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El País: Empate quádruplo em 2º lugar e pouco efeito para Bolsonaro após ataque, diz Datafolha

Esta é a primeira pesquisa do instituto que não traz nenhum cenário com o ex-presidente Lula. Ciro Gomes (13%), Marina Silva (11%), Geraldo Alckmin (10%) e Haddad (9%) tecnicamente empatados

Por Rodolfo Borges, do El País

A primeira pesquisa Datafolha divulgada após o atentado ao deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), na última quinta-feira, mostra uma pequena oscilação positiva para o candidato do PSL à presidência da República, de 22% para 24%, dentro da margem de erro, de 2 pontos para mais ou para menos. Quem apresentou maior oscilação positiva foi o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), que tinha 4% e, agora, aparece com 9% — a expectativa é de que sua candidatura seja oficializada em substituição à do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta terça-feira.

O ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) teve o segundo melhor desempenho: saiu de 10% para 13%. Já o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) teve oscilação modesta, de 9% para 10%. O pior cenário é o da ex-ministra Marina Silva (Rede), que tinha 16% na última pesquisa e agora aparece com 11%. A queda de Marina foi mais acentuada entre as mulheres, passando de 19% para 12%. Já Bolsonaro aumentou sua popularidade entre o público feminino, com oscilação de 14% para 17%.

Essa é a primeira pesquisa Datafolha que não inclui o nome do ex-presidente Lula, cuja candidatura foi barrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O levantamento divulgado nesta segunda-feira — e pesquisado também nesta segunda-feira, com perguntas a 2.804 pessoas — chegou a ser adiado por conta das dúvidas em relação às formalidades decorrentes da decisão do TSE em relação Lula. Boa parte da expectativa em relação a essa pesquisa estava depositada no efeito da comoção causada pelo ataque a faca a Bolsonaro. O deputado não apenas oscilou pouco positivamente como sua rejeição subiu de 39% para 43%.

A segunda candidata mais rejeitada da pesquisa é Marina Silva, com 29% — antes era 25%. Outra rejeição que oscilou para cima foi a de Haddad, de 21% para 22%. Alckmin teve queda na rejeição, de 26% para 24%, assim como Ciro, que deixou o patamar de 23% para o de 20%. A pesquisa também mostra uma queda na taxa de indecisos, de 22% para 15%. O segundo pelotão tem o senador Alvaro Dias (Podemos-PR), o ex-ministro Henrique Meirelles (MDB) e João Amoêdo (Novo) com 3%. O restante dos deputados não soma mais de 1% cada.

Nos cenários de segundo turno, Bolsonaro não tem vida fácil contra nenhum adversário, e teria chance de vitória apenas contra Haddad. Os dois aparecem tecnicamente empatados: 39% para o petista e 38% para o deputado do PSL. Bolsonaro perderia para Marina (por 43% a 37%), Alckmin (43% a 34%) e Ciro (45% a 35%). Ciro ganharia em todos os outros cenários pesquisados: de Alckmin (39% a 35%) e Marina (41% a 35%).

OS PRINCIPAIS NÚMEROS DA PESQUISA

Intenção de voto

(Entre parênteses o índice de cada candidato na pesquisa anterior, aplicada entre os dias 20 e 21/08)

Jair Bolsonaro (PSL): 24% (22%)

Ciro Gomes (PDT): 13% (10%)

Marina Silva (Rede): 11% (16%)

Geraldo Alckmin (PSDB): 10% (9%)

Fernando Haddad (PT): 9% (4%)

Alvaro Dias (Podemos): 3% (4%)

João Amoêdo (Novo): 3% (2%)

Henrique Meirelles (MDB): 3% (2%)

Guilherme Boulos (PSOL): 1% (1%)

Cabo Daciolo (Patriota): 1% (1%)

Vera (PSTU): 1% (1%)

João Goulart Filho (PPL): 0% (1%)

Eymael (DC): 0% (0%)

Branco/nulos: 15% (22%)

Não sabe: 7% (6%)

 

Rejeição dos candidatos

Jair Bolsonaro (PSL): 43% (39%)

Marina Silva (Rede): 29% (25%)

Geraldo Alckmin (PSDB): 24% (26%)

Ciro Gomes (PDT): 20% (23%)

Fernando Haddad (PT): 22% (21%)

Rejeita todos/não votaria em nenhum: 5%

Poderia votar em todos: 1%

Não sabe/não respondeu: 10%


Eliane Brum: Profissionais da violência

A reação de Mourão, o vice “faca na caveira” de Bolsonaro, aponta como o Brasil será governado em caso de vitória da chapa de extrema direita

“Se querem usar a violência, os profissionais da violência somos nós”. A frase é do general Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL). Foi dita à revista Crusoé, após o ataque à faca contra o candidato na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em 6 de setembro. É uma frase para se prestar toda atenção.

Os vices com frequência têm chegado à presidência no Brasil. Mas o mais importante é o que a declaração nos conta sobre a chapa que, sem Lula, está em primeiro lugar nas intenções de voto para a disputa presidencial das eleições de outubro. O que significa um candidato a vice-presidente se anunciar como “nós” e como “profissional da violência” num momento de tanta gravidade para o Brasil?

Abalado pela brutalidade do episódio, Mourão poderia ter escolhido pelo menos duas variações que mudariam a intenção: “os profissionais da segurança” ou “os profissionais da proteção”. Palavras como segurança e proteção levariam à ideia de amparo e de defesa —e não à ideia de ataque, de retaliação e de confronto. Mas não. Mourão usou um “nós”— e usou “profissionais da violência”. Ao ser perguntado quem era o “nós”, o general disse que se referia “aos militares e ao uso da força pelo Estado”.

Mourão declarou ainda: “Eu não acho, eu tenho certeza: o autor do atentado é do PT”. No mesmo dia, o presidente do PSL, Gustavo Bebianno, afirmou ao jornal Folha de S. Paulo: “A guerra está declarada”.

Mourão trata as Forças Armadas do Brasil como se fossem sua milícia pessoal

É bastante revelador que um general da reserva, hoje político e candidato, se considere no direito de falar em nome do Estado, em plena campanha eleitoral para se tornar governo. A declaração de Mourão mostra que ele acredita falar pelos militares, como se os representasse e os comandasse. E como se os militares fossem uma força autônoma, uma espécie de milícia de Bolsonaro e de Mourão. E não o que a Constituição determina: uma instituição do Estado, paga com recursos públicos, subordinada ao presidente da República.

Ao fazer essa declaração, Mourão trata as Forças Armadas como se fossem a sua gangue e o país como se fosse a sua caserna. Alguém machucou o meu amigo? Vou ali chamar a minha turma para descer o cacete. E faz isso na condição de político e de candidato, como se o processo democrático fosse apenas uma burocracia pela qual é preciso passar, mas que pode ser atropelada caso se torne inconveniente demais.

Mais tarde, Mourão baixaria o tom, segundo ele a pedido do próprio Jair Bolsonaro. Uma orientação curiosa para um candidato que divulgou uma foto sua na cama do hospital fazendo com as mãos o sinal de atirar. No dia seguinte à agressão, durante entrevista à Globo News, o vice de Bolsonaro afirmou que, em caso hipotético de “anarquia”, pode haver um “autogolpe” do presidente, com o apoio das Forças Armadas.

Ao comentar a convocação à violência por ele e outras pessoas da campanha, Mourão afirmou: “Realmente subiu um pouco o tom (no início), mas temos que baixar, porque não é caso de guerra”. Disse ainda que, se forem eleitos, vão “governar para todos, e não apenas para pequenos grupos”.

Diante da crise, aquele que quer ser vice-presidente do Brasil bota gasolina na fogueira que deveria conter

As declarações do vice de Bolsonaro no primeiro momento dão pelo menos duas informações sobre ele que vale a pena registrar. Mourão decide baixar o tom depois de elevar (muito) o tom. Poderia se pensar se é esse tipo de reação passional que se espera de um general, uma pessoa numa posição de comando ocupando o posto máximo da hierarquia do Exército, cujas ordens podem afetar milhares de vidas humanas. Pela trajetória de Mourão, a dificuldade de agir com racionalidade em momentos de tensão não parece ter afetado a sua carreira.

Neste momento, porém, Mourão é um político e candidato a vice-presidente. Diante da crise, representada pela agressão a Bolsonaro, aquele que quer ser vice-presidente do Brasil explode, confunde o seu lugar e o lugar das Forças Armadas, e bota gasolina na fogueira que deveria conter. E deveria conter não apenas por ser candidato, mas por responsabilidade de cidadão.

É importante que Mourão tenha finalmente entendido que não se trata de uma guerra e tenha parado de encontrar inimigos entre as faces da população. Mas as declarações irresponsáveis já produziram um efeito cujas consequências são difíceis de prever. Como ele mesmo lembrou, “há um velho ditado que diz: as palavras, quando saem da boca, não voltam mais”.

Como governarão, com sua lógica de guerra, na qual o inimigo não é outro exército, mas a parte da população que discorda deles?

O que Mourão faria com poder real diante das tantas crises que esperam um governante? Como governará essa dupla, caso eleita, um que invoca mais violência em palavras e outro que, recém operado após sofrer uma agressão, faz sinal de atirar? Como governarão, com sua lógica de guerra, na qual o inimigo não é outro exército, mas a parte da população que discorda deles?

A segunda informação que emerge das declarações é a rapidez e a leviandade com que Mourão julga e condena. De imediato ele responsabilizou o PT pela agressão à faca. Não havia —e não há— um único indício de que o autor da facada tenha qualquer ligação com o PT ou faça parte de um plano do partido. Adelio Bispo de Oliveira afirma ter agido sozinho e “a mando de Deus”. Declarar publicamente uma “fake news” ou mentira, num momento de tanta gravidade para o país, também pode ter consequências imprevisíveis. Não adianta voltar atrás depois de ter afirmado uma mentira como “certeza” justamente na hora em que os ânimos estavam mais acirrados.

É importante observar como esse protagonista se comporta diante da crise, já que governar um país é lidar com várias crises todos os dias. Se sem poder de governo ele encontra culpados, para além do culpado que já está preso, e invoca publicamente a violência como reação imediata, o que fará caso tenha poder de governo e a possibilidade de convocar o que Mourão chama de “profissionais da violência” e a Constituição chama de “Forças Armadas”? Se, quando precisam convencer eleitores de que são a melhor escolha, os homens de Bolsonaro invocam a guerra dentro do próprio país, o que farão quando já não precisarem convencer ninguém?

É importante observar o que dizem quando já não são capazes de se conter

É importante observar que não conseguem refrear seus instintos nas horas mais duras, mas também é importante acreditar no que dizem quando não são capazes de se conter. Tanto Bolsonaro quanto Mourão têm se esforçado para mostrar que são “profissionais da violência”. Ao pregarem que a população deve se armar, como se esta fosse a melhor estratégia para enfrentar a questão da segurança, é assim que se apresentam.

As declarações contra as mulheres, contra os negros, contra os indígenas e contra os LGBTs também são um exercício da violência que revela uma visão de mundo e a fortalece entre aqueles que dela comungam. Semanas atrás, Mourão chamou os negros de malandros e os indígenas de indolentes. Desta afirmação que saiu da sua boca ele não se arrepende. Como disse Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do candidato: “Tem que botar um cara faca na caveira para ser vice”. Botaram.

No dia seguinte ao atentado, quando segundo ele mesmo o tom deveria baixar, o vice de Bolsonaro enalteceu o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais notórios torturadores e assassinos da ditadura civil-militar (1964-85). “Os heróis matam”, justificou ele na TV.

Sempre vale lembrar ao menos um episódio entre as tantas mortes e torturas ordenadas ou executadas pelo “herói” de Bolsonaro e de Mourão. O torturador Ustra levou os filhos de Amélia Teles, presa nos porões do regime, para que vissem a mãe torturada. Amelinha, como é mais conhecida, estava nua, vomitada e urinada. Seus filhos tinham quatro e cinco anos. A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. A mãe estava azul por causa dos choques elétricos infligidos em várias partes do seu corpo e também nos seios e na vagina. Este é o farol de Bolsonaro e Mourão, em primeiro lugar nas pesquisas para a presidência do Brasil, o que diz bastante também sobre os eleitores.

Armar-se é uma das principais plataformas da campanha de Bolsonaro-Mourão, o capitão da reserva e o general da reserva. E é preciso levá-los a sério. Não só porque Bolsonaro e Mourão lideram as intenções de voto, mas porque é legítimo que os eleitores queiram votar em “profissionais da violência” para governar o Brasil. É possível discordar de quem aposta em “profissionais da violência”, mas o direito de escolher uma pessoa que invoca a violência é legítimo numa democracia.

Há muita gente clamando por “civilização” contra o que nomeiam de “barbárie” que atravessa o Brasil, às vésperas de uma eleição em que o candidato em primeiro lugar nas pesquisas está na prisão e é proibido pelo judiciário de se candidatar e o candidato em segundo lugar leva um facada durante um evento de campanha e precisa passar por uma cirurgia.

Mas o que chamamos de civilização tem sido sustentado pela barbárie cotidiana contra os negros e os indígenas. A civilização sempre foi para poucos. A novidade que uma chapa Bolsonaro-Mourão apresenta é a suspensão de qualquer ilusão. Não é por acaso que alicerçam sua prática antiga, tão velha quanto o Brasil, nas redes sociais, o espaço onde toda a possibilidade de mediação foi rompida e os bandos se fecham em si mesmos, rosnando para todos os outros.

A barbárie dos “profissionais da violência” sempre sustentou a civilização de uns poucos. O que Bolsonaro e Mourão dizem, como “profissionais da violência” que são, é que já não é preciso fazer de conta. Neste sentido, rompem o mesmo limite que a internet rompeu, ao tornar possível que tudo fosse dito. E também ao dar um valor ao dizer tudo, mesmo que este tudo seja o que nunca deveria poder ser dito, já que é necessário um pacto mínimo para a convivência coletiva e o compartilhamento do espaço público.

A barbárie dos “profissionais da violência” sempre sustentou a civilização de uns poucos

Ao representar a velha boçalidade do mal expressada na novidade das redes, Bolsonaro-Mourão são os representantes mais atuais deste momento. Eles sabem que a guerra não existe no Brasil. O que sempre existiu foi o massacre. São os mesmos de sempre que continuam morrendo, como os camponeses de Anapu nas mãos dos pistoleiros da grilagem e as crianças das comunidades do Rio em cujas cabeças as balas explodem.

Ao inventarem uma guerra para encobrir o massacre, Bolsonaro e Mourão inventam também a ideia de que as armas serão iguais e acessíveis para todos, bastando para isso o “mérito” de passar em eventuais testes e o “mérito” de ser capaz de pagar pelas melhores. Conheceremos então o discurso da meritocracia aplicado às armas.

Bolsonaro e Mourão sabem muito bem que não haverá igualdade ao armar a população. Se Bolsonaro, o “profissional da violência”, teve alguma sorte na tragédia, é a de que Adélio Bispo de Oliveira era um amador e era pobre. Ele tinha apenas uma faca e nenhum plano para depois. Se ele fosse um “profissional da violência” como Mourão, Bolsonaro não teria tido a chance de fazer o gesto de atirar na cama do hospital, depois de ser salvo pelo SUS, sistema público de saúde que ele não se esforça para defender.

A sorte de Bolsonaro, o “profissional da violência”, é o fato de Bispo ser um amador

Marielle Franco, a vereadora do Rio pelo PSOL, não teve esta sorte. Seus assassinos arrebentaram sua cabeça com arma de alto calibre e uso restrito e até hoje, seis meses depois, não se conhece nem a identidade do executor nem a do mandante. Negra, lésbica e favelada, Marielle está no lado dos que morrem e cujas mortes permanecem impunes. Marielle está no lado dos massacrados, não dos que massacram.

Mas não é sorte o que Bolsonaro teve ao ser atacado por um amador. Tanto ele quanto Mourão sabem o que dizem quando reivindicam serem “os profissionais da violência”. Eles são. Resta saber se a verdade da maioria dos brasileiros é também esta: a de desejar profissionais da violência comandando o país onde vivem.

Se a maioria dos brasileiros mostrar nas urnas que quer esse tipo de político no poder, então é isso que escolheram. Faz parte do processo democrático que as pessoas se responsabilizem por suas escolhas e as consequências que delas resultam. Se você chama “profissionais da violência” para comandar o país onde você e sua família vivem, você deve saber o que terá.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Oliver Stuenkel: Alinhamento com Trump enfraqueceria posição do Brasil no mundo

Estratégia de política externa de Bolsonaro representa graves riscos para o país

Com a campanha presidencial mais dramática e imprevisível desde 1989, agora entrando em sua reta final, as propostas de política externa de cada candidato ainda recebem pouca atenção do eleitor. Isso é um erro. A política internacional impacta muito mais a vida da população do que a maioria dos brasileiros tem a oportunidade de observar. Há implicações diretas, que vão desde a economia e a segurança pública até o combate à corrupção e a mudança global do clima.

As propostas de política externa do candidato Jair Bolsonaro, líder nas pesquisas, merecem atenção especial por várias razões. Presidentes costumam enfrentar muitas restrições no âmbito doméstico e ter mais liberdade na política externa, sobretudo quando seus projetos internos dão errado —uma possibilidade real no caso de Bolsonaro, cujo partido tem pouca representação no Congresso—. Isso se agrava pelo fato de que Bolsonaro não se verá limitado pela longa tradição da política externa brasileira —muito pelo contrário, sua identidade política é construída sobre a narrativa da mudança radical. Além disso, o PSL não tem uma ideologia de política externa pré-estabelecida dentro da qual Bolsonaro terá que operar.

Na frente econômica, Bolsonaro propõe um amplo programa de liberalização, reduzindo as barreiras comerciais, reduzindo subsídios, acelerando negociações comerciais e privatizando empresas estatais. No entanto, como ressalta Matias Spektor, pouco indica que Bolsonaro será capaz de construir as alianças necessárias para enfrentar poderosos grupos de interesse que atualmente se beneficiam de subsídios e de uma economia protegida —como, por exemplo, a indústria automobilística brasileira.

Em recente entrevista à Globonews, seu vice, o general Hamilton Mourão, prometeu escolher as pessoas mais qualificadas para liderar cada ministério, assegurando que Bolsonaro romperia com a prática tradicional de distribuição de cargos entre os partidos aliados, marca registrada do presidencialismo de coalizão. Nem Bolsonaro nem seu vice apresentaram um plano crível até agora sobre como superar o velho sistema dominado pelo lobby de segmentos privilegiados da sociedade. Como Bolsonaro também promete adotar uma postura mais dura em relação a investimentos chineses —não necessariamente uma má ideia—, industriais apelarão ao instinto nacionalista de Bolsonaro, evocando a ameaça chinesa na hora de pedir proteção especial.

Na frente geopolítica, o candidato tem simpatia por Donald Trump e promete alinhar as posições do Brasil com as dos Estados Unidos. Isso pode ser inteligente do ponto de vista eleitoral, já que muitos adeptos de Bolsonaro também são fãs de Trump. Mas é uma proposta arriscada por duas razões. Em primeiro lugar, Bolsonaro propõe a liberalização econômica, enquanto Trump adotou a estratégia oposta. Se o assessor econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, defende a privatização das estatais e a globalização, Trump, por sua vez, tem ojeriza ao livre comércio.

Em segundo lugar, a política externa dos Estados Unidos sob Trump é errática e imprevisível, e os países mais prejudicados são os tradicionais aliados, como México, Canadá, Alemanha e Japão. Querer se aproximar de Washington neste cenário é quixotesco e cheio de riscos. O governo dos EUA de Trump não é um aliado confiável. Renega tratados que negociou (como o Acordo Nuclear com o Irã) e mostra-se ambíguo em relação a pilares da ordem global, como o Artigo 5 da OTAN, o qual prevê que um ataque armado contra um país membro será considerado uma agressão contra todos, para ficar em dois exemplos apenas.

Como Trump, Bolsonaro tentará reduzir os compromissos internacionais do Brasil no combate à mudança do clima e no âmbito dos direitos humanos. Os eleitores de Bolsonaro o aplaudem. Para muitos deles, as instituições internacionais, e a ONU em particular, são vistas como ameaças ao interesse nacional —ou uma “conspiração socialista global”, como um eleitor de Bolsonaro a descreveu para mim recentemente.

No entanto, se o impacto para os Estados Unidos, que pode oferecer garantias militares e acesso a um grande mercado de consumidores, for negativo, a adoção de uma posição semelhante no Brasil teria consequências devastadoras para o país. Afinal, a reputação brasileira baseia-se em grande parte em seu papel construtivo no apoio das regras e normas, cruciais para a comunidade internacional enfrentar os desafios globais mais urgentes. A retirada do Brasil dos debates sobre direitos humanos e mudanças climáticas teria péssimo impacto em sua relação com outros países, sobretudo da América Latina e da Europa.

Mas há espaço para alguma esperança. Diferentemente de outros ministérios, o Itamaraty não pode ser tão facilmente aparelhado com seguidores leais ao presidente. Diplomatas poderiam tentar empurrar com a barriga iniciativas problemáticas até a presidência de Bolsonaro passar. Da mesma forma, os crescentes problemas internos de Trump e o espectro de um impeachment nos Estados Unidos podem ajudar a convencer Bolsonaro, se eleito, de que o alinhamento automático com Washington é uma aposta arriscada em uma ordem mundial cada vez mais centrada na Ásia do século XXI.


El País: Com impugnações e denúncias, Justiça disputa protagonismo na eleição

Após TSE barrar candidatura de Lula, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad viram alvo de processos. Reformas mal calculadas e ativismo judicial alimentam destaque assumido por juízes e promotores

Por Rodolfo Borges, do El País

A Operação Lava Jato dá as cartas na política nacional desde 2014. E não será nas eleições deste ano que a Justiça brasileira recuará para contemplar o jogo político. O Ministério Público estadual de São Paulo (MP-SP) apresentou na semana que passou uma ação por improbidade administrativa contra o ex-governador e candidato à presidência da República Geraldo Alckmin (PSDB). Dois dias antes, o ex-prefeito Fernando Haddad (PT), que deve assumir a candidatura do PT ao Palácio do Planalto após o Tribunal Superior eleitoral (TSE) barrar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, foi denunciado pelo mesmo MP-SP por corrupção. Essas são apenas algumas das candidaturas que sofrem influência por decisões de juízes e promotores durante um processo eleitoral cheio de incertezas legais — as dúvidas levaram até ao adiamento e cancelamento de pesquisas dos dois maiores institutos do país.

"A percepção dos juízes e procuradores é de que a política brasileira está em situação de putrefação e de que cabe a eles a missão de salvação. A judicialização vem aumentando nos últimos 33 anos, desde 1985. O que aconteceu neste último período, mais intenso em matéria de escândalos, levou a esse momento em que se denuncia dois candidatos com estardalhaço no meio da eleição", analisa  Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV Direito São Paulo.

Se causa enorme impacto no noticiário, a agenda da Justiça tem reflexos discrepantes na preferência eleitoral. Muitos analistas atribuem à exposição da corrupção, especialmente pela Lava Jato nos últimos anos, um sentimento de rejeição à classe política em geral e a busca por outsiders e isso afeta o quadro geral da corrida. Por outro lado, as condenações, se podem tirar um nome das urnas por causa da Lei da Ficha Limpa, não são testamento de decadência política nas pesquisas. O caso mais evidente é a liderança na corrida ao Planalto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro e impedido de concorrer de fato ao cargo. Salvo Lula e o ex-governador Anthony Garotinho (PRP), que corre o risco de sair da corrida para reassumir o Governo do Rio de Janeiro após ser condenado em segunda instância pelo crime de formação de quadrilha, outros acusados e até réus em casos de corrupção e na Lava Jato não tem maiores constrangimentos em candidaturas. O senador Renan Calheiros, por exemplo, responde no Supremo Tribunal Federal a 14 inquéritos ligados a investigações da Lava Jato e Zelotes. Ele também é réu em uma ação penal em que é acusado de verbas de sua cota parlamentar. Renan afirma, no entanto, que é inocente e tentará, neste ano, a reeleição ao Senado.

Os casos de Alckmin e Haddad, por exemplo, não têm potencial tão drástico, mas são munição para arranhar a imagem dos candidatos nesta eleição, assim como o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a acusação de racismo contra o deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), interrompido pelo ministro Alexandre de Moraes e que deve ser retomado nesta terça. Outro que passou por constrangimento por questões judiciais é o ex-prefeito de São Paulo João Doria (PSDB), que teve os direitos políticos suspensos no fim de agosto pela 11ª Vara da Fazenda Pública da Justiça, em São Paulo. A decisão não impede Doria de disputar o Governo de São Paulo, já que ele pode recorrer à segunda instância, mas o obrigou a se explicar. “Sem dúvida, temos uma eleição especial, com esse protagonismo judicial. Mas isso transcende o fenômeno eleitoral. O protagonismo judicial é muito grande em todas as áreas, principalmente na política”, diz o advogado Ricardo Penteado, responsável pela coordenação jurídica das campanhas de Alckmin e do governador de São Paulo, Márcio França (PTB), à reeleição. Segundo Penteado, que atua em pleitos desde 1989, o país tem “concedido uma licença muito grande ao Judiciário para que proveja desejos nacionais que deveriam ser atendidos pelos processos políticos”.

Crítico da Lei da Ficha Limpa, que ele considera "uma interdição da vontade do eleitor", o advogado diz que o Brasil vem emendando a lei eleitoral de forma incoerente. A última mudança foi o encurtamento do período de campanha, que não levou em consideração o prazo para o julgamento das candidaturas. Antes, o pedido de registro era feito em julho. Neste ano, os candidatos tiveram até 15 de agosto para se inscrever, uma dia antes do início da campanha. "Só isso já causa uma judicialização, mas ainda se soma a uma cultura do Judiciário de implementar projetos políticos", critica Penteado.

Denúncias

Na semana passada, após a convocação de uma entrevista coletiva pelo promotor Ricardo Manuel Castro, a campanha de Alckmin divulgou uma nota para criticar a "reprovável manifestação que o promotor pretendia fazer, a um mês das eleições, no anúncio da abertura da ação ‘contando com a presença do maior número de colegas". O MP-SP dizia no convite para a entrevista — posteriormente cancelada sem explicação — que seria "a primeira e última vez que o promotor vai se manifestar sobre o caso, que está sob sigilo". Na ação, Castro acusa Alckmin de ter recebido 7,8 milhões de reais da Odebrecht por meio de caixa 2 para campanhas. A campanha tucana reagiu: "Para além do barulho almejado pelo promotor, não há fato novo, apenas uma conclusão equivocada e um comportamento inusual. O promotor, inexplicavelmente, sugere algo que não existe e que jamais alguém tenha sequer cogitado, nem mesmo os ditos delatores".

A nota de Alckmin diz ainda que "causa preocupação que o promotor responsável pela peça, conforme noticiado pela imprensa, tenha buscado engajar colegas da instituição em uma espécie de desagravo público". O tom é parecido com o da assessoria de imprensa de Fernando Haddad (PT) em relação à denúncia de corrupção feita pelo promotor Marcelo Mendroni na segunda-feira. "Surpreende que, no período eleitoral, uma narrativa do empresário Ricardo Pessoa, da UTC, sem qualquer prova, fundamente três ações propostas pelo Ministério Público de São Paulo, contra o ex-prefeito e candidato a vice-presidente da República, Fernando Haddad", diz a nota. O promotor acusa Haddad de receber 2,6 milhões de reais em propina da empreiteira UTC — o dinheiro seria usado para pagar dívidas da campanha de 2012 à prefeitura de São Paulo e, segundo a denúncia, foi pago pelo doleiro Alberto Youssef por meio de contratos firmados com três gráficas.

Outro que é acompanhando de perto pela Justiça durante a campanha é o ex-governador do Paraná Beto Richa (PSDB). Nesta quarta-feira, a força-tarefa da Lava Jato denunciou seu ex-chefe de gabinete Deonilson Roldo, entre outras 10 pessoas, por desvios na exploração e duplicação de uma rodovia. O juiz Sergio Moro já aceitou a denúncia. O Ministério Público Eleitoral no Paraná pediu a cassação da candidatura de Richa ao Senado, além de outras 41 candidaturas. No caso do ex-governador, o problema é uma condenação por improbidade administrativa no Tribunal de Justiça do Paraná por conta de verba usada irregularmente durante viagem a Paris em 2015. No tumultuado clima eleitoral, circulam ainda rumores sobre novidades em relação à delação do ex-ministro Antonio Palocci, homologada pelo TRF-4 em junho.

Reformas

Para o deputado federal Wadih Damous (PT-RJ), uma das vozes mais contundentes entre os petistas na defesa de Lula, os poderes Executivo e Legislativo se desmoralizaram, o que permitiu o crescimento do Judiciário, "que aparece para a população como isento e imparcial e acaba por usurpar funções da política na base da chantagem e da intimidação". Candidato à reeleição, Damous diz que a aprovação da Lei da Ficha Limpa — que tem o poder de bloquear uma candidatura antes do último recurso no STF — mostrou o despreparo do Congresso Nacional. Ele defende a imposição de uma "contenção ao abuso do poder Judiciário e do Ministério Público" por meio da aprovação de uma lei de abuso de autoridade e da readequação do papel do sistema de Justiça, que teria adquirido uma autonomia exacerbada.

É por isso que Sundfeld, da FGV, prevê "enorme tensão" na matéria para o próximo Governo, independentemente de quem vença o pleito para o Planalto. A postura do Judiciário e do Ministério Público nos últimos anos fez que os políticos e o mundo da gestão pública e empresarial formassem um consenso de que estamos no limite de um processo de ruptura com o mundo jurídico brasileiro”. Para Sundfeld, o próximo Governo não escapa de propor algo mais equilibrado do que a proposta de lei de abuso de autoridade, que "era mais um desaforo do que um processo de reforma". "O tema estará entre as pautas centrais do próximo Governo", aposta.


El País: “Ataque ajudará Bolsonaro a chegar perto de seu teto eleitoral, em torno de 26%”, diz Andrei Roman

Análise de  Andrei Roman, diretor-executivo do Atlas Político, prevê Marina ou Haddad contra deputado no segundo turno. "Marina poderia ter um discurso mais claro sobre o legado petista"

Por Flávia Marreiro, do El País

O giro dramático da campanha com o ataque a faca a Jair Bolsonaro deve empurrar o candidato ultradireitista do PSL rumo a seu teto eleitoral, em torno de 26%. A análise é do cientista político Andrei Roman, diretor-executivo da consultoria Atlas Político. No outro lado do espectro político, Roman vê um potencial de crescimento para Marina Silva e para Fernando Haddad — nos dois casos com essa tendência se acelerando perto da reta final da campanha. Sobre o tucano Geraldo Alckmin, é mais cético: "Não adianta você ter todo tempo do mundo se a sua estratégia de comunicação está errada ou se ela simplesmente não consegue superar as maiores vulnerabilidades da persona do candidato."

Pergunta. A esta altura já foi dito e repetido que o atentado a Bolsonaro muda a história da campanha e obriga os candidatos a repensar estratégias. Mas dá para dizer isso em cifras nas pesquisas? Quanto ele pode crescer?

Resposta. A nossa leitura é que vai ajudar Bolsonaro a chegar perto do melhor cenário possível projetado para ele e prejudica praticamente todos os outros candidatos. Ele vai conseguir alguma transferência de votos de quase todos. Quanto ele pode crescer? Nossa visão é que pode chegar em torno de 26%, esse é o teto. Dizemos isso com base num relatório que fizemos há 15 dias, no qual analisamos o potencial de crescimento dos candidatos e de onde poderiam vir esses votos. Na análise que fizemos, há potencial de transferência para Bolsonaro de todos os candidatos, com exceção de Boulos. A parcela de eleitores que ele poderia ganhar vai de 8% do eleitorado do Ciro Gomes até 18% do eleitorado do João Amoêdo. Claro, é possível que novos dados mostrem uma alteração neste quadro, mas por enquanto essa análise é baseada nos dados que temos acumulado até agora.

P. A expectativa é que os adversários deem uma trégua nos anúncios com críticas a Bolsonaro, mas é difícil que a estratégia seja abandonada completamente até o final. Você acredita que os adversários, especialmente Alckmin, ainda podem desconstruir na TV o deputado ou ele tem uma base coesa o suficiente que o segura num patamar de possível segundo turno?

R. Os adversários estão conseguindo desconstruir o Bolsonaro para certos segmentos do eleitorado e não para outros. Tanto é que, ao mesmo tempo que a rejeição dele está crescendo, ele também continua crescendo em termos de intenção de voto. A polarização em torno do nome dele favorece as chances de Bolsonaro chegar ao segundo turno, mas prejudica as chances de vitória dele nesse eventual segundo turno. Claro, com esse atentado, as chances dele num eventual segundo turno melhoraram, mas mesmo assim a maior chance de ganhar será do adversário que ele for enfrentar.

P. Muitos analistas apostavam na desidratação do Bolsonaro por causa da TV. Quanto ele poderia murchar, se não tivesse havido o atentado?

R. Ao meu ver, Bolsonaro tem um piso firme de em torno de 15% do eleitorado, o que é muito próximo do que ele precisa neste momento para chegar no segundo turno. No Atlas Tracking tem uma pergunta especialmente útil para medir o piso eleitoral do Bolsonaro: “Você é a favor de um golpe militar em vez da organização de eleições presidenciais?” Em média, 15% do eleitorado brasileiro responde "sim" para essa pergunta.

P. O Atlas Político tem feito pesquisas diárias, com recrutamento de entrevistados pela Internet. Na fotografia de agora, que é precária, ainda dá para cravar um cenário mais provável de segundo turno?

R. Se você for olhar somente pela média das últimas pesquisas, sejam elas do Atlas ou de outros institutos, Jair Bolsonaro e Marina Silva teriam as melhores chances neste momento. Mas, obviamente, isso não levaria em consideração a principal variável dessa campanha olhando para a frente: a tentativa do PT de transferir os votos de Lula para Fernando Haddad. Haddad é ainda muito pouco conhecido pelo eleitorado lulista. Na medida em que esses eleitores entendem que Lula não será candidato e que o candidato apoiado por ele é o Haddad, é possível que Haddad chegue a ultrapassar a Marina. Então os cenários mais prováveis seriam esses: Marina x Bolsonaro e Haddad x Bolsonaro, com uma chance maior para este segundo.

P. Uma grande incógnita é o poder de transferência de voto de Lula para Haddad e em que velocidade isso pode acontecer. Não é justo o estrato mais pobre, onde Haddad mais precisa crescer, que mais demora a se inteirar?

R. Sim, certamente esse será um desafio grande para a campanha petista. Será muito difícil ver Haddad no mesmo patamar de votação de Dilma na campanha de 2010. Naquela vez, Lula estava engajado ativamente em conseguir essa transferência e a escolha da Dilma foi anunciada um ano antes da eleição. Mas Haddad não precisa chegar no mesmo patamar de Dilma para chegar no segundo turno. Dada a fragmentação do cenário de candidatos, só 15% do eleitorado ele talvez já consiga passar para o segundo turno. Pelo que vejo em nossos dados, a chance disso acontecer é bem alta. Agora, em relação à questão da velocidade e do timing, isso deve acontecer bem tarde: acredito que Haddad começará a crescer devagar no começo da campanha e acelerar bem perto do final, quando a massa crítica do eleitorado lulista finalmente conseguir digeri-lo como candidato de Lula.

P. Marina não está melhor posicionada para recebe os votos órfãos de Lula, especialmente entre as mulheres pobres?

R. Marina está muito bem posicionada em termos de sua imagem pública, pela história de vida dela, pela aproximação no passado com Lula e pelo contraste entre o estilo discursivo dela em comparação ao dos outros candidatos. Marina consegue se contrapor aos demais candidatos com sua autenticidade e modéstia. Mas Marina tem também certas vulnerabilidades em relação a esse eleitorado. Marina não se posicionou contra a prisão de Lula e as imagens dela apoiando o Aécio Neves no segundo turno de 2014 devem ser exploradas intensamente pelo PT. Marina poderia ter um discurso mais claro em relação ao legado petista, em relação ao que foi bom e ao que foi ruim. Ela poderia defender o legado do Lula sem necessariamente aderir à bandeira "Lula Livre". Em vez disso, ela vem optando por um discurso mais discreto, que não toca frontalmente essas questões. Pode ter sido um erro estratégico ou um acerto. Por enquanto, ainda é cedo para fazer essa análise.

P. A pergunta mais repetida das eleições é: a TV ainda será determinante? Alckmin terá tempo para subir o que precisa para ir ao segundo turno?

R. Alckmin tem muito mais tempo do que precisa, mas a questão é como você preenche esse tempo. Não adianta você ter todo tempo do mundo se a sua estratégia de comunicação está errada ou se ela simplesmente não consegue superar as maiores vulnerabilidades da persona do candidato. A estratégia de comunicação faz parte de uma estratégia maior de posicionamento político. Se a sua estratégia de comunicação é contraditória em relação à estratégia de posicionamento, obviamente os resultados não serão bons. A leitura atual da campanha de Alckmin é que erraram somente na comunicação e que, consertando isso, irão conseguir fazer ele subir. Eu acredito que esse diagnóstico está errado. O problema de Alckmin, ao meu ver, está mais ligado às vertentes chave da estratégia política de posicionamento do que com a comunicação.

P. E onde Alckmin erra?

R. O eleitorado do Bolsonaro é muito convicto e não vai mudar para Alckmin. E quem não gosta mesmo do Bolsonaro é a esquerda, que também não gosta do Alckmin. Então, batendo no Bolsonaro, Alckmin não consegue nem o eleitor do Bolsonaro (que dificilmente vai desistir dele), nem o eleitor da esquerda, que não passará a gostar do Alckmin por conta disso. A estratégia certa do Alckmin, na minha opinião, era mostrar que ele continua sendo a oposição autêntica ao PT, que de fato Bolsonaro adotou no passado posições paternalistas na economia, que Bolsonaro é muito mais próximo do PT do que parece. Alckmin deveria fazer um discurso focado no eleitorado de centro-direita que é anti-lulista e não tem uma posição muito firme em relação ao Bolsonaro ainda.

P. Duas novidades da eleição são, por um lado, a força da ultradireita de Bolsonaro, mas também a aparição de um fenômeno de direita liberal na economia e nos costumes, como o João Amoêdo (NOVO). Você prevê que Amoêdo ainda tem espaço para crescer?

R. Amoêdo adotou uma estratégia muito focada em mídias sociais, investindo pesadamente em propagandas pagas principalmente no Facebook. A estratégia parece estar dando certo, principalmente entre homens jovens em regiões urbanas do Sul e Sudeste. Ele está chegando em 4% de intenção de voto, que pode não parecer tão impressionante assim, mas serve para atrapalhar bastante Alckmin. Boa parte do eleitorado do Amoêdo é um eleitorado realmente libertário. Além de uma grande maioria dos eleitores dele apoiarem, por exemplo, as privatizações e a reforma da Previdência, é um eleitorado muito progressista em questões como liberalização da maconha e legalização do casamento gay. No entanto, esse nicho é bastante pequeno como percentual da população brasileira. Por isso a gente vê Amoêdo adotando posições bem mais conservadoras do que a média atual do eleitorado dele, provavelmente no intuito de conquistar eleitores de Bolsonaro. O espaço de crescimento dele seria então bem diferente do espaço que ele conseguiu conquistar até agora.

P. Temos uma profusão de pesquisas, de metodologias diferentes. Você é crítico dos trackings telefônicos puros. Por quê?

R. Os tracking telefônicos não têm feito, em geral, um bom trabalho na hora de entender quais são os grupos supra e subrepresentados em relação ao perfil da população geral. Quando você tem uma taxa de resposta abaixo de 10% (como na maioria das pesquisas telefônicas), a chance de essa taxa baixa de resposta introduzir um viés na amostra é extremamente grande. Os 10% que respondem a pesquisa certamente têm algumas características diferentes dos 90% que não respondem. Para começar, é muito natural esperar que eles sejam mais politicamente engajados. Se você vota Bolsonaro, a chance de você querer perder 30 minutos do seu dia respondendo uma pesquisa eleitoral para afirmar essa preferência é muito maior do que se você não se interessa por política ou não faz a menor ideia sobre em quem votar. Isso acaba supraestimando sistematicamente alguns candidatos cujo voto espontâneo é alto e explica a discordância entre as pesquisas telefônicas e as pesquisas face a face. O Atlas tenta entender esse tipo de fenômeno e usa procedimentos especiais de ajuste amostral para eliminar os vários tipos de viés.


El País: A 30 dias da eleição, ataque a Bolsonaro força freio de arrumação na campanha

Atentado contra o deputado em Juiz de Fora redefine os parâmetros da disputa eleitoral. Institutos divulgam na segunda pesquisas que devem começar a medir o efeito do ocorrido

O Brasil contempla nesta sexta-feira, após o atentado a faca contra o deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), a paralisação de uma campanha presidencial pela segunda vez consecutiva. A exemplo do que ocorreu por conta da morte do ex-governador Eduardo Campos no pleito de 2014, os pleiteantes ao Palácio do Planalto interromperam suas atividades em respeito ao líder das pesquisas de intenção de voto, que deve seguir impossibilitado de tocar sua própria campanha por ao menos sete dias, o período mínimo de internação previsto. Enquanto isso, todos tentam entender os impactos do incidente para a dinâmica eleitoral. Pelo menos momentaneamente, Bolsonaro deixa de ser o alvo preferencial das críticas e passa a ocupar um espaço midiático muito maior do que aquele que lhe estava destinado – oito segundos de propaganda eleitoral, contra cinco minutos e meio de Geraldo Alckmin, por exemplo —, com potencial até para superar o protagonismo que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apesar de preso, tentava sustentar.

Todos os cálculos e previsões precisam ser refeitos a partir deste imponderável. Em 2014, por exemplo, o acidente de avião que vitimou Eduardo Campos no dia 13 de agosto daquele ano, então terceiro colocado nas pesquisas de intenção de voto, catapultou, num primeiro momento, Marina Silva, sua vice de chapa do PSB, para o segundo lugar na disputa quando ela assumiu a cabeça da chapa. A comoção com a tragédia a ajudou a ultrapassar o senador Aécio Neves (PSDB-MG). Faltavam então 52 dias para o primeiro turno da eleição. Tudo parecia líquido e certo no caminho de Marina ao Planalto. Mas o candidato tucano garantiu sua ida ao segundo turno na reta final da disputa, com ajuda da propaganda negativa da campanha de Dilma Rousseff contra Marina.

O efeito do ataque contra Bolsonaro para a corrida eleitoral ainda é incerto, mas seu nome ganhou a expressão máxima neste momento. Se a campanha do deputado do PSL tinha no pouco tempo de propaganda de televisão um de seus maiores limites, a atenção dirigida a ele em função do atentado tem o potencial de eliminar essa fraqueza. Além disso, Bolsonaro dificilmente deve conseguir participar dos próximos debates, já que os médicos preveem cerca de dois meses para sua recuperação total. Assim, ele não irá se expor a embates como aquele com a ex-ministra Marina Silva (Rede) no debate da RedeTV!, que escancarou a fragilidade do candidato entre o público feminino. Na campanha de Marina, inclusive, a avaliação é que o atentado contra o Bolsonaro jogou a disputa "num terreno imprevisível".

A candidata da Rede vinha apostando, desde o debate da RedeTV!, em antagonizar com Bolsonaro e criticá-lo por suas opiniões em relação aos direitos das mulheres. O momento em que ela e o candidato do PSL se enfrentaram diretamente no debate era, inclusive, considerado o ponto alto da campanha da Rede até aqui. Isso terá de mudar. "Atacar o Bolsonaro não faz sentido, porque desta vez ele é a vítima", disse um integrante da campanha de Marina ao EL PAÍS. Uma ideia é usar o episódio do esfaqueamento para reforçar a oposição da candidata às políticas que facilitem o armamento da população — uma das bandeiras do capitão reformado do Exército. Algo na linha de que a tragédia poderia ter sido muito maior se tanto o agressor quanto seus apoiadores na passeata tivessem amplo acesso a armas de fogo. Mas o tema ainda gera discussões no comitê de campanha. Se optarem por esse discurso, há uma preocupação de que as mensagens sejam construídas com cuidado. "Sem jamais culpar o Bolsonaro pelo ataque", diz um aliado de Marina. A candidata anunciou uma "caminhada pela paz" para este sábado em São Paulo.

Enquanto líder das pesquisas, Bolsonaro também vinha sendo alvo de ataques contundentes da campanha do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), que disputa o mesmo eleitorado — mais rico e instruído — com o deputado federal. Os assessores da campanha tucana já fizeram circular a informação de que a intensa ofensiva contra o adversário está suspensa. O cientista político Alberto Carlos Almeida destacou, em seu perfil no Twitter, o dano para a campanha de Alckmin, já que é de esperar um efeito de mídia favorável para Bolsonaro após o ataque da quinta-feira. Para ele, o tucano não poderá atacar o deputado federal por pelo menos uma semana. Vice na chapa de Alckmin, a senadora Ana Amélia (PP-RS) publicou um vídeo para dizer "não queremos violência para ninguém".

Para o cientista político Paulo Kramer, as estratégias de desconstrução de Bolsonaro foram desarmadas e "a facada tirará do armário votos que estavam envergonhados". Ou seja, Bolsonaro pode ampliar a vantagem nas pesquisas. Algo que deve começar a ser medido pelas próximas pesquisas de intenção de voto, que vinham mostrando sua candidatura como a mais popular depois da do ex-presidente Lula, já barrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas também a mais rejeitada. Institutos como Ibope e Datafolha farão novos levantamentos ao longo da próxima segunda-feira e as divulgam na noite do mesmo dia.

Ânimos acirrados

As análises mais óbvias e simplistas levam a crer que o atentado teria garantido Bolsonaro no segundo turno, já que ele lidera as pesquisas e, blindado pelo ocorrido, não estaria exposto às tentativas de desconstrução de seus adversários. Mas a dinâmica ainda está por se desenvolver, e depende entre outras coisas, da evolução do quadro clínico do deputado federal e de sua capacidade de mobilizar a atenção política pelos próximos dias — o esperado anúncio de Fernando Haddad como substituto de Lula na chapa do PT, aguardado para o início da semana, já teve seu impacto amortecido no noticiário. Até agora, Bolsonaro era o candidato com as mais expressivas imagens de campanha, praticamente o único a reunir um número considerável de apoiadores pelas ruas do país. Isso não deve mais acontecer, mas, mesmo debilitado, o candidato do PSL gravou vídeos e postou mensagens que circulam com ainda mais intensidade pelas redes sociais por meio das mãos de seus apoiadores.

As estratégias de sua própria campanha e a forma de lidar com o ocorrido podem atrair ou afastar votos de Bolsonaro. Seu vice, General Mourão (PRTB), chegou a acusar o PT de ser o responsável pelo ataque, para em seguida advertir que “se querem violência, os profissionais da violência somos nós”. Nesta sexta-feira, contudo, o tom do vice já veio mais baixo. "As primeiras declarações são sempre na base da emoção, e aí as pessoas dizem coisas que não deveriam dizer. Há um velho ditado que diz: 'as palavras, quando saem da boca, não voltam mais'. Portanto, vamos manter a calma. O caso está nas mãos da Polícia Federal", disse. Nas redes sociais, contudo, os ânimos seguem acirrados dos dois lados. Enquanto os opositores de Bolsonaro tentam diminuir a relevância do atentado e criticam o comportamento do deputado em outros incidentes, como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), seus apoiadores jogam lenha na fogueira com acusações para todos os lados e espalham informações sem confirmação. O pastor Silas Malafaia, por exemplo, disse que o autor do atentado assessora a campanha da ex-presidenta Dilma Rousseff ao Senado. A campanha de Dilma prometeu processá-lo por injúria, calúnia e difamação.

A segurança dos candidatos

Um impacto prático certo para a campanha será a ampliação da segurança de todos os candidatos à presidência da República "que assim o desejarem", segundo informou a Polícia Federal (PF). Atualmente, apenas cinco dos 13 candidatos se valem dessa escolta diária: Bolsonaro, Alckmin, o senador Álvaro Dias (Podemos-PR), o ex-governador Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva. Conforme a PF, esse reforço na segurança segue um protocolo definido para casos em que um dos concorrentes sofre alguma intercorrência, como o atentado da quinta-feira contra Bolsonaro em Juiz de Fora (MG). Não há informações sobre o número de agentes que passarão a trabalhar nas campanhas. Atualmente, cada um recebe 21 seguranças, número que pode aumentar conforme o evento de que participem.


El País: China abre a carteira para seduzir elites da América Latina

Gigante asiático injeta capital em meios de comunicação em crise e atrai políticos, intelectuais e jornalistas

Por Juan Pablo Cardenal, do El País

Sobre um alicerce de investimentos, empréstimos e projetos de infraestrutura consolidado nos últimos 15 anos, a China exerce agora na América Latina uma política destinada a ganhar influência política e reforçar sua presença na região. A estratégia é nova, porque mira âmbitos menos convencionais que o econômico, onde, pelos incentivos que oferece, a China parte quase sempre com vantagem. O rastro da nova política já é perfeitamente visível, pois Pequim está se vinculando ativamente com o mundo acadêmico, os meios de comunicação, o mundo da cultura e a classe política em boa parte dos países do continente.

Com essa estratégia, Pequim pretende corrigir percepções negativas derivadas de sua meteórica ascensão global

O modelo se centra, por um lado, na cooperação transversal entre universidades, think tanks, meios de comunicação, partidos políticos e instituições diversas em ambos os lados do Pacífico; e, por outro, na promoção da cultura chinesa e nos programas de intercâmbio com influentes figuras latino-americanas, uma variante diplomática que Pequim considera inofensiva, mas que seus críticos veem como uma perversa captação das elites locais com o objetivo de conquistar sua boa vontade e afeto. Embora a persuasão e o estreitamento dos laços institucionais sejam uma prática habitual entre os países, a versão chinesa do que o acadêmico norte-americano Joseph Nye chamou de soft power (“poder suave”) gera suspeitas contínuas.

No âmbito jornalístico, a China fechou nos últimos dois anos acordos de colaboração e coprodução com diversos grupos de comunicação públicos e privados da região, tanto audiovisuais como escritos. Entre outros, a agência Xinhua selou parcerias na Argentina com vários grupos de comunicação próximos ao kirchnerismo, enquanto o gigante televisivo China Global Television Network (CGTN) fez o mesmo com o Grupo América, a segunda maior corporação argentina do setor. A CGTN mantém uma aliança semelhante na Venezuela com a Telesur e no Peru com a IRTP, a emissora estatal de rádio e televisão.

Pequim enquadra esses acordos na retórica oficial do “conhecimento mútuo”, para o qual mobiliza recursos para financiar projetos jornalísticos conjuntos e promover o intercâmbio de conteúdos. Essa interpretação contrasta com aqueles que advertem sobre seu objetivo oculto: produzir conteúdos jornalísticos e audiovisuais gratuitos para os meios de comunicação latino-americanos que mostrem uma imagem de amabilidade do regime chinês - ainda que seja uma imagem distorcida. E não apenas isso: também servem para tentar neutralizar a imprensa crítica com o chamariz do ganho econômico. Num contexto de crise nos veículos de comunicação, o capital chinês é a chave mestra para sua penetração midiática, como se viu na cúpula de meios da China e da América Latina realizada em Santiago no fim de 2016.

Organizada e financiada por Pequim, teve a presença de uma centena de representantes latino-americanos previamente selecionados. “Foi um mercado persa em que os chineses ofereceram de tudo porque, afinal, o que querem é colocar seus conteúdos na América Latina”, confessa um participante que deu seu depoimento na condição de anonimato. Com essa estratégia, Pequim pretende corrigir, segundo ele, percepções negativas derivadas da meteórica ascensão global da China. E também neutralizar o que os líderes chineses acreditam ser um discurso hegemônico de valores impulsionado pela imprensa ocidental que visa promover os interesses do Ocidente e projetar uma imagem negativa da China.

Os conteúdos da Xinhua e de outros meios de comunicação oficiais para públicos de língua espanhola se apoiam em uma narrativa muito mais sutil do que a dos veículos russos como RT ou Sputnik, cuja aberta beligerância contra o Ocidente, incluindo notícias falsas, é bem conhecida. Embora na informação chinesa sejam frequentemente detectados ecos de um Ocidente malvado que colonizou, provocou guerras e impõe valores, uma arenga com trânsito indiscutível na América Latina, em geral se concentra em purgar o regime comunista e apresentar a China como um país benigno e responsável. Paradoxalmente, a China irrompe na imprensa de países democráticos enquanto seu setor midiático permanece fechado a sete chaves para estrangeiros.

Pessoas influentes das sociedades latino-americanas são convidadas de forma recorrente para visitar a China em viagens que duram semanas

À disseminação dessa imagem amável também se juntam certas elites, tanto na América Latina quanto no resto do mundo. Esses aliados e simpatizantes do PCCh são a versão contemporânea daqueles que Lenin chamou idiotas úteis na era soviética. “Ajudam a difundir uma narrativa limpa que normaliza uma ditadura como a do PCCh, que tem grandes violações dos direitos humanos [por trás], e a transforma em um gigante econômico pacífico que oferece inúmeras oportunidades para seus amigos”, diz Martin Hála, sinólogo e fundador do Sinopsis.cz, um portal checo que analisa questões relacionadas com a China. A compra de lealdades de novos adeptos da causa chinesa é visível agora no Panamá e na República Dominicana, os dois últimos países da região a romper relações com Taiwan e que, portanto, vivem uma lua de mel com Pequim.

O próprio presidente chinês anunciou em sua última visita a Lima que seu país dará “oportunidades de formação para 10.000 latino-americanos” até 2020. Por meio de vários programas, pessoas influentes das sociedades latino-americanas são convidadas de forma recorrente a visitar a China em viagens que duram semanas. São estadias com todas as despesas pagas para jornalistas, políticos, funcionários, acadêmicos e diplomatas, entre outros, e os programas geralmente incluem visitas a instituições e encontros com altos funcionários do Estado, membros do PCCh e diretores de empresas, bem como banquetes e escapadas turísticas. O objetivo de Pequim é atrair essas figuras proeminentes para sua causa. Torná-las embaixadoras da China.

Isso não é exclusividade da América Latina. No mês passado, a Bloomberg revelou que vários políticos europeus, incluindo os ex-primeiros-ministros David Cameron, Romano Prodi e Dominique de Villepin, entre outros, estão na folha de pagamento de Pequim. Da mesma forma, membros de partidos políticos de todo o espectro ideológico são periodicamente cortejados pela China. Na Argentina, um membro do PRO, partido do presidente Mauricio Macri, revelou a este jornal em Buenos Aires que 15 representantes de sua formação voltaram “hipnotizados” de uma viagem de alto luxo de 14 dias pela China com todas as despesas pagas: “Agora somos todos chineses”, exclamaram – em particular – no retorno.

Que a China enxergue valor nesses convites seletivos fica claro no anúncio de Xi Jinping, no início deste ano, em um discurso em Pequim para mais de 300 representantes políticos estrangeiros, quando disse que o PCCh convidará 15.000 políticos de todo o mundo nos próximos cinco anos. São encontros que têm o propósito de expor os convidados estrangeiros a uma propaganda perfeitamente destilada. Não só os programas são cuidadosamente pensados, mas questões sensíveis para o regime nunca são abordadas, seja a democratização da China, a situação dos advogados e os direitos humanos ou a repressão no Tibete e em Xinjiang, entre outros. A evidência de que a estratégia funciona é que muitos desses novos admiradores da China acabam elogiando-a publicamente em suas respectivas tribunas.

No âmbito jornalístico, a China fechou acordos de colaboração e coprodução com vários grupos de mídia públicos e privados

Para essa imagem edulcorada do gigante asiático contribui decisivamente, sem dúvida, a alarmante falta de conhecimento sobre a China que existe na América Latina, o que inclui as elites. Isso se traduz em uma quase total ausência de crítica, seja em relação à natureza autoritária de Pequim, aos excessos por trás dos investimentos chineses na região, às condições de seus empréstimos ou à assimetria nas relações comerciais com muitos dos seus parceiros latino-americanos. Para esse clima contribuem, sem dúvida, a ausência de disputas territoriais e históricas entre ambos, a admiração que desperta o desenvolvimento chinês das últimas quatro décadas e a percepção de que a China é uma fonte de oportunidades que outros não podem oferecer.

Além do PCCh, outras organizações e entidades chinesas mais periféricas na estrutura do Partido-Estado participam ativamente desse tipo de diplomacia interpessoal. Às vezes isso cria a falsa percepção em seus homólogos latino-americanos de que estabelecem relações com a sociedade civil chinesa, sem realmente entender que o Instituto Confúcio, os think tanks de relações internacionais, as associações confucionistas, as delegações de amizade, as universidades ou as associações de estudantes são parte integrante dos esforços do Estado e do PCCh para exercer influência nas sociedades receptoras. “A interferência da China no exterior é baseada nos mesmos princípios que a propaganda doméstica do PCCh: censura, coação e manipulação”, adverte Martin Hála.

Somente os estudiosos que seguem a China têm um conhecimento abrangente, mas muitos deles enfrentam o dilema de não poderem ser abertamente críticos em relação a Pequim sem arriscar seu futuro profissional, pois as autoridades negam vistos e, portanto, o acesso à China, aos mais críticos. “Existem assuntos sobre os quais nunca falamos por causa do medo de ferir os sentimentos dos chineses. Na verdade, há uma total ausência de pensamento crítico sobre a China”, diz um estudioso argentino. Esse déficit de conhecimento se junta ao fato de que, muitas vezes, as instituições oficiais chinesas são as únicas fontes de recursos e informações. Isso lhes permite monopolizar o discurso enquanto as narrativas alternativas são amplamente silenciadas. O controle ideológico e a censura praticados na China vazam para além de suas fronteiras.

“Considerando o peso que a China tem na América Latina, o risco de não ter informações suficientes é grande. Deve haver um debate crítico”, diz Isolda Morillo, escritora e tradutora de mandarim com 15 anos de experiência como jornalista em Pequim. Há exemplos disso na história, adverte: “Nos anos sessenta e setenta, os intelectuais franceses apoiaram a Revolução Cultural porque não tinham conhecimento dos abusos e da tragédia humana existente. Isso teve muito a ver com o fato de que foram fontes oficiais chinesas que transmitiram essas ideias”. Esse monopólio também é exercido pelo Estado chinês no âmbito da cultura chinesa, pois praticamente tudo o que é exportado tem o selo oficial.

Foi certamente o caso da centena de atividades do Ano de Intercâmbio Cultural entre a China e a América Latina, organizado em 2016 dentro do fórum China-CELAC, a organização que agrupa os países da América com exceção de Estados Unidos e Canadá. Intelectuais e artistas independentes ou críticos são oficialmente ignorados e têm muito poucas possibilidades de ter visibilidade no exterior. Assim, o Instituto Confúcio financiou a participação de escritores afins – como Ah Yi, Xi Chuan e Ge Fei – em conhecidos festivais literários na Colômbia, Argentina e Costa Rica, enquanto oferece sem nenhum custo traduções de suas obras às editoras latino-americanas. O fato de autores críticos – como Liao Yiwu e Tsering Woeser – nunca serem convidados deixa a impressão de que não há vozes alternativas à oficial.

A evidência de que a estratégia funciona é que muitos desses novos admiradores da China acabam elogiando-a publicamente

O discurso e os valores autoritários da China de Xi Jinping que, gota a gota, vão penetrando na América Latina e em outros lugares são denunciados com afinco em círculos acadêmicos. Recentemente, os institutos Mercator Institute for China Studies e Global Public Policy Institute, com sede em Berlim, alertaram sobre o avanço autoritário da China na Europa. E no ano passado, a fundação Nacional Endowment for Democracy, de Washington, publicou um relatório sobre a influência negativa da China na América Latina e na Europa Central, diagnóstico que é visto como a ponta do iceberg de um fenômeno global. Nele, cunha o termo “poder incisivo” para se referir às conotações nocivas da influência externa de Pequim.

Martin Hála, do Sinopsis, concorda que o soft power praticado pelas democracias não é comparável à influência e aos valores que emanam do regime autoritário chinês: “O soft power dos Estados Unidos se baseia na atração e usa instrumentos como Hollywood, o rock and roll ou a mídia, que funcionam de acordo com princípios de pluralidade de opinião e com liberdade de expressão”, aponta.

O exemplo da Austrália, onde a China conseguiu – de acordo com um relatório confidencial do Governo – se infiltrar na última década nos meios de comunicação, no mundo dos negócios, nas universidades, na comunidade chinesa no exterior e até mesmo nos Governos locais, é um aviso aos navegantes para regiões mais vulneráveis, como a América Latina. A fulminante reação da Austrália em junho foi aprovar leis para evitar interferências e espionagem de Governos estrangeiros, uma legislação que aponta diretamente para a China e que causou tensões diplomáticas entre os dois países.

“O problema na Austrália começou porque as pessoas não prestaram a devida atenção. Em cinco anos, a situação na América Latina poderia ser igualmente preocupante, com a desvantagem de que a América Latina tem um problema com a corrupção”, o que poderia acelerar e piorar as coisas, explicou a este jornal uma fonte próxima do Governo do primeiro-ministro Malcolm Turnbull.


El País: Bolsonaro ameaça oponentes e ataca legitimidade da disputa eleitoral pelo Planalto

Em carreata, candidato do PSL faz símbolo de cadeia, quando é vaiado por opositores

Por Afonso Benites, do El País

Para os apoiadores, Jair Bolsonaro sorri e acena ou faz símbolos de coração ou de armas com as duas mãos. Para os diversos opositores que o xingam por um caminho de dez quilômetros, o ultradireitista apresenta gestos de prisão, no qual faz uma espécie de cela usando os dedos indicadores e médios das duas mãos. Assim o candidato do PSL à presidência se alterna por pouco mais de duas horas em uma carreata que reuniu 1.000 carros e motocicletas que passou pelas cidades satélites de Ceilândia e Taguatinga, no Distrito Federal, nesta quarta-feira.

Após o ato público de campanha, o primeiro em Brasília, o deputado federal e militar reformado afirmou de maneira veemente que qualquer que seja o resultado das eleições, o pleito estará sob suspeição. Em seu entendimento, sem o voto impresso não é possível fazer a auditoria da apuração. Ele desconfia que as urnas eletrônicas possam ser fraudadas. A análise vale, inclusive, para o caso em de ele vencer o pleito. “Qualquer um que ganhar vai estar sob suspeita essas eleições. Com toda certeza”.

Apesar desse discurso do candidato, o Tribunal Superior Eleitoral já destacou que há dezenas de maneiras de auditar o processo eleitoral. Em palestra a jornalistas no último dia 3, o secretário de tecnologia da informação do tribunal, Giuseppe Janino, afirmou que, em 22 anos de utilização, nunca se detectou nenhuma fraude no sistema de votação ou apuração dos resultados. E explicou que há mais de 30 barreiras digitais que impedem o acesso aos sistemas da Justiça Eleitoral. Destacou ainda que já foram realizados quatro testes públicos de segurança com equipes de hackers vinculados à universidades e Polícia Federal nos quais ninguém conseguiu transpor todas essas barreiras.

Além das auditorias frequentes, é possível checar nos boletins de urnas que são impressos por cada urna eletrônica ao final da votação se os votos ali contabilizados foram de fato registrados pelo TSE. Esse boletim é um pequeno papel que é impresso e afixado em frente as zonas eleitorais. Nele há um QR Code, que pode ser fotografada e comparada com a apuração da Corte. Ainda assim, Bolsonaro insiste em sua tese antisistema e diz que poderia ganhar a eleição em primeiro turno, caso o voto fosse impresso. O candidato ou o seu partido, contudo, jamais enviaram representantes para acompanhar os testes do TSE. “Ninguém está sentando na cadeira antes da hora. Em qualquer lugar do Brasil tem uma aceitação enorme [à minha candidatura]. Se o voto for impresso, mas o Supremo suspendeu isso, e tivermos como comprovar a lisura das eleições, a gente ganha no primeiro turno”, disse.

Em junho passado, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional uma lei, de autoria de Bolsonaro, que obrigava a impressão dos votos. Os magistrados entenderam que a versão impressa viola a garantia constitucional do segredo do voto, já que seria possível identificar o eleitor. “Pode falar à vontade. Eu não acredito nessa forma de apurar votos”, disse Bolsonaro. A estratégia do ultradireitista de solapar a confiança no sistema eleitoral e martelar em fraude foi usada por Donald Trump nos EUA. Lá, Trump, sob críticas dos analistas, repetiu que as eleições poderiam ser manipuladas sem mostrar qualquer prova ou evidência.

Ataques e provocações
Se ensaiou alguma moderação nos debates da TV, nos últimos dias, o candidato deixou claro que vai apostar no ultraje e na provocação para ao menos manter sua base de apoiadores — na mais recente pesquisa do Ibope, divulgada nesta quarta, ele aparece liderando com 22%, já considerando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora da disputa. Ora tenta intimidar jornalistas que o questionam, ora outras candidaturas. Na noite de terça-feira, atacou um repórter que é homossexual que o indagou por que Bolsonaro havia postado um vídeo em sua página no Twitter no qual um menino dizia que na escola ensinaram que garotos usavam saia, brincos e pintavam a unha. “Você pintou unha quando criança?”, rebateu o candidato ao jornalista. O jornalista disse que não e lhe disse não poderia ser tratado dessa maneira hostil. O deputado respondeu de forma rude: “Eu não posso o quê, rapaz!? Você pergunta o que quer e eu respondo o que eu quero”.

No sábado passado, em viagem ao Acre, Bolsonaro disse que iria “fuzilar a petralhada do Acre”, em referência aos políticos do PT que governam o Estado há duas décadas. Disse o candidato: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre. Vamos botar esses picaretas para correr do Acre. Já que gostam tanto da Venezuela, essa turma tem que ir para lá. Só que lá não tem nem mortadela. Vão ter que comer capim mesmo”. Nesta quarta-feira, a Procuradoria-Geral da República solicitou que ele explicasse o quis dizer. O órgão analisa a possibilidade de abrir um processo pelos delitos de incitação ao crime e ameaça.

Na carreata desta quarta-feira, Bolsonaro continuou criticando os petistas, mas usou um tom menos duro. “Vamos varrer a cúpula desses partidos [PT e PSDB] para a lata de lixo da história. Vamos dar um pé no traseiro do comunismo”. Quando indagado pela reportagem o que ele achava dos ataques que estava recebendo, principalmente da campanha de Geraldo Alckmin (PSDB), que tenta pregar nele a pecha de misógino, o candidato disse que isso faz parte da política. “[A crítica] é política, palavras, é jogo de palavras, é o sentimento. Eu entrei em campo, não por uma obsessão. Entrei por uma missão de Deus e por uma missão patriótica de mudar o rumo do Brasil”.

Desde o dia 31, quando se iniciou a campanha de rádio e TV, a coligação de Alckmin leva ao ar peças publicitárias nas quais reproduzem discussões que Bolsonaro teve com a deputada Maria do Rosário (PT-RS), a quem chama de vagabunda, e a uma jornalista, que também é xingada. Enquanto isso, seu séquito de convertidos parece permanecer inalterado. Eis o que uma de suas eleitoras, a fonoaudióloga Carmen Minuzi, disse ao EL PAÍS, após acompanhar a carreata do candidato sob o sol de 32º C: “Entendo que as pessoas fazem de tudo para querer desestabilizar o Bolsonaro, mas ele é uma pessoa firme de caráter e, o que ele é, ele mostra pra gente. Não usa máscaras. Com certeza ele respeita as mulheres”. Enquanto ela concede a entrevista, uma menina que aparentava ter menos de dez anos de idade, gritava no colo do pai: “Eu sou criança e escolhi o Bolsonaro. Não quero essa porcaria da imprensa”.


El País: O descaso que corrói o patrimônio, de parque arqueológico à casa de Santos Dumont

Equipamentos culturais e científicos são vítimas preferenciais da crise. Veja exemplos pelo país

Por Gil Alessi e Marina Rossi, do El País

Museus em chamas, bibliotecas entregues às traças e prédios históricos devorados por cupins ou simplesmente colocados à venda pelo preço do terreno. Em um cenário de crise econômica e com imposição de um teto para os gastos públicos federais, a Cultura e a preservação do patrimônio histórico acabam sendo uma das primeiras e maiores vítimas. A destruição de boa parte do Museu Nacional na noite de domingo, no Rio de Janeiro, é um exemplo extremo do que se repete silenciosa e diariamente em todo o país.

São Paulo, o Estado mais rico do país, se tornou uma vitrine do descaso com o patrimônio. Já arderam nas chamas o Teatro Cultura Artística, em 2008, o Memorial da América Latina, em 2013, o Museu da Língua Portuguesa, em 2015, e a Cinemateca, em 2016. Por fim, o Museu do Ipiranga, um dos mais importantes do país, encontra-se fechado há cinco anos para reformas. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, Condephaat, por exemplo, dispõe de apenas 50.000 reais para realizar a manutenção e avaliação preventiva de 2.000 bens tombados em 645 municípios neste ano. Outros 75.000 reais são recursos vinculados que, por problemas burocráticos, não são utilizados pelo órgão, segundo a reportagem apurou. De acordo com fontes da entidade, o valor pleiteado foi de 1 milhão de reais para que o conselho pudesse desempenhar sua função de forma adequada.

A falta de dinheiro se traduz, em alguns casos, na aniquilação completa da história do país. A Fazenda Cruzeiro do Sul, em Paranapanema, interior do Estado, é sinônimo disso. Lá funcionou na década de 1930 uma colônia nazista, cujo prédio da sede, inclusive, foi construído com tijolos com o desenho da suástica. Nada disso existe mais: o proprietário começou a demolir a estrutura em 2012, e terminou em 2016. Só restou à Procuradoria Geral do Estado processar o dono.

Parte do patrimônio histórico não precisa ser demolido para desabar: ameaça ir ao chão sozinho por falta de cuidados e manutenção. É o caso do prédio conhecido como II Batalhão de Guardas, no Parque D. Pedro II, região central de São Paulo. Construído no século 19, o local, que abrigou a guarda imperial, está abandonado e segundo funcionários do Condephaat, que não quiseram se identificar, “corre risco de desabar”. O complexo está em ruínas, com paredes rachadas e telhados que podem ir ao chão a qualquer momento. Em nota, o Conselho informou que "o imóvel está sob responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública", e que já foi aprovado um "projeto de intervenção", mas que "após esta etapa, oficiamos os responsáveis, por duas vezes, solicitando cronograma para realização de obras, sem retorno até o momento".

Se engana quem acha que apenas patrimônio histórico de outros séculos está ameaçado. O prédio do Departamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), no Paraíso, em São Paulo, foi tombado em 2014 por seu "patrimônio material que evoca as memórias de um momento longo e sombrio de nossa história", de acordo com o Condephaat. Dentro de suas celas foram torturadas dezenas de pessoas durante a ditadura militar do país. Lá, em 1975, foi assassinado o jornalista Vladimir Herzog. Atualmente o local, que está sob a responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública, encontra-se tomado por cupins e repleto de infiltrações. O Condephaat informou que foi aprovado em 2016 um projeto "para reforma da cobertura", e que "ficou no aguardo do envio do projeto para as instalações elétricas e pintura". Ainda de acordo com o Conselho, "há uma conversa iniciada para transferência do prédio para a Secretaria da Cultura para instalação de equipamento cultural no local", mas isso ainda depende de "manifestação da secretaria de Segurança Pública". Por sua vez, a pasta da Segurança afirmou que a informação de que o prédio estaria degradado "não procede", e que houve apenas "um vazamento" no local, problema que já teria sido solucionado.

Por fim, parte do patrimônio histórico paulista é simplesmente posto à venda. Um sobrado do final do século 19 na região dos Campos Elíseos conhecido como Palacete Barão do Rio Pardo foi excluído pelo Condephaat da lista de imóveis tombados em março deste ano, atendendo a um pedido de seu proprietário. O casarão, extremamente deteriorado, foi colocado à venda por 8 milhões de reais. Seu dono alegou não possuir condições financeiras para manter o local, discurso que foi endossado por parte dos conselheiros do Condephaat. Alguns, no entanto, criticaram a medida, afirmando que a prática do abandono pode se tornar um caminho comum para o destombamento. A reportagem não conseguiu entrar em contato com os donos do imóvel.

Nem mesmo um dos maiores inventores brasileiros passa incólume ao descaso do poder público com o patrimônio histórico. O museu Casa Natal de Santos Dumont, onde nasceu o pioneiro da aviação, localizado na cidade que leva seu nome, em Minas Gerais, chegou a fechar no início do ano por falta de pagamento dos salários. Após pressão da população, os débitos referentes a 2017 foram quitados pela prefeitura, que arca com parte das despesas, e o local voltou a funcionar. Agora a situação volta a preocupar, e há risco de novo fechamento: “Todo ano assinamos um convênio com o município para repasse de verbas. Este ano estamos devendo salários desde janeiro”, afirma Mônica Castelo Branco, presidente da fundação responsável por cuidar do acervo. A prefeitura não respondeu ao contato da reportagem.

No sul do Piauí, o Parque Nacional da Serra Capivara, passou recentemente por algo parecido. Em julho, foram demitidos 60, dos seus 70 funcionários, por falta de recursos. Considerado Patrimônio Mundial pela Unesco, a título cultural, o parque já chegou a operar com quase 300 funcionários. Mas o fim de convênios e a suspensão de investimentos advindos da iniciativa privada fizeram com que a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) tivesse que abrir mão da manutenção de quase toda a equipe do Parque. Ieda Castro, advogada da FUMDHAM, explica que tramita uma ação na Justiça para que a União libere uma verba de 3 milhões de reais anuais para a manutenção do Parque, que 300 quilômetros de extensão. "Desse valor, 738.000 foram liberados no ano passado e conseguimos pagar os funcionários. Mas neste ano o dinheiro acabou e não tivemos outra escolha", diz. Ela afirma que aguarda apreciação do juiz para liberar a segunda parcela da verba para poder recontratá-los.

Castro assegura, porém, que não foram cortados investimentos no Museu do Homem Americano, que fica no parque, e nem da verba para pesquisas feitas pela FUMDHAM. "A manutenção do parque não é de responsabilidade jurídica nossa, e sim do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ligado ao Ministério do Meio Ambiente]", explica. "E não conseguimos mais manter dentro do orçamento da FUMDHAM. Mas o museu está funcionando normalmente e as pesquisas também estão sendo feitas".

Sob as chamas
Na madrugada do último sábado, o fogo consumia outro equipamento público cultural. O Farol do Saber Cícero Marcelino, no município de Cidelândia, a 640 quilômetros de São Luís (MA), foi tomado por um incêndio que transformou livros, paredes e móveis em cinzas. Antes de queimar, a biblioteca pública do pequeno município maranhense, que faz parte de uma rede de 118 unidades por todo o Estado, estava desativada, aguardando verba para uma reforma. Por meio de nota, a Secretaria de Educação do Maranhão afirma que está restaurando gradativamente todos os Faróis do Saber do Estado, e que 25 unidades foram reformadas. O órgão ainda contabiliza o prejuízo e diz que "tomará todas as providências necessárias para a reconstrução do farol". As causas do incêndio ainda não foram divulgadas.

No Recife, o Museu do Homem do Nordeste também espera por readequações em seu sistema de segurança para evitar acidentes. Segundo Frederico Almeida, coordenador-geral do museu, um novo projeto foi desenvolvido para atualizar equipamentos como detectores de fumaça, novos extintores e rotas de fuga. "Estamos somente aguardando aprovação do Corpo de Bombeiros", disse.


El País: O longo e incerto caminho para a reconstrução do Museu Nacional

Ainda não se sabe ao certo o que se pode recuperar e nem as causas imediatas da tragédia. Ministério da Educação promete 10 milhões emergenciais para reconstrução

Por Felipe Betim, do El País

Um dia depois do mega incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, as autoridades e os pesquisadores ainda não têm respostas sobre o tamanho exato das perdas e muito menos as causas da tragédia — para além do descaso de sucessivos governos com a instituição. O momento agora é de espera: o Ministério Público Federal pediu a abertura de um inquérito para apurar as causas e eventuais responsabilidades pelo incêndio, e a Polícia Federal deverá fazer durante os próximos dias uma perícia no imenso palácio imperial, na Quinta da Boa Vista, juntamente com a escola de engenharia da UFRJ. Até que isso aconteça, o que existem são promessas das principais autoridades políticas. Nesta segunda-feira, o ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva, anunciou que irá destinar imediatamente 10 milhões de reais para um plano de emergência — desde 2014, contudo, o museu vem recebendo menos de 500.000 reais por ano do Governo Federal.

"O Governo vai criar um comitê Executivo para acelerar a recuperação", anunciou o ministro da educação, juntamente com o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e do reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher. Eles realizaram uma entrevista coletiva, inicialmente marcada para 14h30, apenas no final da tarde, após uma reunião. As três autoridades representam os três organismos responsáveis da instituição: a UFRJ, proprietária e mantenedora do museu, recebe suas verbas via repasses do Ministério da Educação, enquanto que o Ministério da Cultura, a partir do IPHAN e do IBRAM, órgãos nacionais de patrimônio e de museu, possuem responsabilidades normativas e de conservação. Os 10 milhões, que virão exclusivamente da pasta de Educação, deverão garantir de forma urgente a segurança do patrimônio, o cercamento do local e o reforço das estruturas, explicou da Silva. Uma empresa deverá ser contratada e, juntamente com os funcionários do Museu, começará a ser feito o trabalho de procura do que sobrou. "O que nós fizemos hoje foi dar o ponta pé inicial na reconstrução", disse Sá Leitão.

Depois, cinco milhões de reais deverão ser destinados para um projeto básico e um executivo, que Sá Leitão estima que ficará pronto até o início de 2020. A partir de então começa o trabalho efetivo de reconstrução. "Um projeto executivo leva de seis meses a um ano. Queremos dar a maior celeridade, por isso estamos fazendo uma parceria com a UNESCO, para fazer as contratações via este órgão", explicou o ministro da Cultura. Além desses 15 milhões de recursos, ele garantiu que o financiamento de 21,7 milhões do BNDES, aprovado anos antes da tragédia deste domingo, está mantido. Sá Leitão também garantiu ter colocado "a Lei Rouanet à disposição" da reconstrução do museu. "Recebi contatos da TIM, do Banco Icatu... O presidente Michel Temer conversou com a Febraban, com o Itaú, o Santander e o Bradesco. E também vai falar com as estatais, como o Banco do Brasil, a Caixa e o BNDES", completou.

A última etapa desse projeto, detalhou Sá Leitão, é a aquisição de "novos acervos que possam de alguma forma substituir o que se perdeu". O ministro da Educação falou por sua vez em "parcerias internacionais" para recompor o acervo.

Responsabilidades

O reitor da UFRJ, instituição responsável por repassar os recursos que chegam através do Ministério da Educação, evitou fazer qualquer tipo de especulação sobre eventuais causas e culpados. Não se pode, argumentou, trabalhar de forma "especulativa" em um momento "delicado". Demonstrou confiança no trabalho da Polícia Federal, mas defendeu que a UFRJ também faça seu parecer para que haja um "refinamento" maior dos laudos sobre o incêndio. Ele disse que a instituição não possuía recursos suficientes para manter uma brigada de incêndio 24 horas no local.

Já Sá Leitão não poupou críticas ao que considera um modelo ineficaz de gestão dos museus universitários. Ele retirou a culpa do Governo Federal pela falta de financiamento e mirou às próprias instituições. "Esses museus estão em condições muito precárias. Acho que falta, sobretudo, que os gestores das universidades, responsáveis pelos museus, empreendam ações no sentido de aumentar a base de recursos. Ficar apenas com recursos orçamentários não dá mais", defendeu o ministro da Cultura, que quer uma mudança no modelo. "Esse modelo 100% estatal está falido no Brasil. É preciso mudar o modelo de gestão desses museus e buscar outras fontes de recursos. Eu tenho colocado a Lei Rouanet à disposição, tenho procurado prefeitos e governadores para que se envolvam nesse processo. Mas isso é uma questão de postura desses gestores das universidades".

Luto e protestos

Além das promessas das autoridades, esta segunda-feira foi de luto, lágrimas e protestos pela tragédia que destruiu uma instituição com 200 anos e 20 milhões de itens, o principal centro de pesquisa da América Latina, o maior museu de história natural e antropologia da região e o quinto maior acervo do mundo. "Eu estava em casa quando recebi uma mensagem via rede social de uma professora da UERJ que mora aqui do lado avisando do incêndio", conta o professor Renato Rodriguez Cabral Ramos, do departamento de geologia e paleontologia. "Eu peguei o carro e voei para cá, na esperança de que fosse algo localizado. Mas quando eu vi, comecei a chorar dentro do carro", completa o pesquisador, que há 13 anos trabalha no Museu Nacional. Ele lembra que a parte elétrica do palácio imperial foi reformada há alguns anos. Com os 21 milhões do BNDES previstos, a instituição se blindaria contra incêndios.

No meio da tarde, Ramos e alguns colegas puderam entrar rapidamente em algumas salas do primeiro andar para resgatar alguns minerais raros da coleção Werner, trazida pela família real ao Brasil, além de um quadro do Marechal Rondon. Algumas cerâmicas também foram resgatadas pelos bombeiros.

Alguns setores, contudo, foram totalmente destruídos. Como a parte de memória e arquivo, composta principalmente de papel. Ou a múmia egípcia comprada por Dom Pedro I, além de outros artefatos do Egito Antigo. Ou ainda o setor de insetos, que contava com exemplares únicos de espécies extintas. "Felizmente nossa produção é muito intensa, então nem tudo está perdido em termo de ciência, porque muitas peças foram estudadas. As análises estão publicadas em artigos e livros", explica o professor. "Mas tínhamos inúmeras peças de culturas indígenas brasileiras coletadas desde o século XIX. São povos que não existem mais, ou que existem e não fazem mais aquilo", completa. Outro setor que reportava perda total era o de linguística, em especial o acervo único de línguas indígenas. No caso do departamento de Ramos, os estragos serão avaliados com o tempo. Ele tem esperança de que alguns itens guardados ainda possam ser recuperados. "Nossos armários de aço estão em pé, mas tem muito ferro e entulho em cima. Vai demorar alguns meses para acessar os fósseis e minerais ali dentro. Se a gente recuperar 25%, vai ser uma alegria total".

Já Cristiana Serejo, vice-diretora do Museu Nacional, acredita que, além da carcaça do palácio imperial, apenas 10% do do acervo se salvou — ainda que só se saiba exatamente quando a perícia da Polícia Federal terminar e os pesquisadores puderem entrar, destaca. Entre os itens mais conhecidos e mais importantes está o crânio de Luzia, o fóssil humano com mais de 12.000 anos e o mais antigo do Brasil. Esta e outras peças valiosas estavam em armários e cofres especiais, o que nutre esperança de que podem ser recuperados. "As pessoas foram de manhã tentar achar a Luzia, mas parece que ela estava em uma caixa e tem muito escombro. A gente não sabe se dentro dessa caixa ela possa ter resistido", explica Serejo. "A parte lá de trás, do departamento de geologia e paleontologia, parece que sobrou alguma coisa", acrescenta ela, coincidindo com a avaliação do professor Ramos. Ela lembra ainda que alguns departamentos fora do palácio, como de vertebrados e o de botânica, além de uma biblioteca, localizada no Horto, ficaram intactos. Também permaneceu o meteorito Bendegó, um dos maiores do mundo e, agora, símbolo da resistência do museu.

"Mas a coleção de entomologia, de insetos, que ficava no terceiro andar, não resistiu. Isto foi uma perda gravíssima. Estava em armários compactadores, mas como desabaram, foi um impacto muito grande", lamenta Serejo. O desafio agora é manter as pesquisas e remanejar os pesquisadores para para outros espaços da UFRJ. E, com o que sobrou, construir outro museu. "Desde ontem eu choro bastante, mas a gente vai conseguir", disse, emocionada, a pesquisadora, que no dia no incêndio foi uma das pessoas que entraram no palácio para salvar equipamentos.

Diante dos portões da Quinta da Boa Vista, estudantes vestidos de preto protestavam em repúdio ao incêndio. Em determinado momento, forçaram a entrada no parque municipal e foram contidos por policiais, que usaram bombas de gás e cassetetes. Por volta de 14h finalmente os portões foram abertos e eles puderam se aproximar mais do palácio incendiado. Não houve mais tumulto. Na parte da noite, uma manifestação foi convocada no centro da cidade, na Cinelândia, com o mesmo intuito: protestar contra o descaso das autoridades brasileiras que, acredita-se, resultou na tragédia. Milhares ocuparam por completo um dos locais mais emblemáticos do centro, incluindo a escadaria da Câmara dos Vereadores, e marcharam em direção a Assembleia Legislativa do Estado. Nas redes chegou-se a falar em 20.000 pessoas presentes, mas não há estimativas oficiais. Segundo análise da FGV, a tragédia provocou grande mobilização no Twitter — semelhante à do assassinato de Marielle Franco ou do julgamento do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal: foram 1,6 milhão de tuítes em 18 horas.


Eliane Brum: O Brasil queimou – e não tinha água para apagar o fogo

Eu vim ao Rio para um evento no Museu do Amanhã. Então descobri que não tinha mais passado

Então descobri que não tinha mais passado.

Diante de mim, o Museu Nacional do Rio queimava.

O crânio de Luzia, a “primeira brasileira”, entre 12.500 e 13 mil anos, queimava. Uma das mais completas coleções de pterossauros do mundo queimava. Objetos que sobreviveram à destruição de Pompeia queimavam. A múmia do antigo Egito queimava. Milhares de artefatos dos povos indígenas do Brasil queimavam.

Vinte milhões de memória de alguma coisa tentando ser um país queimavam.

O Brasil perdeu a possibilidade da metáfora. Isso já sabíamos. O excesso de realidade nos joga no não tempo. No sem tempo. No fora do tempo.

O Museu Nacional em chamas. Um bombeiro esguichando água com uma mangueira um pouco maior do que a que eu tenho na minha casa.

O Museu Nacional queimando. Sem água em parte dos hidrantes, depois de quatro horas de incêndio ainda chegavam caminhões-pipa com água potável. O Museu Nacional queimando. Uma equipe tentava tirar água do lago da Quinta da Boa Vista. O Museu Nacional queimando. A PM impedia as pessoas de avançar para tentar salvar alguma coisa. O Museu Nacional queimando. Outras pessoas tentavam furtar o celular e a carteira de quem tentava entrar para ajudar ou só estava imóvel diante dos portões tentando compreender como viver sem metáforas.

Brasil, é você. Não posso ser aquele que não é.

O Museu Nacional queimando.

O que há mais para dizer agora que as palavras já não dizem e a realidade se colocou além da interpretação?

Diante do Museu Nacional em chamas, de costas para o palácio, de frente para onde deveria estar o povo, Dom Pedro II em estátua. Sua família tinha tentado inventar um país e o fundaram sobre corpos humanos. Seu avô, Dom João VI, criou aquele museu no Palácio de São Cristóvão. Dom Pedro II está no centro, circunspecto, um homem feito de pedra, um imperador. Diante da parte esquerda do museu, indígenas de diferentes etnias observam as chamas como se mais uma vez fossem eles que estivessem queimando. Estão. É o maior acervo de línguas indígenas da América Latina, diz Urutau Guajajara. É a nossa memória que estão apagando. É o golpe, é o golpe. Poderiam ter salvo, e não salvaram, ele grita.

Nunca salvaram. Há 500 anos não salvam.

As costas de Pedro ferviam.

Quando soube que o museu queimava, eu dividi um táxi com um jornalista britânico e uma atriz brasileira com uma câmera na mão. “Não é só como se o British Museum estivesse queimando, é como se junto com ele estivesse também o Palácio de Buckingham”, disse Jonathan Watts. “Não há mais possibilidade de fazer documentário”, afirmou Gabriela Carneiro da Cunha. “A realidade é Science Fiction.”

Eu, que vivo com as palavras e das palavras, não consigo dizer. Sem passado, indo para o Museu do Amanhã, sou convertida em muda. Esvazio de memória como o Museu Nacional. Chamas dentro de todo ele, uma casca do lado de fora. Sou também eu. Uma casca que anda por um país sem país. Eu, sem Luzia, uma não mulher em lugar nenhum.

A frase ecoa em mim. E ecoa. Fere minhas paredes em carne viva.

“O Brasil é um construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais.”

A frase reverbera nos corredores vazios do meu corpo. Se a primeira brasileira incendiou-se, que brasileira posso ser eu?

O que poderia expressar melhor este momento? A história do Brasil queima. A matriz europeia que inventou um palácio e fez dele um museu. Os indígenas que choram do lado de fora porque suas línguas se incineram lá dentro. E eu preciso alcançar o Museu do Amanhã. Mas o Brasil já não é o país do futuro. O Brasil perdeu a possibilidade de imaginar um futuro. O Brasil está em chamas.

O Museu Nacional sem recursos do Governo federal. Os funcionários do Museu Nacional fazendo vaquinha na Internet para reabrir a sala principal. O Museu Nacional morrendo de abandono. O Museu Nacional sem manutenção. O Rio de Janeiro. Flagelado e roubado e arrancado Rio de Janeiro. Entre todos os Brasis, tinha que ser o Rio.

Ouço então um chefe de bombeiros dar uma coletiva diante do Museu Nacional, as labaredas lambem o cenário atrás dele. O bombeiro explica para as câmeras de TV que não tinha água, ele conta dos caminhões-pipa. E ele declara: “Está tudo sob controle”.

Eu quero gargalhar, me botar louca, queimar junto, ser aquela que ensandece para poder gritar para sempre a única frase lúcida que agora conheço: “O Museu Nacional está queimando! O Museu Nacional está queimando!”.

O Brasil está queimando.

E o meteorito estava dentro do museu.


El País: Luciano Hang e o pelotão de empresários ‘anticomunistas’ pró-Bolsonaro

Cabo eleitoral do militar reformado, o dono da rede de lojas Havan conclama empresários a se unirem à causa. No início de agosto, um café da manhã reuniu 62 deles para ouvir as propostas do candidato

Por Fernanda Becker e Regiane Oliveira, do El País

Luciano Hang, proprietário da rede de lojas Havan, não é do tipo que foge de polêmica. Mesmo sendo frequentemente citado nas páginas dos jornais por controvérsias envolvendo seu nome, decidiu abrir uma página pessoal no Facebook, em novembro de 2017, e tem utilizado o espaço para divulgar vídeos que classifica de "motivacionais", a fim de compartilhar sua vivência no dia a dia da empresa. Com 1,3 milhão de seguidores, Hang é um dos cabos eleitorais do candidato à presidência Jair Bolsonaro, conforme mostrou uma reportagem do EL PAÍS publicada na semana passada.

O empresário tem usado seu canal no Facebook para divulgar seu voto e conclamar outras pessoas a se unirem ao seu movimento. Se a adesão ao discurso de Hang tem sido bem sucedida ainda não é possível saber. Mas ele não está sozinho nessa missão. Ainda que sem o ímpeto do proprietário da Havan, outros empresários já foram a público anunciar sua intenção de votar no ex-militar. São eles Meyer Nigri (Tecnisa), Bráulio Bacchi (Artefacto), Sebastião Bomfim Filho (Centauro) e Luiz Antonio Nabhan Garcia (União Democrática Ruralista). Todos participaram de encontros com o presidenciável, como um café da manhã, ocorrido em 10 de agosto, que reuniu 62 empresários.

À primeira vista modesto, o número de apoiadores de Bolsonaro entre a nata empresarial do país surpreende na primeira eleição presidencial marcada pela proibição do financiamento de campanhas por empresas. Outros candidatos não têm tido, até o momento, o mesmo engajamento público. Os apoiadores de Bolsonaro têm em comum a insatisfação com os partidos de esquerda, aos quais creditam uma vocação "comunista". “Apoio quem seja contra a esquerda, Bolsonaro, Alckmin ou qualquer outro", afirmou o fundador da Tecnisa à revista Piauí. Também lhes agrada que o candidato do PSL à presidência não tenha pedido ajuda para campanha. "Em quase 40 anos em financeiro de empresas, nunca vi um candidato não pedir dinheiro", disse Bacchi, da Artefacto, à Folha.

Luiz Antonio Nabhan Garcia, presidente da UDR, realizou uma caravana no interior de São Paulo, reduto de Geraldo Alckmin, em prol do candidato. Em um evento em julho no Pará, o pecuarista aproveitou para pedir: "Quando o senhor se tornar presidente, vê o que fará com essa gente da Funai, do Ibama, do Ministério Público, que não respeita a propriedade privada”, ressaltou o jornal Estadão.

Para Hang, a falta de presença do empresariado na vida política do país no passado é o "que levou o país à situação atual". "Acho que a falta de entrosamento político da classe empresarial levou o país à situação em que nos encontramos hoje. Houve uma terceirização da política a pessoas de mau caráter, corruptas, comunistas, socialistas e vigaristas", lamenta.

O dono da Havan não acredita que seu envolvimento explícito com um candidato político seja prejudicial aos negócios. "Quanto mais eu falo a verdade, mais eu vendo", afirma. De acordo com o empresário, a Havan cresceu 45% em vendas só no primeiro semestre deste ano e deve fechar 2018 com um faturamento de 7 bilhões de reais. "Estou do lado certo", afirma, em defesa de sua estratégia. "Nunca vi alguém de esquerda se dar bem na vida, só vai bem quem pensa logicamente. Lamentavelmente, você não vê um esquerdista, um populista, um comunista que tenha ganhado dinheiro honestamente trabalhando ou montando sua empresa", garante.

O ativismo de Hang o levou a aproveitar de um ponto de difícil fiscalização da lei eleitoral para investir dinheiro para que postagens a favor de Bolsonaro chegassem a mais pessoas no Facebook. Pela lei eleitoral, a propaganda política paga na rede só pode ser feita pelos próprios candidatos, partidos e coligações, não pode ser terceirizada. "Se nós não nos posicionarmos, o Brasil vira uma Venezuela e nós teremos que largar este país (...) Fiz um vídeo abrindo meu voto, de forma nenhuma eu pedi voto para ninguém. Chega num ponto do vídeo em que falo: cada brasileiro, cada pessoa tem o direito de escolher um candidato, independentemente do meu." Depois de o EL PAÍS publicar reportagem revelando o pagamento, o TSE mandou retirar do Facebook dele o vídeo pró-Bolsonaro.

Ativismo nas redes
A cruzada de Hang para libertar o país daqueles a quem chama de socialistas, comunistas e esquerdistas não é recente. Ele já abriu várias frentes de disputa nas redes sociais. Em 16 de maio de 2018, antes da greve dos caminhoneiros, publicou um vídeo em frente a um posto de gasolina no qual criticava o aumento do preço dos combustíveis. No vídeo ele anunciava que os postos de combustíveis da Havan venderiam 20.000 litros de gasolina sem impostos, no valor de 2,69 reais o litro.

O vídeo recebeu 1,2 milhão de visualizações. Dias depois, em 22 de maio teve início a greve, sobre a qual Hang falou diversas vezes em postagens no seu canal, sempre reivindicando a redução de impostos para empresas e a privatização da Petrobras. Após a mobilização do caminhoneiros, a Procuradoria-Geral da República solicitou uma investigação contra grupos suspeitos de inflar a greve. Entre os investigados, estava Hang. O empresário havia sido identificado como uma das lideranças do movimento mesmo sem ser parte da categoria, segundo uma reportagem da CBN.

Daniel Ricken, da Procuradoria da República de Itajaí, informou que a representação contra Hang chegou ao Ministério Público, mas que não foi levada adiante. O MP entendeu que pelo fato das empresas de Hang não se enquadrarem como serviços de interesse público, as ações de Hang durante a greve não eram ilícitas. Questionado sobre a ação do empresário de comercialização de gasolina a 2,69 reais por litro, o Ministério Público declarou que desconhece a informação. Hang afirma que tudo fez parte de uma fake news e que estava na Europa na época da greve.

Em janeiro deste ano, Hang também já havia publicado em sua página um vídeo anunciando que no dia seguinte, às 13h, soltaria 13 minutos de fogos de artifício em comemoração à condenação do ex-presidente Lula. De fato, o empresário transmitiu ao vivo no Facebook a prometida queima de fogos ao som do hino nacional. O vídeo rendeu 960.642 visualizações, mais de 50.0000 reações (em sua ampla maioria positivas) e 10.000 compartilhamentos, mas provocou uma série de protestos em frente a lojas da Havan em diversos municípios de Santa Catarina. Faixas acusavam o empresário de sonegar impostos. Ele respondeu com um vídeo que rendeu ao seu canal oficial o maior engajamento já registrado em uma postagem da página. Publicado em 27 de janeiro, o vídeo de Hang exibia o empresário em frente a uma de suas lojas negando as denúncias dos manifestantes enquanto exibia uma cópia de seu certificado de antecedentes criminais. O vídeo obteve 2.903.900 visualizações e 64.000 compartilhamentos.

Hang minimiza os protestos: "Meia dúzia de gatos pingados, não são clientes da Havan. Só boi de piranha pagos para fazer isso. Ninguém tem que ter medo de falar a verdade e ir contra o que está errado nesse país". Ele refuta as acusações de sonegação. "Minha empresa não depende de Governo ou de empréstimo para Governo para vender. Nos anos do PT, se compramos alguma coisa pelo BNDES, foram máquinas e equipamentos financiados pelo Finame [Agência Especial de Financiamento Industrial]. Quem recebe é a empresa de quem compro o equipamento, não a minha pessoa."

DISPUTAS LEGAIS
As controvérsias envolvendo Luciano Hang não se restringem ao seu ativismo político. Segundo o Ministério Público Federal, o problemas com a justiça envolvendo a Havan e seu proprietário começaram em 1999, quando a Procuradoria da República em Blumenau deflagrou uma operação de busca e apreensão na empresa, que resultou na autuação da Havan em 117 milhões de reais pela Receita Federal e 10 milhões pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A autuação foi considerada a maior já realizada pela Receita Federal até então. A empresa recorreu a um financiamento da dívida por meio do REFIS e obteve um prazo, estimado pelo MPF à época, de 115 anos para quitar a multa.

Em outro processo, que correu em segredo de Justiça, o empresário foi condenado a 13 anos, 9 meses e 12 dias de reclusão em regime fechado pelo crime de evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Hang e os demais réus recorreram da decisão sucessivas vezes e conseguiram, inclusive, reduzir a pena do empresário para a 5 anos, 8 meses e 1 dia de reclusão em regime semiaberto.

Em 2016, o ministro Rogerio Schietti Cruz do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em decisão monocrática afirmou que o prazo prescricional de oito anos que começa a correr após a condenação já havia vencido, de modo a punibilidade estava extinta, ou seja, os réus, mesmo condenados, não teriam mais que cumprir a pena pois o judiciário perdeu os prazos para responder aos recursos da defesa. O caso nunca transitou em julgado e por isso o certificado de antecedentes criminais de Hang permanece limpo. "Deus é o meu advogado, não tenho medo de falar a verdade. O tempo é o senhor da verdade. Quando você é acionado [na Justiça] por coisas inverídicas, no final o tempo mostra que você está certo", diz Havan.