando Temer se tornou presidente com o apoio decisivo da bancada ruralista.

Mas não é contra essa violência que Alckmin está preocupado. É sua vice, Ana Amélia Lemos (PP), que mais claramente expressa quem não pode morrer no campo: “Com a migração do crime organizado da área urbana para a rural, é cada vez maior o número de assaltos nas propriedades, com roubo de gado, equipamentos, insumos e, o mais grave, o risco à vida dos produtores, suas famílias e seus trabalhadores. A situação é grave!”. Segundo Janio de Freitas, colunista da Folha de S. Paulo, Ana Amélia é conhecida por ter defendido a ditadura civil-militar como jornalista e também como funcionária fantasma do Senado em 1987. Não deve ser um problema para Alckmin, que acabou de dar um depoimento ao Ministério Público de São Paulo sobre o repasse de 10 milhões de reais pela empreiteira Odebrecht para suas campanhas de 2010 e 2014.

A Amazônia está armada, o que é necessário é desarmá-la

Geraldo Alckmin escolheu o Pará para a primeira viagem oficial como candidato para conquistar os ruralistas do Norte e do Centro-Oeste. Mas não apenas eles. Há muitos ruralistas do Sudeste e do Sul com grandes fazendas na floresta – ou na ex-floresta. Ao desembarcar na região do Tapajós, que promete transformar num “canteiro de obras”, Alckmin estava desembarcando no estado mais letal para defensores da terra e do meio ambiente do planeta. Segundo a organização Global Witness, não há nenhum lugar hoje mais perigoso que o Brasil – e, no Brasil, nenhum lugar mais perigoso do que o Pará. O setor que lidera os assassinatos, segundo a organização britânica, é o agronegócio. O “agro” superou a mineração no uso da violência como método de invasão das florestas e outros biomas.

Em Anapu, pelo menos 16 trabalhadores rurais foram mortos desde 2015 por conflitos por terra. Mais de uma década depois do assassinato da missionária Dorothy Stang, a situação atual de tensão e violência no município é ainda mais explosiva. É fácil imaginar como soa, nessa região de interpretações literais, uma promessa de “flexibilização” de armas para que os “produtores rurais” possam se defender. Quando Alckmin acena com isso, e Bolsonaro defende abertamente a solução de conflitos pela bala, o que estão autorizando é a legalização das chacinas que já acontecem com alto grau de impunidade. Que um dia respondam pelos cadáveres. Não se brinca de vilão na Amazônia sem se tornar um vilão.

Alckmin se autoriza a pronunciar assombros com absoluta serenidade. Ele, que é apoiado pelo Centrão (DEM, PP, PR, PRB e SD), anomalia política intimamente ligada à desintegração do país, e também pelo PSD, PTB e PPS, não se cansa de reclamar em cada oportunidade do excesso do número de partidos no Brasil. Também saiu-se com essa na convenção do PSDB, em Brasília: “Precisamos da ordem democrática, que dialoga, que não exclui, que tolera as diferenças, que não busca resolver tudo na pancadaria nem usa o ódio como combustível da manipulação eleitoral”.

O governador que autorizou a Polícia Militar a descer o cacete, jogar bombas de gás lacrimogênio e disparar balas de borracha contra manifestantes em 2013 e 2014, assim como bater em adolescentes que reivindicavam escola pública de qualidade em 2015 e 2016, apregoa-se como o homem do diálogo. Nem piscou. O governador que manteve, apoiou e estimulou a prática de uma das polícias mais letais do Brasil, país com uma das polícias mais letais do mundo, mas com letalidade racialmente seletiva, já que a maioria dos executados são negros, se anuncia como o paladino da tolerância. Tranquilo, sem desarrumar a gravata.

O governador que não salvou o Tietê afirma que vai salvar o São Francisco

Alckmin também não despenteia o cabelo ao afirmar: “Aqui em São Paulo tivemos uma crise hídrica muito grande. Vencemos”. Os mais pobres, que de fato sofreram o racionamento de água por meses e até anos, podem contar uma história bem diferente. Hoje, o Cantareira, apesar de abastecer menos gente, está com níveis abaixo do período anterior à crise de 2014. Não há vitória nenhuma. São Paulo pode voltar a ter uma crise de água no próximo ano. Mas, claro, isso não vai acontecer antes da eleição de outubro.

Imperturbável, Alckmin segue, dando alô aos nordestinos: “Ajudamos o Nordeste no eixo leste com a transposição do São Francisco. (...) Vamos salvar o Rio São Francisco. A revitalização do rio, dragagem, recomposição da mata ciliar....”. Não seria lindo se, durante os mais de 12 anos de Alckmin como governador, os 24 anos do PSDB no poder em São Paulo, o Tietê e vários outros rios de São Paulo convertidos em esgoto tivessem sido salvos por ele e por seu partido? Assim como as matas ciliares e os mananciais, essa sim uma medida efetiva para enfrentar a crise climática que hoje impede qualquer previsão séria sobre a quantidade de chuvas? Só que não. Alckmin vai ao Pará para prometer transformar a floresta num canteiro de obras, ignorando por completo as evidências científicas da importância da Amazônia para a regulação das chuvas também no Sudeste.

O Brasil não é mais o país do futuro. Mas, para que possa ter ao menos um futuro, é preciso que o Brasil volte a ser capaz de imaginá-lo. Não há nenhuma possibilidade de fazer isso tratando a maior floresta tropical do mundo como um corpo para a espoliação de recursos, as árvores e seus povos como um lixo que deve ser varrido para virar soja ou pasto. Não por caridade cristã, mas por sobrevivência. Não é uma escolha de modelo de desenvolvimento. Essa escolha num mundo em crise climática já não é mais possível. Nem mesmo para o agronegócio.

Qualquer um já é capaz de perceber os efeitos do aquecimento global. Não é nenhuma novidade que o planeta está a caminho de virar um forno. Mas a situação pode ser ainda pior. Um grupo de respeitados cientistas do clima publicou um artigo no Proceedings of the National Academy of Sciences, alertando que o Acordo de Paris, que busca manter o aquecimento global a no máximo 2o C acima dos níveis pré-industriais, pode não ser suficiente para “estacionar” a temperatura. O grupo pesquisa se as temperaturas mais quentes liberam novas fontes de gases de efeito estufa e destroem a capacidade da Terra de absorver carbono ou refletir o calor.

Se o Brasil quiser voltar a ser capaz de imaginar um futuro, a crise climática e a Amazônia precisam estar no centro do debate eleitoral

Analisando as consequências combinadas de 10 processos de mudança climática, o grupo de cientistas avalia se o aquecimento pode ser interrompido e a temperatura estabilizada ou se vai haver um processo de realimentação, com aquecimento contínuo, levando a uma “estufa terrestre”: 4o C acima e muito menos favorável à vida humana. Hoje, a temperatura média global já está a mais de 1o C acima dos níveis pré-industriais. Na atual conjuntura e com os atuais governantes do planeta, destaque para Donald Trump, dificilmente será possível parar em 2o C. Passar disso tem efeitos que já foram projetados. Dificilmente alguém vai achar bom que seus filhos e netos vivam num mundo tão ruim.

É inaceitável que a crise climática não esteja no centro do debate eleitoral. E isso no país que tem a maior parte da maior floresta tropical do mundo no seu território. É um escândalo que o tema sequer apareça ou que no máximo tangencie algumas poucas questões. Ao contrário. Aparece pelo seu avesso, como a promessa de Alckmin de transformar a floresta amazônica, na região do Tapajós, num “canteiro de obras”.

O Brasil só tem relevância no mundo hoje porque tem no seu território a maior parte da Amazônia, mas a maioria dos candidatos não chegou ao século 21. Tá rodando entre o século 19 e o século 20, antes de 1968. O “progresso” ainda é trocar a floresta por soja e boi, enchê-la de cimento, concreto e aço com obras gigantes. É constrangedor. E é perigoso. O que deveria estar se discutindo é como proteger o Cerrado, a floresta amazônica e outros biomas e como aprender com seus povos a usar os recursos sem destruir a natureza, o que eles fazem há séculos e até milênios. A riqueza da Amazônia é a sua biodiversidade, assim como o complexo conhecimento de suas populações tradicionais. Soja, boi, minério e hidrelétrica só destroem o ativo de maior valor do mundo assombrado pela mudança climática.

Geraldo Alckmin ainda está mal nas pesquisas. É provável que a lógica das eleições tenha mudado e que são as redes sociais que vão definir o vencedor. E não mais os debates e o tempo de TV e os apoios e a máquina eleitoral. Mas não dá para esquecer que apenas quatro anos atrás Alckmin ganhou no primeiro turno a reeleição para governador em plena crise da água em São Paulo, esta que ele acaba de dizer que venceu, jurando que não havia crise nenhuma. É verdade que o voto do Brasil é mais complexo do que o dos paulistas, mas é melhor prestar atenção também naqueles que têm bons modos e que falam pausadamente, os que raramente rendem os melhores memes ou vídeos curtos de grandes momentos de reality show.

A disputa por quem vai levar o apoio dos ruralistas e rifar a Amazônia nunca antes na história recente foi tão acirrada.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Migração venezuelana sobrecarrega os Governos da América Latina

Principais potências regionais buscam uma resposta coordenada ante o risco de colapso dos serviços públicos e crescimento da xenofobia

A crise social, econômica e política da Venezuela deixou de ser um problema exclusivo do país caribenho e se tornou um quebra-cabeça para toda a região. As principais potências latino-americanas pressionaram em vão nos últimos anos para obter uma saída para os rumos autoritários de Nicolás Maduro. O problema agora vai além. A migração de venezuelanos, uma enxurrada que supera os 2,3 milhões desde 2014, colocou em xeque os Governos da América Latina, que veem como a chegada maciça desses cidadãos aos seus países pode colapsar as infraestruturas locais e já começa a gerar surtos de xenofobia. Os principais países da região buscam uma resposta coordenada para a crise, que, dão como certo, deverá se agravar depois das últimas medidas econômicas de Nicolás Maduro.

“Há uma preocupação generalizada frente a um problema de dimensão humanitária em toda a sua extensão”, resume um alto funcionário de uma das principais potências do Grupo de Lima, o conjunto de países que decidiu se unir para obter uma saída política e negociada para a crise venezuelana perante o fracasso da intervenção da OEA (Organização de Estados Americanos). Até agora, cada país aplicou medidas individuais, mas a situação se tornou insustentável.

A Colômbia é o termômetro pelo qual todos os Governos se medem. Desde o começo da crise no país vizinho, já recebeu quase um milhão de venezuelanos. A maioria entrou por acessos terrestres oficiais, mas 45.000 usaram os caminhos irregulares que se escondem nos mais de 2.000 quilômetros de fronteira comum. Para dar resposta a essa crise humanitária, o Governo do ex-presidente Juan Manuel Santos concebeu um cartão migratório que permite a passagem desses cidadãos. Este primeiro cadastro serve para criar um censo migratório, ainda em desenvolvimento. Através desse sistema, os migrantes têm acesso de forma regular aos sistemas de saúde e educação e ao mercado de trabalho.
Os venezuelanos que seguem a rota para o sul da região – rumo a países como Equador, Peru e Chile – percorrem de ônibus os mais de 1.000 quilômetros que separam a fronteira com a Venezuela. Dada a magnitude do fluxo migratório, as autoridades colombianas estão conscientes de que não podem exigir o passaporte como requisito de entrada no país, como decidiram o Equador e o Peru para controlar a onda de recém-chegados. “Sabemos que seu Governo não os está expedindo, pedi-lo seria castigar o povo pelos erros de seus mandatários”, declarou Christian Krüger, diretor de Migração da Colômbia.

As beiradas do território colombiano são desprovidas de controle estatal, dominadas pelos grupos armados que se dedicam ao tráfico de drogas, combustível, madeira e mineração ilegal. As cidades fronteiriças convivem há décadas com sua crise particular, que não se baseia apenas na insegurança, mas também as priva dos serviços básicos de qualidade. A situação dessas comunidades se agravaria ainda mais se os venezuelanos que fogem do seu país ficassem ali confinados.

“As medidas adotadas até o momento pelas autoridades não fazem parte de uma política pública integral, cada Estado dentro da margem de sua soberania antecipou suas medidas de maneira independente”, opina María Teresa Palacios, diretora do Grupo de Pesquisas Independentes de Direitos Humanos da Universidade del Rosario, de Bogotá. “Pode-se qualificar como assistência humanitária”, acrescenta. “Há heterogeneidade e pouca consistência com o que já se fez”, acrescenta Dany Bahar, pesquisador da Brookings Institution, para quem o mais urgente é obter um consenso regional “Não há outra solução, a solução para os problemas mais óbvios, como o colapso dos serviços de saúde, vai depender das políticas públicas que forem aplicadas, os Governos têm que olhar as vantagens que a imigração traz.”

Os problemas para os países da região são múltiplos e de escalas diferentes. Os mais urgentes têm a ver com a assistência dada aos migrantes, que chegam em más condições físicas ou, como ocorreu no Brasil, com doenças que precisam ser tratadas urgentemente. Além disso, existe um problema com os documentos legais, já que as exigências dos países variam dependendo do país de destino ou, mesmo para quem tem a documentação em ordem, há casos em que o passaporte não tem espaço para carimbos e não é possível renová-lo.

Equador e Colômbia são dois dos países que estão impulsionando iniciativas para obter uma resposta coordenada à crise migratória. Entre os que não compartilham fronteira, México, Chile e Argentina são os mais ativos. O Governo de Lenin Moreno, do Equador, pretende envolver as autoridades venezuelanas, algo que, se obtido, será visto com bons olhos no Grupo de Lima, do qual o Equador não participa, segundo três altos funcionários de chancelarias desse grupo ouvidos pelo EL PAÍS. A Colômbia, por sua vez, quer ir além e obter o envolvimento da ONU, através do Acnur (agência para refugiados) e da Organização Internacional das Migrações (OIM). O Grupo de Lima tampouco quer excluir a OEA, cujo secretário-geral, Luis Almagro, convocou uma reunião extraordinária para abordar esse problema.

“Os dois níveis precisam dar as mãos”, observa uma das fontes diplomáticas. “Seria útil obter um esforço regional com a participação das autoridades venezuelanas, mas o volume de recursos e apoios supera o que a região tem condições de enfrentar. Necessitamos da colaboração da União Europeia e de países asiáticos, por exemplo”, acrescenta a mesma fonte, em concordância com os outros altos funcionários.

Os especialistas e fontes oficiais negam que tenha havido demora na reação das autoridades à crise migratória. Consideram que a deterioração da Venezuela foi muito veloz, e que a hiperinflação agravou o deslocamento. Somam-se a isso os esforços fracassados para obter uma solução da crise política. Fontes do Grupo de Lima dizem que a pressão contra Maduro continuará, mas em várias das chancelarias das principais potências regionais reina o desânimo com a fragilidade da oposição venezuelana. “É preciso manter certos limites, porque não há união na oposição e é cada vez maior o distanciamento entre a oposição e a sociedade”, afirma uma das fontes. “Evidentemente, é necessária uma sacudida interna e que debatam uma versão consensual como alternativa. A se continuar sem uma liderança clara, é difícil que os esforços da comunidade internacional frutifiquem.”

Em poucas ocasiões Maduro se referiu à saída maciça de venezuelanos do país, e quando o fez foi para minimizar. “O Governo é muito claro, se não quisesse que as pessoas fossem embora fecharia as fronteiras”, argumenta Bahar. “Maduro se tornou uma ameaça estratégica para a região”, argumenta Joaquín Villalobos, ex-guerrilheiro salvadorenho e consultor de resolução de conflitos. Em sua opinião, a crise migratória da Venezuela tem seu espelho em Cuba. No entanto, aquela ocorreu em ondas diferentes. “A grande diferença é que Cuba é uma ilha, a Venezuela pode expulsar milhões de pessoas de forma muito mais rápida.”


El País: Sem marqueteiro oficial e fora dos debates, PT aposta em campanha de ‘corpo ausente’

Partido terá que lidar com a ausência de Lula nos palanques e a falta de novas imagens para os programas de TV. Gleisi diz que PT tomará medidas jurídicas para ter ex-presidente ou Haddad nos debates

O PT terá pela frente uma de suas disputas eleitorais mais difíceis desde que Lula concorreu pela primeira vez à presidência, em 1989. A campanha deste ano será feita com o ex-sindicalista e principal cabo-eleitoral da legenda de corpo ausente. Preso em Curitiba, ele não deverá ter acesso aos palanques e câmeras de TV. Neste cenário inédito, o partido terá que contornar uma série de problemas, como a exclusão dos debates na TV e a difícil tarefa de colar nos dois vices da chapa, o oficial, Fernando Haddad (PT), e a reserva, Manuela D'Ávila (PC do B), o rótulo de candidatos de Lula.

Nesta última quinta-feira, o desafio se tornou claro. A insistência em manter Lula como o candidato fez com que o partido com o presidenciável líder das pesquisas ficasse de fora do primeiro debate, na TV Bandeirantes. O ex-presidente não foi autorizado a deixar a cadeia pela Justiça. E, para tentar compensar, Haddad e Manuela D'Ávila promoveram uma conversa paralela na internet, que nem de longe atingiu a popularidade do encontro televisivo. No dia seguinte, na porta da carceragem de Curitiba, a presidenta da legenda, Gleisi Hoffmann, afirmava em entrevista coletiva, após "uma longa conversa com Lula", que o partido tomará todas as medidas jurídicas necessárias para que ele participe dos próximos debates. E que, se não conseguir, haverá um esforço para que Haddad vá em seu lugar. O próximo encontro entre presidenciáveis já acontece na próxima sexta-feira, na Rede TV.

Esta será apenas uma das dificuldades que o partido terá nos próximos meses. Nem mesmo a propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV, que começa em 31 de agosto, trará novas imagens do ex-presidente. Desde que foi preso, em abril deste ano, a Justiça negou vários pedidos do PT para que equipes do partido –e até mesmo seu fotógrafo pessoal– pudessem captar vídeos de Lula. Assim, apenas imagens e áudios de arquivo do ex-presidente poderão ser utilizados. “Tem muito material que o Lula gravou antes de ser preso, já pensando nesse cenário de golpe”, disse uma fonte da legenda ao EL PAÍS. A ideia dos programas será colocar eminências petistas para apresentar Haddad, com o reforço de vídeos antigos do ex-presidente elogiando seu pupilo, que é quem deve tomar a cabeça da chapa caso a Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Lula, condenado em segunda instância e, por isso, passível de ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa. O material é vasto: o ex-presidente foi o principal fiador e cabo eleitoral da campanha que levou Haddad à Prefeitura de São Paulo em 2012.

A tônica dos programas, conforme confirmado por petistas próximos à campanha, também será insistir na tese do golpe político-jurídico que levou o ex-presidente à prisão e o impediu de disputar a presidência em igualdade de condições. “O horário político será um instrumento de defesa da candidatura do Lula. E caso ela seja barrada [pelo Tribunal Superior Eleitoral], será uma denúncia disso. Assim vamos transformando acontecimentos jurídicos em elementos de campanha”, afirmou uma fonte do PT.

Pela primeira vez em décadas, o partido também chega à campanha sem um marqueteiro todo-poderoso, geralmente responsável não só pelos programas de rádio e TV, mas também por algumas decisões estratégicas da campanha. O histórico dos antigos marqueteiros do partido não é dos melhores. João Santana, que trabalhou na segunda campanha de Lula e na de Dilma Rousseff, foi condenado pela Lava Jato este ano e firmou acordo de colaboração premiada que prejudica o partido. Antes de Santana, o nome da propaganda petista era Duda Mendonça, um dos responsáveis por levar pela primeira vez na história o PT ao Planalto. Ele se viu envolvido no escândalo do Mensalão —do qual terminou absolvido em 2012—, apenas para voltar aos holofotes com a Lava Jato em 2016, o que o levou a também assinar acordo de delação premiada.

Desta vez, diz o partido, caberá a uma equipe formada principalmente por militantes e quadros internos se encarregar da propaganda da chapa de Lula. “É um trabalho coletivo mais adequado ao cenário das campanhas atuais”, explica o PT, em nota. O partido afirma ainda que a decisão de adotar este novo modelo não foi tomada “por questão de custos”, e sim para “superar o modelo antigo do marqueteiro”. Questionada, a campanha não respondeu sobre os problemas deste "modelo antigo".

Dois ex-marqueteiros do partido se se viram envolvidos em escândalos de corrupção e se tornaram delatores

Pessoas ligadas à campanha petista afirmaram que o modelo da campanha controlada por um grande marqueteiro “estava ligado a uma grande preponderância dos programas de TV”, e que no cenário atual aposta-se em um aumento da importância relativa de outros meios de comunicação. Um exemplo disso foi o debate paralelo feito na última quinta-feira. Segundo o PT, o ao vivo realizado no Facebook teve “mais de um milhão de visualizações”. As menções ao nome de Lula, no entanto, foram inferiores às feitas aos outros candidatos que participaram do evento na Band.

Além disso, fontes petistas afirmam que “as campanhas hoje são mais baratas”, e que “praticamente não existem mais aqueles profissionais com perfil exclusivo de marketing político”. Apesar de ter trazido para dentro da estrutura do partido o papel de propaganda e marketing, petistas afirmam que o publicitário Sidônio Palmeira, responsável pelas campanhas vitoriosas dos petistas Jaques Wagner e Rui Costa na Bahia em 2006, 2010 e 2014, será uma espécie de “consultor informal” do partido. Ele nega, mas confirma que foi sondado: “Eu não sou nada [na campanha] (...) me procuraram pra fazer a campanha, eu estava fazendo a do Rui Costa, e me consultaram em algumas coisas, mas não estou no dia a dia, não estou em condições de falar sobre isso”, afirmou Sidônio à reportagem. O publicitário, no entanto, frisou que será importante que o PT resgate os feitos econômicos “da época do Lula, para contrapor à situação atual”.

A campanha petista será coordenada pelo economista Sérgio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras no período de 2005 a 2012. Sua passagem pela estatal foi marcada pelo crescimento da empresa, turbinado principalmente pela descoberta das reservas do Pré-Sal e pelo alto preço do barril de petróleo no mercado internacional. Anos depois de deixar o comando da Petrobras, no entanto, ele se viu arrastado para o furacão da Operação Lava Jato que varreu as gestões petistas. Gabrielli chegou a ter seus bens congelados pela Justiça e foi condenado em 2017 pelo Tribunal de Contas da União a ressarcir a estatal em mais de 100 milhões de reais. Segundo as investigações, ele teria tido um papel ativo na aquisição da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, que segundo o TCU causou prejuízos de mais de 790 milhões de dólares à petroleira.

Transferência de votos pode ser trunfo petista
Em um cenário no qual existem boas chances de Lula ser barrado das urnas, o partido aposta no fenômeno conhecido como transferência de votos para fazer com que os pouco mais de 30% de eleitores que o apoiam até o momento votem em seu vice, Haddad. De acordo com as últimas pesquisas, o ex-prefeito de São Paulo tem entre 6 e 8% das intenções de voto em um cenário sem o ex-presidente. No entanto, segundo levantamento do Instituto Datafolha, 30% dos eleitores afirmaram que votariam “com certeza” em um candidato indicado por Lula, enquanto 51% “não votariam jamais” e 17% votariam “talvez”.

A capacidade de transmissão de votos em uma situação como a de Lula, preso, “é algo difícil de mensurar, e o fenômeno é pouco conhecido neste contexto”, diz o cientista político Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais. De qualquer forma, o professor ressalta que o ex-presidente “conseguiu manter intenção de votos alta durante um grande período de tempo e em uma situação muito adversa, que foi a prisão”, o que é um sinal de que ele manteve seu “capital político”. “Existem variáveis como a empatia que o eleitor terá com o nome indicado pelo ex-presidente. Isso tudo depende do trabalho feito nas propagandas do partido para colar Haddad em Lula”, conclui.

Haddad disse que será “a voz de Lula” na corrida eleitoral, mas é difícil saber o quanto suas palavras ecoarão como sendo as do ex-presidente. Enquanto Lula for mantido como cabeça de chapa, o partido navegará praticamente às cegas com relação à popularidade de seu possível substituto. Isso porque enquanto não for barrado pela Justiça o nome do ex-presidente continuará aparecendo nas pesquisas, o que obrigará o PT a fazer seus próprios levantamentos para saber o desempenho do vice.


El País: No debate da Band, Alckmin vira alvo e nanico Daciolo rouba a cena nas redes

Presença de oito candidatos dilui debate e explicita problemas para a candidatura do PT. Ciro e Boulos foram menos acionados, e tucano, dono do maior tempo de TV, o mais buscado

Morno e sem grandes momentos de polarização direta, o primeiro debate presidencial na TV das eleições 2018, na Band, evidenciou o tucano Geraldo Alckmin, dono do maior tempo na propaganda eleitoral gratuita na TV, como o alvo preferencial dos adversários. Além de lançar o candidato nanico Cabo Daciolo, do Patriota, ao estrelato nas redes e nos memes por causa de sua participação histriônica, o programa também deixou claro os problemas da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso e virtualmente impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa. Em pouco mais de três horas de exposição dos postulantes da TV aberta, o petista, que aparece como o líder das pesquisas de intenção de voto, foi citado apenas uma vez, e no começo - ainda que a memória da era de ouro do lulismo, antes de o país amargar a recessão, tenha sido evocada algumas vezes.

A noite mostrou que Geraldo Alckmin, mesmo à espera da propaganda na TV para tentar decolar nas pesquisas, provoca nos oponentes a percepção de que sua candidatura tem potencial de crescimento e deve ser atacada em nome de um lugar no disputado segundo turno. Alckmin foi duramente questionado, de Henrique Meirelles (MDB) à Marina Silva (REDE) passando por Ciro Gomes - o pedetista, ávido por exposição porque terá pouco a fazer no horário eleitoral, acabou relativamente isolado no debate.

Não houve uma polarização ideológica clássica direita x esquerda. Em certo um momento, Boulos disparou: “Aqui tem 50 tons de Temer. Até quem está propondo o novo, estava ano passado aprovando tudo do Temer”, provocou o líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) para tentar colar os adversários a imagem do Governo Temer, o mais impopular da história. Até Meirelles, ex-ministro da Fazenda do atual Governo e candidato governista, tentou se afastar do Planalto e se aproximar de seu passado lulista — algo que Marina Silva e Ciro Gomes, ex-ministros de Lula, também fizeram em determinados momentos ao exaltar alguns feitos pessoais. Pouco articulado, Meirelles acusou o PSDB de Alckmin de chamar o programa Bolsa Família de "Bolsa Esmola”. Restou ao tucano elogiar o programa e citar que ele teve origem no Governo FHC - uma tentativa de puxar a memória do eleitor para algo que já faz duas décadas.

Alckmin, por sua vez, ao invés de escolher Jair Bolsonaro, que lidera as pesquisas em cenários eleitorais sem Lula, acabou mirando a menos beligerante Marina Silva para direcionar suas perguntas. A profusão de candidatos — oito — e a predileção dos adversários pelo tucano acabaram também por retirar protagonismo de Bolsonaro. O candidato de extrema-direita do PSL teve menos espaço para abusar de frases feito na área de segurança e em desprezo ao direitos humanos, como nas recentes sabatinas televisivas. "Bolsonaro atuou sem criar conflito com nenhum candidato. Uma boa estratégia”, avaliou Eduardo José Grin, cientista político e professor do Departamento de Gestão Pública da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas, que comentou em tempo real para o EL PAÍS a performance dos candidatos.

O capitão reformado do Exército foi o tema mais buscado na Internet segundo o Google, que fez uma parceria com a Band para analisar o interesse pelo debate no mundo virtual. No entanto, à medida que o programa se desenrolou, Bolsonaro dividiu os holofotes especialmente com Cabo Daciolo. Os momentos mais esdrúxulos ficaram por conta da estreia de Daciolo em rede nacional, que em alguns momentos fez dobradinha, ao menos temática, com Bolsonaro. Daciolo, deputado federal e ex-bombeiro militar, imprimiu o vozeirão para responder, muitas vezes de maneira desconexa, às perguntas feitas. "Os maiores criminosos do país são engravatados”, disse. Virou o segundo tópico mais comentado no Twitter, depois do próprio debate, que, no auge, marcou quase 7 pontos no Ibope, contra 25 pontos da TV Globo. Cada ponto equivale a 71,8 mil pessoas ou 201 mil pessoas.

Com exceção de Boulos, todos os candidatos exploraram as citações a Deus flertando com o eleitorado cristão. Violência, desemprego e crise do Estado foram os temas mais recorrentes - aborto e desigualdade de gênero também foram mencionados. Só dois candidatos, Marina e o próprio psolista, acabaram tendo que responder uma pergunta de uma jornalista sobre a questão da interrupção da gravidez. "Esse é um tema complexo, que envolvem questões filosóficas, morais e religiosas. Aborto não pode ser advogado como método contraceptivo, defendemos o planejamento familiar para que as mulheres não precisem recorrer a isso”, disse Marina Silva, que, evangélica, não deu posição direta e disse que o tema deve ser decidido em referendo. Boulos, cauteloso na resposta, falou como a desigualdade social afeta o tema: as mulheres pobres são as que mais sofrem porque a interrupção da gravidez não é legalizada.

Enquanto o debate se desenrolava, o PT fez um programa paralelo, transmitido pelo Facebook, estrelado por alguns vídeos de Lula e com o vice e plano B, Fernando Haddad, e a vice stand-by, Manuela D’Ávila. O vídeo de 2h30 teve 700.000 visualizações.

Assim contamos em tempo real o debate da Band. Veja também as reações após o programa.


El País: “Sistema político isolou alternativas. Vamos para mais uma disputa PT x PSDB”, diz Fernando Bizzaro

Especialista defende que Lula tem competência e recursos para transferir votos para Haddad. Cientista político também acredita que Alckmin tem estrutura para roubar votos de Bolsonaro

Fernando Bizzarro, cientista político da Harvard University e pesquisador associado do Centro David Rockfeller de Estudos Latino-americanos, da mesma universidade, vê uma reedição da disputa entre o PT e o PSDB nas eleições de outubro de 2018. Especialista em partidos e eleições, ele explica ao EL PAÍS que o sistema político agiu de maneira coordenada e deliberada para isolar as candidaturas alternativas, principalmente a do ultraconservador deputado Jair Bolsonaro (PSL). Ele não terá recursos e não poderá contar com sua presença nas redes sociais para enfrentar as principais candidaturas, sobretudo a do ex-governador Geraldo Alckmin, argumenta o especialista. O tucano terá o desafio de reconectar seu partido com um eleitorado conservador concentrado no Sul e no Sudeste que flerta com o ex-capitão, enquanto que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deverá transferir seus votos para Fernando Haddad ao mesmo tempo em que preserva a imagem do ex-prefeito.

Pergunta. O PT acaba de lançar Lula, o ex-prefeito Fernando Haddad e a deputada estadual Manuela D'Ávila (PCdoB) a presidente e vices, respectivamente. Muitos interpretaram como errático o comportamento do partido nos últimos meses. Fica claro qual era sua aposta? Ela faz sentido?
Resposta. O PT aposta que o ex-presidente Lula ainda é seu principal recurso eleitoral, e por isso preferiu fazer uma aliança mais enxuta, mais à esquerda. A estratégia é a de que "nós temos que ir com ele até o final". No momento em que assumem que o Lula está fora, Haddad vira um candidato como outros, mas sem o mesmo cacife eleitoral e a mesma popularidade. O PT assumiu os riscos dessa estratégia, que é racional. No momento em que Lula não for candidato, três coisas acontecem. A primeira é que Haddad fica exposto a críticas. Quanto mais tempo as pessoas ficarem falando mal de Lula, menos tempo vão ter para falar mal do Haddad. A segunda é que manter a candidatura de Lula força que a justiça eleitoral o remova da disputa e reforça o discurso de que ele e o PT estão sendo perseguidos. Quanto mais tempo passar, mais a memória da perseguição vai ser forte. Por último, à medida em que Lula fica até o final, o PT não precisa discutir outras coisas. Quando mais tempo falar da perseguição, da injustiça, menos tempo vai ter para falar da experiência do Governo Dilma, que seria a comparação imediata na cabeça do eleitor. Ao eleitores foi dito que a Dilma era igual ao Lula, mas não foi. Como o eleitor pode confiar que Haddad vai fazer diferente de Dilma? Quanto mais tempo puderem se perguntar sobre isso, pior é.

P. Apesar dessa aliança mais enxuta, o PT ainda é a preferência dos brasileiros, segundo as pesquisas, e tem mais de dois minutos de TV, vindo logo depois de Alckmin. Somando todos esses fatores, qual é a chance de se repetir a polarização entre PT e PSDB no segundo turno?
R. Essa é minha aposta já faz algum tempo. Nunca acreditei que a bipolaridade estava acabada porque existe um arranjo institucional que protege os principais partidos de uma tal forma que, quando chega na campanha, eles podem nadar de braçada. Isso tem a ver com a forma que os recursos e o tempo de TV são distribuídos, a popularidade acumulada... As pessoas não precisam de muita informação sobre o PT e o PSDB, elas sabem o que representam. Está ficando cada vez mais claro que vamos ter uma reedição da disputa entre eles. Pode parecer uma surpresa dado o tamanho da confusão nos últimos quatro anos, mas não é tanto se você pensa que as regras que favorecem os principais partidos e campanhas não só se mantiveram como aumentaram. A partir da proibição da doação de empresas, todos os recursos passaram a ser públicos e vinculados ao tamanho dos partidos.

P. E quem tem mais chance de levar as eleições caso esse cenário se confirme? Quem sai na frente?
R. Não dá para cravar nenhum dos dois. Se o Lula fosse candidato, eu provavelmente diria que ele seria essa pessoa, por causa do recall e da forca política de sua imagem. Mas não sendo, o segundo turno vai ser muito aberto. Por um lado, Alckmin vai ter mais recursos no primeiro turno, mas esses recursos vêm do Centrão e ele vai ter que lidar com a acusação de que se aliou com todos esses partidos. A vantagem de Lula ser essa figura política tão grande é acompanhada da desvantagem de que ele é também polarizante. Um segundo turno com Haddad vai gerar essa sensação de que mais uma vez é o Lula na disputa. Se fosse o Ciro, a parte da população que não gosta do PT estaria mais disposta a considerar a votar nele.

P. Nesse sentido, seria uma aposta mais segura se o PT tivesse apostado em Ciro Gomes (PDT)?
R. Ciro teria mais chance de ganhar o segundo turno que Lula, mas o PT não lançar um candidato a presidente seria um completo suicídio político. Algumas pesquisas mostram que o eleitor, por várias razões, votam na legenda ao escolher o deputado por causa de seu voto para presidente. Para o PT e PSDB isso significa mais de um milhão de votos. Isso é importante para o PT, que perdeu prefeitos nos últimos anos e que está sob esse estresse tremendo por causa dos escândalos de corrupção e da análise que se tem do Governo Dilma. Se abrisse mão de uma candidatura, provavelmente não se recuperaria.

P. Mas a operação para conseguir a neutralidade do PSB, retirando a candidatura de Marília Arraes ao governo de Pernambuco, deixa sequelas internas no PT? Ele sai fortalecido ou destruído internamente?
R. São poucos os partidos na América Latina – e talvez no mundo – que conseguiriam sobreviver ao que o PT sobreviveu. Talvez o peronismo na Argentina e o PRI no México, por causa de suas histórias e bases. O nível do escândalo de corrupção que envolveu o PT, a prisão de seu principal líder, o impeachment da presidente... É uma combinação de caos que o partido enfrentou e sobreviveu. Ele perdeu muito, apanhou muito, e está aí ainda. Não há um cenário de destruição, mas ele também não está forte. Não conseguiu prolongar seu domínio sobre setores do centro e da direita mais fisiológica e não foi capaz de ter a hegemonia sobre a esquerda. O máximo que conseguiu foi arrancar neutralidade, não uma aliança. Suspeito que o partido vai a partir de agora lamber as feridas e, depois das eleições, entender o que sobrou para começar a se reconstruir na medida em que a política se normalize. É o partido de esquerda mais bem organizado, com maior identificação e memória na população, então também é o mais bem posicionado para se recuperar.

P. Mas em curto prazo o que está em jogo para as principais candidaturas?
R. Para o PT, a pergunta é em que medida o eleitor vai identificar que, mesmo sem o Lula, essa é a candidatura é do Lula. Qual é a participação que o Lula pode ter na campanha, ele vai poder aparecer? Tudo isso vai ser fundamental pra entregar essa mensagem para o eleitor [e conseguir uma transferência de votos para Haddad]. O PT tem capacidade e os recursos para alcançar isso, é extremamente profissional. Ninguém nasce no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo e vira o maior partido de esquerda das democracias em desenvolvimento se não for extremamente profissional. Se fizer, vai desidratar Ciro (que já investiu demais em sua candidatura e não vai abandoná-la para apoiar o PT) e vai para o segundo turno com Alckmin ou Bolsonaro.

Para Alckmin, o desafio é garantir que os eleitores que historicamente votaram no PSDB e que agora são simpáticos a Bolsonaro percebam que sua candidatura não é viável e voltem para casa. O PSDB sempre foi capaz de fechar o mercado à sua direita. Este ano a coisa inédita é o Bolsonaro, porque ele está à direita do PSDB e conseguiu ser candidato. Nunca houve uma candidatura na direita forte desde 1994. Já a esquerda sempre teve uma segunda força próxima ao PT, como Ciro, Marina Silva [atual candidata pela REDE], Garotinho, Brizola, Cristovam Buarque... Mas isso nunca impediu que o PT ficasse na frente.

P. Isso se reflete na escolha da senadora Ana Amélia (PP) como vice em sua chapa?
R. Totalmente. A escolha tem uma série de elementos. Ela é do sul do país, onde o eleitorado é tipicamente conservador. Tem vinculação com o agronegócio, importante no sul e no centro-oeste. E é mulher. Ana Amélia é um jeito de tentar buscar esses eleitores de volta. Alckmin sabe que não pode tomar voto do PT ou da esquerda. Agora precisa tomar voto do Bolsonaro para, aí sim, cortejar os votos da Marina, do Ciro, do senador Álvaro Dias [Podemos] em um eventual segundo turno. O campo aberto de batalha está no Sudeste e principalmente Sul [onde Alckmin disputa a preferência não só com Bolsonaro como também com Álvaro Dias].

P. Por outro lado, Bolsonaro acabou escolhendo o general Antônio Hamilton Mourão como vice após três negativas. Essa escolha confirma seu isolamento político? Significa que sua candidatura apela para um setor específico?
R. Sim, parece que ficou claro durante o ultimo mês que as elites partidárias deliberadamente isolaram Bolsonaro. Houve um movimento coordenado para deixá-lo sozinho. A dificuldade de encontrar um vice é a comprovação cabal disso. A vice-presidência na chapa que atualmente lidera as pesquisas é um ativo que só ele tinha a oferecer, e o fato de que ninguém quis esse ativo mostra como o sistema político está tentando isolá-lo, além da perspectiva de futuro dessas eleições. Bolsonaro até tentou nomear um vice que lhe trouxesse votos que ele não tinha. Mas com Mourão, ele consegue outro representante do eleitor que ele já possui. O mesmo vale para Marina e Ciro, que não conseguiram agregar outros partidos e forças políticas. O sistema político, não só em suas regras mas também com seus arranjos, isolou as candidaturas alternativas e concentrou tudo nos partidos tradicionais.

P. Mas a influência de Bolsonaro nas redes sociais não pode compensar seus nove segundos na TV e falta de estrutura partidária?
R. Não acho que ele mantenha a mesma vitalidade. Mesmo nas redes sociais, os dados mais recentes indicam que ele tem perdido público nos últimos meses. Isso tem a ver com a fato de que, conforme as outras candidaturas vão se arrumando e as pessoas vão se interessando por outros candidatos, o apelo da candidatura Bolsonaro vai perdendo espaço. Mas, assumindo que ele se mantenha influente nas redes, acho que não é capaz de compensar sua enorme falta de recursos. Com a quantidade de tempo de TV e de dinheiro de Alckmin, Bolsonaro vai apanhar todo dia e toda hora na campanha. E não vai conseguir se defender do bombardeio de Alckmin nem com seus nove segundos na TV nem com as redes sociais. Acaba de sair uma pesquisa dizendo que a maior fonte de informações sobre política ainda é a mídia tradicional. Além disso, o PSDB saiu de 2016 como o principal ganhador das eleições municipais. Todos esses prefeitos, os tucanos e os do Centrão, são cabos eleitorais muito importantes em eleições para deputado e presidente, e vão fazer campanha para Alckmin. Tenho a impressão de que essa campanha pode ser parecida com a do João Doria para a prefeitura de São Paulo. As pessoas não o conheciam, mas ele tinha uma coligação tão grande, que fazia um bombardeio tão grande em cima do eleitor, que ele conseguiu vencer no primeiro turno. Não acho que é o caso do Alckmin, mas o bombardeio de informação vai acontecer de novo e Bolsonaro deve perder parte dos votos que tem.

P. Acredita então que Ciro, Bolsonaro e Marina são cartas fora do baralho? Ou ainda podem chegar ao segundo turno?
R. Chances todos têm. A despeito dessa diferença de recursos, uma parte do eleitorado ainda tem um sentimento de cansaço com relação às candidaturas tradicionais, algo que pode ser suficiente para levar um deles para o segundo turno. Principalmente Marina ou Bolsonaro. Mas se você tem um grupo inteiro que não quer nem votar no PT nem no PSDB, um deles estará mais à direita e outro mais à esquerda. Marina e Bolsonaro vão dividir esse grupo, então existe muita competição também por ser terceira força. O mais provável é que não cheguem ao segundo turno e que a campanha se pareça com a de 2014, em que Marina foi bem no começo, mas não conseguiu enfrentar os ataques contra ela. A partir do momento em que alguém se torne o primeiro ou o segundo colocado, como agora é Bolsonaro, as principais candidaturas vão virar os canhões contra ele.


El País: “Votar não me dá a sensação de participação política. Quero que minha opinião seja levada a sério”

A geração de jovens nascidos entre o final do século passado e este vai às urnas pela primeira vez. Alguns, como Victor Conceição (foto), ainda não conseguiram decidir em quem votarão

Por Regiane Oliveira, do El País

Em 1989, depois de um hiato de quase três décadas, os brasileiros comemoravam a volta das eleições diretas após os anos da ditadura militar. Uma geração inteira que nunca tinha exercido o poder do voto foi às urnas tomada de euforia e animação para lutar pelo direito de escolher seus representantes. Agora, após um novo período de quase três décadas de democracia, o clima é diverso. Muitos jovens nascidos entre o final do século passado e o início deste século, distantes das turbulências prévias ao Plano Real, votam em outubro pela primeira vez. E chegam às urnas com pouco a comemorar e com a sensação de que o voto como instrumento de mudança social tem suas limitações.

O EL PAÍS começa hoje a seção "Primeiro Voto", um mergulho na vida dos eleitores que chegam pela primeira vez às urnas num contexto marcado pela descrença nos candidatos e nos partidos políticos. Jovens como o estudante de direito Victor Conceição, de 18 anos, que mora na Vila Patrimonial, bairro da zona sul de São Paulo, e que, assim como 5% dos jovens de 16 a 24 anos entrevistados pela última pesquisa Datalfolha, ainda não sabe em quem vai votar.

Desde que nasceu, Victor assistiu a quatro eleições para presidente, um impeachment (o de Dilma Rousseff), mais escândalos de corrupção do que consegue se lembrar e à recente prisão de um ex-presidente. Cresceu em um país que chegou ao pleno emprego, mas hoje alimenta as estatísticas que mostram que 25% dos jovens estão desempregados. Não à toa, garante não esperar muito de suas primeiras eleições. “Votar não me dá a sensação de participação política”, afirma.

Victor aprendeu em casa, onde desde cedo palpitava sobre os candidatos em que sua mãe iria votar, que esperar pelas eleições é muito pouco para construir um cenário diferente. Para ele, os caminhos são outros. Por isso, exercita sua vocação política no voluntariado, atuando na Aliança Beneficente Universitária (Abeuni) –que oferece programas de saúde para a população–, e também na Educafro –um cursinho pré-vestibular que promove a inclusão da população negra e de baixa renda na universidade– de que foi beneficiado como aluno.

“Votar é escolher um representante, mas será que isso significa que minha opinião vai ser levada a sério? Participo mais quando converso com outros jovens, seja no voluntariado ou na igreja, e tento instigar que eles não desistam”, afirma.

O interesse de Victor pelo trabalho voluntário tem como base uma consciência política muito crítica: ele sabe que é, dentro da realidade de seu entorno, um privilegiado. Como parte da terceira geração de sua família a fazer faculdade, sempre achou que o “normal” era seguir o caminho da educação. “Meu tio-avô fez faculdade, minha mãe e meu pai também. A diferença é que era para eu ser o primeiro a estudar em universidade pública”, cobra-se, mesmo tendo conseguido bolsa de 100% do Programa Universidade para Todos (Prouni) na Universidade Paulista (Unip), a qual se dedica integralmente.

A família de classe média baixa é o suporte que permitiu que seus planos dessem certo até aqui, garante ele. Nunca precisou buscar trabalho para se sustentar e pôde se dedicar aos estudos e a fazer cursos profissionalizantes. Foi bolsista do Formare, um programa de capacitação de jovens desenvolvido pela Fundação Iochpe, no Grupo Ultra, onde fez estágio na área de contabilidade. “Meu pai faleceu quando eu tinha três anos, mas minha mãe sempre investiu em mim. Pude estudar em escola particular até o 9º ano”.

Da primeira experiência de trabalho, leva o aprendizado de entender exatamente o que gosta e o que não quer fazer. Ensinamento que agora usa para as eleições. “Tenho muitas dúvidas em quem vou votar, mas sei exatamente em quem não vou votar”, garante. Nesta última categoria está o candidato à presidência Jair Bolsonaro. “Às vezes, acho que ele é um acerto de relações públicas, com suas frases de efeitos montadas para conquistar um público que está com raiva, mas sem real noção do que se passa no Brasil”, afirma o jovem, que defende os direitos humanos, as cotas raciais e as sociais nas universidades —temas que o militar reformado costuma criticar.

Victor admite que Bolsonaro agrada muito à população cristã, com seu discurso “de se armar em prol da família”, mas isso porque este público está aterrorizado. “Fala-se muito da intolerância religiosa, e a mídia costuma mostrar o que acontece com as religiões de matriz africana, mas nada sobre os evangélicos, que sofrem calados”, afirma.

O próprio Victor já ouviu frases preconceituosas do tipo: “Como você é evangélico se é tão inteligente?”. “Bolsonaro, por ser cristão, é visto por muitos como uma saída para a aceitação. As pessoas, com medo, decidem na base da emoção”, lembra.

Outro presidenciável que deve perder o voto de Victor é Geraldo Alckmin, mas dessa vez, pela ligação do jovem com a escola pública. Paulistano, Victor morou seis meses em Pindamonhangaba, cidade do interior paulista onde nasceu o candidato do PSDB. “A escola era impecável. Tinha café da manhã e almoço. Os alunos participavam de reuniões com o prefeito. Mas quando voltei para São Paulo foi um choque ver o abandono”. O baque ganha um significado ainda maior porque Victor estudou na escola estadual Brasílio Machado, no bairro Vila Mariana, que é considerada uma das melhores instituições de ensino médio da capital paulista.

O ex-prefeito da capital João Doria também não está nas graças do estudante. “Fiquei surpreso com a vitória dele no primeiro turno, mas mais ainda quando ele abandonou a prefeitura depois de ter se comprometido a ficar”, diz.

Apesar das críticas, Victor garante que não é um desiludido com a política e jura ainda ter esperança que um candidato vá conquistar seu apoio até o final da campanha. "Votarei em alguém que não está na política simplesmente pela busca do poder. Alguém que entenda que os problema do país são estruturais. E que saiba ser paciente".


El País: Mourão, um novo franco-atirador para o populismo conservador de Bolsonaro

O general da reserva, nostálgico da ditadura, lidera pelotão de candidatos militares neste pleito e ganha holofotes ao repetir frases preconceituosas

Jair Bolsonaro, o candidato à presidência do Brasil que há meses desconcerta seus muitos críticos por se destacar nas pesquisas de intenção de voto com ideias abertamente autoritárias, anunciou no domingo seu vice na campanha eleitoral. Hamilton Mourão é um general de 64 anos dado a criticar o Poder Executivo e a elogiar aspectos da ditadura militar brasileira (1964-1988), o que já havia lhe rendido uma punição branda na caserna antes de sua aposentadoria. Mas no mundo ao contrário de Jair Bolsonaro, a patente alta e a vocação para chocar se encaixam perfeitamente na chapa que tem 17% de intenção de voto, quase o dobro dos 10% do próximo da lista, se desconsiderado Luiz Inácio Lula da Silva, virtualmente impedido de concorrer. O general reforça tudo o que aconteceu até agora na campanha de extrema-direita – os elogios à ditadura, os insultos de microfone na mão, o racismo, o classicismo, o machismo. A dobradinha reitera que essa é a candidatura dos militares, da força bruta, do ultraconservadorismo e da ordem estabelecida. E que não há nada a relativizar na que é, no final das contas, a segunda proposta que mais atrai seguidores no maior país da América Latina.

Mourão, que entrou no Exército em 1972 e esteve na ativa até fevereiro de 2018, já havia negado antes a fazer campanha com Bolsonaro. Que o candidato tenha insistido se deve mais à falta de opções – Bolsonaro já havia sido recusado por outras duas pessoas – do que das qualidades para o cargo ou o possível ganho eleitoral da fórmula. Mourão é o homem que, ao entrar na reserva há alguns meses, chamou de “herói” o coronel que comandou um centro de repressão política durante a ditadura militar e que foi declarado “torturador” pelo Tribunal de Justiça. Em outubro de 2015 protagonizou um escândalo ao afirmar em uma conferência que o Brasil precisava “de um despertar da luta patriótica”: dias depois, ainda sob o Governo Dilma Rousseff, foi anunciada a sua “exoneração do posto”. Em setembro desejou publicamente que a Justiça “retirasse” da vida pública o presidente Michel Temer e em dezembro chamou o Governo, enfraquecido por várias acusações de corrupção, de “bazar de negócios”. Em poucos dias foi transferido à Secretaria de Economia do Exército, onde não ocupou nenhum cargo concreto. Em fevereiro, entrou na reserva, mas mereceu uma cerimônia de gala e elogios do atual comandante do Exército.

Mas o Brasil em que esse histórico derrubaria qualquer carreira política parece já não mais existir. Nos últimos meses é cada vez mais comum que os militares opinem publicamente sobre a turbulenta deriva do país e que lembrem, para deleite de muitos, que eles estão ali e, ao contrário dos entumecidos políticos tradicionais, poderiam fazer algo. Em abril, horas antes do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ser preso por corrupção e quando ainda se temia a remota possibilidade de que fosse indultado, o mesmo comandante do Exército ameaçou no Twitter: “o Exército brasileiro compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repudiar a impunidade (...) e se mantém atento a suas missões institucionais”.

Setores da sociedade brasileira, presa há anos em uma encruzilhada formada por uma recessão econômica, uma classe política paralisada por incontáveis julgamentos por corrupção e índices de violência que só aumentam, também se mostram cada vez mais favoráveis à presença dos militares na vida civil. Em janeiro o presidente, impotente diante da sangria diária do Rio de Janeiro, cedeu às Forças Armadas o controle da segurança de todo o Estado: foi a primeira vez que se tomou uma medida tão extrema desde a volta da democracia em 1988. Longe de condená-la, muitos a usaram como prova de que a política habitual não tem como agir em um local tão violento. Quando, no final de maio, os caminhoneiros entraram em greve e paralisaram o país que mais depende das estradas no mundo, as manifestações de protesto mostraram várias mensagens de “Intervenção Já” - um clamor para que os militares tomassem o poder político.

Não à toa existem mais de uma centena de ex-militares disputando algum cargo nessas eleições - querem ser deputado a governador e também chegar ao Planalto. Ninguém soube capitalizar esse sentimento como Bolsonaro, único candidato a presidente com passado militar (ainda que sua carreira tenha acabado em 1987, quando foi suspenso por tentar colocar bombas nos banheiros de sua academia). Quando se transformou no deputado mais votado das eleições de 2014 já utilizava a estética militar. Após seu sucesso, foi além e começou a flertar com a saudade da ditadura. Nos vídeos que publica diariamente nas redes sociais e que lhe deram seus primeiros seguidores via-se, discretamente pendurados nas paredes de seu gabinete, retratos dos generais que durante 22 anos perseguiram e torturaram seus dissidentes. Aumentou a aposta. Em 2016, com as pesquisas já a seu favor como possível presidente, disse que “o erro foi torturar e não matar”. No lugar de cair, se manteve. No final de julho já se atreveu a dizer abertamente que a ditadura foi “um período muito bom”.

Agora tem Mourão para dividir os holofotes na imprensa do escândalo provocado pelas declarações - é uma estratégia que escancara o extremismo, mas também garante uma exposição valiosa para uma dupla que terá pouquíssimo tempo no horário eleitoral gratuito. Nesta segunda, em seu primeiro compromisso oficial após se tornar o vice de Bolsonaro, o general da reserva repetiu, no Rio Grande do Sul, clichês preconceituosos e racistas sobre a história brasileira. “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, Edson Rosa [vereador negro presente na mesa], nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas”, declarou Mourão, promovido a expoente do populismo conservador eleitoral à brasileira.


El País: Com Haddad, passa-se do PT do grito ao da reflexão

Para um mundo em ebulição, são necessários novos líderes capazes de absorver as novas pulsões

Por Juan Arias, do El País

Quando Fernando Haddad era ministro da Educação me disseram numa visita a Brasília que era um bom ministro, mas não um “petista-raiz”, já que era mais um intelectual que um ativista. Agora que Lula parece tê-lo escolhido como seu sucessor, o PT poderia passar da política do grito à da reflexão. De uma esquerda tropical a uma esquerda europeia. Poderia tornar-se aquela que já foi a formação mais importante da velha esquerda no continente, um partido capaz de conviver com a verdade líquida da modernidade.

Haddad não poderia ser mais diferente de Lula, seja em seu caráter e peculiaridades quanto na sua biografia. Enquanto Lula se forjou no sindicalismo, que condicionaria fortemente o partido dele nascido, virando um líder carismático e popular sem outra formação senão a da vida, Haddad é um acadêmico, com vários diplomas, doutor em Filosofia, especialista em marxismo e com uma visão mais europeia que tropical da política.

Haddad não é um novo Lula mais jovem, como alguns do PT preferiam que fosse, para seguir a trajetória particular de seu líder que nunca foi posto em discussão desde sua fundação. Lula talvez tenha preferido, entretanto, que o selo que ele infundiu ao PT se acabe, e que agora se abra um novo ciclo em um partido em crise, porém ainda o mais estruturado de todos.

Haddad daria outra cara a um partido refundado, para escutar o que uma parte da sociedade exige da esquerda. Uma esquerda que seja capaz de dar expressão às exigências e necessidades de um mundo mais urbano que rural, e que impõe novos desafios trabalhistas criados para enfrentar as modernas tecnologias que estão revolucionando a organização do trabalho.

Para um mundo em ebulição, no qual entraram em crise todas as ideologias de esquerda e de direita, e no qual surge com força uma sociedade nova que rechaça as velhas tutelas, são necessários também novos líderes capazes de absorver e analisar essas novas pulsões. Capazes de apostar mais no hoje e no manhã do que num passado que só existe agora como nostalgia.

Não sabemos como acabará a crise do PT e de seu carismático líder Lula, um filme de incerteza que ainda pode oferecer todas as surpresas. O que é certo é que este primeiro passo de aceitar a possibilidade de um novo governo sem Lula, presidido por um político mais intelectual que eleitoreiro, significa uma revolução numa agremiação que, se voltar ao poder, não poderá mais usar os velhos modelos fisiológicos de governar.

Um partido que deverá abraçar o desafio de tentar ser de novo, embora desta vez de uma forma diferente, uma referência moderna e progressista de analisar e governar uma sociedade cada vez mais plural e mais alheia aos velhos dogmas, sejam religiosos ou políticos.

Conforme escreveu na Folha de S.Paulo Celso Rocha de Barros, doutor em Sociologia pela Universidade de Oxford, já se notou a mão do intelectual Haddad na preparação do atual programa de governo do PT: “Justiça seja feita, pela primeira vez desde 2015 o PT está se movendo intelectualmente. Ainda se move lentamente… Entretanto é admirável o esforço de Haddad para tirar o partido da ressaca”. Barros compara os novos documentos do PT de hoje, sob a responsabilidade de Haddad, com os anteriores, e comenta: “Quem viveu a miséria profunda de ler os documentos oficiais desde 2015 sabe como estavam cheios de populismo fiscal e revanchismo contra o Judiciário e a imprensa”.

É nos momentos mais obscuros de um país, nos que todos os horizontes parecem se fechar, que podem se abrir espaços de luz para que novos líderes tentem o que até ontem parecia impossível. Que o PT acerte com Haddad só pode beneficiar um país que exige, e com urgência, transformar uma política e uns partidos que ficaram rançosos e envelhecidos. Todos, sem exceção.


El País: Quanto vale cada vice na eleição mais pulverizada desde 1989

Analisamos as vantagens e desvantagens da fórmula das cinco principais candidaturas. Candidatos tiveram dificuldade de ampliar o escopo e ficaram com chapa "da casa". Só Bolsonaro não tem mulher na composição

Por Afonso Benites, do El País

Na eleição presidencial mais pulverizada desde 1989, os candidatos, em sua maioria e com exceção de Geraldo Alckmin (PSDB), tiveram dificuldade em fazer amplas alianças. A situação acabou se refletindo na escolha dos vices: eles atraem poucos novos votos ou acabam transitando no mesmo campo ideológico que o cabeça de chapa. Abaixo, uma análise das composições dos principais concorrentes à Presidência da República neste ano feita por dois cientistas políticos entrevistados pelo EL PAÍS: Flávia Biroli e Paulo César Nascimento, ambos professores da Universidade de Brasília. "Digamos que se Bolsonaro tivesse conseguido mobilizar uma mulher conservadora, talvez passasse uma mensagem ao eleitorado feminino de que há alguma abertura”, diz Biroli a respeito da dificuldade do candidato de extrema-direita com o eleitorado feminino. “O vice nem sempre busca agregar em votos, mas em alianças. O povão não está nem aí para o vice", pondera Nascimento.

Lula – Haddad – Manuela

Com seu candidato preso e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em segunda instância, o PT lançou uma chapa tripla, com uma espécie de candidatos virtuais. A primeira formação é com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva encabeçando, tendo como suplente o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Como a candidatura de Lula provavelmente será vetada pela Justiça por ele ter infringido a Lei da Ficha Limpa, Haddad assumiria a candidatura e a deputada estadual gaúcha Manuela D’ávila (PCdoB) passaria a ser a vice. A chapa ficou composta pelo PT, PCdoB, PROS e PCO.

Flávia Biroli – “O espaço do possível nessas eleições explica muita coisa. O PT não conseguiu ampliar suas alianças. Embora, pouco conhecida nacionalmente, a Manuela é uma política com grande potencial. Agrega como mulher jovem e dialoga com a base ideológica que é a mais forte do PT. Por outro lado, ela abre menos uma perspectiva desse eleitorado que já vota em Lula”.

Paulo César Nascimento – “Lula não quer perder o grande poder que ele tem sobre o PT. Por isso, estica ao máximo a definição do seu candidato real. Com a Manuela sendo plano B para a vice, amplia-se o tempo de TV e segura um partido de esquerda que estava querendo alçar voo próprio. Já o Haddad tem penetração em certos setores muito maior que o Lula. Ele é um intelectual, menos truculento, sem rabo preso. É uma pessoa que melhora a imagem do PT”.

Bolsonaro – Mourão
Jair Bolsonaro (PSL) tentou ter outro vice. Primeiro ouviu um não do senador Magno Malta (PR). Depois, do PRP, do general Augusto Heleno. Foi rejeitado pelo também general Hamilton Mourão (PRTB) e pela advogada Janaína Paschoal (PSL). Sondou o herdeiro da família real Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL), mas não se definiu por ele. E voltou a instituir no general Mourão, um defensor da ditadura militar que já chegou a defender uma intervenção militar no Brasil durante os anos de crise do Governo Dilma Rousseff. Acabou consolidando uma chapa puro sangue militar. A coligação abrange o PSL e o PRTB.

Flávia Biroli – “A escolha do general aponta para uma confirmação da identidade principal do candidato até esse momento na relação com o eleitorado. Ele não trouxe para vice alguém que permitisse ampliar o escopo do eleitorado. Pelo contrário. Digamos que ele tivesse conseguido mobilizar uma mulher conservadora, talvez passasse uma mensagem ao eleitorado feminino de que há alguma abertura”.

Paulo César Nascimento – “O Bolsonaro é um caso de desespero. A escolha pelo general Mourão tem como objetivo aumentar sua penetração nas Forças Armadas. E só. O fato de ele ter sido só capitão, não garantiria os votos da área militar. Com um general ajuda a fortalecer nesse sentido, mas também o enfraquece por não ter uma ampliação do leque”.

Marina – Eduardo Jorge
Com seu discurso de renovação da política, poucos recursos e uma bancada minúscula, a REDE reduziu a possibilidade de firmar alianças. Na reta final das convenções, a ex-senadora Marina Silva (REDE) conseguiu confirmar um vice, seu antigo colega no parlamento Eduardo Jorge (PV). Ambos já foram filiados ao PT e defendem causas ambientais. Além disso, a fundadora da REDE já concorreu ao Planalto pelo PV, em 2010, o que facilitou a aproximação com a legenda. A aliança envolve apenas REDE e PV.

Flávia Biroli – “O Eduardo Jorge é um ambientalista que, em alguns aspectos, tem uma trajetória diferente da de Marina Silva. Ele teve um papel importante na Câmara quando havia possibilidade de se avançar na descriminalização do aborto no Brasil. Hoje o PV é um partido conservador. E Eduardo não é. Ao mesmo tempo, ele também traz a mesma marca com perspectiva ambiental. É uma soma que mais reforça um pensamento do que amplia”.

Paulo César Nascimento – “Foi uma escolha razoável dado a falta de opção. Se ela ampliasse para alguém do Centrão, por exemplo, ela se desmoralizaria completamente. Ela tem essa coisa messiânica, pureza de ética, que teria essa dificuldade grande em ampliar. O PV consegue ampliar seu tempo de TV e reforça a ideia do ambientalismo”.

Ciro – Kátia Abreu
O ex-governador do Ceará e ex-ministro Ciro Gomes (PDT) paquerou um grupo de cinco partidos do centrão e dois da esquerda, PSB e PCdoB. Viu ao menos três balões de ensaio serem lançados como seus possíveis vices: Manuela D’ávila (PCdoB), Márcio Lacerda (PSB) e Benjamin Steinbruch (PP). Acabou caindo em uma armadilha feita pelo centrão, que decidiu apoiar Geraldo Alckmin (PSDB). E em outra arapuca armada pelo PT, mas que envolvia o PCdoB e o PSB. O primeiro se coligou com os petistas. O outro, fez um acordo de não agressão com Lula e decidiu não apoiar ninguém. Ciro ficou isolado e recorreu a uma solução caseira. Sua vice é a senadora tocantinense Kátia Abreu (PDT), que já recebeu o "prêmio de motosserra de ouro" da ONG Greenpeace por agir contra a ampliação de unidades de conservação ambiental e de terras indígenas pelo país. Ela é membro da bancada ruralista e já foi ministra da Agricultura de Dilma Rousseff (PT). A coligação tem PDT e AVANTE (antigo PTdoB).

Flávia Biroli – “A centro esquerda que vê o Ciro como alguém capaz de trazer um projeto de caráter social fica em dúvida sobre o significado de se ter Katia Abreu como vice por causa de sua relação com o ruralismo. Ela é uma política complexa. Tenho dúvidas de que ela seja um aceno para direita que não votaria em Ciro e acho que não é uma figura simpática para a centro esquerda”.

Paulo César Nascimento – “A Kátia Abreu não tem a retórica tão radical como a de Ciro. É ligada ao ruralismo e, ao mesmo tempo, se aproximou muito do PT. Talvez o favoreça para penetrar nesse eleitorado do agronegócio assim como para pescar nas águas do petismo”.

Alckmin – Ana Amélia
Ao patinar nas pesquisas eleitorais e enfrentar resistências internas – alguns de seus correligionários queriam trocar sua candidatura pela de João Doria – o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) conseguiu se firmar como o concorrente com a maior coligação nacional possível. São nove partidos juntos. Sua dificuldade nas últimas semanas foi a de escolher o seu vice. Ouviu um não do empresário Josué Alencar (PR) e tentou encontrar algum nome de peso na região Nordeste. Não conseguiu e optou pela senadora gaúcha Ana Amélia Lemos (PP). Ter uma postura conservadora, ser mulher e ligada ao agronegócio pesou na escolha. A coligação ficou assim: PSDB, PP, PR, PRB, DEM, SD, PPS, PSD e PTB.

Flávia Biroli – “O Alckmin apontou para o Rio Grande do Sul que é um Estado que tem se mostrado bastante conservador em suas intenções de voto recentemente. A disputa dele é sobretudo com Bolsonaro. Por isso escolheu uma mulher conservadora para tentar virar os votos do Bolsonaro. Podem dizer que ele não está preocupado com Norte e Nordeste, mas vários políticos de sua coligação são de lá. E isso pode ajudá-lo, desde que se empenhem na campanha”.

Paulo César Nascimento – “O vice nem sempre busca agregar em votos, mas em alianças. O povão não está nem aí para o vice. O candidato também se importa mais em ganhar tempo de TV e recursos. É esse o movimento feito pelo PSDB, pela escolha da Ana Amélia. Acredito que poderia deter o avanço do Álvaro Dias (PODEMOS) na região Sul e agregar também do lado do agronegócio e por ser mulher”.

DISPUTA REGISTRA O MAIOR NÚMERO DE CANDIDATOS DESDE 1989
Ao todo, há 13 candidaturas ao Palácio do Planalto. É o maior número de concorrentes desde 1989, quando houve 22 candidatos à Presidência da República. Além dessas cinco principais, ainda disputam o pleito as seguintes coligações:

- Álvaro Dias (PODEMOS) e Paulo Rabello de Castro (PSC);

- Guilherme Boulos (PSOL) e Sonia Guajajara (PSOL);

- Henrique Meirelles (MDB) e Germano Rigotto (MDB);

- João Amoêdo (NOVO) e Christian Lohbauer (NOVO);

- Cabo Daciolo (PATRIOTA) e Sulene Nascimento (PATRIOTA);

- José Maria Eymael (DC) e Helvio Costa (DC);

- João Vicente Goulart (PPL) e Léo Alves (PPL);

- Vera Lúcia (PSTU) e Hertz Dias (PSTU).