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El País: A máquina de ‘fake news’ nos grupos a favor de Bolsonaro no WhatsApp

Reportagem do EL PAÍS acompanhou mobilização on-line por três semanas e detectou ativação para responder mídia, mentiras e teoria de conspiração

Difusão de mentiras camufladas como notícias, vídeos que tentam desmentir publicações negativas da imprensa, desconfiança das pesquisas e falsos apoios de celebridades à candidatura Jair Bolsonaro. Assim funcionam no aplicativo de mensagens WhatsAapp uma amostra de grupos públicos de eleitores do presidenciável do PSL. Nas últimas três semanas, a reportagem do EL PAÍS se inscreveu em três desses grupos – juntos, eles publicam mais de 1.000 mensagens ao dia. Em dois deles a presença de fake news é mais evidente e forte do que em outro, mas em todos o discurso é o de que é preciso usar a plataforma, de uso massivo em todas as faixas de renda no país e de difícil monitoramento, para combater a "grande mídia tendenciosa" e ajudar na disseminação das mensagens.

No acompanhamento da reportagem ou no monitoramento dos pesquisadores da universidade, aparecem resultados semelhantes que incluem a difusão de informações falsas. Para entrar nos ambientes, basta receber um convite de algum dos participantes ou buscar o caminho pela Internet. Foi o que o EL PAÍS fez para entrar em dois grupos nos quais todos os participantes podem trocar informações. No “Brasil é Bolsonaro 17” e “Mulheres de Bem” se pode identificar uma circulação intensa de boataria criada por apoiadores voluntários –não se constatou, a princípio, a presença de militantes pagos.

Em outro grupo, chamado “Vídeos do Bolsonaro”, onde são distribuídas imagens para viralizar, são só dois administradores e ambos vivem no exterior (Estados Unidos e Portugal) – raramente aí há informações falsas. A maioria das mensagens de “Vídeos do Bolsonaro” trata de promover a candidatura do militar reformado do Exército ou exibir discursos de quem está ao seu lado, como os feitos pelo seu vice, o general Hamilton Mourão. "Além da guerra entre os partidos esta eleição será marcada pela guerra virtual. Uma guerra entre a grande mídia tendenciosa e a mídia nas redes sociais onde tem de tudo, mas com certeza é mais democrática e está se mostrando mais poderosa", diz Carlos Nacli, que mora em Portugal e afirma ter criado 50 grupos para fazer campanha.

As estratégias

De maneira geral, todos os grupos acompanhados servem para produzir respostas às notícias publicadas pela imprensa. Por exemplo, depois que, com base em documentos do Ministério das Relações Exteriores, a Folha de S. Paulonoticiou que uma das ex-mulheres de Bolsonaro relatou ter sido ameaçada por ele em 2011, todos os grupos divulgaram um vídeo em que a Ana Cristina Valle “desmente” a informação. Ela é candidata a deputada federal pelo Rio de Janeiro e, com autorização de seu ex-marido, passou a usar o mesmo sobrenome dele.

Em outra frente, os grupos distribuem fake news. Um dos boatos é o de que as urnas eletrônicas no Brasil já foram fraudadas – apesar de que nenhuma irregularidade tenha sido comprovada em 22 anos de uso do sistema, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral. Há ainda a falsa informação de que Manuela D’ávila (PCdoB), candidata a vice-presidente na chapa do petista Fernando Haddad (PT), teria recebido diversas ligações de Adélio Bispo de Oliveira, o criminoso que esfaqueou Bolsonaro, no mesmo dia do atentado, em 6 de setembro. Há ainda questionamentos em que se tenta imputar a culpa do ataque à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) ou em adversários do político. Num deles, há uma montagem de fotos de 12 políticos seguidos da pergunta: “Quem mandou matar Bolsonaro?”. Até o momento, as investigações da Polícia Federal apontam que o agressor agiu sozinho, era um lobo solitário.

Outro boato que circulou nos grupos foi o de que uma entrevista com Adélio Bispo de Oliveira seria publicada em breve e nela o agressor diria que o atentado foi planejado pelo próprio Bolsonaro e sua equipe: ou seja, uma fake news para alertar sobre uma possível fake news futura. Algumas das mensagens diziam que a publicação ocorreria nesta quarta-feira (dia 26). Outras, no dia 5 de outubro, a dois dias do primeiro turno das eleições. Eis uma delas: “Adelio foi autorizado a dar entrevista dia 5 sexta-feira depois que acabar o horário eleitoral. Fontes confiáveis e dignas viram os textos. Ele vai dizer q foi o próprio partido de Bolsonaro que armou tudo. Vai contar todos os detalhes. Não acreditem, meus irmãos, será a última cartada nojenta, nazista dessa gentalha vermes vermelhos”.

Essas antecipações de “notícias” também criam diversas teorias da conspiração. A jornalista Joice Hasselmann, que é candidata a deputada federal pelo PSL de São Paulo, divulgou um vídeo no qual diz que uma fonte confiável lhe disse que um órgão de imprensa teria recebido 600 milhões de reais para, nesta reta final de campanha, detonar a candidatura de Bolsonaro. Mesmo que ela não tenha apresentado nenhuma prova, a notícia se propaga como fogo em mato seco.

Além da mobilização dos voluntários, a própria campanha de Bolsonaro distribuiu ela mesma informações falsas, como a de que códigos das urnas eletrônicas foram passados à Venezuela ou mentiras a respeito da mobilização de mulheres. O candidato, porém, também tem sido alvo de manipulações. Há um áudio falso em que ele xingaria enfermeiras no hospital, por exemplo. Até mesmo uma reportagem do EL PAÍS sobre um caso de pedofilia no Rio teve o título falseado no Facebook para ligar o acusado a Bolsonaro.

Pesquisas e falsos apoios

Outro foco de constante desconfiança nos grupos pró-Bolsonaro é sobre pesquisas eleitorais. Os militantes creem que Bolsonaro será eleito no primeiro turno. Quando leem algo de que ele estancou nas pesquisas Ibope ou Datafolha abaixo dos 30% e que Fernando Haddad vem se aproximando dele, rapidamente dizem que os dados foram fraudados. Criticam a rede Globo, que costuma contratar alguns desses institutos, ou os jornais que a divulgaram, principalmente Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Alguns desses membros passaram a pedir que as pessoas colaborassem com uma vaquinha virtual (um crowdfunding) para bancar uma pesquisa sobre intenções de votos para presidente, sobre o regime de Governo e sobre o voto distrital. A iniciativa foi proposta pelo Movimento Parlamentarista Brasileiro, uma entidade suprapartidária sediada no Rio Grande do Sul que quer mensurar o apoio ao regime parlamentar. “Não temos vinculações com os partidos ou candidatos, mas queremos aproveitar esse momento para sabermos o apoio que nossas ideias têm na sociedade”, explicou o advogado Vinicius Boeira, presidente dessa organização.

Nesses grupos ainda há falsas declarações de apoios à candidatura do militar de extrema direita. Por exemplo, difundiram imagens de que o apresentador e empresário Silvio Santos, o treinador e ex-goleiro Rogério Ceni e a cantora Sandy estariam fazendo campanha para Bolsonaro. Algo que foi desmentido por todos eles. A mensagem falsa de Silvio dizia o seguinte: “Desde quando fundei meu próprio canal [o SBT], sempre tive como princípio a união da família brasileira. Hoje, vejo somente uma pessoa disposta a praticar o mesmo princípio na política: o sr. Jair Bolsonaro. Por isso, ele tem não só o meu apoio, mas o meu voto e os votos de todos de minha família!”. Em nota, o apresentador afirmou que não declarou apoio a ninguém e que não revela em quem votará.

Houve também uma tentativa de complementar, com mentiras, informações publicadas na imprensa. Na semana passada, o jornalista Ricardo Noblat, da revista Veja, publicou em seu blog que um dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal pretendia se aposentar caso Bolsonaro fosse eleito. O nome desse ministro não foi revelado. A informação era de que esse ministro queria que o atual presidente, Michel Temer (MDB), indicasse seu sucessor. Não daria essa oportunidade a Bolsonaro, já que o magistrado seria obrigado a se aposentar nos próximos quatro anos, pois está próximo de completar 75 anos, data limite para o afastamento compulsório. Nesse período, apenas dois ministros chegarão a essa idade, Celso de Mello, que completa 75 anos em novembro de 2020, e Marco Aurélio Mello, em julho de 2021. Ainda assim, a rede de fake news pró-Bolsonaro atribuiu a informação a Gilmar Mendes, o polêmico ministro, de 63 anos de idade, que desperta a ira de diversas correntes políticas porque costuma conceder habeas corpus a dezenas de condenados. “Se o Gilmar Mendes se aposentar, ele será o maior cabo eleitoral do Bolsonaro”, advertiu um dos membros dos grupos pró-Bolsonaro.

Uma outra estratégia é de tentar mobilizar os bolsonarianos, como alguns deles se chamam, para criticar os opositores do candidato. Nesses grupos é comum se deparar com mensagens de pessoas pedindo para entrarem nos perfis de artistas que se declararam a favor da campanha #EleNão, contra Bolsonaro, e “descurtirem” as publicações. Dizia uma das mensagens, seguida dos links das páginas dos artistas: “Vamos dar dislike: negativar -- Meta pra hoje MILHÕES DE DESLIKES vamos mostrar para ele que nossa bandeira não é vermelha”. A campanh, liderada por mulheres opositoras de Bolsonaro, promete uma mobilização nas ruas no próximo dia 29.

Como esses grupos são públicos é comum eles serem invadidos por militantes de partidos adversários de Bolsonaro. Na madrugada do último sábado, por exemplo, ao menos três simpatizantes do PT entraram no grupo “Mulheres de Bem” e passaram a xingar as participantes. Enviaram imagens pornográficas, além de dezenas de fotos dos candidatos petistas. Foram mais de 500 mensagens em menos de quatro horas. Na manhã seguinte, acabaram sendo expulsos do grupo. Como os membros ficaram em alerta, qualquer um que postasse uma informação que não fosse de apoio a Bolsonaro virava potencial alvo. Por exemplo, uma apoiadora perguntou se era verdadeira uma reportagem crítica sobre o economista Paulo Guedes, o possível ministro da Fazenda do militar. Em dois minutos outros participantes decretaram: “Ela tem de ser expulsa daqui!”. Ao que a mulher disse: “Calma, gente. Eu sou Bolsonaro. Só quero saber se é verdade para saber como responder”. A desconfiança que o candidato tem com relação a quase tudo parece contagiar seus seguidores.


El País: “O problema do Bolsonaro é do PSDB e DEM. Sem Lula, temos Ciro e Haddad”, diz José Dirceu

Ex-ministro de Lula viaja de ônibus pelo país, para lançar livro escrito enquanto estava preso, e diz que não pretende participar do Governo se o PT ganhar a eleição. “A elite que reze para que eu fique bem longe”

Por Marina Rossi, do El País

“Prazer, sou Zé Dirceu. Desculpe o atraso”. Assim o homem que já foi o mais poderoso do Governo Lula, condenado a mais de 30 anos de prisão, chegou, atrasado mais de uma hora, para a entrevista concedida ao EL PAÍS dentro de um ônibus leito em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife. É nesse ônibus que José Dirceu (Passa Quatro, 1946), ex-ministro-chefe da Casa Civil, está viajando desde o início de setembro para divulgar seu livro Zé Dirceu – Memórias volume 1 (editora Geração). Assessores, o editor, a mulher, a filha de sete anos e a sogra acompanhavam a viagem do petista naquela semana, que incluiu Sergipe, Maceió, Pernambuco e Paraíba. A expectativa é visitar todos os Estados do país até o final de novembro.

O primeiro volume do livro – que vendeu 25.000 exemplares e está na segunda impressão – foi escrito durante os quase dois anos e meio em que o fundador do PT esteve detido, no total, entre os processos no âmbito do mensalão e da Lava Jato (leia mais no quadro abaixo). Enquanto esteve preso, era conhecido por sua disciplina militar. Assim que chegou ao Complexo da Papuda pela primeira vez, em 2013, quis entender das regras locais, para não violar nenhuma. Realizava diariamente uma rotina de exercícios e evitava entrar em qualquer discussão. "Na cadeia, todo mundo sabe o limite de discussão sobre religião, futebol, política, todo mundo conversa até um certo ponto", diz, com propriedade.

Preso três vezes - uma pelo mensalão, condenação pela qual recebeu indulto, e duas pela Lava Jato - o ex-ministro afirma estar “sempre preparado para o pior”, embora acredite que não voltará à cadeia novamente. Bem humorado, bronzeado e com alguns quilos a mais desde que deixou a prisão pela última vez, em junho deste ano, falou sem parar por mais de uma hora. “O que dei de entrevista até agora, se juntar tudo dá um livro de 500 páginas”, afirmou, no dia seguinte ao lançamento de seu livro no Recife. O evento encheu o auditório do Sindicato dos Bancários com militantes, que o chamam de “comandante”.

O segundo volume do livro já está em fase de produção com detalhes que ele vem anotando durante a viagem. Luiz Fernando Emediato, dono da Editora Geração, que o está acompanhando na caravana, diz que a expectativa com as vendas é alta. “O piso dele são 300.000 exemplares”.

Pergunta. Durante essa caravana de lançamento do livro, o senhor sofreu algum episódio de hostilidade?
Resposta. Nenhum. Nem em restaurante, nem em estrada, nem em posto de gasolina.

P. E qual leitura o senhor faz desse momento de tanto ódio? O PT tem algum papel nisso?
R. O apoio que Lula tem e o crescimento do PT interligam a memória do legado do Lula com as consequências do golpe. O cidadão lembra do Lula. A família dele, onde antes trabalhavam quatro pessoas, o filho estava na faculdade, a mulher havia comprado uma moto, a filha abriu um micronegócio e agora só tem um trabalhando. E o golpe, a Lava Jato e antes disso, eles não terem reconhecido o resultado da eleição, terem participado do Governo Temer, isso custou muito caro para eles.

P. Eles quem?
R. O PSDB principalmente, que é o partido mais rejeitado hoje, vai ser um desastre eleitoral, o Temer, o DEM, que também está caminhando para ter um péssimo resultado eleitoral. De certa maneira, há um sentimento de que houve uma injustiça com Lula, que o Lula é perseguido. E quando se diz que alguém é perseguido, você não entra mais no mérito de por que a pessoa está respondendo por um suposto crime, você parte do princípio que ele é perseguido. Como não há provas concretas contra o Lula, o senso comum diz que não tem provas. Então acho que eles perderam. Historicamente acho que é a maior derrota que a direita já teve no Brasil.

P. Dentro desse contexto, o senhor acha que existe a possibilidade de o PT ganhar essas eleições e não levar?
R. Acho improvável que o Brasil caminhará para um desastre total. Na comunidade internacional isso não vai ser aceito. E dentro do país é uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição.

P. O senhor consegue imaginar o Brasil governado por Bolsonaro?
R. Já passamos pelo Jânio Quadros, sabemos o que é. Passamos pelo Temer. Tem governo mais irresponsável do que o dele?

P. O senhor acha que um Governo de Bolsonaro seria igual ao de Temer?
R. Não. Bolsonaro é o Temer mais a regressão de comportamento cultural e o autoritarismo não democrático. O Governo do Bolsonaro com Paulo Guedes vai ser um arrasa quarteirão. Mas isso não dá certo em lugar nenhum. A Argentina aí e olha o resultado: privatizar tudo, tirar o Estado, cortar gasto, dá no que deu. A Argentina era mostrada como um modelo para nós há um ano atrás. O Brasil tem uma equação a ser resolvida: O Estado de bem-estar social e a distribuição de renda não cabem na estrutura tributária, bancária e financeira que existe no país. Porque ela se apropria da renda e não se paga o imposto quem tem que pagar. E como se gasta 400 milhões com os juros da dívida interna. Nós cobramos juros reais maior que qualquer país da América Latina...

P. Mas a gente sempre cobrou esses juros, inclusive durante o Governo do PT.
R. Mas isso tem que mudar.

P. Lula teve, ao longo dos oito anos de Governo, alta aprovação, maioria no Congresso. Por que não foi feita uma reforma tributária naquele momento?
R. Porque nós não temos força para fazer isso, nem hoje e nem amanhã.

"Eu fui cassado antes de qualquer investigação. É um absurdo, é uma decisão política, para me tirar do Governo, da vida política do país"

P. Então isso não vai mudar.
R. Não, tem que acumular força. Eles priorizaram a mobilização popular, deles, da classe média, durante o nosso governo.

P. E por que as reformas não foram feitas pelo Governo do PT?
R. Porque tentamos. Tentamos a reforma tributária, tentamos a reforma política, o Lula tentou, a Dilma também. Não fomos nós que não queríamos. Nós não tínhamos força. E Lula tinha que tomar uma decisão: o que é prioritário? Fazer reforma política, resolver o problema das Forças Armadas, resolver o problema da riqueza e da renda ou atacar a pobreza e a miséria, fazer o Brasil crescer, ocupar um espaço na América Latina, ocupar o espaço que o Brasil tem no mundo? Ele fez a segunda opção. Era justo, era a opção dele. Muitos podiam ter a opinião de que era preciso fazer as reformas mesmo que isso custasse para nós cair do Governo.

P. O que deu errado no segundo Governo Dilma?
R. Não deu errado. Eles derrubaram a Dilma independentemente se ela estava certa ou errada, eles iam derrubar. E a recessão, 70% dela é a crise política. Não aprovaram o ajuste dela e fizeram a pauta bomba. Criaram uma crise política no país que ninguém comprava, ninguém vendia e ninguém emprestava.

P. O senhor acha que existe a possibilidade de um novo golpe militar?
R. Acho muito remoto. Não acredito.

P. Nem via um eventual governo de Bolsonaro?
R. Bolsonaro não ganha essa eleição.

P. Por quê?
R. Porque não tem maioria no país para as ideias dele.

P. Em alguns cenários ele passa de 40% dos votos no segundo turno.
R. Segundo turno sempre é assim. Não tem para onde correr no Brasil. O eleitorado tem posição política. É mentira que o eleitorado brasileiro não tem consciência política, que o povo é conservador. Senão Lula não teria 45% dos votos.

P. O senhor participaria de um eventual governo de Haddad?
R. Não.

P. Nem como “conselheiro”, que é como o PT vem dizendo que é o papel de Lula frente à campanha?
R. Nada. Eu sou cidadão. Não posso ser votado e não posso votar pelos próximos 82 anos [a suspensão dos direitos políticos faz parte de sua pena por corrupção]. Só se a medicina me fizer viver por 200 anos. Eu vou continuar fazer o que estou fazendo: escrevendo, estudando, fazendo palestra, viajando pelo país.

P. O senhor dorme bem?
R. Durmo muito bem. Na cadeia, no começo, você sempre tem dificuldade, né? A primeira coisa que você precisa fazer é endurecer a lombar e fortalecer os músculos das costas, porque as camas são de ferro e não pode ser de material que possa ser transformado em arma, né? Os colchões são [aproxima o indicador do dedão, para dizer que são finos]. Preso sempre tem um pouco de insônia, ansiedade, né? Mas aí ou você toma medicação ou você se disciplina. Não [pode] dormir de dia...

P. O senhor não tomou nenhum remédio?
R. Nos primeiros dois meses, eu tomei um indutor de sono. Depois nunca mais tomei nada.

P. E fazia exercício para fortalecer a lombar...
R. Todo preso faz exercício.

P. Eduardo Cunha [ex-deputado do MDB, que liderou o impeachment e foi preso em 2016 no mesmo complexo que Zé Dirceu, também no âmbito da Lava Jato] faz exercício? Como era a convivência com ele?
R. Faz. Ele é muito disciplinado. Caminha muito, faz serviços gerais, coletivos, sem nenhum problema, se precisar lavar, ele lava, se tem que limpar as portas... porque como era um hospital [eles ficaram presos no Complexo Médico Pinhais, no Paraná], nós fazíamos muita limpeza, né? Por causa de risco de contaminação. Todos os presos têm muito cuidado com a higiene. Ele passa metade do tempo cuidando dos processos dele, e metade do tempo lendo a Bíblia, porque ele é evangélico, um estudioso da Bíblia. A minha convivência com ele era muito simples, muito boa.

P. Algum preso tinha algum problema?
R. Não, porque na cadeia todo mundo sabe o limite de discussão sobre religião, futebol, política, todo mundo conversa até um certo ponto. Quando começa a discussão, os mais experientes já vão pra cela deles e falam “isso aí vai acabar mal...”. Mas não houve nenhum incidente grave.

P. O senhor pensa que pode voltar à prisão?
R. Legalmente não. Pelo que o Supremo determinou, eu não posso ser preso por fundamento, por uma decisão de segunda instância. Até porque é plausível, pela prescrição e pela dosimetria, que a minha pena de 30 anos e nove meses não se mantenha. Portanto eu já cumpri o regime fechado. E o segundo processo [na Lava Jato, foi sentenciado em duas ações penais por corrupção e lavagem de dinheiro: em uma, é acusado de receber propina da Engevix, e na outra, por ter favorecido a contratação da empresa Apolo Tubulars pela Petrobras], eu tenho que ser absolvido. Se você se der ao trabalho de ler o processo, vai ver que eles me condenaram, mas ainda está em votação. O placar estava em dois a um, foi pedido vista e se tiver o voto divergente fica para o ano que vem. E isso é segundo instância, então em tese eu não posso ser preso. Em tese. Terceira instância tem que julgar. Se cair a pena por prescrição e dosimetria, eu já estou no outro regime, então já é uma outra situação.

P. Então o senhor não trabalha com essa possibilidade?
R. Sempre trabalho, né? Estou sempre preparado para o pior.

P. E o que significaria o senhor e Lula estarem presos?
R. Já estivemos presos juntos. Não muda nada no Brasil.

P. E para o PT? Não significa nada? As duas principais cabeças do PT estarem presas não significa nada?
R. Estão presas mas não param de dirigir, de comandar, de participar.

P. Não é simbólico?
R. O eleitor não diz isso.

"O problema do Bolsonaro é do PSDB e do DEM. Eles que não tem alternativa. Nós, sem o Lula temos Ciro e Haddad. Eles não tem"

P. Estou dizendo para o partido.
R. Se a condenação fosse justa... Eu quero que alguém prove. Eu fui cassado antes de qualquer investigação. É um absurdo, é uma decisão política, para me tirar do Governo, da vida política do país. Eu fui condenado na Lava Jato, é um absurdo a condenação, me ligam a cinco processos. Não tem uma prova que eu esteja ligado às licitações. Dos 45 milhões de propina que a empresa pagou eu sou responsável por devolver 15? Eu não tenho nenhuma ligação com aquilo. Ninguém prova que eu fiz qualquer intermediação, tráfico de influência, participei de qualquer licitação. Cometi erros? Cometi. Falei para o [juiz Sergio] Moro no depoimento.

P. Quais erros?
R. Que eu tinha que ter declarado empréstimo que foi feito no Imposto de Renda. O Milton Pascowitch [empresário, considerado pela Lava Jato um operador de propinas] fez duas reformas para mim e eu não paguei. Aí tudo virou propina.

P. Quais outros erros o senhor cometeu?
R. No caso é esse. Não tive relação com a Petrobras, não me meti em licitação, não peguei dinheiro...

P. O único erro que o senhor cometeu foi não ter declarado o empréstimo no Imposto de Renda?
R. Eu falei pra ele [Moro]: se tivesse que ser condenado, era pela Receita Federal e não criminal. E mais: Eles não acham um diretor da Petrobras, um empresário que fale de mim. Os que falaram da Engevix falaram na quarta vez porque a delação é totalmente fajuta. Porque no começo eles falaram que nunca trataram da Petrobras comigo, que eu os levei para o Peru para disputar licitações. Disseram que me pagaram 900.000 reais. Eu não trabalhava para ganhar dinheiro, eu trabalhava para fazer política.

P. A estratégia de priorizar a defesa de Lula até o último segundo, invés de anunciar um substituto foi acertada?
R. Certíssima. Tá aí o acerto: Nós temos 20% de votos. E vamos pra 30%. O Lula tem 40% do eleitorado, Haddad pode ter 30%. Nós não podemos abrir mão de algo que é legítimo, legal que é o direito do Lula ser candidato. O PT quer e a maioria da população quer. O ônus tem que ser com a Justiça que fez essa infâmia de impedir Lula de ser candidato. Segundo, o PT quer Lula como candidato, Lula quer ser candidato, por que nós vamos tirar? Terceiro, do ponto de vista de estratégia eleitoral era o melhor caminho: manter o eleitorado com Lula até o limite. Quem determinou o limite foi a Justiça que deu dez dias de prazo pra nós. Nós cumprimos e o Haddad assumiu. Não vejo que o Haddad vá perder ou ganhar por causa disso.

P. O senhor não pretende participar de nenhuma agenda de campanha de Haddad?
R. Não participo de campanha eleitoral.

P. Por quê?
R. Não é meu papel. Não preciso participar. Eu ajudo o PT fazendo o que eu estou fazendo.

P. Não é o seu papel, mas o senhor está trazendo bastante militante para os lançamentos, não?
R. Os militantes vêm me ver porque são 40 anos juntos. Os jovens, pela minha postura na prisão, pela minha história no PT, eles vêm porque querem me conhecer, querem falar comigo. Eu tenho 53 anos de direção política. Fui o principal dirigente do PT por quase duas décadas depois do Lula, então é natural que onde eu chego, pode ser que eu até tenha voto para me eleger ao que eu quiser em São Paulo, mas não é meu objetivo.

P. Até porque, o senhor não pode se candidatar.
R. Mesmo que eu pudesse, não seria de novo deputado. Eu quero fazer o que eu estou fazendo, estou muito bem assim. Tenho 72 anos, vamos supor que eu viva mais 15 anos, meu pai viveu até os 88 anos, minha mãe morreu com 87. Vamos tomar a idade do meu pai. Eu tenho mais 15 anos de vida. Tenho que organizar esses 15 anos da melhor maneira possível. Daqui a cinco anos vai diminuindo a capacidade de trabalho, daqui a dez anos mais.... Eu quero aproveitar. Gostaria de viajar para o exterior. Tenho amigos em todos os países. Mas eu estou impedido. Não legalmente, mas estou impedido pelo bom senso.

"[A elite] vai ter que entregar os aneis. Não dá para tirar o Brasil da crise sem afetar a renda, a propriedade e a riqueza da elite"

P. Seu passaporte não está com o senhor?
R. Não. Foi recolhido, mas agora eu não tenho mais essa cautelar porque o Supremo não me deu nenhuma medida cautelar. Mas o bom senso indica que eu não devo fazer isso.

P. Por quê?
R. Porque eu não devo fazer. Por que eu quero ir para o exterior?

P. O senhor acabou de falar que queria...
R. Mas isso é uma vontade minha. Não é uma necessidade. Necessidade que eu tenho é fazer o que eu estou fazendo, que eu me defenda aqui dentro. Eu estou me defendendo também, né?

P. Quando foi o momento em que o senhor percebeu que seria preso?
R. Quando o Supremo aprovou o trânsito em julgado parcial [em outubro de 2013], que é uma aberração, eu falei: vão nos prender. Um mês depois eu estava preso [pelo caso do mensalão]. Saí para passear, fui pra praia, porque sabia que era a última vez.

P. Pra onde o senhor foi?
R. Para Itacaré (BA). Eu voltei de Itacaré para Vinhedo (SP) e depois entrei no outro dia [na prisão]. Agora em março [deste ano] anunciaram três vezes que iam me prender. Então eu já estava esperando. Quando chegou aquele 4 de agosto [de 2015, quando foi preso novamente, desta vez pela Lava Jato], eu já estava esperando. Eu fiquei mais abatido porque a minha filha foi denunciada e meu irmão foi preso. O processo da minha filha foi arquivado depois. Mas aquilo era pressão psicológica para eu fazer delação. Nem meu irmão delatou e nem eu. Meu irmão está cumprindo pena em Taubaté, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.

P. O senhor se acha um perseguido político? Por que queriam tanto te prender?
R. Em 2013, todo mundo sabe, porque eu era, de certa forma, o sucessor natural do Lula. Eu não seria, na minha avaliação, mas eu era [considerado]. Eu era a peça principal do PT e da esquerda, sem falsa modéstia. Depois de 15 anos eu ainda sou uma das principais pessoas do PT e da esquerda brasileira. Estou falando porque as pessoas dizem. Eu não estava preocupado com isso, mas as pessoas falam.

P. O Mensalão nunca existiu?
R. O Mensalão, que é comprar deputado, não. Marcos Valério falou para a Folhaque ele está fazendo delação e vai provar que não houve mensalão.

P. E de onde surgiu essa teoria então?
R. De dois empréstimos feitos pela empresa de Marcos Valério Publicidade repassados pelo PT pelo Banco Rural para pagar dívidas de campanha e financiar campanha. Esses 53,4 milhões. Está provado que o negócio da Visanet não existiu [o Fundo Visanet foi criado em 2001 para promover a marca Visa e pertencia à Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, da qual o Banco do Brasil detinha 31,99%. No processo do mensalão, Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, foi acusado de liberar irregularmente mais de 70 milhões de reais do Fundo para a DNA, a agência de Marcos Valério. Pizzolato fora condenado a 12 anos de prisão pelo mensalão, mas fugiu do Brasil em 2013. Foi capturado em 2015 para cumprir sua pena]. Todos os serviços que foram prestados, foi feito uma auditoria, e foram recebidos. Isso foi uma invenção.

P. Isso tudo faz parte de um plano?
R. Da política. Não é só no Brasil que tem isso. Como Jânio se elegeu presidente? Contra a corrupção. Como Collor se elegeu presidente? Contra a corrupção. Como o golpe de 64 foi dado? Contra a corrupção e a subversão, mas era a corrupção primeiro.

P. Bolsonaro pode ser eleger contra a corrupção, então?
R. Não. Isso não pesa nada no voto dele. Nada. 45% dos eleitores estão conosco. Ele tem outros 45%, que é voto conservador, de direita, que não acredita mais no PSDB, que não vê opção nos outros. Ou que acredita nas ideias do Bolsonaro. Nas quatro ideias dele: Mulher é pra ficar em casa lavando roupa, filha mulher é uma tragédia, tem que matar bandido... O problema do Bolsonaro é do PSDB e do DEM. Eles que não têm alternativa. Nós, sem o Lula, temos Ciro e Haddad. Eles não têm. Não têm credibilidade mais no país. Nós temos. Nós não temos a elite do país e nem queremos ter.

P. Mas vai precisar dela para se eleger.
R. Se depender de mim... Eles que rezem para que eu fique bem longe. Não vamos precisar dela não. Ela vai ter que entregar os aneis. Não dá para tirar o Brasil da crise sem afetar a renda, a propriedade e a riqueza da elite. E acabar com a concentração de renda via juros do capital do sistema bancário e dos rentistas.

P. Por que agora vai ser possível fazer isso?
R. Porque antes tinha margem de manobra no orçamento do país para você fazer políticas sociais. Agora não há nenhuma.

P. Ou vai ser isso, ou será um governo paralisado, como foi o segundo mandato de Dilma?
R. Dilma fez um ótimo primeiro governo. Não fez mais porque não deixaram ela governar. Ela tentou fazer um ajuste e não deixaram.

P. E por que deixarão Haddad fazer?
R. Ele pode fazer muita coisa. Mas isso é ele quem tem que responder, não sou eu. Não sou candidato. Onde você estava? [pergunta para a filha de sete anos que entra correndo dentro do ônibus atrás de um leão de pelúcia].

TRAJETÓRIA CRIMINAL

Outubro de 2012: condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por corrupção ativa e formação de quadrilha no processo do mensalão

Novembro de 2013: se entrega à Polícia Federal depois de o STF expedir mandado de prisão contra 12 réus do mensalão

Julho de 2014: é absolvido pelo STF pelo crime de formação de quadrilha

Outubro de 2014: é liberado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, para cumprir o restante da pena de prisão em casa

Agosto de 2015: é preso preventivamente na 17ª fase da Operação Lava Jato

Setembro de 2015: é indiciado pela PF pelos crimes de formação de quadrilha, falsidade ideológica, corrupção passiva e lavagem de dinheiro

Julho de 2016: é indiciado novamente na Lava Jato, desta vez por crimes de corrupção ativa, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro

Maio de 2016: é condenado pelo juiz federal Sérgio Moro a 23 anos e três meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, recebimento de vantagem indevida e lavagem de dinheiro na operação Lava Jato

Novembro de 2016: o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso concede indulto pela pena do mensalão

Março de 2017: é condenado a 11 anos e três meses pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro pela Lava Jato, totalizando uma pena de 31 anos.

Maio de 2017: Supremo concede, por 3 votos a 2, sua liberdade, argumentando que, por ele já ter sido condenado em dois processos, "seria improvável que ele conseguisse interferir nas investigações”. No dia seguinte o juiz Sérgio Moro determina sua soltura e o uso de tornozeleira eletrônica.

Maio de 2018: o TRF4 nega, por unanimidade, seu último recurso no tribunal. No dia seguinte, Dirceu se entrega.

Junho de 2018: é solto em Brasília, após passar um mês preso no Complexo Penitenciário da Papuda. Condenado a 30 anos e 9 meses de prisão no âmbito da Lava Jato, acabou sendo solto após decisão do STF que considerou que há "plausibilidade jurídica" em um recurso da defesa apresentado contra a condenação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de segunda instância.


Eliane Brum: Mulheres contra a opressão

O maior movimento de resistência ao projeto autoritário mostra que apoiar Bolsonaro é votar a favor das forças que empobrecem o país e violentam os mais frágeis

Analistas do bolsonarismo acreditam que, para seus eleitores, ele é um grito contra o que não funciona e contra o desamparo, ou mesmo contra a precariedade das respostas da democracia para os problemas concretos da vida cotidiana. A candidatura de Jair Bolsonaro também representaria o voto do antipetismo, esse sentimento que ganhou força a partir de 2013 e, em 2015, virou ódio. Ao se posicionarem contra o que o candidato de extrema direita representa, o movimento “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, que abriga quase 3 milhões de brasileiras em sua página no Facebook, denuncia justamente a impossibilidade do voto em Bolsonaro como um voto “antissistema”. O que essas mulheres apontam é que não há nada mais a favor do sistema do que Bolsonaro. Votar nele é votar no que nunca prestou no Brasil, mas sempre existiu. Ou na volta dos que nunca partiram.

Só não é possível votar em Bolsonaro afirmando que está votando para mudar ou votando como protesto contra tudo o que está aí. Aí não. Essa afirmação desaba logo no primeiro olhar. Votar em Bolsonaro é justamente votar a favor de tudo o que sempre esteve aí. Ou que sempre esteve aí por mais tempo do que qualquer outra coisa.

1) Bolsonaro e os novos coronelismos rurais e urbanos

Não é uma coincidência que as velhas (e também as novas) oligarquias rurais, ligadas à violência no campo, têm em Bolsonaro o seu candidato estampado nas caminhonetes. As forças que Bolsonaro representa atravessam a história brasileira. Às vezes com mais, às vezes com menos poder político. São essas forças que tornaram o Brasil um dos países mais desiguais e mais violentos do mundo.

Para os coronéis do Brasil rural, o Brasil será sempre uma grande fazenda

Bolsonaro não dialoga apenas com a ditadura civil-militar que governou o país pela força de 1964 a 1985. Ele dialoga antes com figuras e forças muito mais antigas e fundadoras do Brasil. Bolsonaro dialoga com o coronelismo que marcou o Brasil rural e que, de muitas formas, permanece até hoje. Mas atualizado, já que nada atravessa as épocas sem adquirir novas nuances e agregar novos protagonistas.

Como fenômeno, Bolsonaro faz uma síntese entre a parcela golpista do militarismo profissional, representada pelo seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, e o coronelismo político de um Brasil rural que usa o “agronegócio” como roupagem de modernização, mas que mantêm as mesmas práticas violentas no campo. Para estes, o Brasil será sempre uma grande fazenda e a luta será sempre para privatizar o que ainda há de terras públicas e coletivas no país. Essas duas forças se conectaram durante vários momentos da história brasileira. Como hoje.

Em regiões como o Norte e o Centro-Oeste do Brasil, este coronelismo não representa as velhas oligarquias rurais do século 19 e primeira metade do século 20, mas novas oligarquias que se constituíram na segunda metade do século passado, tanto durante o processo de expulsão e massacre dos indígenas, para liberar suas terras ancestrais para projetos da ditadura, quanto na grilagem (roubo de terras públicas) de vastas porções de floresta, um processo que segue em curso até hoje e ganhou novo fôlego nos últimos anos.

Alguns dos que se autodenominam “pastores” são estelionatários da fé ou “coronéis da fé”

Parte da grilagem promovida já no século 21 foi legalizada no governo Temer, que tem na “bancada ruralista” sua principal fiadora. Mas, se garantiram e garantem o governo, estes coronéis e seus representantes no Congresso nunca cogitaram votar no candidato do MDB ou do PSDB, mesmo que este seja o partido com que marcam seu poder local ou regional. São eleitores de Bolsonaro desde que ele despontou como candidato.

Agregada aos novos e velhos coronéis, aparece a parcela urbana e mais barulhenta do Brasil evangélico, que usa as palavras com muita competência. A começar pela própria denominação religiosa. Ao transformarem o que é uma brutal disputa de poder em uma guerra do bem contra o mal, parte das lideranças encobre com o discurso religioso aquilo que é político. As críticas a essas lideranças evangélicas são lidas como uma crítica aos evangélicos como grupo religioso, colaborando para discriminar setores da população que já são historicamente discriminados. É deste truque que alguns líderes abusam. Chamar sua bancada no Congresso de “bancada da Bíblia” só os ajuda nessa transmutação da política em religião.

Os evangélicos são um grupo muito heterogêneo e com posicionamentos morais que variam, às vezes radicalmente, nas diferentes igrejas, o que tornaria imprecisa qualquer unidade. Mas o mais importante é que a crítica não é à religião nem a seus fiéis, muito menos se refere à nenhuma suposta versão de guerra santa. Ao contrário. É uma crítica aos estelionatários que usam a religião para o enriquecimento privado e para a conquista de poder político com fins de enriquecimento privado.

A maioria destes estelionatários da fé, que também podem ser chamados de “coronéis da fé”, está alinhada a Bolsonaro. São ao mesmo tempo novos e velhos. A novidade de suas origens e de sua linguagem não é capaz de encobrir que atuam para manter o Brasil exatamente como está, porque é neste contexto que conseguiram enriquecer e conquistar poder. Dependem da miséria, do desamparo e do medo para manter a clientela. Sua disputa é para continuar multiplicando riqueza privada, assim como garantir as benesses públicas que isentam suas igrejas de pagar impostos.

A religião é só o meio. O lucro privado é o fim. A estratégia de encobrir a disputa de poder com os temas morais mostrou-se tão eficaz que milícias da internet, como o MBL, eminentemente urbanas, a adotaram a partir de 2017 para ampliar seu número de seguidores destruindo artistas e manifestações artísticas.

É interessante observar como o que há de mais atrasado no Brasil se juntou a fenômenos recentes para produzir aquele que tem sido chamado na internet de “o coiso”. A nomeação, típica das redes sociais, aponta para dois objetivos: o primeiro é o de não popularizar ainda mais o candidato, o que pode garantir os votos daqueles que, quando chegam às urnas, votam no nome que lembram; o segundo, de que tudo aquilo que ele representa, em seu autoritarismo, seria inominável, ou não nomeável. No “coiso” cabem muitas coisas. Bolsonaro seria uma espécie de Voldemort, o vilão da série Harry Potter, a quem os bruxos preferem se referir como “você sabem quem”, para que a invocação do nome não o materialize como realidade física.

Bolsonaro é muito menos um capitão do Exército e muito mais um político profissional com desempenho patético

O fato de Jair Bolsonaro liderar as intenções de voto (28%, segundo a última pesquisa do Datafolha), mostra a força com que o que há mais arcaico e sombrio no Brasil emergiu para a luz. E encarnou numa figura que é muito menos um capitão reformado do Exército e muito mais um político profissional. Não um político profissional que disputa a construção de um país, mas um que trabalha para a própria permanência na folha de pagamento do Congresso.

Em 26 anos como parlamentar, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro conseguiu aprovar apenas dois projetos de sua autoria: 13 anos de salário, benefícios, verba de gabinete etc para cada projeto. Ao ser perguntado sobre sua baixa produtividade, o candidato respondeu: “Tão importante quanto você fazer um gol é não tomar um gol”.

Estes são os fatos, caso os fatos valessem na construção mental dos eleitores. O desempenho que derrubaria qualquer funcionário, em qualquer empresa do mundo, o premiou como funcionário do povo. Tanto que Bolsonaro se tornou o líder nas pesquisas para a presidência da República. Na composição dos seus eleitores, ele lidera entre os mais ricos e os mais escolarizados, justamente aqueles que se supunha terem mais acesso à informação de qualidade, caso isso importasse na tomada de decisões. Na época da autoverdade, porém, os fatos nada valem.

Há vários adjetivos que poderiam ser usados para definir o comportamento do eleitor de Bolsonaro. Ilegítimo não é um deles. Se você acredita que o político ideal é aquele que aprovou dois projetos em 26 anos de serviço público e se sente representado pelo desempenho de Bolsonaro, faz todo sentido votar nele. Por uma questão de coerência, inclusive, este deveria se tornar o critério de produtividade para que os empresários que são também eleitores de Bolsonaro passem a selecionar seus funcionários e estabelecer planos de carreira.

2) Como as elites descobriram que as ruas não são seu “pet”

O fenômeno chamado “coiso” também expõe à luz a monumental arrogância de uma parte da elite política e econômica do Brasil, assim como a arrogância de uma parcela do judiciário. Essas elites compartilhavam da ilusão de controlar as ruas e também os processos políticos. Descobriram que ver o Brasil do alto não é o suficiente para compreender os Brasis. Começam a perceber que, quando achavam que usavam, estavam de fato sendo usadas. Bolsonaro não revela apenas a si mesmo, mas muito além de si mesmo. Não é acontecimento isolado, mas trama.

O PT descobriu em 2013 que já não era o partido das ruas de uma forma bastante dolorosa. Naquele momento, a arrogância do partido era tanta que achava que as ruas seriam dele para sempre. Tanto que nem precisava mais andar por elas. Em 2013, o PT descobriu que estava sendo expulso das ruas. Em 2015, bonecos infláveis de Lula e de Dilma como presidiários invadiram também os céus. O antipetismo virava ódio.

Aécio Neves e o PSDB têm grande responsabilidade sobre o atoleiro atual do Brasil

Mas o exemplo mais evidente ainda é o do PSDB, cujo drama se desenrola neste momento. Quando Aécio Neves (PSDB) perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff (PT), ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia.

Aécio, o corrupto, iniciava ali uma crise e abria um precedente perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio dizendo que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para história não só pelo seu envolvimento com a corrupção, mas por esse ato de uma irresponsabilidade criminosa. O tucano deve ser marcado como um dos políticos que mais colaborou para a corrosão da democracia neste início de século.

De dentro do hospital, onde se recupera de um ataque à faca, Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que pode não aceitar o resultado da eleição em caso de derrota. Seu vice, Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. É irresponsável e grave demais que um político anuncie que participa do jogo, mas que só aceitará o resultado em caso de vitória. Qualquer criança jogando uma pelada de futebol num campinho de várzea sabe que não é possível só aceitar as regras do jogo quando se ganha.

O PSDB teve um papel importante no impeachment sem base legal de Dilma Rousseff e participou do governo corrupto de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso. Recentemente, um dos caciques do partido, Tasso Jereissati, afirmou que entrar no governo Temer foi “o grande erro” do PSDB. “Fomos engolidos pela tentação do poder”, admitiu. Tarde demais.

Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana

Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Aécio quanto o PSDB são hoje menores do que nunca, em todos os sentidos. Pior do que não ter ressonância é ter perdido o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa que nem seus caciques sabem mais que formato tem.

Não deixa de ser irônico o destino de Michel Temer. Quase trágico. Temer, o vice traidor, reconhecida raposa política, acreditava que poderia fazer tudo o que fez e ainda ser visto como um estadista. Logo depois do impeachment, era bem claro que Temer e seus apoiadores, no Congresso, no Mercado e em setores da Imprensa, acreditavam que estava tudo dominado e era só voltar ao que sempre foi. Temer está terminando o mandato como o presidente mais impopular da história (ou o mais impopular desde que há institutos de pesquisa para aferir a opinião da população).

O desespero dos liberais e neoliberais também sinaliza o quanto de ilusão aqueles que representam o Mercado alimentam sobre si mesmos. Parte das elites econômicas, tendo como exemplo mais evidente a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), que atuou de forma explícita e decisiva para o impeachment da presidente eleita, assim como vários porta-vozes do que se chama “Mercado”, acreditavam que tudo andaria conforme sua receita de bolo. Botariam no Planalto alguém da sua confiança e pronto, fariam uma “ponte para o futuro” que manteria os privilégios do passado. Acreditavam que o povo nas ruas não passava de marionete, que o povo nas ruas era o verdadeiro pato da FIESP.

De repente, Jair Bolsonaro, que deveria ser apenas um parceiro bufão na derrubada do governo do PT, alcançou o primeiro lugar nas pesquisas eleitorais para a presidência. Junto com ele, está Paulo Guedes, um economista ultraliberal que é radical demais até mesmo para os liberais. Quando fala, apavora. Dias atrás lançou uma espécie de nova CPMF. Teve que sair se desmentindo e cancelando compromissos para não dizer mais bobagens sinceras, mas altamente impopulares.

The Economist foi chamada de “The Communist”: no Brasil, o realismo mágico é só realismo

Não fosse a situação do Brasil ser tão trágica, seria delicioso ver uma revista liberal como a britânica The Economist, que já decolou e aterrissou o Cristo Redentor nos tempos de Dilma Rousseff, lançar Jair Bolsonaro como “a mais recente ameaça da América Latina” na capa da semana passada. A revista favorita do Mercado manifestou-se de forma inequívoca contra o ultraliberalismo de Paulo Guedes, o golpismo de Hamilton Mourão e o autoritarismo de Jair Bolsonaro. Foi chamada nas redes sociais de “The Communist”. Sim, no Brasil o realismo mágico é só realismo.

Certamente não era este o roteiro imaginado por aqueles que desrespeitaram o voto dos brasileiros. Também não era este o script que a parcela da grande imprensa que atuou decisivamente para o impeachment sonhava para esse momento. A Globo descobriu logo cedo, ao fracassar em derrubar Michel Temer após as denúncias de corrupção, que seu imenso poder tinha limites. Jair Bolsonaro, aliás, não se cansa de lembrar ao vivo, nos estúdios da emissora, o quanto a Globo apoiou a ditadura civil-militar que ele enaltece com tanto entusiasmo.

O atual cenário dificilmente deve ser o roteiro esperado também por servidores do Judiciário e do Ministério Público que decidiram personalizar a justiça, se esqueceram que são funcionários públicos e acreditaram que eram heróis. Quem venceu – e segue vencendo – é esse poder que atravessa governos e que hoje é representado pela “bancada ruralista”, grande parte dela conectada à escalada de violência no campo e na floresta contra camponeses e indígenas, que vem se acirrando desde 2015. Ao redor da bancada ruralista gravitam a bancada dos defensores de armas, que lucram com a violência, e a dos estelionatários da fé, que manipulam os temas morais para conquistar poder e privilégios.

Bolsonaro é o homem branco ultraconservador, mas bruto e sem lustro, que os ilustrados de direita e de esquerda não querem na sua sala de jantar

É este o mundo de Bolsonaro, que por isso tem assustado não só a esquerda, mas também a direita chique e os liberais genuínos, estes que têm na The Economist o seu oráculo. É a parcela atrasada e violenta do Brasil rural, associada ao que há de mais podre nos fenômenos urbanos, que disputa a presidência do país com chances de ganhar. Bolsonaro representa o homem branco ultraconservador, mas bruto e sem lustro, que os ilustrados de direita e de esquerda não querem na sua sala de jantar.

Com possibilidades cada vez maiores de chegar ao segundo turno, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), o candidato de Lula, torna o cenário ainda mais complexo. A tal da opção de “centro”, que tantos encheram a boca para falar, a duas semanas da eleição ainda não mobilizou os eleitores. De dentro da prisão, onde foi colocado por um processo rápido demais, com provas frágeis demais e juízes falastrões demais, Lula segue influenciando os destinos do país.

Mesmo tendo sido impedido pelo judiciário de ser candidato, ele ainda é um dos principais protagonistas da eleição. Como nada é simples, Haddad e o PT têm costurado apoio entre aliados que os traíram na batalha do impeachment, têm costurado apoio inclusive entre políticos que participam do governo Temer. Aliados que se tornaram “golpistas” são aliados de novo sem deixarem de ser “golpistas”. No Brasil, a real politik é mágica. Mas, quando o eleitor não vota conforme o esperado, ele é chamado de ignorante.

3) O movimento das mulheres contra Bolsonaro é o mais importante desta eleição

As mulheres são mais da metade da população no Brasil, mas ainda têm pouca representatividade na política formal. Uma de suas representantes mais interessantes e promissoras, Marielle Franco (PSOL), vereadora do Rio, foi executada a tiros num crime ainda não desvendado e impune, apesar de já terem se passado mais de seis meses.

Seu protagonismo político incomodou muitos que estavam acostumados a falar sozinhos e, de repente, viram seus interesses serem atingidos por uma mulher. E não por qualquer mulher. Criada no complexo de favelas da Maré, Marielle era negra, lésbica e pobre. Ao longo da história do Brasil, ela representa os grupos mais frágeis e mais violentados que, graças à muita luta, começam a ter poder político. Foi então exterminada a balas de alto calibre, por uma arma de uso restrito, num percurso de câmeras desligadas.

Com o gesto iniciado na internet e programado para ganhar as ruas, as mulheres tornaram-se protagonistas desta campanha eleitoral tão complexa e delicada. O movimento autônomo começou por mulheres na Bahia, ao largo das lideranças do centro-sul e dos grupos feministas mais conhecidos do Brasil. Do debate no Facebook passou a inspirar as manifestações contra Bolsonaro marcadas para o próximo sábado em várias cidades do Brasil e do mundo. Nos atos de 29 de setembro, elas esperam também o apoio dos homens que amam as mulheres.

Bolsonaro é um homem que, por suas declarações, já provou que odeia as mulheres

A proposta dessas mulheres é fazer atos suprapartidários contra Jair Bolsonaro e tudo o que ele representa. Bolsonaro é um homem que, por suas declarações, já provou que odeia as mulheres, tanto quanto o seu vice, o general reformado Hamilton Mourão. Bolsonaro é um tipo clássico, especialmente em países que viveram suas versões de faroeste: o homem branco, que se sente superior apenas por ter nascido branco; heterossexual, mas do tipo que precisa o tempo todo apregoar sua heterossexualidade, como se silenciar sobre ela pudesse de alguma forma ameaçá-la; que se sente mais potente com uma arma de fogo na mão e, quando não a tem, simula com as mãos a expressão fálica, como uma afirmação de masculinidade que precisa ser constantemente reiterada para não ser posta em dúvida.

Quando qualquer um destes ingredientes que, na sua crença, fazem dele um “homem”, é de alguma forma questionado, sente-se ameaçado e reage com violência. Um psicólogo de almanaque possivelmente diria que Bolsonaro é inseguro. No hospital, fazendo gesto de atirar com as mãos, parecia um garotinho querendo aprovação da plateia numa apresentação da pré-escola. Mas deve ser mais complexo do que isso.

Para manter o privilégio de se sentir superior num mundo em que já não basta ser branco e ter uma arma para se manter no topo da cadeia alimentar, Bolsonaro desrespeita as minorias, raciais e de gênero, justamente as parcelas mais frágeis da população, e estimula a violência contra elas. Neste momento, encarna um outro tipo clássico, o fortão covarde da escola. Faz isso afirmando que está defendendo os “valores tradicionais”. Mas o que chama de valores tradicionais são apenas os seus privilégios.

É interessante observar que Michel Temer, ao assumir o poder, promoveu um retrato amarelado com seu ministério de homens brancos, a maioria deles mais velhos. Pairando sobre essa imagem, especialmente no primeiro ano de governo, estava a figura de sua mulher, 43 anos mais jovem: Marcela Temer, a esposa “bela, recatada e do lar”, como definiu a revista Veja.

Essa conformação simbólica de poder remetia à República Velha, como foi dito, mas muito mais a um folhetim de Nelson Rodrigues. Enquanto foi possível, alguns jornalistas, também homens e brancos, a maioria mais velhos, fizeram comentários encantados, alguns deles bastante constrangedores, sobre a beleza da mulher do presidente. Por algum tempo, antes de seu governo ruir por corrupção e incompetência, Temer ganhou o atributo de uma potência viril aplicada à política, por estar casado com uma mulher bonita e jovem.

Se Temer exaltou a mulher como objeto, Bolsonaro levou o machismo a outro patamar: a mulher é inimiga

Jair Bolsonaro leva o machismo e o patriarcado a outro patamar. As mulheres não são objetos, mas um inimigo. Em 2014, na Câmara dos Deputados, disse que não estupraria a colega Maria do Rosário (PT): “Você não merece ser estuprada, é muito feia”. Depois, repetiu ao jornal Zero Hora: “Ela não merece (ser estuprada). Porque ela é muito ruim, ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”. O comentário, dito e repetido, o tornou réu por apologia ao estupro no Supremo Tribunal Federal.

Sobre a licença-maternidade, conquista histórica das mulheres (e também dos homens), o parlamentar que aprovou dois projetos de lei em 26 anos de trabalho maravilhosamente remunerado, afirmou em 2015: “Mulheres devem ganhar um salário menor porque engravidam. Quando ela voltar (da licença-maternidade) vai ter um mês de férias, ou seja, trabalhou cinco meses em um ano”.

Em 2011, ele afirmou: “Sou preconceituoso com muito orgulho”. Embora os juízes brancos do Supremo Tribunal Federal não reconheçam, o que Bolsonaro chama de preconceito é seguidamente racismo. Ao responder a uma pergunta da cantora Preta Gil, ele disse que seus filhos jamais namorariam uma mulher negra ou se tornariam gays: “Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambientes como lamentavelmente é o teu”. Em 2017, ao fazer uma palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, o parlamentar contou que fez uma visita a um quilombo: “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. (...) Não fazem nada, eu acho que nem pra procriador servem mais”.

O “preconceito” que tanto orgulha Bolsonaro é largamente aplicado contra os homossexuais, num país com alto índice de assassinatos por homofobia. Entre as várias declarações contra gays, Bolsonaro chegou a dizer numa entrevista: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que meu filho morra num acidente de carro do que apareça com um bigodudo por aí”.

É importante compreender por que, mesmo com essas declarações, existem mulheres que votam em Bolsonaro. Há quem acredite que seria o mesmo tipo de atração pelo perigo e pela violência que faz com que algumas mulheres se apaixonem por criminosos famosos – ou mesmo não famosos. Os presídios estão cheias de romances como estes. Algumas eleitoras de Bolsonaro já justificaram o voto afirmando que este é o só o “jeitão” dele, que “na verdade” ele seria um “defensor das mulheres”. Uma delas me disse que reconhece que ele é “meio burrão”, mas ainda assim acha que ele “vai botar ordem na casa”. Neste caso, o machismo importaria menos que a crença de que Bolsonaro vai deixá-la “segura”.

Para algumas mulheres, Bolsonaro é um caçula meio bobão, mas carismático

Ao escutar bolsonaristas, outras hipóteses surgiram. Para algumas, não é um voto no macho alfa, como eu supunha no princípio, mas o voto em um caçula meio bobão, mas carismático, por quem sentem um tipo de amor permissivo. Seria importante fazer uma pesquisa qualitativa e quantitativa formal com as eleitoras de Bolsonaro e Mourão, para compreender o que pode levar mulheres a votar em homens que as desrespeitam.

O vice de Bolsonaro é sua alma gêmea. Bolsonaro e Mourão, ambos adoradores de armas, coincidem tanto na ideologia quanto na eloquência de seus discursos. Em agosto, durante um evento no sul do país, Mourão afirmou que o Brasil herdou “a indolência dos indígenas” e “a malandragem dos africanos”. Estava teorizando sobre as raízes do “subdesenvolvimento” do Brasil e da América Latina com a competência habitual.

Em 17 de setembro, o general reformado atacou as mulheres ao relacionar a violência nas “áreas mais carentes” ao fato de as famílias serem chefiadas por “mães e avós”, sem “pais e avôs”. A criação dos filhos por mulheres sozinhas, na opinião do general, resultaria “numa fábrica de elementos desajustados e que tendem a ingressar em narcoquadrilhas que afetam o nosso país”.

Ao afirmar que lares chefiados por mulheres criam uma “fábrica de desajustados”, o vice de Bolsonaro atingiu violentamente as mulheres mais pobres

Ao fazer essa afirmação, o vice de Bolsonaro atingiu violentamente as mulheres mais pobres, a maioria delas negras, que são chefes de família e criam seus filhos sozinhas com enorme esforço. Mas não apenas elas. A afirmação provocou um apoio surpreendente ao movimento das mulheres contra Bolsonaro. A apresentadora de TV Rachel Sheherazade, uma das porta-vozes na imprensa da direita mais truculenta do Brasil, publicou em sua conta no Twitter: “Sou mulher. Crio dois filhos sozinha. Fui criada por minha mãe e minha avó. Não. Não somos criminosas. Somos heroínas”. E acrescentou uma das hashtags do movimento: #EleNão”.

As mulheres são o segmento da população que mais rejeita Jair Bolsonaro. Mas, após ele ter levado uma facada durante um ato de campanha, Bolsonaro cresceu. “Apesar de ter evoluído no estrato, cresceu sete pontos no último mês, o apoio no segmento feminino é mais localizado entre as que têm maior renda familiar —chega a 32% entre as que reúnem mais de 5 salários mínimos, contra apenas 14% entre as mais pobres”, analisam Mauro Paulino e Alessandro Janoni, na Folha de S. Paulo. O primeiro estrato corresponde a apenas 6% do eleitorado e o segundo alcança 28%.

Em entrevista ao El País, o estatístico Paulo Guimarães afirmou: “As mulheres não votam no Bolsonaro, mas as mulheres pobres tendem a decidir o voto mais tarde. O país é absurdamente machista. O marido vai dizer em quem elas devem votar, principalmente nas classes mais baixas, das mulheres mais agredidas. O voto da mulher tem convergido para o voto do homem, historicamente”.

Será que ainda é assim? Minha hipótese é que o crescimento do protagonismo das mulheres também na esfera doméstica, em parte possibilitados pelo Bolsa Família e pelo aumento real do salário mínimo, que beneficiou o grande contingente de empregadas domésticas do país, tenha mudado essas relações de poder. Não totalmente, mas esta é uma força emergente. Como repórter que escuta gente há 30 anos, nunca escutei tantas mulheres discordarem de seus maridos, nas entrevistas que faço com famílias, como hoje. Inclusive no voto.

É uma enormidade o significado de que a principal resistência à candidatura de Bolsonaro e a tudo o que essa candidatura representa venha justamente das mulheres. Elas, que são alijadas da política formal, quando não mortas, tornaram-se a principal força política de oposição a um projeto explicitamente autoritário. E fazem política justamente no território que até então era dominado pelos apoiadores de Bolsonaro: as redes sociais. Exatamente por isso, as administradoras da página do movimento foram haqueadas, ameaçadas e tiveram seus dados expostos, na covardia habitual dos que não confiam nos seus argumentos, só dispõem da força bruta.

Se o movimento é suprapartidário e abarca as mulheres de todas as cores e origens, é importante sublinhar que esse movimento é também racial e de classe. Como já foi dito, Bolsonaro encontra seus eleitores, segundo as pesquisas, entre os homens mais ricos e os mais escolarizados. E tem sua maior rejeição entre as mulheres e entre os mais pobres. Como as estatísticas mostram, a maioria das mulheres mais pobres do país é negra.

O voto das mulheres negras pode determinar o destino de Bolsonaro

O voto das mulheres negras pode determinar o destino de Bolsonaro. Este não é definitivamente um dado qualquer no Brasil. Há grande poder e significado nessa constatação. É bastante simbólico que seja esta a força que toda a repressão dos últimos anos do país, todos os direitos a menos, não conseguiu parar. As mulheres que foram para a universidade pela primeira vez, as mulheres que passaram a ganhar um pouco mais, as mulheres que pela primeira vez tiveram direitos trabalhistas igualitários, como as domésticas. Talvez não seja coincidência que a criadora da página “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, que por conta das ameaças hoje é citada apenas pelas iniciais, seja negra.

O movimento das Mulheres Unidas Contra Bolsonaro é o mais importante acontecimento desta eleição. Caminhar junto com elas no próximo sábado, 29 de setembro, é escolher dizer juntos, mulheres e homens, em uníssono, não apesar de todas as diferenças, mas com todas as diferenças, que escolhemos a liberdade contra a opressão. Que escolhemos o respeito contra o preconceito. Que escolhemos a igualdade contra o racismo. Que escolhemos a diversidade dos muitos contra a hegemonia do um. Que escolhemos a paz contra a violência.

Se depender das mulheres unidas contra Bolsonaro, o ódio não governará o Brasil.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Bolsonaro e a autoverdade

Como a valorização do ato de dizer, mais do que o conteúdo do que se diz, vai impactar a eleição no Brasil

A pós-verdade se tornou nos últimos anos um conceito importante para compreender o mundo atual. Mas talvez seja necessário pensar também no que podemos chamar de “autoverdade”. Algo que pode ser entendido como a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo, uma verdade determinada pelo “dizer tudo” da internet. E que é expressa nas redes sociais pela palavra “lacrou”.

O valor dessa verdade não está na sua ligação com os fatos. Nem seu apagamento está na produção de mentiras ou notícias falsas (“fake news”). Essa é uma relação que já não opera no mundo da autoverdade. O valor da autoverdade está em outro lugar e obedece a uma lógica distinta. O valor não está na verdade em si, como não estaria na mentira em si. Não está no que é dito. Ou está muito menos no que é dito.

Assim, a questão da autoverdade também não está na substituição de verdades ancoradas nos fatos por mentiras produzidas para falsificar a realidade. No fenômeno da pós-verdade, as mentiras que falsificam a realidade passam elas mesmas a produzir realidades, como a eleição de Donald Trump ou a aprovação do Brexit. A autoverdade se articula com esse fenômeno, mas segue uma outra lógica.

O valor da autoverdade está muito menos no que é dito e muito mais no fato de dizer. “Dizer tudo” é o único fato que importa. Ou, pelo menos, é o fato que mais importa. É esse deslocamento de onde está o valor, do conteúdo do que é dito para o ato de dizer, que também pode nos ajudar a compreender a ressonância de personagens como Jair Bolsonaro e, claro, (sempre), Donald Trump. E como não são eles e outros assemelhados o problema, mas sim o fenômeno que vai muito além deles e do qual são apenas os exemplos mais mal acabados.

Uma pesquisa de junho do Datafolha mostrou, mais uma vez, que a maioria das pessoas que declaram voto em Jair Bolsonaro (PSL) são jovens: seu eleitorado se concentra principalmente na faixa dos 16 aos 34 anos. O capitão do exército também lidera as intenções de voto entre os mais ricos e os mais escolarizados do país. O candidato de extrema-direita está em primeiro lugar na disputa presidencial de outubro. Isso num cenário sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com Lula, Bolsonaro cai para o segundo lugar. Mas Lula, como sabemos, está preso e impedido de se manifestar num dos mais controversos episódios da história recente do Brasil, um país hoje assinalado pela politização da justiça.

Em pesquisa recém divulgada, a professora Esther Solano entrevistou pessoas na cidade de São Paulo para compreender o crescimento das novas direitas e especialmente da extrema-direita mais antidemocrática, representada por Jair Bolsonaro. Os selecionados cobrem um amplo espectro de posição econômica, de emprego, de idade e de gênero. Solano é professora da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Mestrado Interuniversitário Internacional de Estudos Contemporâneos de América Latina da Universidad Complutense de Madrid. Ela tem se destacado como uma das principais estudiosas do perfil dos participantes dos protestos no Brasil desde 2013, quando foi uma das poucas a escutar os adeptos da tática black bloc em profundidade.

“Ele (Bolsonaro) é um mito porque fala o que pensa e não está nem aí”, diz estudante de 15 anos

A pesquisa, financiada pela Fundação Friedrich Ebert, é ótima, importante e deve ser lida na íntegra. Aqui, me limito a reproduzir um trecho que ajuda a iluminar a questão que apresento nessa coluna:

“No começo da roda de conversa com os alunos de São Miguel Paulista, assistimos a um vídeo com as frases mais polêmicas de Bolsonaro. No final do vídeo, muitos alunos estavam rindo e aplaudindo. Por quê? Porque ele é legal, porque ele é um mito, porque ele é engraçado, porque ele fala o que pensa e não está nem aí. Com mais de cinco milhões de seguidores no Facebook, o fato é que Bolsonaro representa uma direita que se comunica com os jovens, uma direita que alguns jovens identificam como rebelde, como contraponto ao sistema, como uma proposta diferente e que tem coragem de peitar os caras de Brasília e dizer o que tem de ser dito. Ele é foda.

O uso das redes sociais, a utilização de vídeos curtos e apelativos, o meme como ferramenta de comunicação, a figura heroica e juvenil do ‘mito ’Bolsonaro, falas irreverentes e até ridículas, falas fortes, destrutivas, contra todos, são aspectos que atraem os jovens. Se, nos anos 70, ser rebelde era ser de esquerda, agora, para muitos destes jovens, é votar nesta nova direita que se apresenta de uma forma cool, disfarçando seu discurso de ódio em formas de memes e de vídeos divertidos: O Bolsomito é divertido, o resto dos políticos não”.

Na roda de conversa na escola de São Miguel Paulista, na Zona Leste, a mais precarizada de São Paulo, os alunos negam que Bolsonaro faça a difusão de um discurso de ódio. Mas valorizam a sua coragem de dizer coisas fortes. Um garoto de 16 anos resumiu: “Ele não tem discurso de ódio. Tá só expondo a opinião dele, falando a verdade”.

A opinião de Bolsonaro, ou a “verdade” de Bolsonaro, que circula em vídeos de “lacração” do “Bolsomito”, é chamar uma deputada de “vagabunda” e dizer que não a estupraria porque ela não merece, por considerá-la “muito feia”; a afirmação de que sua filha, caçula de cinco homens, é resultado de uma “fraquejada”; a declaração de que seus filhos não namorariam uma negra ou virariam gays porque foram “muito bem educados”. E, claro, sua performance na votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Ao declarar seu voto pelo afastamento da presidente eleita, Bolsonaro homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O herói de Bolsonaro, hoje estampado em camisetas de seus apoiadores, é um dos mais notórios torturadores e assassinos da ditadura civil-militar, um sádico que chegou a levar crianças pequenas para ver as mães torturadas, cobertas de hematomas, urinadas, vomitadas e nuas, como forma de pressioná-las. Sobram ainda declarações racistas de Bolsonaro contra índios e quilombolas.

“Ele (Bolsonaro) não está nem aí com o politicamente correto, diz o que pensa e ponto, mas não é homofóbico. Ele gosta dos gays. É o jeitão dele”, diz uma mulher

Uma das entrevistadas por Esther Solano assim justifica as falas de seu escolhido: “É que ele tem esse jeito tosco, bruto de falar, militar mesmo. Mas ele não quis dizer essas coisas. Às vezes exagera, não pensa porque vai no impulso, porque é muito honesto, muito sincero e não mede as palavras como outros políticos, sempre pensando no politicamente correto, no que a imprensa vai falar. Ele não está nem aí com o politicamente correto, diz o que pensa e ponto, mas não é homofóbico. Ele gosta dos gays. É o jeitão dele”.

Na minha própria escuta de pessoas nas periferias de São Paulo e na região do Xingu, no Pará, em diferentes classes sociais e faixas etárias, escuto seguidamente uma variação destas frases: “Ele é honesto porque ele diz o que pensa” ou “Ele não tem medo de dizer a verdade”. Quando questiono o conteúdo do que Bolsonaro pensa, a “verdade” de Bolsonaro, em geral aparece um sorriso divertido, meio carinhoso, meio cúmplice: “Ele é meio exagerado, mas porque é um sincerão”.

Assim, Bolsonaro não seria homofóbico ou misógino ou mesmo racista para aqueles que aderem a ele, mas um “homem de bem” exercendo a “liberdade de expressão”. Estes são os adjetivos que aparecem com frequência colados ao candidato de extrema-direita por seus eleitores: “sincero”, “verdadeiro”, “autêntico”, “honesto” e “politicamente incorreto” (este último também como um elogio).

Embora o conteúdo do que Bolsonaro diz obviamente influencia no apoio do seu eleitorado, me parece que ele é mais beneficiado pelo fenômeno que aqui estou chamando de autoverdade. O ato de dizer “tudo” e o como diz o que diz parece ser mais importante do que o conteúdo. A estética é decodificada como ética. Ou colocada no mesmo lugar. E este não é um dado qualquer.

Por isso também é possível se desconectar do conteúdo real de suas falas, como fazem tantos de seus eleitores. E por isso é tão difícil que a sua desconstrução, por meio do conteúdo, tenha efeito sobre os seus eleitores. Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre, que ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco ou nenhum efeito sobre os seus eleitores. Porque o conteúdo pouco importa. As agências de checagem são um bom instrumento para combater as notícias e as declarações falsas de candidatos, mas têm pouca eficácia para combater a autoverdade.

A lógica em que a imprensa opera, que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica diversa

Simples assim. Complexo demais. A lógica em que a imprensa opera, quando faz jornalismo sério, que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica diversa. Esse é um dado bastante trágico, na medida em que os instrumentos disponíveis para expor verdades que mereçam esse nome, para iluminar fatos que de fato existem, passam a girar em falso.

Se Bolsonaro participar dos debates ao vivo durante a campanha eleitoral, para uma parcela significativa do eleitorado brasileiro o que vai prevalecer é a estética marcada pelo “dizer tudo” e dizer tudo lacrando. Também por isso Ciro Gomes (PDT), por sua própria personalidade mais agressiva e sua falta de freio na língua, é visto por uma parcela preocupada com a ascensão de Bolsonaro como o mais capaz de enfrentá-lo.

Se esse quadro permanecer, a disputa entre testosteronas infláveis – e inflamáveis – será mais importante do que o conteúdo na eleição brasileira, porque mesmo quem tem conteúdo terá que deixá-lo em segundo plano para ganhar a disputa da dramaturgia. Mais um degrau escada abaixo na apoteótica descida do país rumo à irrelevância.

Se este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, no Brasil há uma particularidade que parece impactar de forma decisiva a autoverdade. Essa particularidade é o crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas e sua narrativa do mundo a partir de uma leitura propositalmente tosca da Bíblia. A retórica do bem contra o mal atravessa fenômenos como a “bolsonarização do país”.

A autoverdade atravessa o discurso religioso fundamentalista como conceito e como estética

Embora os pastores fundamentalistas exaltem a perseguição do “povo de Deus”, a prática mostra exatamente o contrário, ao perseguirem os LGBTQs, as mulheres e, em alguns casos de racismo, os negros. Mas a prática são os fatos, e os fatos não importam. O que importa é a retórica e a forma. A autoverdade atravessa o discurso fundamentalista como conceito e como estética. O milagre da transmutação aqui é justamente fazer com que a estética seja convertida em ética.

Formados nessa narrativa, uma geração de brasileiros é capaz de ler ou assistir a uma reportagem da imprensa mostrando verdades que Bolsonaro gostaria que não subissem à superfície não pelo seu conteúdo, mas pela ótica da perseguição. O conteúdo não importa quando quem questiona o inquestionável é automaticamente um inimigo, capaz de usar qualquer “mentira” para atacar um “homem de bem”. Afinal, as imagens de malas de dinheiro (de dízimo, no caso) foram inauguradas por alguns pastores neopentecostais, muito antes do que pela investigação da Lava Jato, e mesmo assim suas igrejas não pararam de crescer. Bolsonaro torna-se o “perseguido” na luta do bem contra o mal, o que faz todo o sentido para quem é bombardeado por uma visão maniqueísta do mundo.

Produtos de entretenimento como as novelas e os filmes supostamente bíblicos de uma rede de TV como a Record, por exemplo, colaboram para formatar um determinado olhar sobre a dinâmica da vida. Se alguém só vê o mundo de um mesmo modo, não consegue mais ver de outro. Não há mais interpretação, a decodificação passa a ser por reflexo.

Este é o mecanismo que tem se alastrado no Brasil. E que é imensamente beneficiado pela tragédia educacional brasileira. Não é por acaso que a escola pública, já tão desvalorizada e desprestigiada, esteja sofrendo o brutal ataque representado pelo movimento político e ideológico nomeado como “Escola Sem Partido”. O pensamento múltiplo e o debate das ideias são os principais instrumentos para devolver importância aos fatos e ao conteúdo, assim como recolocar a questão da verdade.

Não é um risco que os protagonistas das novas direitas queiram correr. No jogo das aparências, seu truque é sempre o mesmo: fazer um movimento ideológico afirmando que é para combater a ideologia, agir politicamente mas afirmar-se antipolítico, apoiar partidos de direita dizendo-se apartidários. Esse mascaramento só funciona se aquele a quem a mensagem se destina abdicar do pensamento em favor da fé.

A adesão à política pela fé é a grande sacada dos protagonistas da articulação religiosa-militarista que disputa o Brasil deste momento

A retórica supostamente bíblica está educando aqueles que não estão sendo educados. Como produto de entretenimento, as novelas e filmes se articulam com os programas policialescos sensacionalistas da TV, muitas vezes na mesma rede de TV, e os ampliam. Já existe uma geração formada tanto na desumanização dos mais pobres e dos negros, tratados como coisas que podem levar bala nas imagens desse tipo de programa, quanto na adesão à política pela fé, a grande sacada dos atuais protagonistas da articulação religiosa-militarista que figuras como Bolsonaro representam.

A personificação, a valorização do indivíduo, do “Um” que é só ele, jamais um+um, garante que personagens como Bolsonaro e até mesmo Sergio Moro possam encarnar como “O Um”. “O Um” contra o mal, ungido pelas “pessoas de bem”, dispostas a linchar quem estiver no caminho. Afinal, se a luta é do bem contra o mal, tudo não só é permitido como abençoado.

Não testemunhamos apenas a politização da justiça, mas algo possivelmente ainda mais perigoso: a “religiosização” da política

Não há nada mais perigoso numa eleição do que o eleitor que acredita ser “um instrumento de Deus”, absolvido previamente por todos os seus atos, mesmo que eles sejam sórdidos ou até criminosos. Como a lei que vale não é a terrena, laica, mas ditada diretamente do alto e, com frequência, diretamente ao indivíduo, tudo é permitido quando supostamente “Deus estaria agindo”. Não testemunhamos apenas a politização da justiça, mas algo possivelmente ainda mais destruidor: a “religiosização” da política. E ela tem como primeiro efeito a política da antipolítica.

Figuras como Bolsonaro se beneficiam da crise econômica, do crescimento da violência e da produção de medo, sim. Mas sua força vem de uma população treinada para aderir pela fé ao que não diz respeito à fé. Por isso é possível até mesmo fazer política e se dizer apolítico. Se o imperativo é crer, a adesão já está garantida não importa o conteúdo do discurso, desde que a dramaturgia garanta entretenimento, espetáculo. Embora pareçam desacreditar de quase tudo em suas manifestações na internet, ninguém se iluda. Uma parte significativa do eleitorado brasileiro é formada por crentes. E ser crente hoje no Brasil tem um sentido e um alcance muito mais amplo do que em qualquer momento da história do país.

A autoverdade desloca o poder para a verdade do um, destruindo a essência da política como mediadora do desejo de muitos. Se o valor está no ato de dizer e não no conteúdo do que é dito, não há como perceber que não há nenhuma verdade no que é dito. Bolsonaro não está dizendo a verdade quando estimula o ódio aos gays, mas sendo homofóbico. Não está dizendo a verdade quando agride negros, mas sendo racista. Não está dizendo a verdade quando diz que não vai estuprar uma mulher porque ela é feia, mas incitando a violência contra as mulheres e sendo misógino. Há nome na língua para tudo isso e também artigos no Código Penal.

Os jovens da periferia que aplaudem Bolsonaro precisam perceber que o discurso da meritocracia é a sacanagem que os cimenta no lugar do qual gostariam de sair

Muitos daqueles que o aplaudem, especialmente os jovens nas periferias, não percebem que o discurso da meritocracia proclamado pela extrema-direita que Bolsonaro representa é justamente a sacanagem que os mantêm no lugar cimentado do qual gostariam de sair. Não existe meritocracia, ascensão apenas por méritos próprios, sem partir de bases minimamente igualitárias.

Jair Bolsonaro é a encarnação de um fenômeno muito maior do que ele, do qual ele se aproveita. Tanto quanto Donald Trump, em nível global. A tragédia é que eles possivelmente sejam só os primeiros.

O desafio imposto tanto pela pós-verdade como pela autoverdade é como devolver a verdade à verdade

O desafio imposto tanto pela pós-verdade quanto pela autoverdade é como devolver a verdade à verdade. Não faremos isso sem tomar partido por escola de qualidade para todos, apoiando aqueles que lutam por isso de maneira muito mais contundente do que fazemos hoje, assim como pressionando por políticas públicas e investimento, e questionando fortemente os candidatos para além da retórica fácil. Nem faremos isso sem a recuperação do sentido de comunidade, o que implica a reapropriação do espaço público para a convivência entre os diferentes, assim como a retomada da cidade. Temos que voltar a conviver com o corpo presente, compartilhando os espaços mesmo e – principalmente – quando as opiniões divergem. Temos que resgatar o hábito tão humano de conversar. E conversar em todas as oportunidades possíveis.

E isso não amanhã. Ontem. A verdade do momento é que estamos ferrados. Outra verdade é que, ainda assim, precisamos nos mover. Juntos. Não por esperança, um luxo que já não temos. Mas por imperativo ético.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Urna eletrônica, um debate sobre segurança usado por Bolsonaro como ameaça

Como Trump, candidato mobiliza eleitores colocando em xeque sistema eleitoral. Filho dele divulga mentira a respeito do tema. Especialista diz que violação é possível, ainda que improvável

Por Felipe Betim, do El País

A segurança do sistema eleitoral brasileiro, que colhe os votos em urnas eletrônicas, vem sendo atacada pela candidatura de Jair Bolsonaro (PSL). O candidato de extrema direita à Presidência e sua equipe têm dito que uma eventual derrota nas eleições de outubro terá sido resultado de uma fraude a favor do candidato do PT, Fernando Haddad. A mais recente investida foi em vídeo, quando o deputado federal ultraconservador, que se recupera de uma facada no hospital Albert Einstein, em São Paulo, lançou mão de várias de suas teses —sem apresentar provas de nenhuma delas. "A grande preocupação agora não é perder no voto, é perder na fraude. Essa possibilidade de fraude no segundo turno, talvez até no primeiro, é concreta", disse. "O PT descobriu um caminho para o poder, o voto eletrônico."

Poucos dias depois, o filho de Jair Bolsonaro, o vereador Carlos, compartilhou em seu Twitter uma mentira sobre o sistema, e obteve expressiva disseminação. O texto, apresentado como uma notícia, dizia que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) havia entregado para uma empresa venezuelana os códigos das urnas eletrônicas, "inclusive os criptográficos", e negado o acesso de auditores brasileiros ao sistema. O TSE prontamente negou a informação. Até mesmo o general Antonio Hamilton Mourão, vice na chapa de Bolsonaro, classificou de fake news o boato espalhado pelo vereador.

Os cientistas sociais apontam que o tipo de discurso é corrosivo porque inocula desconfiança nas instituições democráticas, num ambiente deteriorado de polarização política e infestação de mentiras e notícias não comprovadas via redes sociais, em especial WhatsApp. Daí a pressa das autoridades em retrucar as declarações de Bolsonaro. "Não há nenhum caso de fraude comprovado", disse Rosa Weber, presidenta do TSE e ministra do Supremo Tribunal Federal. "Digo apenas e tão somente que ele sempre foi eleito através da urna eletrônica", afirmou Antônio Dias Toffoli, presidente do STF. "Tem gente que acredita em saci pererê", continuou.

De Aécio a Bolsonaro

Bolsonaro, no entanto, tem ao menos um elemento que ajuda a moldar seu discurso. Ele não se converteu agora ao tema. Há anos o candidato de extrema direita se uniu às vozes de técnicos que exigem a instalação de voto impresso como forma de garantir maior segurança no processo. A discussão ganharia impulso especialmente a partir de 2014. Após a apertada vitória de Dilma Rousseff em 2014, a campanha de Aécio Neves (PSDB) pediu a auditoria do sistema apontando irregularidades. Nada comprometedor foi encontrado, e o tucano seria flagrado em gravação, tempos depois, dizendo que havia pedido os testes "para encher o saco".

Seja como for, na esteira da polêmica, a reforma eleitoral de 2015 acabou aprovando o voto impresso — um projeto patrocinado por Bolsonaro, que também conseguiu que seus colegas deputados derrubassem o veto da então presidenta Dilma Rousseff ao ponto. Em junho deste ano, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que ele era inconstitucional porque pode afetar o sigilo do voto e derrubou a exigência para este pleito.

Mesmo quem se frustrou com o STF e concorda que o sistema tem que ser aperfeiçoado critica as declarações de Bolsonaro. "Temos problemas de segurança e transparência, mas esses problemas afetam todos os candidatos. Nunca houve um resultado técnico maluco que levasse à conclusão de que alguma vulnerabilidade favorecesse alguma corrente política", diz Diego Aranha, professor da Unicamp que é a favor do voto impresso e que coordenou duas equipes, em 2012 e 2017, convocadas pelo próprio TSE para fazer testes de segurança. "O discurso não é baseado nos meus resultados técnicos. Eu trabalho nisso desde 2012. Existe todo um protocolo que prevê a participação de técnicos independentes. Alguns candidatos se aproveitam e capturam um discurso técnico para levantar conspirações", explicou

Nos testes, o professor concluiu que o software das urnas é vulnerável a ataques, ainda que avalia que os possíveis cenários de fraude traçados por sua equipe muito dificilmente ocorreram ou ocorrerão —ele apenas não descarta o risco e propõe melhoras. Giuseppe Janino, secretário de Tecnologia da Informação do TSE, explica ao EL PAÍS que os testes públicos, como os que Aranha participou, servem justamente para que cidadãos e hackers apontem fragilidades e reforcem a segurança das urnas. "As fragilidades foram reparadas e a equipe que conseguiu verificar a eficiência das ações corretivas e não conseguiram progredir nos planos de ataque", garante.

Janino também enumera os vários procedimentos para garantir a segurança das urnas. Seis meses antes do pleito, os partidos políticos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Ministério Público são convocados para acompanhar o desenvolvimento dos sistemas eleitorais —o PSL de Bolsonaro não mandou representantes. Depois desse período, o sistema é lacrado e recebe assinaturas digitais, uma espécie de criptografia que garante que o conteúdo contido software que será instalado nas urnas não seja alterado. Essas assinaturas são utilizadas para atestar, na hora da votação, que o programa foi de fato gerado pelo TSE. A Justiça Eleitoral também realiza no dia da votação uma auditoria de funcionamento das urnas eletrônicas: em evento aberto ao público e supervisionado por partidos e autoridades, os Tribunais Regionais Eleitorais sorteiam alguns equipamentos e simulam votações para averiguar se houve divergência nas escolhas realizadas.

Códigos públicos

O professor Aranha afirma ainda que a principal demanda dele e de outros técnicos é por mais transparência e, por isso, a defesa de que o voto impresso possa se somar ao voto eletrônico. Trata-se, para ele, de uma forma de registrar fisicamente o voto e que este possa ser verificado por pessoas que não necessariamente são técnicas. Ele comemorou a notícia, divulgada pela Folha de S. Paulo, de que o tribunal planeja para as próximas eleições divulgar na Internet os códigos-fonte que compõem o sistema da urna eletrônica para que o público possa inspecioná-lo.

O especialista garante que, em 2012, conseguiu quebrar o sigilo do voto apenas com informações públicas dos eleitores. E que, em 2017, explorou uma "sequência de vulnerabilidades para alterar o software da votação antes de ser instalado na urna para injetar programas com comportamento malicioso", sem nem mesmo precisar "mexer fisicamente na urna" —o que o TSE contesta. "As vulnerabilidades que temos encontrado não são novidades na área de segurança. São fragilidades clássicas que um programador com tamanha responsabilidade deveria detectar", argumenta. Tudo leva a crer, contudo, que as vulnerabilidades detectadas no sistema são acidentais. Ele também reconhece que o tribunal vem melhorando à medida que descobre algumas fragilidades e que vem agindo mais rapidamente do que antes: "Neste ponto sou otimista". Como profissional da área de segurança, diz ainda não poder desconsiderar outros tipos de riscos, como o de que uma pessoa no local de votação seja subornada para instalar um programa malicioso —para que uma eleição presidencial fosse fraudada, algo do tipo teria que acontecer em larguíssima escala— ou até mesmo que de técnicos internos do TSE sejam corrompidos. Contudo, confia nos mecanismos de segurança do tribunal e reitera que muito dificilmente alguma fraude tenha ocorrido ou venha a ocorrer.

Desconfiança sobre processo eleitoral movimenta as redes

Se, de um lado, a candidatura de Bolsonaro vem atacando a segurança das urnas eletrônicas, do outro pessoas ligadas ao PT vem questionando a legitimidade do processo eleitoral sem a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na última sexta-feira foi a vez da presidenta do partido, a senadora Gleisi Hoffmann. Ela disse que a ausência de Lula desestabiliza o processo e impede que uma parcela grande da população exerça seu direito ao voto. "Não estamos totalmente certos de que essa eleição ocorra em ambiente normal, vai depender muito do desempenho que o PT vai ter".

Assim, a desconfiança sobre o processo eleitoral vem movimentando as redes sociais. Segundo a FGV-DAPP,  entre os dias 19 de agosto e 18 de setembro, o tema mobilizou 841.800 menções no Twitter. "Os debates foram polarizados em ao menos duas linhas: uma questionando o processo eleitoral sem a presença do ex-presidente Lula como candidato; outra, associada a Bolsonaro, questionando a confiabilidade das urnas eletrônicas e de todo o processo ao redor do pleito", disse o centro de estudos.


El País: Facebook cria 'sala de guerra' para monitorar interferências nas eleições de Brasil e EUA

É o maior esforço estratégico da rede social desde transição do computador para o celular

Por Jordi Pérez Colomé, do El País

O Facebook anunciou que seu esforço para prevenir interferências eleitorais nas próximas eleições do Brasil e dos Estados Unidos é comparável a uma das maiores guinadas estratégicas da empresa: o início da passagem do computador para o celular em 2011. “Será o maior esforço transversal de todos os departamentos que esta empresa já viu desde a passagem do computador para o celular”, anunciou Samidh Chakrabarti, diretor de Eleições e Compromisso Cívico na rede, durante uma teleconferência à qual o EL PAÍS assistiu.

De acordo com um perfil recente da revista New Yorker, o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg expulsava de seu escritório todos os funcionários que ali fossem se suas ideias não levavam em conta a transição do computador para o celular. Das palavras de Chakrabarti é possível inferir que Zuckerberg quer ouvir falar apenas de segurança eleitoral.

A frase de Chakrabarti quer refletir a importância que o Facebook dá às eleições e ao risco à sua imagem. Como as ameaças evoluem e qualquer novo perigo pode surgir, a empresa insiste em repetir a mensagem de que faz todo o possível para continuar sendo uma simples rede social e não um campo de batalha nas guerras de inteligência entre os países.

Chakrabarti também anunciou a criação de uma war room física em Menlo Park, sede da empresa na Califórnia, para “tomar decisões em tempo real” e integrar os membros de todos os departamentos em um mesmo espaço: engenharia, inteligência, dados, políticas públicas, entre outros.

Para entender a magnitude do desafio, Chakrabarti explicou que “foram apagadas ou bloqueadas” 1,3 bilhão de contas falsas no Facebook entre os meses de outubro e março. Esse número representaria mais da metade do total de usuários da rede. “A inteligência artificial nos permite bloquear milhões de contas todos os dias”, acrescentou.

A origem deste esforço estratégico do Facebook começou nas eleições presidenciais dos EUA de 2016, quando Donald Trump foi eleito. A empresa advertiu que as táticas dos “adversários” –em nenhum momento da teleconferência sua origem ou identidade foi apontada– mudam e o esforço é interminável.

A equipe dirigida por Chakrabarti preparou cenários de possíveis ataques para verificar qual é o nível de preparação da empresa. Os dois exemplos de ataques que Chakrabarti deu foram uma campanha para suprimir o voto –mensagens no Facebook que, por exemplo, explicam em que se pode votar por SMS ou que anunciam falsos fechamentos de colégios eleitorais– ou páginas que divulgam material eleitoral desde o exterior.

O Facebook também criou um sistema de segurança duplo para os funcionários de campanhas políticas estaduais e federais que usam a rede, para evitar que suas contas sejam invadidas.


Juan Arias: Enquanto pastores evangélicos apoiam Bolsonaro, cúpula católica lava as mãos

Estaria Jesus, nestas eleições, a favor de um candidato que prega a violência como panaceia para todos os males?

Há momentos na história dos povos, como hoje no Brasil, onde os cristãos não podem ser omitir quando os direitos fundamentais das pessoas, como suas liberdades e defesa dos mais fracos, estão em perigo. No Brasil, 166 milhões de pessoas, cerca de 86% da população, declaram-se cristãs. Nessa parcela, 64,6% são católicas e o restante, evangélicas. Para ambos os grupos, sua constituição religiosa são os textos da Bíblia, do Antigo e do Novo Testamento. Ambas os grupos cristãos têm como lema a paz e a fraternidade, bem como a defesa dos mais humildes e esquecidos pelo poder.

As igrejas evangélicas pregam, como vi escrito até em um caminhão, que "Cristo está voltando". Pergunto-me, no entanto, se os evangélicos e católicos não seriam pegos de surpresa se, de fato, o inocente e pacífico Jesus de Nazaré, crucificado por defender os perseguidos e desprezados pelo poder, aparecesse nos dias de hoje entre eles. Estaria Jesus, nestas eleições, a favor de um candidato que prega a violência como panaceia para todos os males, que zomba das minorias ameaçadas pela intransigência, que ensina crianças a usar as mãos inocentes para imitar um revólver e que, vítima de um ataque injusto, como são todos os atos de violência, continua, de seu leito no hospital, fazendo gestos como se estivesse disparando uma arma?

Se Cristo voltasse, ficaria, certamente, surpreso com a notícia publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, de que a Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil decidiu apoiar a candidatura do capitão reformado Jair Bolsonaro, sob o pretexto de frear uma possível vitória da esquerda. Os evangélicos, como todos os cidadãos, têm o direito de preferir um candidato de esquerda ou de direita. Eles são, no entanto, seguidores do profeta que morreu por defender todas as minorias perseguidas em seu tempo e que se recusou a ser defendido por seus discípulos com a espada. Não poderia, por isso, abençoar aqueles que não só pregam a violência e até mesmo o extermínio dos inimigos, mas também fazem alarde sobre isso.

E, se pode nos surpreender o fato de que as igrejas evangélicas declarem, por meio de seus pastores, seu apoio ao candidato que fez das armas seu estandarte sagrado, também surpreende que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lave as mãos e não tenha a coragem de assumir uma posição clara sob a desculpa de que a Igreja "não se pronuncia sobre candidatos". O cardeal Sérgio da Rocha, que agora preside a CNBB, em uma cerimônia em Brasília no último dia 14, havia defendido que os católicos não devem apoiar candidatos "que promovam a violência", referindo-se a Bolsonaro. Em seguida, os bispos divulgaram um comunicado para esclarecer que o cardeal havia dado sua opinião pessoal, e que a CNBB "não se pronuncia sobre candidatos". Os bispos, mais uma vez, lavaram as mãos, um gesto que traz tristes lembranças, quando Pôncio Pilatos, antes de condenar Jesus à morte, também lavou as mãos.

A Igreja Católica, que carrega nas costas dois mil anos de história, já pagou caro no passado por ter feito uso da violência contra os hereges, nas fogueiras da Inquisição e nas guerras religiosas. Ainda surpreende aquele ambíguo lavar de mãos do papa Pio XII diante de Hitler e do Holocausto. E pagou caro por seus pecados de traição à sua doutrina de paz e de defesa das liberdades, assim como seu apoio às piores ditaduras.

Uma coisa é que, como princípio, as igrejas cristãs proclamem sua independência em assuntos transitórios da política, e outra que, quando a política se torna um perigo nacional, se permitam lavar as mãos ou ficar do lado dos opressores dos fracos e daqueles que desejam fazer da violência o centro de gravidade de um país. Para isso, não existe perdão.

No cristianismo, a neutralidade quando a vida e os direitos das pessoas estão em jogo é um pecado. A Bíblia é clara. No livro do Apocalipse (3:15-16), aqueles que preferem covardemente lavar as mãos são repreendidos: "Assim, porque és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”. O Deus cristão exige a coragem de saber se posicionar contra os violentos, no pelotão dos indefesos condenados ao esquecimento e principal alvo da violência.


El País: “Haddad está no segundo turno, Bolsonaro ainda não”, diz estatístico de campanhas

Paulo Guimarães, que atua em 13 Estados nesta eleição, ainda enxerga Alckmin ou Ciro contra o PT: "O voto branco e nulo diminuiu e foi maciçamente para Bolsonaro. Historicamente esse voto não é dele"

O deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) não para de subir nas pesquisas de intenção de voto desde que foi vítima de um atentado no início de setembro, mas seu lugar no segundo turno ainda não está garantido, diz o estatístico Paulo Guimarães. Conhecido como "guru" de campanhas por ajudar a eleger, entre outros casos considerados impossíveis, o hoje candidato ao Senado César Maia (DEM) à prefeitura do Rio de Janeiro em 1992, Guimarães acompanha a eleição por meio de grupos controle de eleitores, atuando em 13 Estados nesta eleição. Presta consultoria, entre outras, à campanha de Geraldo Alckmin (PSDB), que ele põe ao lado de Ciro Gomes (PDT) no páreo pela vaga que muitos já dão como garantida para Bolsonaro no segundo turno.

O desafio de adversários mais ao centro, segundo ele, é se provar melhores adversários contra o PT de Fernando Haddad e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "O voto que veio [para Bolsonaro] após a facada é de um contingente puto contra o sistema. O voto branco e nulo diminuiu drasticamente e foi exclusiva e maciçamente para o Bolsonaro. Historicamente esse voto não é dele", diz o estatístico na entrevista que segue abaixo.

Pergunta. O que é possível dizer neste momento sobre o desfecho do primeiro turno?
Resposta. O Haddad vai para o segundo turno. Era muito difícil o candidato do Lula não estar no segundo turno, e isso tem se confirmado pelas tendências. O Lula é um apoiador muito forte. Muita gente confundiu o apoio dele ao Haddad presidente com o apoio ao Haddad prefeito de São Paulo. Quem sabe do buraco da minha rua é o prefeito, o ex-prefeito, o candidato a prefeito. O presidente fica longe, distante. O governador está um pouco mais próximo, mas quem está muito próximo é um ex-prefeito, um prefeito atual.

P. Bolsonaro lidera as pesquisas desde o início da campanha e não para de crescer. Por que não está garantido?
R. O voto dele não é de competência, é de protesto, de ódio ao outro lado. A maior fidelização entre os candidatos é a do Bolsonaro, mas tem uma parte muito flutuante ali ainda, que está lá pelo ódio. Se o eleitor perceber que pode ganhar do PT sem o ódio, ele pode mudar. Mas, para isso, tem de aparecer um desses outros candidatos de centro com uma votação que dê esperança ao eleitor. E isso vai ser decidido nos últimos três dias. Se um desses de centro chegar [ao final da corrida eleitoral] com 15% e o Bolsonaro com 25%, é possível.

P. É possível prever um cenário assim mesmo diante do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas?
R. As chances deles aumentam com o crescimento nas pesquisas, mas pode mudar muita coisa se o Bolsonaro não se mostrar competitivo contra o PT no segundo turno. Eu já vi [Celso] Russomanno a três dias da eleição com 11 pontos na frente de [José] Serra e Haddad [na eleição pela Prefeitura de São Paulo em 2012], e os dois passaram à frente. Se ninguém aglutinar, os votos vão para o Bolsonaro por conta do ódio ao PT. Se alguém do centro aparecer bem posicionado, vai atrair os votos úteis. Ainda é um pouco cedo para se pensar num quadro definitivo. Mas eu apostaria que o Haddad está no segundo turno, e a outra vaga tem de ser disputada por Ciro, Geraldo e Bolsonaro.

P. Alckmin consegue tirar voto de Bolsonaro?
R. Qualquer um consegue. Dezesseis por cento dos votos do Bolsonaro são do PT. Haddad vai tirar votos de Bolsonaro, do eleitor pobre do Nordeste. Da mesma maneira que, se Bolsonaro se consolidar como a única força contra o PT, ele vai tirar votos de Geraldo, do centro. Se o Geraldo se mantém solto [do grupo de candidatos empatados nas pesquisas], é uma briga entre eles dois para ver quem vai enfrentar o PT no segundo turno. A simulação de segundo turno com Haddad crescendo... Tem uma linha toda de centro que pode explorar isso, mas as campanhas de uma maneira geral foram muito ruins. Com exceção à do [Henrique] Meirelles.

P. Por que a campanha do Meirelles (MDB) não emplaca?
R. Por causa do [presidente Michel] Temer. As pesquisas mostram que, se Meirelles não estivesse com Temer, teria mais votos. Falei isso desde o princípio. O Alckmin atingiu seu auge de 10% quando bateu no Temer e o Temer retrucou. O campo vencedor da eleição é o de oposição ao Temer. E ninguém explorou isso, só a Marina [Silva, Rede] no lançamento da candidatura dela. Por isso ela saiu à frente daquele bloco. Agora é um campo político: PT e anti-PT.

P. O argumento dos tucanos pelo voto útil tem poder de atrair eleitores?
R. O voto útil tem uma hora certa de acontecer, para quem quer que seja. Um candidato não precisa passar o outro para ter voto útil, mas apenas mostrar uma recuperação. Pelo tempo de tevê e por aglutinar uma parte do centro, que é maior do que o ódio da direita e o ódio da esquerda, Alckmin teria mais chance de voto útil no final —votos inicialmente do [João] Amoêdo, do Meirelles. Isso é histórico. Na eleição que o Geraldo perdeu [para Lula, em 2006], ele teve nove ou dez pontos a mais do que as últimas pesquisas indicavam. Foi uma surpresa muito grande ele passar da casa dos 40%. Nas últimas pesquisas oficiais, o Aécio [Neves, em 2014] cresceu muito nos últimos dois dias, contra a Marina. Esse voto conservador sempre esteve do lado não do PSDB, mas desse centro de conciliação.

P. O atentado contra Bolsonaro forçou a campanha de Alckmin a interromper as críticas que fazia para desconstruir o adversário. Já dá para dizer que foi um evento crucial na corrida presidencial?
R. É preciso aguardar o fim da eleição para dizer isso. Nós fazemos um trabalho de grupo controle. No dia da facada, o único que perdia votos era o Bolsonaro. Aí veio a facada, nós paramos o campo, e ele foi para 22% [no Ibope]. Ele não recebeu esses votos do eleitor do Alckmin ou da Marina, foi basicamente dos brancos e nulos e dos indecisos, pela comoção, como a Marina teve aquela enxurrada de votos [em 2014], que também não eram dela, porque o avião [que levava o então cabeça de chapa do PSB, Eduardo Campos] caiu. O povo do Brasil é assim, é coração. “Se deram uma facada nele, ele deve ser bom”. Nas pesquisas oficiais, ele cresceu 2%. Mas se o Alvaro Dias (Podemos), que tem menor rejeição, tivesse levado uma facada, ele teria crescido muito mais.

P. Você diz que esses votos não são de Bolsonaro. São de quem?
R. O voto que veio após a facada é de um contingente puto contra o sistema. O voto branco e nulo diminuiu drasticamente e foi exclusiva e maciçamente para o Bolsonaro. Historicamente esse voto não é dele, e tenderia a voltar para o estágio inicial conforme o efeito fosse diminuindo, mas ele ainda está no hospital. A facada não deu a esse candidato nenhum atributo de voto, mas a comoção pode ir até o fim da eleição ou não. A Marina desmorona toda eleição porque ela não tem atributos de voto: firmeza, experiência, competência, autoridade, coragem. São 36 atributos de votos que compõem um candidato a presidente da República. Não sou eu que estou julgando a Marina, é isso que o eleitor fala. Ela tem imagem de guerreira, uma mulher de origem muito pobre, batalhadora, mas isso não é atributo de voto. Ela também ficou marcada por ficar quatro anos sem marcar um atributo.

P. É de se esperar, então, que Bolsonaro perca algum do espaço ganhado nos últimos dias?
R. A Marina teve muito mais [intenção de voto] do que ele tem hoje, subiu 31 pontos e chegou a 37% [em 2014]. A esse ponto, o Aécio não estava sequer no debate. A comoção se dissipou e ela ficou com 21%, ele [o senador tucano] foi para o segundo turno. Ainda é cedo. Hoje se aposta muito mais no Bolsonaro porque ele está à frente. Mas nas últimas eleições das capitais, apenas três candidatos que saíram na frente ganharam, entre eles o ACM Neto (DEM) e o Marcelo Crivella (PRB). Todos os outros saíram muito de trás. O [prefeito de Porto Alegre, Nelson] Marquezan (PSDB) largou com 3,6%. Quem sai à frente tem o ônus de ser a maior mira de todo mundo, e também carrega os votos do eleitor desatento, que indica o voto nele porque é o candidato mais comentado. Quando ele começa a prestar atenção, percebe que não é isso que ele queria.

P. E Bolsonaro, não tem mais para onde crescer?
R. Tem, mas em função do ódio, não dele. A rejeição dele é muito alta há algum tempo. À medida que o Lula fica mais odiado, que outros candidatos dizem que vão dar indulto para ele, o eleitor decide votar no Bolsonaro. O jogo hoje é muito mais político do que temático —de melhorar saúde, educação, segurança. As mulheres não votam no Bolsonaro, mas as mulheres pobres tendem a decidir o voto mais tarde. O país é absurdamente machista. O marido vai dizer em quem elas devem votar, principalmente nas classes mais baixas, das mulheres mais agredidas. O voto da mulher tem convergido para o voto do homem historicamente.


El País: Contra Bolsonaro ou PT, o voto útil promete definir os rumos para o segundo turno

Apesar do grande número de presidenciáveis, intensa polarização tende a dirigir escolha do eleitor. Segundo diretor do Datafolha, brasileiros têm acompanhado pesquisas com mais intensidade

 

eleições 2018 voto útil
Pesquisa Datafolha sobre a decisão de voto no primeiro turno. Divulgação Datafolha

O eleitor brasileiro tem 13 candidatos a presidente para escolher nas eleições deste ano, mas a dinâmica eleitoral tende a reduzir muito as opções na reta final do primeiro turno. Os polos representados na campanha pelo deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) e pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora substituído por Fernando Haddad (PT), prometem dirigir as escolhas de parte da população para um voto útil, no qual o eleitor deixa de escolher seu candidato favorito para tentar evitar o que identifica como o pior resultado possível.

A escolha pelo candidato considerado menos pior deve começar a se configurar nas próximas pesquisas de intenção de voto, aposta o diretor do Datafolha, Mauro Paulino. "Como houve esse embolamento na disputa pela segunda colocação, acho muito possível que essa prática do voto útil aumente, seja maior do que em eleições anteriores e que os eleitores já comecem a pensar nisso bem antes do que de costume, antes da última semana [de eleição]", diz Paulino. O "embolamento" a que ele se refere é o empate técnico entre Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede), Alckmin e Haddad, identificado pelas últimas pesquisas de intenção de voto.

Na expectativa de se descolar desse grupo, Alckmin afirmou na última quarta-feira, durante uma agenda de campanha em Betim (MG), que “Ciro foi ministro do Lula, sempre apoiou o PT, até a Dilma", e seguiu: "O Meirelles se vangloria de ter sido ministro e presidente do Banco Central do PT, a Marina Silva foi 24 anos filiada ao PT e agora o Haddad... é inacreditável você lançar uma candidatura na porta da penitenciária”. Alckmin divide eleitorado com Henrique Meirelles (MDB), Alvaro Dias (Podemos) e João Amoêdo (Novo), todos com cerca de 3% de intenção de voto nas pesquisas.

A expectativa é de que o voto útil poderia atrair alguns desses eleitores para o tucano. Apenas 35% dos eleitores de Meirelles se dizem totalmente decididos a votar nele, segundo o Datafolha, enquanto 43% dos votantes de Dias estão definidos. No caso de Amoêdo, a convicção é de 53%. Para rebater a estratégia, o partido Novo, em particular, tem feito campanha contra o voto útil e críticas aos tucanos. “A prisão do ex-governador do Paraná Beto Richa, atual candidato ao Senado pelo PSDB, e o mandado de busca e apreensão na casa do governador do Mato Grosso do Sul, também do PSDB, vai deixando claro como PT e PSDB são da mesma política, da velha política", diz Amoêdo em vídeo divulgado por sua campanha no qual pede renovação.

Os eleitores de Amôedo — e de Alvaro Dias — também têm sido alvo da militância pró-Bolsonaro. Os apoiadores do capitão reformado do Exército gostariam de terminar a disputa no primeiro turno, um cenário que neste momento parece muito improvável, e tentam convencer nas redes sociais os eleitores desses adversários a direcionarem seus votos para o militar reformado. "Bolsonaro pode estar a um Amoedo ou a um Álvaro Dias de vencer no 1° turno", afirmou o filho dele, Flávio Bolsonaro, em seu Twitter. Pela última pesquisa Ibope, entretanto, o deputado do PSL teria 35% dos votos válidos.

Alckmin, por sua vez, segue mirando contra Bolsonaro, com quem compete pelos votos anti-PT. "Vejo que o Bolsonaro é um passaporte para voltar o PT. Isso é fato. É só olhar o segundo turno (...) Você vota em um e elege o outro. Então vamos trabalhar muito para chegar no segundo turno”, disse durante a passagem por Minas Gerais. O melhor cenário para o tucano seria chegar à reta final de campanha com intenções de voto o bastante para ser considerado viável, o que poderia lhe render votos antes direcionados a outros candidatos de direita. Por isso, o destaque dado pelo tucano ao segundo turno parece sua grande aposta para engrenar uma campanha que evolui num ritmo devagar demais para o candidato com mais tempo de exposição na televisão.

Segundo o diretor do Datafolha, diante dos números apontados pelas pesquisas, o eleitor já começa a pensar em seu plano B. "A pesquisa é a ferramenta ideal para perceber esse voto calculado. Elas têm ganhado mais repercussão e credibilidade a cada eleição. Os próprios eleitores estão prestando mais atenção", comenta. A CEO do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari, destaca, contudo, que "não temos ainda nenhuma estimativa sobre qual é a proporção de eleitores que pretendem votar de uma forma mais estratégica". "Desde 1994, as eleições presidenciais sempre foram disputadas entre PT e PSDB, então não temos histórico de voto útil nas últimas seis eleições presidenciais. Temos observado que o eleitor decide o seu voto, cada vez mais tarde, nos últimos dias que antecedem as eleições, vamos acompanhar esse processo decisório e avaliar se há alguma movimentação no sentido do voto útil", diz.

Esquerda

Pela esquerda do espectro político, Haddad tenta se colocar no segundo turno, se contrapondo a Ciro Gomes, ex-ministro de Lula que fez sua vida política no Nordeste, o que já o coloca em vantagem na região, que é o segundo maior colégio eleitoral do país.

A vantagem de Haddad é conseguir assegurar uma parte do estoque de votos de Lula que lhe parece reservada — o ex-prefeito de São Paulo, que hoje aparece com algo em torno de 8% nas pesquisas, teria espaço para crescer a pelo menos 15%, afirmam analistas. Já a vantagem de Ciro, segundo Paulino, é que ele tem demonstrado mais indignação, algo que chama a atenção do eleitor no momento. Os eleitores de esquerda também podem se reunir, nas últimas semanas do primeiro turno, em torno da candidatura que estiver somando mais votos, com a expectativa de conseguir colocar um candidato de seu campo ideológico para enfrentar Bolsonaro em um segundo turno. Por isso, Ciro busca se consolidar como candidato da esquerda não-radical, para atrair, além dos votos progressistas desiludidos com o PT, os votos mais ao centro, desiludidos com o PSDB, mas que jamais votariam em um candidato mais radical, como o militar reformado.

Apesar das expectativas em relação ao voto estratégico, o especialista em marketing eleitoral Victor Trujillo alerta para o risco de "superestimar o discernimento do eleitor em relação a esses campos políticos de centro, esquerda, direita". Segundo ele, ainda é cedo para falar em voto útil. "O eleitor vai mudar de opinião até o dia das eleições, mesmo aqueles que dizem que não vão mudar de opinião", diz o professor da ESPM. Trujillo também chama atenção para o voto pragmático do eleitorado. Em especial o das mulheres mais pobres, que dependem mais dos serviços públicos e votam naqueles candidatos que mais conseguem convencê-las de que a situação melhorará.


El País: Com Bolsonaro ainda mais limitado, bate-cabeça se aprofunda em sua campanha

Sem poder se comunicar de forma adequada no hospital, candidato pode ter sua força questionada. Nos bastidores, organizadores se atrapalham sobre os rumos a seguir

Por Beatriz Jucá e Gil Alessi, do El País

A cirurgia de emergência do candidato Jair Bolsonaro (PSL) na noite desta quarta-feira (12), após a detecção de uma aderência obstruindo o intestino delgado, impõe novos desafios para sua campanha ao Palácio do Planalto. A estratégia de gravar vídeos diários para as redes sociais, prevista para começar esta semana, foi adiada em função do grave estado de saúde do presidenciável, que voltou para a Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Albert Einstein, onde se recupera “sem intercorrências” e com visitas restritas a familiares para reduzir o risco de infecção. Sem prognóstico de alta do candidato nem mesmo da UTI, alguns correligionários já admitem que ele não retomará a campanha ou participará de debates até o primeiro turno, no dia 7 de outubro, o que abre espaço para que políticos de seu círculo íntimo comecem a se movimentar —e entrar em atrito.

O presidente do PSL paulista, Major Olímpio, tratou de colocar panos quentes no assunto, e negou que haja mal-estar entre o vice e os líderes do PSL após o pedido feito ao TSE. “Nós não demos muita importância a esse tipo de coisa. A intenção foi 100% positiva, pra quem conhece o general Mourão”, afirmou nesta quinta-feira ao visitar Bolsonaro no hospital Albert Einstein. Segundo Olímpio, é positivo ter o candidato a vice nos debates para falar das propostas do militar reformado e defendê-lo de possíveis "ataques" dos demais presidenciáveis. “Agora isso não depende de nós. Depende do TSE”.

Segundo Olímpio, o PSL está tentando unir as agendas dos líderes partidários com a dos filhos de Bolsonaro e do general Mourão para tentar passar uma imagem de coesão dentro da chapa, que lidera as intenções de voto até o momento. Nos próximos dias estão marcados atos de campanha em Assis, Marília, Ourinhos, Santa Cruz do Rio Pardo, Bauru e Itupeva, no interior do Estado de São Paulo. “Quanto mais eu puder ter o general Mourão em São Paulo, mais isso fortalece o Jair Bolsonaro”, afirma, fazendo a ressalva de que o general “tem um perfil diferente, não é homem de estar nas massas”. Para Olímpio, os 33 milhões de eleitores paulistas podem ajudar a definir a eleição "no primeiro turno". Para o partido isso seria importante, tendo em vista que até o momento nas simulações de segundo turno da mais recente pesquisa, o Datafolha, o máximo que o capitão obtém é um empate com o petista Fernando Haddad (PT).

Apesar do esforço de Olímpio para amarrar um agenda conjunta, o general parece ter outros planos. "Já estou no Paraná desde terça-feira, e nos próximo dias irei até o Rio de Janeiro e Manaus", afirmou Mourão em conversa por telefone com o EL PAÍS. "O Brasil é enorme, temos que nos mover", disse. O candidato a vice negou que tenha agido de forma desleal com o partido de Bolsonaro ao propor sua participação nos debates: "Eu apenas estou fazendo minha parte como segundo na campanha. Não posso substituí-lo, ele é insubstituível. Apenas o que posso fazer é aumentar a minha circulação pelo país para difundir nossas ideias".

Outra peça importante no xadrez da campanha bolsonarista é o candidato ao Senado Flávio Bolsonaro (PSL), filho do presidenciável, um dos coordenadores da ponta fluminense da campanha. Ele também nega qualquer mal-estar entre seu partido e Mourão. "O general é um cara 100% fechado com a gente, confiamos plenamente nele, e ele mostra que está disposto a ajudar onde for necessário", afirma. No entanto, Flávio diz que a participação do vice ou de qualquer um dos filhos do capitão em eventos ou agendas da chapa depende da decisão do candidato à presidência. "A participação dele depende da anuência do Jair, é dele a decisão final. Se ele entender que o Mourão tem que ir [aos debates], ele é super qualificado, não será uma peça decorativa", explica. "Somos todos soldados do capitão, a palavra final é sempre dele". Seja como for, Bolsonaro foi aconselhado pela equipe do Einstein a falar o menos possível para evitar qualquer complicação extra na recuperação. "Quando ele estiver em condições de tomar decisões, irá tomá-las", disse Flávio.

Do leito do hospital, o próprio Bolsonaro usou o Twitter para tentar conter os rumores de bate-cabeça. "Muita coisa vem sendo falada na tentativa de nos dividir e consequentemente nos enfraquecer. Não caiam nessa! Desde o início sabíamos que a caminhada não seria fácil, por isso formamos um time sólido e preparado para a missão de mudar o Brasil! Não há divisão!", escreveu.

"Forte como um cavalo"

Hospitalizado há sete dias, desde que levou uma facada no abdômen durante ato em Juiz de Fora (MG), Bolsonaro não deve voltar tão cedo para a campanha. E as perspectivas de retorno são ainda piores desde esta quarta-feira. O professor de cirurgia intestinal do Hospital das Clínicas, Carlos Sobrado, explica que uma complicação tida pelo capitão da reserva é comum neste tipo de trauma, mas é grave. “Nessas condições, o pós-operatório é complicado. O candidato tem mais de 60 anos, já passou por duas cirurgias em pouco tempo e está há uma semana sem se alimentar. Com certeza vai passar outra semana em jejum para depois retomar a dieta de forma muito gradativa”, analisa. Segundo ele, se o presidenciável evoluir positivamente, deverá receber alta em dez ou doze dias. “Acredito que no dia 7 [de outubro, quando acontece o primeiro turno] ele já estará em casa, mas não vai voltar a fazer campanha. Talvez para um segundo turno, se ele passar, ele tenha condições de participar de alguma atividade, mas com muito cuidado e restrição”, afirma.

Muita coisa vem sendo falada na tentativa de nos dividir e consequentemente nos enfraquecer. Não caiam nessa! Desde o início sabíamos que a caminhada não seria fácil, por isso formamos um time sólido e preparado para a missão de mudar o Brasil! Não há divisão!

O contraste entre o capitão da reserva que construiu sua carreira política alicerçada em um discurso conservador —e viril— e o candidato acamado com saúde fragilizada desempenha um duplo papel na campanha. "O drama pessoal humaniza o Bolsonaro, sempre há lugar no imaginário coletivo para os heróis feridos, que enfrentam situações adversas", explica o cientista político Antônio Lavareda, da Universidade Federal do Pernambuco. "Mas suponha que isso se estenda até o segundo turno, que ele continue fora da campanha caso avance para a reta final do pleito: aí é impossível prever o efeito que a ausência e fragilidade da saúde de Bolsonaro terão na cabeça das pessoas", diz. Para o professor, até o momento o fato de que o candidato não poderá ir a debates e sabatinas é positivo para ele, que não terá que se expor. "Mas enquanto ele fica no hospital outros personagens de seu círculo próximo ganham protagonismo, e eventualmente entram em conflito. Isso tudo deixa a opinião publica desconcertada, sem saber exatamente qual o estado de saúde do capitão", afirma, lembrando também o "trauma coletivo" que foi a morte do então presidente Tancredo Neves em 1985, que foi eleito, mas morreu antes de ser empossado, dando lugar a seu vice, José Sarney.

Flávio Bolsonaro afirma mesmo que o pai esteja em situação delicada no momento, sua imagem não será prejudicada. "Se ele não fosse forte já estava morto. É incrível como ele se recupera muito rápido de todas as cirurgias, operação após operação", diz. O vereador Carlos Bolsonaro, irmão mais novo de Flávio, também endossa o discurso familiar de que o capitão é "forte como um cavalo". No Twitter ele escreveu que apesar da "noite delicada (...) o velho é forte como um cavalo, não é à toa que seu apelido de Exército é 'cavalão!". Resta saber quanto vigor pode ter Bolsonaro para liderar uma corrida eleitoral da cama do hospital.


El País: Um milhão de mulheres contra Bolsonaro. A rejeição toma forma nas redes

Grupo no Facebook consegue 10.000 novos membros por minuto de eleitoras indignadas. Elas querem, agora, levar a insatisfação para as ruas

Por Joana Oliveira, do El País

A rejeição do eleitorado feminino ao candidato Jair Bolsonaro (PSL), refletida em todas as pesquisas e que no último Datafolha, do dia 10 de setembro, chegou a 49%, se materializou nas últimas duas semanas como um grupo massivo de debate político no Facebook. O "Mulheres unidas contra Bolsonaro" já conta com um milhão de participantes e continua crescendo na velocidade de 10.000 novos membros por minuto.

Isso aconteceu na quinta-feira, 30 de agosto. 24 horas depois, o grupo, exclusivamente feminino, já chegava a 600.000 participantes. O rápido crescimento já se desdobrou na convocatória de uma manifestação contra o candidato, em 29 de setembro, em São Paulo, que já conta com 40.000 confirmações de assistência. O objetivo, asseguram as administradoras do grupo, é realizar atos similares em outras cidades do país. Como reação, nesta quarta-feira, um outro grupo chamou a atenção no Facebook: "Mulheres unidas a Favor de Bolsonaro", com cerca de 38.000 participantes, mas que, curiosamente, foi criado e é administrado por um grupo de homens.

Na plataforma da rede social, as postagens do grupo contra Bolsonaro criticam não apenas as propostas do candidato, como a flexibilização do acesso a armas, mas principalmente suas declarações em relação à brecha salarial de gênero —o candidato acredita que a equiparação no sistema privado não é competência política do Estado e seu gabinete, conforme adiantou o Valor Econômico, paga menos às mulheres— e seus comentários violentos contra repórteres e colegas políticas. "Um país sério de verdade jamais permitiria que esse cidadão falasse as barbaridades que falou. Cadê o Ministério Público? Cadê os órgãos de defesa das mulheres?", questiona Teixeira em relação à frase "não te estupraria porque você não merece", dita à deputada Maria do Rosário.

O grupo se define como apartidário ("A única bandeira é ser anti-Bolsonaro", diz Teixeira), mas existem postagens fixas sobre os demais candidatos à presidência, nos quais as simpatizantes de cada um podem publicar informações sobre eles e suas propostas. "Acredito que muitas indecisas decidiram em quem votar com base nessas discussões online", comenta a publicitária.

Com um perfil de participantes que vai desde adolescentes até senhoras que, por lei, já não precisariam mais votar, o grupo é espaço de discussão de mulheres que enfrentam familiares e amigos na tentativa de combater o voto ao que consideram "um candidato nefasto". "Meu marido é um coronel militar que vai votar nele. Já não sei mais o que fazer, só penso em rasgar o título de eleitor dele ou esconder seus documentos para que ele não possa votar", conta uma professora de 62 anos, que prefere não se identificar.

As participantes definem o grupo como um "elo de ligação", um espaço de reunião onde elas pudessem debater política livremente, sem ser silenciadas. "Porque quando fazíamos postagens individuais, sempre havia mansplaining (explicação masculina), homens nos atacando com termos chulos, assédio. Há casos até de usuários que tiraram print de fotos das meninas e espalharam por aí, éramos atacadas pelos seguidores de Bolsonaro, que são bastante agressivos. Faltava esse espaço para debate", conta Teixeira.

Também são muitas as postagens de usuárias que desabafam sobre violência doméstica e relações abusivas e de mulheres trans que agradecem por terem encontrado um “espaço solidário”. "Sinto que o Brasil todo está lá. É muito maior do que só um grupo contra Bolsonaro", afirma a publicitária, que destaca que as participantes "não são contra a pessoa" do presidenciável. "Ele é um ser humano que merece respeito. Inclusive, lamentamos muito o ocorrido [referindo-se ao ataque à faca sofrido por Bolsonaro no dia 6 de setembro]. Não somos favoráveis a nenhum tipo de violência ou discurso de ódio, queremos vencê-lo nas urnas".

Foi justamente depois desse atentado que o candidato registrou um crescimento entre três e dois pontos percentuais na intenção de voto feminino, de acordo com as últimas pesquisas Datafolha e Ibope, respectivamente. "O esfaqueamento mobilizou parte dos eleitores indecisos, principalmente as mulheres, que se solidarizaram com o candidato", avalia a antropóloga e cientista social Rosana Pinheiro-Machado.

Por outro lado, a cientista política acredita que o ataque foi também a "faísca" para que mais mulheres se mobilizassem contra Bolsonaro. "A mensagem sobre o voto feminino como faixa de contenção contra ele já vinha circulando e esse atentado disparou o medo de que se gerasse mais simpatia pelo candidato e que levasse a uma vitória sua no primeiro turno".

Para além das eleições

Pinheiro-Machado considera que o movimento de "mulheres unidas contra Bolsonaro" pode ter o mesmo impacto no Brasil que a marcha das mulheres contra Trump nos Estados Unidos, mas matiza que, para isso, o milhão de participantes do grupo virtual tem que se traduzir nas ruas para que se possa gerar um fato político relevante. "Desde a primavera feminista, quem consegue se organizar hoje no Brasil são basicamente as mulheres", diz.

E as organizadoras e participantes da plataforma na rede social não pretendem parar. Elas contam que já consideram mudar o nome do grupo depois das eleições para se tornar, de fato, um movimento que promova rodas de conversa, debates e outras ações em prol dos direitos das mulheres. "Não são só as eleições, temos uma série de pautas pelas quais lutar, como contra o Estatuto do Nascituro [PL 5069/13, que dificultará o acesso ao aborto em casos de estupro], ou a favor da criação de uma lei para criminalizar o assédio", afirma Teixeira.


El País: Haddad, o herdeiro acidental do lulismo que terá de aprender a falar com os mais pobres

Ex-prefeito de São Paulo, acadêmico é aceno para a classe média de esquerda, perdida após o Mensalão

Por Talita Bedinelli, do El País

Não faz muito tempo, a fama de Fernando Haddad se restringia aos corredores acadêmicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), onde era uma espécie de professor-estrela do Departamento de Ciência Política. Sua aula de Teoria Política Moderna, que abarca de Montesquieu a Karl Marx (especialidade de Haddad) era disputada pelos estudantes no início dos anos 2000 —os que não conseguiam se matricular chegavam a pedir pessoalmente a ele para assistirem ao curso, o que, em geral, era educadamente negado por conta da lotação das aulas.

Em menos de seis meses, a lua de mel da população de São Paulo com Haddad acabou. Em junho de 2013, ele via surgir nas ruas de São Paulo um movimento contrário ao aumento de tarifas de transporte público que começou tímido, quase sem peso. Mas acabou incendiado diante das fortes imagens de truculência da Polícia Militar. Em poucos dias, a situação saiu de controle e o professor de ciência política acabou acusado de não ter habilidades políticas por não ter sabido dialogar para conter a revolta. O movimento se espalhou pelo país, aglutinando um caldo difuso de insatisfações de uma classe média descontente com o PT. Foi o primeiro marco importante da crise política brasileira, que culminou no impeachment de Rousseff e se arrasta até hoje, marcando a atual eleição. Nesta época, a popularidade dos políticos do país despencou como um todo, assim como a confiança da população nos partidos em geral.

Pelos anos seguintes, Haddad patinou na prefeitura. Sem dinheiro devido à recessão que iniciava, apostou em políticas mais baratas, como a instalação de uma malha de ciclovias que beneficiou, especialmente, o centro expandido da capital. Apostou ainda em políticas estruturais, mas de difícil percepção popular, como o novo Plano Diretor, que desenhou a cidade até 2030 e foi considerado de altíssima qualidade por urbanistas. Falhou em sua estratégia de comunicação, ao não mostrar claramente o que fez —e quando era questionado sobre isso, argumentava que, com o tempo, a população reconheceria sua gestão e dizia que sua métrica de sucesso não era a reeleição, irritando seu partido. E, por fim, fez menos do que os mais pobres esperavam em áreas caras à população periférica: não reduziu a fila da saúde ou a de vagas nas creches, por exemplo. Perdeu, assim, a reeleição ainda no primeiro turno para o tucano João Doria.

Passados dois anos, nos quais voltou à academia enquanto a crise do PT se aprofundava, o ex-prefeito nunca fez um mea-culpa real de suas falhas políticas, que acabaram custando ao partido as franjas da cidade que sempre foram um bastião, nem fez uma crítica frontal à corrupção praticada por membros de sua sigla —dois fatos com os quais agora deverá ser sistematicamente confrontado durante sua campanha como presidenciável, uma pista que já apareceu com o vazamento nesta segunda-feira da delação do ex-ministro Antonio Palocci, que afirmou que Lula atuava diretamente em pedido de propina; o próprio Haddad é alvo de denúncia do Ministério Público de São Paulo, acusado de receber 2,6 milhões de propina para pagar dívidas da campanha de 2012 à prefeitura; ele diz que a denúncia foi feita com base em uma delação sem qualquer prova.

Numa campanha onde o principal líder político da esquerda foi barrado por suas complicações com a Justiça, Haddad se tornou uma espécie de salvador acidental do PT. Um herdeiro meio por acaso do espólio eleitoral de Lula —um espólio, diga-se de passagem, muito maior do que a expressão política possível de um ex-prefeito que não conseguiu sequer ser reeleito. Não era, por isso, o herdeiro esperado de uma boa parte do partido, que preferia um nome de maior peso no Nordeste —ou que dissesse mais aos eleitores que não fossem a esquerda do centro expandido de São Paulo e suas variáveis pelo Brasil.

Se tem essas debilidades apontadas pelos adversários internos, Haddad se reforça como uma opção capaz de captar os votos progressistas que se afastaram do partido a partir de 2002, primeiro com o fisiologismo das alianças com o MDB de José Sarney; depois, com o Mensalão, e, por fim, com o Petrolão. É um respeitado professor, que empresta ao partido uma imagem de maior retidão que agrada a classe média ideológica decepcionada. Mas, neste caso, ele terá que disputar esse posto com os ex-ministros de Lula Ciro Gomes ou Marina Silva, que estão, segundo o último Datafolha, empatados tecnicamente no segundo posto com Haddad, ao lado do tucano Geraldo Alckmin.

Seja como for, como a lição de São Paulo já mostrou que não é essa parcela da população que decide uma eleição. E a incógnita estará em como um metalúrgico nordestino que se encontra preso e, portanto, impossibilitado de falar pessoalmente com as massas, conseguirá transferir ao menos metade de seus quase 40% de possíveis votos para que um acadêmico paulistano versado em Marx chegue ao segundo turno. Haddad sabe, e foi orientado internamente no PT a fazê-lo, que precisa aprender a falar com o Brasil real, aquele que não disputaria suas aulas da USP, e a mostrar que entende as mazelas que a parcela mais pobre vive, apesar de viver inserido em uma área do país de acumula privilégios. Terá que mostrar que é o PT da origem, ideológico, mas também o consagrado pelo lulismo, para as massas. Terá, antes de tudo, que provar que representa, de fato, o PT —por isso, o partido em suas campanhas deve focar no voto 13, como se Haddad fosse um mero veículo de Lula. Depois, terá de bloquear a ascensão de Ciro no Nordeste —o pedetista cearense alcançou na região 20%, segundo a pesquisa Datafolha desta segunda, enquanto Haddad chegou a 13%, atrás de Jair Bolsonaro, com 14%.

Mas, depois, caso consiga cumprir a tarefa entregue a ele por Lula de chegar ao segundo turno, terá que começar tudo de novo, e no sentido contrário. Em uma batalha final contra Bolsonaro, um dos prováveis donos da vaga, o desafio será o de mostrar que não é tão PT assim, um caminho para conseguir os votos mais moderados, que discordam do radicalismo do militar reformado, mas que, ao mesmo tempo, não suportam Lula. É dupla lição que o professor terá pouco mais de 40 dias para aprender.