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El País: Nem Bolsonaro nem Haddad: eleitores optam por votar nulo no segundo turno

De um lado, a leitura de um futuro nebuloso, de outro, a de um passado de erros. Entre direita e esquerda, uma massa de eleitores que se recusam a votar nos dois candidatos

Por Beá Lima

Bruno Santos* tem 21 anos e não vai escolher um candidato a presidente no próximo dia 28. Em sua opinião, há um acirramento na disputa destas eleições, mas as urnas são apenas um reflexo das ruas, que já vêm sendo palco de atos de intolerância contra as minorias há tempos. “Para mim, votar nesse segundo turno significa alimentar uma narrativa cheia de dicotomias heroicas, esquerda contra a direita, o bom contra o mau candidato. Seja quem vença as eleições, o cenário não muda. Todos os candidatos estão se aproveitando do medo”, explica o paulistano.

À direita estão os eleitores de Bolsonaro, candidato à frente na corrida eleitoral, com propostas pouco específicas e um discurso conservador. O capitão da reserva aposta em uma estratégia de campanha polêmica e “antissistema” que alerta para o perigo de uma suposta ditadura socialista, ou de o Brasil virar a Venezuela, caso a oposição vença as eleições. À esquerda, os de Haddad, candidato substituto do ex-presidente Lula nas eleições presidenciais, com propostas de reavivar o projeto do PT, e que baseia sua mensagem na ideia de que sua eleição significa a defesa da democracia em oposição à volta do autoritarismo, representado por Bolsonaro, um admirador da ditadura militar.

“Ficou no ar essa de votar contra o fascismo ou votar contra o comunismo e nenhum dos dois representa isso, na minha visão", afirma Fernando Teló, 29 anos, morador de Maringá (Paraná), zona eleitoral em que 60,1% dos votantes escolheu Bolsonaro no primeiro turno. O jovem se refere ao cenário político partidário do segundo turno como um “Grenal Eleitoral”, em referência ao clássico entre os times Grêmio e Internacional, e confessa que tem evitado falar de política. "Me sinto obrigado a pisar em ovos nesse assunto, ficou tudo mais delicado e as pessoas ficaram imprevisíveis. Evito ainda mais s quando se trata do Bolsonaro, pois tem número maior de eleitores dele aqui”.

Jennifer Ferreira* mora na periferia de São Paulo e também tem sentido receio em relação aos apoiadores do Bolsonaro.“Eu tive que bloquear um cara que nem me conhecia e veio me perseguir no Facebook porque eu tinha repudiado em um comentário as agressões sofridas pela MC Banana [que é transexual]. É uma loucura, parece que estamos voltando à ditadura". Mas, apesar de a jovem de 23 anos temer a eleição de Bolsonaro, ela não acredita que mais um governo do PT seja a saída. Durante a gestão Haddad, ela morou embaixo do Viaduto Alcântara Machado e relata que lutou contra pelo menos três tentativas de remoção de sua casa. “Eu não votei no primeiro e não tô com nenhuma vontade de ir votar no segundo. Morei na rua e sei que os de baixo sempre sofrem.”

A descrença na política inclusiva do PT também está presente na justificativa de Bruno que não vê nas propostas de Haddad uma realidade possível para seu cotidiano que, segundo ele, é marcado pela precariedade dos subempregos e privatização do ensino superior. "O Haddad enche a boca pra falar do FIES e se esquece das pessoas que se endividaram por não conseguir arcar com os custos do ensino privado", conta o jovem, referindo-se ao programa de crédito estudantil que é uma das vitrines da gestão Haddad no Ministério da Educação. Há três anos ele tenta ingressar numa universidade pública.

Juntos, os três jovens representam o sentimento de uma parte dos brasileiros nestas eleições de 2018, em que 30 milhões de eleitores não compareceram às urnas no primeiro turno, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O nível de abstenção, de 20,3%, é o mais alto desde as eleições de 1998, quando 21,5% do eleitorado não votou, apesar de o voto ser obrigatório. Há 12 anos, o índice de abstenção tem sido crescente. Em 2006, 16,8% da população não compareceu às eleições presidenciais. Em 2010, o índice foi de 18,1%. Em 2014 chegou a 19,4% e agora passou para 20,3%, segundo o TSE. Apesar do aumento, a socióloga Fátima Pacheco Jordão acredita que esses números não sejam estatisticamente relevantes, por conta da margem de erro e de cadastros desatualizados na Justiça Eleitoral.

A militância pelo voto de misericórdia

No terreno minado das eleições, há desentendimentos por todos os lados e tem sobrado farpa até para quem não acredita que tomar partido diante da polarização seja a solução. Evânio Cézar, 25 anos, morador de Areado, Minas Gerais, está decidido a anular seu voto e, ao se posicionar entre os amigos, relata que tem sido pressionado a votar para salvar o país. O mineiro relatou que os apoiadores de Bolsonaro têm sido mais incisivos em conquistar seu voto para evitar uma possível ditadura bolivariana. “Os argumentos são de que ele realmente vai mudar o Brasil e tirar o PT da presidência”. Ele complementa dizendo que se sente intimidado a tomar um lado, mas que percebe as pessoas mais alienadas: “Às vezes me dá medo porque percebo que só estão indo na onda da internet, sem levar em conta uma boa proposta de Governo para o Brasil.”

Já Tássia Farssura (foto principal, acima) , 34 anos, paulistana que também já optou pelo voto nulo, reclama ter sido mais abordada por eleitores do Haddad, candidato em desvantagem na corrida eleitoral e que, de fato, precisa conseguir converter alguns indecisos. “Chegaram a apelar: você quer bolsa de doutorado, fazer pesquisa e vai deixar o Bolsonaro entrar?", conta a mestra em gestão de projetos de engenharia civil, que há dois anos tenta uma bolsa para sua pesquisa de doutorado.

Fátima Pacheco Jordão aponta para a manifestação dos não-votantes como um ato de descontentamento com o instrumento político partidário. “A população não consegue perceber nas lideranças políticas partidárias aquilo que elas procuram”. " Mas à medida que o dia da eleição se aproxima, parte importante do eleitorado resolve em quem vai votar. Às vezes, na última semana, quiçá, no último dia”, diz a também especialista em pesquisa de opinião. Com o cenário, ela enxerga uma forte tendência popular em reivindicar outras formas de democracia, mas pondera: “é provável que a população peça por uma maior participação num sentido plebiscitário, mas é provável que as elites irão preferir fazer uma reforma política."

*Nome fictício, usado para preservar a identidade dos entrevistados a pedido deles


Eliane Brum: Bolsonaro é uma ameaça ao planeta

O candidato de extrema direita já anunciou medidas que vão abrir a Amazônia ao desmatamento

Jair Bolsonaro, chamado nas redes sociais de “o coiso”, não é uma ameaça apenas ao Brasil, mas ao planeta. O candidato de extrema direita, que liderou o primeiro turno das eleições no Brasil, com o voto de quase 50 milhões de brasileiros, pode vencer no segundo turno, em 28 de outubro. Se ele se tornar presidente do Brasil, já avisou que pretende seguir Donald Trump e anunciar a retirada do Brasil do Acordo de Paris. Ele e seus apoiadores também já anunciaram várias medidas que abrirão a Amazônia ao desmatamento. A floresta, que já teve 20% de sua cobertura vegetal destruída, está perigosamente perto do ponto de virada. A partir dele, a maior floresta tropical do mundo se tornará uma região com vegetação esparsa e baixa biodiversidade. E o combate ao aquecimento global se tornará quase impossível.

O ultradireitista que flerta com o fascismo já anunciou que pretende fundir o ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura e que o ministro desta aberração será “definido pelo setor produtivo”. O que Bolsonaro chama de “setor produtivo” é tanto o agronegócio quanto os grileiros, criminosos que se apropriam de terras públicas na base da pistolagem. No Brasil, parte do agronegócio se confunde com a grilagem e é representado no Congresso pelo que se chama de “bancada do boi”.

Essa frente, que reúne parlamentares de diferentes partidos conservadores, tem atuado fortemente nos últimos anos para avançar sobre as áreas protegidas da Amazônia. Querem transformar terras indígenas e áreas de conservação, hoje as principais barreiras contra a devastação da floresta, em pasto para boi, latifúndio de soja e mineração. Nesta eleição, anunciaram seu apoio a Jair Bolsonaro. O Partido Social Liberal (PSL) de Bolsonaro, que deverá engordar a “bancada do boi”, passou de um para 52 deputados, tornando-se o segundo maior partido da Câmara a partir de 2019.

Bolsonaro já garantiu aos grandes fazendeiros e grileiros que vai “segurar as multas ambientais”. "Não vai ter um canalha de fiscal metendo a caneta em vocês!”, discursou em julho. “Direitos humanos é a pipoca, pô!” Também já disse que não haverá “nem um centímetro a mais para terras indígenas” e defendeu que as já demarcadas possam ser vendidas. Entusiasta da ditadura que controlou o Brasil entre 1964 e 1985, ele também já declarou que vai “colocar um ponto final no ativismo xiita ambiental”. O candidato, que exalta a tortura, afirma que “as minorias têm que se curvar à maioria” ou “simplesmente desaparecer”.

Apenas a possibilidade de ser eleito tem funcionado como uma espécie de autorização para desmatar a floresta e matar aqueles que a protegem. Vários casos de violência contra lideranças e assentamentos de camponeses ocorreram na Amazônia nesta eleição. O Brasil já é o país mais letal para defensores do meio ambiente. Com Bolsonaro, os conflitos devem explodir.

Em 8 de outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertaram que o aquecimento global não pode ultrapassar 1,5°C. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Alertaram também que só há 12 anos para reverter esse processo. Doze anos. A floresta amazônica é essencial para controlar o aquecimento global. E Bolsonaro já anunciou medidas que vão colocá-la abaixo.

Como o debate foi sequestrado no Brasil, o maior risco quase não é mencionado ou é simplesmente ignorado. Dentro do país. E também fora, onde o silêncio de governos e parlamentos da maioria dos países sobre a ameaça que assombra o Brasil é uma vergonha de dimensões globais.

Se não for por posicionamento humanitário, representado pelo risco de um defensor da ditadura, da tortura e do extermínio dos diferentes se tornar o presidente do maior país da América do Sul, que pelo menos seja por cálculo: o Brasil pode estar se tornando um país cada vez mais periférico em vários sentidos, mas a Amazônia é central no debate mais importante deste momento histórico e que atravessa todos os outros temas: o climático.

Quem acredita que a possibilidade de o Brasil ser governado por um homem declaradamente racista, misógino e homofóbico é apenas mais uma bizarrice da América Latina não compreendeu que, em tempos de aquecimento global, a ameaça alcança a sua porta.


El País: Magistrados ignoram testemunhas e citam laudo forjado da ditadura para isentar Ustra

Apreciação de desembargadores do TJ de São Paulo se deu em sessão que extinguiu, por julgar prescrita, ação que pedia indenização para familiares de jornalista assassinado no DOI-CODI

Por Felipe Betim, do El País

Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) extinguiu nesta quarta-feira, 17 de outubro, um processo que condenava o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido torturador da ditadura militar brasileira (1964-1985) e idolatrado pelo presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e seu vice, o general Hamilton Mourão, a pagar uma indenização de 100.000 reais a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Ele foi torturado e morto nos porões do DOI-CODI em 1971, com apenas 23 anos. Em julgamento da 13ª Câmara Extraordinária Cível, os três desembargadores da segunda instância —Luiz Fernando Salles Rossi, Milton Carvalho e Mauro Conti Machado— entenderam que encontra-se prescrita a possibilidade de que família processasse Ustra e obtivesse compensação, uma vez que a lei civil prevê um prazo de 20 anos neste tipo de ação. O crime ocorreu em 1971 e o processo foi movido pela família em 2010, 22 anos após a promulgação da Constituição de 1988, usada como marcado temporal. Ainda cabe recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).

A ação por danos morais está sendo movida pela irmã do jornalista, Regina Maria Merlino Dias de Almeida, e sua ex-companheira, Angela Mendes de Almeida, desde 2010. Em 2012, a 20ª Vara Cível, primeira instância da Justiça, reconheceu a responsabilidade de Ustra e o condenou a pagar uma indenização aos familiares. A família deixou que a própria juíza fixasse o valor da indenização, uma vez que o dinheiro nunca foi prioridade, mas sim o reconhecimento da responsabilidade do Estado e de Ustra, segundo diz. O coronel recorreu da decisão antes de morrer em decorrência de um câncer e problemas cardíacos, em 2015. A decisão desta quarta derruba a condenação da primeira instância sob o argumento, proferido pelo magistrado Mauro Conti Machado, de que a família esperou 39 anos para entrar com o processo, 22 anos depois da Constituição.

O relator do caso, desembargador Salles Rossi, foi além. Primeiro a votar, defendeu que não havia provas nem testemunhas presenciais que indiquem que Ustra participou da tortura a Merlino durante a "chamada ditadura militar". Além de não levar em conta o fato de que o coronel era o responsável pelo DOI-CODI, o desembargador desconsiderou o relato das pessoas que presenciaram a tortura do jornalista, sendo a principal delas a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no Governo Dilma Rousseff (PT). Menicucci, que também foi torturada, conta ter visto o jornalista no pau de arara sob o olhar de Ustra. O magistrado também desconsiderou documentos como o da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Rousseff, e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo. Todas reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela morte de Merlino.

Os documentos narram com detalhe a captura, prisão e tortura do jornalista, que trabalhou em veículos como o Jornal da Tarde e a Folha da Tarde e militava no Partido Operário Comunista (POC). No dia 15 de julho de 1971, logo depois de retornar da França, foi detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP)  na casa de sua mãe, em Santos. Testemunhas indicam que o jornalista foi submetido a 24 horas de tortura no pau de arara e, depois, abandonado em uma solitária. Sofreu gangrena nas pernas decorrente da tortura e não recebeu tratamento médico. Deixado de lado por seus algozes, acabou morrendo. O atestado de óbito, do dia 19 de julho, diz que Merlino "ao fugir da escolta que o levava para Porto Alegre (RS), na estrada BR-116, foi atropelado e, em consequência dos ferimentos, faleceu”.

Apesar do primeiro atestado de óbito ter sido contestado —"há muitas evidências da falsidade da versão de atropelamento em tentativa de fuga", diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)— o magistrado Salles Rossi salientou que o primeiro documento oficial, tido como forjado pela ditadura, deve ser considerado. O desembargador Milton Carvalho concordou com a argumentação que opta por não considerar as conclusões dos relatórios oficiais anteriores e se referiu a Ustra como "suposto torturador". Os magistrados ignoraram também a decisão do STJ de 2014 que reconhece a responsabilidade civil de Ustra por torturas cometidas durante o regime militar.

No final, contudo, o desembargador Mario Conti Machado argumentou que a questão da prescrição bastava para derrubar a sentença da primeira instância. Assim, o entendimento unânime foi o de que, apesar de o crime de tortura não prescrever, havia esgotado o prazo de uma possível ação cível contra Ustra.

Descumprimento de decisão da OEA

O debate sobre se o crime de tortura é atingido ou não pela prescrição é um dos principais pontos quando se fala em punir os torturadores da ditadura militar. Isso ocorre sobretudo em ações penais nas quais, diferentemente de processos da área cível, está em jogo a liberdade do processado. Nesses casos entra em vigor a Lei de Anistia, de 1979, fazendo com que processos muitas vezes nem sequer sejam aceitos. Foi o que aconteceu com um ação penal movida pelo Ministério Público contra Ustra pedindo punição para o torturador no caso Merlino. O processo nem chegou a ser julgado em primeira instância, mas o Tribunal Regional Federal analisará novamente o caso na próxima semana, dia 23 de outubro. Os familiares do jornalista acreditam que o julgamento na área cível não foi agendado uma semana antes por mera coincidência e que teria servido para frustrar as expectativas.

O jornalista Luiz Eduardo Merlino.
O jornalista Luiz Eduardo Merlino. DIVULGAÇÃO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA já chamou a atenção do Brasil em duas ocasiões, em 2010 e 2018, ao condenar o país pela "detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas" entre 1972 e 1975 no Araguaia, e pela "falta de investigação, de julgamento e punição dos responsáveis" pela morte do jornalista Vladimir Herzog. O país é signatário de tratados internacionais que determinam que o delito de tortura, que pode ser enquadrado como "crime contra a humanidade", não é passível de prescrição e nem da aplicação da Lei da Anistia. Mas o Supremo nunca se pronunciou expressamente sobre a questão da prescrição. Contudo, entendeu que a legislação que perdoou os crimes cometidos durante o regime militar não fere a Carta Magna e se mostrou contrário a sua revisão.

Já em processos na área cível, que resultam em indenizações e ações declaratórias, a condenação de torturadores vem se mostrando mais viável. O próprio Ustra já foi condenado em 2008 em uma ação civil movida pela militante de esquerda Maria Amélia De Almeida Teles, torturada pelo coronel. Apesar de ter também recorrido ao TJ-SP, a 1ª Câmara do Direito Privado manteve a decisão. Foi a primeira vez em que o coronel, homenageado por Bolsonaro como o "pavor" de Dilma Rousseff durante a votação do impeachment, foi reconhecido como torturador.

"Essa sentença é um recado"

O julgamento desta quarta começou ao meio dia no quinto andar do Palácio da Justiça, no centro de São Paulo, e durou menos de uma hora. Após a sessão, o clima era de comoção e tristeza. Uma vez fora do salão onde ocorrera a audiência, familiares se abraçavam e choravam. "Quando se fala que alguém foi torturado barbaramente durante 24 horas no pau de arara com choque elétrico, ninguém sabe o que é isso, porque a juventude cresceu no esquecimento. A própria esquerda não explicou o que é", lamentou Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino. Ela entende que a decisão pode ser uma espécie de recado. "Esse candidato que está aí [Bolsonaro] tem como herói o Ustra e está a ponto de se eleger. Eles estão mostrando. Essa sentença é um recado de que se pode torturar e matar", argumentou.

A socióloga Eleonora Menicucci, testemunha-chave do caso, chamou a decisão de "dramática" e também acredita ser "um prenúncio de que aqueles tempos que poderão voltar pelo voto popular". Contudo, ela diz que a decisão é um estímulo a continuar lutando "pela memória, pela verdade e pela justiça". "Vale apena lutar. Sou uma pessoa que defino a minha vida por isso", diz.

Mendes de Almeida, que garante que irá recorrer da decisão, concorda. "A luta vai continuar, é uma coisa definitiva na minha vida. Um resultado diferente não alteraria a situação, mas seria um contraponto a essa onda conservadora que acha que tortura não é nada", opina. "Eles vão se arrepender muito. Porque todos nós vamos sofrer, mas quem mais vai sofrer são os pobres nas periferias".


El País: ‘Onda Bolsonaro’ deve impulsionar projetos conservadores no Congresso

Se eleito, capitão reformado do Exército poderá utilizar propostas como a revogação do Estatuto do Desarmamento ou a ‘Escola sem Partido’ para dar resposta rápida a seus apoiadores

Por Ricardo Della Coletta, do El País

"É certamente o Congresso mais conservador desde a redemocratização". É assim que Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), define a configuração do Parlamento brasileiro depois das eleições de 7 de outubro, quando estiveram em jogo as 513 cadeiras da Câmara dos Deputados e dois terços das do Senado Federal. Um perfil conservador aprofundado pela "onda Jair Bolsonaro", o candidato a presidente da República que é o favorito para ganhar o segundo turno. Partidos de centro-direita como o PSDB e o MDB viram suas bancadas diminuir na Câmara na mesma medida em que o PSL, sigla do capitão reformado do Exército, ganhou espaço.

O tamanho das consequências desse fenômeno, segundo cientistas políticos, ainda depende de duas condicionantes. Primeiro, da confirmação da vitória de Bolsonaro no próximo dia 28; e, segundo, das opções estratégicas que o novo presidente tomará: se eleito, Bolsonaro utilizará seu capital político para tentar levar adiante as complicadas reformas econômicas, como a da Previdência, ou colocará a força do Palácio do Planalto para aprovar projetos ligados aos costumes e que atendem aos seus eleitores mais conservadores e à chamada bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia)?

A resposta divide especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. "A gente assiste a um movimento de ampliação dos conservadores no Congresso desde o final da década passada, mas agora parece que eles têm força para de fato tentar impor uma agenda, especialmente se o Bolsonaro vencer", avalia Oswaldo do Amaral, professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com ele, Bolsonaro tende a utilizar a pauta mais conservadora para dar uma "resposta rápida" aos seus apoiadores, principalmente diante das dificuldades que ele deve enfrentar para pactuar uma reforma da Previdência, por exemplo. "Então o [projeto da] Escola sem Partido, a revogação do Estatuto do Desarmamento e a redução da maioridade penal são temas que devem entrar na agenda".

Antônio Queiroz, do Diap, vai na mesma linha. Ele acredita que as chances do avanço de uma pauta conservadora aumentam principalmente no que depender de projetos de lei, que não requerem maiorias qualificadas nas votações. É o caso, por exemplo, da flexibilização do Estatuto do Desarmamento e do Escola Sem Partido, uma polêmica proposta que altera as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e estabelece que, no ensino, os valores de ordem familiar devem prevalecer sobre aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa. Embora Bolsonaro seja a favor de reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, o diretor do Diap avalia que, como isso depende de uma emenda constitucional, haveria mais obstáculos em aprová-la.

Desde o fim da apuração dos votos, o Diap tem cruzado dados sobre os eleitores para medir o tamanho das frentes temáticas do Congresso, como a do agronegócio, a evangélica ou a da segurança pública. Os dados mostram, por exemplo, que houve uma drástica redução do número de parlamentares ligados ao sindicalismo. Foram eleitos 33 membros da bancada sindical, 18 a menos do que no pleito passado.

Segundo cálculos preliminares do Diap, as bancadas da agropecuária e evangélica tiveram uma "pequena redução" neste ano, mas as propostas que essas frentes encampam ganham força por terem estado presentes em todo o processo eleitoral, principalmente no discurso de Bolsonaro. Segundo Antônio Queiroz, houve um forte aumento do número de parlamentares ligados à bancada da bala e que defendem soluções "linha-dura" no tema da segurança pública.

Os temas caros a essas bancadas tendem a ganhar impulso também porque Bolsonaro já deu sinais de que quer negociar diretamente com essas frentes suprapartidárias. No início de outubro, por exemplo, ele recebeu o apoio formal da bancada ruralista.

Dificuldades
André Borges, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), concorda que o perfil da Câmara ficou "mais extremo", marcado ao mesmo tempo pelo enfraquecimento dos partidos de centro, por um tímido crescimento das legendas de esquerda e um claro avanço das siglas mais à direita. Ele pondera, no entanto, que um eventual governo Bolsonaro deverá enfrentar grandes dificuldades para levar sua pauta adiante, tanto na área econômica quanto numa agenda moral.

"Se olharmos para pesquisas de opinião, no caso da redução da maioridade penal, é quase um consenso. A última pesquisa Datafolha mostra que mais de 80% da população é favorável, só que tem um aspecto que as pessoas se esquecem: o custo fiscal disso para os Estados. Então provavelmente não interesse aos governadores apoiar isso", diz Borges.

Mesmo casos supostamente mais simples, como a revogação do Estatuto do Desarmamento, dependeriam da capacidade de um eventual governo Bolsonaro realizar acordos que cheguem mais além do que seu núcleo duro de aliados no PSL. Trata-se de uma capacidade de negociação que o capitão reformado do Exército ainda não demonstrou. "Ele e as pessoas mais próximas que o assessoram não têm nenhuma experiência de governo. Nem de prefeituras sequer", diz Borges. "Eu apostaria que eles vão levar um bom tempo batendo cabeça até aprenderem".


El País: De ator pornô a herdeiro da monarquia, a eclética bancada de Bolsonaro na Câmara

PSL elegeu 52 deputados e espera chegar aos 90, por conta da cláusula de barreira Militares, líderes pró-impeachment de Dilma e outsiders se colaram na figura do presidenciável

Por Afonso Benites, do El País

Militares, policiais, outsiders, ator que já gravou filme pornô, descendente da família real brasileira, ex-nadador olímpico, líderes de movimentos pró- impeachment de Dilma Rousseff (PT), jornalista processada por plágio, candidatos à reeleição ou apenas concorrentes fracassados em outras disputas que colaram sua imagem à de Jair Bolsonaro. Assim é formada a eclética bancada que o partido do presidenciável, o PSL, fez na Câmara dos Deputados neste ano. Entre seus 52 eleitos, a segunda com maior representatividade no Legislativo atrás apenas da do PT, há três que se declararam negros, 14 pardos e 35 brancos. Nove são mulheres. A frente da bala é expressiva: ao menos 22 já trabalharam ou atuam em órgãos de segurança privada ou pública, como as Forças Armadas, empresas particulares, polícias Civil, Federal, Militar e Rodoviária Federal. A média de idade é jovem, 45 anos. E quase a metade, 24, nunca havia disputado um mandato eletivo.

A quantidade de eleitos surpreendeu até mesmo os bolsonaristas mais otimistas. “Não esperávamos chegar a esse número. A grande verdade é que a indignação social, felizmente, não estava só na cabeça do Bolsonaro e na minha cabeça, mas na de toda a sociedade. O Bolsonaro apenas acendeu a faísca e todos viram que ali tem luz”, disse Luciano Bivar, o presidente licenciado do PSL. Ele estima que a bancada pode ainda chegar a 90 parlamentares. O motivo é a cláusula de barreira que passou a valer neste ano para o Congresso Nacional. As legendas que não atingiram ao menos nove deputados eleitos em nove Estados distintos ou não chegaram a 1,5% do total de votos válidos passarão a ter restrições no acesso a fundos públicos. Assim, uma migração em massa não está descartada. Há 14 partidos nessa situação.

Bivar alugou o partido que preside desde a fundação, na década de 1990, para Bolsonaro concorrer. Cedeu temporariamente a presidência da legenda ao advogado Gustavo Bebianno, um dos assessores mais próximos do presidenciável. Dessa maneira, Bebianno cercou-se de pessoas de confiança dele e de seu chefe nos diretórios estaduais. Daí pra frente, foi só delimitar quem seriam os potenciais puxadores de votos que poderiam ajudar a eleger uma bancada maior. Esses receberam alguns recursos financeiros do partido para ajudar em suas campanhas. Valores que variavam 39 reais a 1,8 milhão de reais.

Foi na região Sudeste, a mais populosa do país e com maior número de assentos na Câmara, que o PSL elegeu o maior número de seus parlamentares: 29. Foram 12 no Rio de Janeiro, dez em São Paulo, seis em Minas Gerais e um no Espírito Santo. No Sul, obteve êxito nos três Estados. Foram dez deputados, assim distribuídos: quatro em Santa Catarina, três no Paraná e três no Rio Grande do Sul. No Centro Oeste, mais cinco. Foram dois em Goiás, dois no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso. No Nordeste, região que serviu de muro anti-Bolsonaro no primeiro turno, foram cinco: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia —um representante em cada. Na região Norte, mais três ao total, em Amazonas, Rondônia e Roraima. Na sequência, alguns dos parlamentares que se destacaram por suas atuações na campanha ou antes dela mesmo começar.

Os campeões de votos

Em 2014, o policial federal Eduardo já havia notado o peso que o sobrenome de seu pai traria à sua pretensão política. Quando concorreu pelo Estado de São Paulo, mesmo pouco conhecido, obteve 82.224 votos e se elegeu pela média. Neste ano, contudo, diante da superexposição de Jair Bolsonaro, a onda para ele foi maior. Chegou a 1,8 milhão de votos e bateu o recorde de deputado federal mais votado da história brasileira. Na atual campanha ficou marcado por, entre outras razões, ter dito durante um ato de apoio ao seu pai que “mulheres de direita são mais bonitas do que as de esquerda”. “Não mostram o peito na rua e não defecam para protestar”, afirmou. “Ou seja, as mulheres de direita são muito mais higiênicas que as da esquerda”.

Outra puxadora e recordista de votos foi a jornalista Joice Hasselman, que teve mais 1 milhão de votos também pelo Estado de São Paulo. Entre a direita brasileira, ela já foi apontada como “a musa da operação Lava Jato”. Ex-repórter da revista Veja, já foi acusada de plagiar 65 reportagens. Ela nega a irregularidade e, quando da acusação, falou que o sindicato de jornalistas do Paraná, que constatou a fraude, representava a escória do jornalismo. De qualquer maneira, na atual campanha eleitoral, ela foi responsável por disseminar alguns dos boatos que inundaram as redes sociais e os grupos de WhatsApp de Bolsonaro, uma das principais ferramentas de divulgação do candidato. Entre eles o de que um meio de comunicação teria recebido 600 milhões de reais para “detonar” a candidatura de Bolsonaro e outro de que o criminoso Adélio Bispo de Oliveira, que esfaqueou o presidenciável, concederia uma entrevista para atribuir o crime à campanha dele. Seus principais financiadores foram a direção do PSL e o empresário Sebastião Bonfim Filho, da rede de materiais esportivos Centauro.

No Rio de Janeiro, o campeão de votos foi o militar Hélio Fernando Barbosa Lopes, o Hélio Negão. Ele teve 345.234 votos. Seu crescimento exponencial, em comparação com outras eleições, deu-se por conta da proximidade com Bolsonaro, que lhe emprestou o sobrenome para amenizar a pecha de “racista” que seus opositores tentam colar nele. Além disso, o comitê do presidenciável bancou os 45.000 reais da campanha do candidato a deputado. Há dois anos, Hélio concorreu para vereador de Nova Iguaçu e teve míseros 480 votos.

Os radicais

Alguns dos destaques entre os que pregam discursos extremistas são:

Tio Trusti (MS), dono de um estabelecimento em Campo Grande que diz ser um bar de opressores. Um de seus jingles pregava que, com ele, “vagabundo não vai ter vez”. “Chegou tio Trusti, osso duro de roer. Malandro e maconheiro ele vai mandar prender”.

Nelson Barbudo (MT). Produtor rural e ex-vereador, Barbudo foi o mais votado em seu Estado com discurso radical contra criminosos e comunistas. Conhecido por ostentar uma barba longa e sempre usar chapéu, em um dos vídeos de sua campanha ele dizia: “Vou meter o chapéu na cara daqueles comunistas, lá [na Câmara]”.

Delegado Waldir (GO) foi pela segunda eleição consecutiva o mais votado de Goiás. Em seu primeiro mandato, não aprovou nenhum dos 52 projetos protocolados e se destacou porque disse que estava sendo comprado na Comissão de Constituição e Justiça para votar a favor de um relatório que pedia o arquivamento de uma denúncia criminal contra o presidente Michel Temer (MDB). Na campanha de 2018, sempre ostentava o sinal de armas e dizia que seu número nas urnas era o 17 do calibre e o 00 que representa a algema.

Carlos Jordy (RJ), apelidado de filhote de Bolsonaro frequentemente faz discursos contra feministas. É vereador em Niterói e já teve vários embates contra representantes da esquerda.

General Girão (RN) já defendeu que militares voltassem a usar as espadas, “para colocar o Brasil no rumo certo”. É a primeira eleição que ele disputou.

Daniel Silveira (RJ) o policial militar que se notabilizou por destruir uma placa de rua que levava o nome da vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL).

Lideranças pró-impeachment

Nesse grupo estão: a gerente Carla Zambelli (SP) e a advogada Alê Silva (MG), ambas do movimento Nas Ruas; o ex-ator pornô Alexandre Frota (SP) que participou de vários grupos antipetistas; Heitor Freire (CE), do Movimento Direita Ceará, e Caroline de Toni (SC), que era do Movimento Brasil Livre e protocolou um dos pedidos de impeachment da então presidente Dilma Rousseff e do ministro do Supremo Tribunal Federal José Antonio Dias Toffoli.

Algo comum entre esse grupo é o apoio junto ao empresariado. Com exceção de Heitor Freire, cuja maior parte dos recursos de sua campanha provieram do partido, os demais foram financiados por empresários, ruralistas ou advogados. Zambelli, por exemplo, recebeu recursos de Flávio Rocha, o ex-presidenciável que é dono das lojas Riachuelo, e de Sebastião Bonfim Filho, da rede de materiais esportivos Centauro.

O príncipe e o atleta

Entre os que já eram famosos antes de aderirem ao bolsonarismo, estão o ex-nadador olímpico e campeão pan-americano Luiz Lima e o cientista político e herdeiro da monarquia brasileira Luiz Philippe de Orleans Bragança.

Para se eleger pelo Rio de Janeiro, Lima participou do movimento Renova BR, organizado pelo empresário Eduardo Mufarrej e que tinha como objetivo trazer novas caras para a política brasileira. O ex-nadador recebeu quase 230.000 reais principalmente de investidores e mega empresários, como Abílio Diniz (que preside o Conselho de Administração da BRF), Paulo de Senna Nogueira Batista e Roberto Lombardi de Barros.

Já o “príncipe” Luiz Philippe investiu ele próprio em sua campanha juntamente com Terence Michael Pih, que possui empreiteira e empresas aduaneiras. Cotado para ser o vice de Bolsonaro, o membro da família real foi preterido pelo General Hamilton Mourão. A razão, foi a falta de proximidade entre ele e o presidenciável. Uma fonte confidenciou o EL PAÍS que Bolsonaro temia ser traído por Luiz Philippe. “Entre o príncipe e o general, ele optou pelo militar pela lealdade. O príncipe é mais preparado, mas talvez ele não fosse tão fiel quanto o Mourão. Por isso, a escolha”, disse um graduado assessor de Bolsonaro. Ainda assim, se eleito, o capitão reformado diz que conta com os serviços do herdeiro real no parlamento.

Herdeiros

Ainda na seara “herdeiros” (sem contar Eduardo Bolsonaro) outros dois eleitos se aproveitaram de seus familiares para se elegerem. Filho do deputado federal Delegado Fernando Francischini, um dos mais próximos de Bolsonaro, o deputado estadual Felipe Francischini (PR) se valeu da fama e da estrutura de campanha de seu pai. O delegado concorreria a senador nessa eleição, mas como não teria tempo de TV por estar num partido até então nanico e por querer ter mobilidade para acompanhar as agendas de Bolsonaro, ele desistiu de disputar o Congresso. Acabou “trocando” de lugar com seu filho e se elegeu estadual com votação recorde.

A outra herdeira foi a médica Soraya Manato (ES). Em sua primeira eleição ela obteve os votos que costumavam eleger seu marido, Carlos Manato, por quatro mandatos consecutivos. Ele concorreu, sem sucesso para o Governo capixaba.

Neolideranças

Outros dois parlamentares se destacaram como aliados de primeira hora de Bolsonaro em seus Estados para garantirem suas vagas na Câmara o paraibano Julian Lemos e o mineiro Marcelo Álvaro Antônio. Alçado a vice-presidente nacional do PSL, o dono de uma empresa de segurança Julian conheceu o presidenciável há quase quatro anos, quando foi trabalhar em um evento que tinha o militar como palestrante. Julian conseguiu evitar que manifestantes impedissem a palestra de Bolsonaro e se aproximou rapidamente deles. Tornou-se, então, o elo do presidenciável com o Nordeste e indicou a agência que faz suas peças publicitárias. Todos os 286.000 reais recebidos por sua campanha até o momento foram entregues pelo PSL.

Antes de chegar ao PSL, Marcelo já havia passado por três legendas distintas PRP, PMB e PR. Os discursos radicais o levaram ao PSL, que abriu uma trincheira para Bolsonaro desvendar em Minas Gerais. Em 2014, se elegeu para o primeiro mandato com pouco mais de 60.000 votos. Agora, com quase quatro vezes mais votos foi o deputado mais votado de seu Estado. O impulsionamento de seu nome se deu, principalmente, pelo fenômeno Bolsonaro. No dia em que o presidenciável foi esfaqueado em Juiz de Fora, Marcelo estava ao seu lado e é visto, em vários vídeos, carregando o candidato pelos braços.

No Congresso, a tendência é que essa bancada – que hoje representa 10,1% dos parlamentares – caminhe unida e ainda mais reforçada por simpatizantes de Bolsonaro que se elegeram por outras legendas, como Onyx Lorenzoni (DEM-RS), Kim Kataguiri (DEM-SP), Sargento Fahur (PSD-PR), Delegado Éder Mauro (PSD-PA) e Capitão Augusto (PR-SP).

Adere a The Trust Project

El País: “O voto não foi um endosso às posições controversas de Bolsonaro”, diz Thomas Trebat

Diretor do Columbia Global Centers no Rio, Thomas Trebat diz que eleitor votou por mudanças. Ele compara o candidato do PSL a Trump para dizer que, caso eleito, ele terá de "cair na realidade"

Por Rodolfo Borges, do El País

O professor norte-americano Thomas Trebat chegou ao Brasil em 2012, "no final da fase boa", segundo suas próprias palavras. "O Brasil parecia sair mais ou menos ileso da recessão mundial e estava a ponto de retomar um crescimento mais acelerado. Mas acabou virando um ambiente de fim de festa", diz o diretor do Columbia Global Centers no Rio de Janeiro, lembrando dos protestos de 2013, da eleição acirrada de 2014 e do desânimo que desembocou no impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Na entrevista abaixo, o professor de relações públicas e internacionais, responsável pelo posto avançado da Universidade Columbia no Brasil, fala sobre o primeiro turno da eleição presidencial e a perspectiva de um Governo Jair Bolsonaro, que começou a campanha de segundo turno com boa vantagem nas pesquisas de intenção de voto.

Resposta. A voz do povo foi ouvida nas urnas. Obviamente foi um voto de repúdio contra a classe política de modo geral, contra partidos tradicionais. Uma chamada quase que desesperada para uma mudança radical no rumo do país. E essa voz não pode nem deve ser ignorada pelo Brasil e pelo mundo, por um lado. Minha segunda impressão, que dificulta um pouco para quem está olhando o Brasil pelo lado de fora, é que eu acho que esse voto não é um endosso ou uma chancela dos eleitores sobre as posições tão controvertidas, principalmente na área social, do candidato Jair Bolsonaro. Não é que o país de repente virou um país de um banco de malucos.

P. O que aconteceu?

R. Eles [os eleitores de Bolsonaro] querem mudança. E a mudança que lhes foi apresentada era voltar para um passado de que eles não gostam, com o candidato Fernando Haddad, ou arriscar com um futuro muito imprevisível e sem garantias. Essa foi aparentemente a opção. Temos de aguardar o segundo turno, tudo pode acontecer nas próximas três semanas. Não estou achando que é inevitável a vitória de Jair Bolsonaro, mas é o cenário mais provável. A eleição para governador no Rio de Janeiro [com o apoio de Bolsonaro, Wilson Wietzel surpreendeu indo para o segundo turno] mostra quão volátil é a opinião pública, quão à flor da pele estão as emoções do eleitor.

P. Como você interpreta esse comportamento?

R. Os brasileiros estão muito desesperados com a situação econômica do país —que eu acho que é um fator que deveria ser mais enfatizado—, e eles atribuem a situação econômica em parte à corrupção dos partidos políticos e dos políticos tradicionais. E veem como desdobramento da situação econômica essa violência, que ocorre principalmente no Rio, entre outros centros urbanos brasileiros, que sofrem com o medo da violência.

P. Você acha que Bolsonaro, caso eleito, conseguirá dar uma resposta a esses incômodos?

R. Não vai ser fácil. Quem vier no dia primeiro de janeiro... Meu ponto de vista é o de um americano morando há muito tempo no Brasil, então eu vejo a partir da experiência com [Donald] Trump. Um candidato completamente despreparando, como é Jair Bolsonaro, sem programa e querendo mudar o país da noite para o dia em áreas muito controvertidas, onde não há um consenso democrático, no caso dos Estados Unidos.

P. O que o fenômeno Trump pode dizer sobre o fenômeno Bolsonaro, caso ele de fato seja eleito?

"Os brasileiros estão muito desesperados com a situação econômica do país, e eles a atribuem em parte à corrupção"

R. Trump caiu na realidade. Ele tem conseguido avançar em algumas iniciativas, mas o que os americanos chamam de deep state, as nossas instituições de governo, a mídia, a sociedade civil, o Congresso, todos atuam para manter o presidente Trump e suas ideias controvertidas sob algum tipo de controle. Isso vai ser a experiência interessante para o presidente Bolsonaro, caso eleito. Ele vai querer entrar e, já no primeiro dia, preservar a família, parar com a violência "metralhando", vai querer levar para a prisão todos os acusados de corrupção, mas vai esbarrar em dois problemas. Primeiro, que há instituições fortes no país, que vão exigir mais cautela. Segundo, ele vai esbarrar no primeiro dia, ao descer a rampa do Palácio em Brasília, com o fato de que o país tem de funcionar, e de que isso é supercomplexo. É uma economia "complicadérrima", há um mundo lá fora exigindo posições do Brasil, regiões em conflito, indústrias ameaçadas pelos seus planos econômicos, a Previdência Social... Nada disso vai funcionar, todos esses problemas vão ocupar as energias do presidente desde o início.

P. E qual lhe parece que seria a reação dele em relação a isso?

R. Haverá naturalmente uma certa moderação nas posições dele, um certo fortalecimento das instituições brasileiras, que não são tão fracas quanto a gente pensa. Acho que ele vai cair na realidade. Por último, o fundamentalismo do mercado pregado pelo assessor econômico, Paulo Guedes, tem sido tentado no Brasil e na América Latina e não tem dado resultado. Vai gerar muitos conflitos. Privatizar empresas do Estado, cortar gastos na área social, a reformar a Previdência por meio de um sistema privado de capitalização, que é a proposta... Acho que nem o candidato acredita nesse fundamentalismo do mercado. E, quanto ao mercado financeiro global, é melhor não ficar iludido, achando que vêm por aí soluções milagrosas.

P. Você enxerga possibilidade de reversão das expectativas e de eleição de Haddad?

R. É interessante pensar que ninguém está cogitando essa possibilidade, mas é possível. Há um movimento de unir forças anti-Bolsonaro. Como um político falou nos jornais, e falou certo, se no primeiro turno Haddad era Lula, no segundo turno Haddad tem de ser Haddad. Tem de ser pragmático —não vai ser carismático—, tem de se distanciar um pouco do Lula, do PT, tem que forjar um consenso novo com parte do PSDB, certamente com o partido de Ciro Gomes [PDT] e outras forças anti-Bolsonaro, uma grande união de forças. Mas será que isso é uma missão possível? Mudar a imagem de uma pessoa de boa índole, que é o Fernando Haddad, que se ofereceu para preencher um vazio político de última hora... Mas será que ele quer mesmo fazer o sacrifício, assumir uma outra aliança política que não a do Partido dos Trabalhadores, que caiu no descrédito nesta eleição?

P. Não é muito complicado mudar de forma tão brusca uma campanha no meio do caminho?

R. Talvez o partido ache que os eleitores estão dizendo para o PT se retirar, para repensar seu programa, suas ideias, ficar um tempo longe do poder. Será que Haddad vai ter a capacidade política e retórica de se distanciar aos olhos dos eleitores? Não sei, mas isso é o caminho que ele tem de trilhar, tem de mostrar outro tipo de candidato, encabeçando uma coalizão de forças e disposto a negociar demandas, promessas e programas para incorporar outras correntes de opinião, nas forças do centro, até a centro direita. Os eleitores ficaram sem opção. Na cabeça das pessoas com as quais eu converso, a eleição foi entre [o líder fascista italiano Benito] Mussolini por um lado e [o presidente venezuelano Nicolás] Maduro por outro lado. Não é o que eu acho, mas está na mente do eleitores. Tem um vasto campo para ser ocupado no meio e três semanas para tentar levar esses argumentos aos eleitores. Acho que o apoio a Bolsonaro não é tão forte quanto parece. Com o passar do tempo, com a reação no resto do mundo, tem margem para Haddad pegar votos do centro e ele tem margem para diminuir a força do adversário. Dito tudo isso, se tivesse que apostar, eu apostaria no candidato Bolsonaro.

"No melhor dos casos [de um Governo Bolsonaro], após certo período de experimentos e radicalismo retórico, ele vai cair na realidade"

P. Você mencionou Trump enquanto parâmetro para um possível Governo Bolsonaro. Como a eleição do deputado do PSL posicionaria o país no contexto internacional?

R. Esse fenômeno no Brasil está sendo classificado como um tipo de [o presidente Rodrigo] Duterte, nas Filipinas, [Recep Tayyip] Erdogan, na Turquia, [Viktor] Orban, na Hungria, e certamente Trump, nos Estados Unidos. Acho que seria ingênuo pensar que isso não teve nenhuma influência sobre o Brasil. O mundo está sujeito a populismos e a promessas de soluções fáceis de líderes fortes, o que dá mais peso a esses líderes do que à democracia. Acho um grande perigo, não há como subestimar. Qual o povo que optaria por isso? Um povo que se acha sem opção, disposto a tentar a sorte. Nos Estados Unidos, eu acho que Trump ainda consegue ser uma ameaça maior, porque o poderio dos Estados Unidos afeta o mundo inteiro. No Brasil, o impacto do populismo de extrema direita é mais restrito, mas não deixa de ser um desfecho muito triste se for o caso. Se o Brasil for para um autoritarismo, uma polarização pior ainda, um desprezo pelos direitos civis e humanos... Isso é o medo daquele 53% da população brasileira que não votou em Bolsonaro. Medos que poderão ou não se realizar.

P. Qual seria o melhor cenário para um Governo Bolsonaro?

R. A única coisa que, na minha cabeça, faz sentido é que, se ele for eleito, tem de moderar seu posicionamento social e prezar pelo lado econômico. Obviamente o mercado financeiro e os donos do poder econômico estão satisfeitos. Ele não era seu candidato inicialmente, mas eles acham que a economia deve melhorar. No melhor dos casos, após certo período de experimentos e radicalismo retórico, ele vai cair na realidade, tocar a economia e gerar empregos. Posso estar sendo muito otimista, mas é uma possibilidade. Como no caso de Trump. Suas ideias mais radicais estão sendo bloqueadas. Ele fala coisas que deixam mais da metade da população furiosa, mas a economia está indo bem e as instituições democráticas também, assim com os filtros, os checks institucionais. O melhor cenário que poderia haver é um futuro Governo Bolsonaro tendo certas reformas econômicas dentro de uma economia que coopera, à base de confiança dos investidores. Isso seria um cenário de apelo para todo o mundo. Poderíamos ter outros governos, a partir disso, que continuariam nesse trilho de reformas econômicas, com segurança para o investidor e com geração de empregos. Estou sendo otimista, não quero nem pensar no que poderia ser pior, como sair mandando matar pessoas, como Duterte, ou prendendo opositores ou fechando a mídia. Se a economia continuar mancando, sem crescimento mais vigoroso, essa polarização pode até piorar e podem surgir alternativas ainda mais duras de ambos os extremos.


El País: Uma eleição que demoliu todos os padrões de campanha no Brasil

Tempo de propaganda na TV, quantidade de recursos e peso de medalhões foram postos em questão. Ferramentas de comunicação e turbulência política influenciaram diretamente nos resultados

Por Rodolfo Borges, do El País

Éneas Carneiro se estabeleceu no folclore político nacional por conta dos breves 15 segundos que tinha para passar sua mensagem no horário eleitoral gratuito. Quase 30 anos depois daquela eleição de 1989 em que o Brasil conheceu o candidato do Prona, um presidenciável com metade de seu tempo de propaganda na tevê passou ao segundo turno com 46,03% dos votos. Os oito segundos do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) eram 39 vezes mais breves do que os 5 minutos e 33 segundos de Geraldo Alckmin (PSBD), que terminou o primeiro turno na humilde quarta colocação, com apenas 4,76% dos votos, apesar de reunir a maior coligação da corrida presidencial, com nove partidos, e de ter acesso a 185,8 milhões de reais de fundo eleitoral —o PSL, de Bolsonaro, recebeu 9 milhões de reais. Esse e outros resultados do primeiro turno desta eleição não respeitaram os padrões estabelecidos durante as últimas décadas. E talvez esses padrões nunca voltem a existir, avisa o cientista político Carlos Melo.

Outro paradigma revertido nestas eleições foi a importância de medalhões históricos no Congresso. A Câmara Federal passou neste ano pela maior renovação desde 1994, com 52% de mudanças, acima dos 40% projetados pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A renovação no Senado, de 87%, foi ainda mais expressiva. A eleição deixou de fora medalhões como o atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), além de Cassio Cunha Lima (PSDB-PB), vice-presidente da Casa, e Cristovam Buarque (PPS-DF) —dos nomes históricos do Congresso, Renan Calheiros (MDB-AL) foi um dos únicos a se reeleger. Alguns deles deixarão o Congresso Nacional por conta das turbulências que tomaram conta da política brasileira nos últimos anos, capitaneadas pela Operação Lava Jato e pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que está entre os derrotados na eleição deste ano.

Para o cientista político Jairo Pimentel Jr., um dos grandes determinantes para o desfecho da eleição foi a falta de referência para o eleitor. “Importaram menos as questões relativas à avaliação de governo. Era consensual que o [presidente Michel] Temer tinha um Governo ruim, seja para a direita ou para a esquerda. Quando os eleitores perdem a referência, tudo pode acontecer”, diz o pesquisador do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp/FGV). Foi nessas condições que o partido Novo, que disputou sua primeira eleição, conseguiu eleger oito deputados federais e colocou seu candidato ao Governo de Minas Gerais, Romeu Zema, no segundo turno. Outro resultado surpreendente: a Rede, cuja candidata à presidência, Marina Silva, teve menos votos que Cabo Daciolo (Patriota), terá uma bancada com cinco senadores, mas apenas um deputado federal.

Assim, enquanto o PSDB teve sua bancada reduzida de 49 para 29 deputados, com a perda do maior número de parlamentares na Câmara, e ainda luta para eleger pelo menos um governador, o PSL surfou na onda Bolsonaro para saltar de um deputado eleito em 2014 para 52 neste ano, o maior crescimento. Segundo Pimentel Jr., as campanhas dos partidos, cuja probabilidade de influenciar no resultado da eleição costuma ser calculada em torno de 10%, fizeram menos diferença neste ano, e isso inclui a tevê — é a primeira vez desde a redemocratização que um candidato com um dos menores tempos de propaganda passa para o segundo turno. "O Brasil e o mundo são outros nos últimos quatro anos", resume Carlos Melo.

"Em 2014, quem se elegeu foi a Dilma, e o segundo colocado foi o Aécio [Neves]. A Dilma não se elegeu senadora neste ano e o Aécio teve de ser candidato a deputado federal para não perder o foto privilegiado. Aconteceu de tudo: impeachment, Lava Jato, muita denúncia, muito desalento, estourou a violência urbana. O Estado mais simbólico do país, o Rio de Janeiro, está sob intervenção do Governo federal por conta da violência", resume o cientista político, que segue: "O maior líder popular da história do Brasil está preso. O presidente da República exerce mandato porque conseguiu um abrigo da Câmara dos Deputados e porque o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] o protegeu". Para Melo, comparar a eleição atual com a anterior não faz sentido, porque todas as condições são diferentes.

Gastos de campanha

Apesar de todas as mudanças e surpresas, o poder financeiro seguiu, em alguns casos, predominando nesta eleição, que não contou com doações de empresas, mas com um fundo eleitoral público. A deputada mais votada no Distrito Federal, por exemplo, foi Flávia Arruda (PR), mulher do ex-governador José Roberto Arruda e dona do maior orçamento na disputa regional, com 2,4 milhões de reais repassados pelo partido —ela declarou gastos de 1,38 milhões de reais. Já Marcel Van Hattem (Novo), cujo partido tem como política não usar o fundo partidário, se elegeu para a Câmara Federal com o maior número de votos no Rio Grande do Sul gastando 423.020 reais — ele declarou 719.742, 75 reais em doações recebidas. O segundo colocado no Estado, Onyx Lorenzoni (DEM), teve 166.337 votos a menos que o novato Hattem, mas gastou mais do que o dobro: 956.679,17 de reais.

Por outro lado, a candidata a deputada estadual mais votada da história em São Paulo, Janaína Paschoal (PSL), só precisou gastar 27.949 reais para receber 2 milhões de votos. E os 2 milhões de reais gastos pelo senador Romero Jucá (MDB) não foram suficientes para mantê-lo no cargo pelo sétimo mandato consecutivo. Faltaram 426 votos para ele superar Mecias de Jesus (PRB), o segundo colocado na corrida pelo Senado em Roraima. Líder no Senado dos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, Jucá pode ser considerada uma das vítimas da Lava Jato e da impopularidade recorde do atual presidente nesta campanha.

O senador ficou marcado, no início do Governo Temer, em maio de 2016, por comentar em gravação vazada que era preciso "estancar a sangria" provocada pela operação. A Lava Jato também acertou em cheio candidaturas como a o ex-governador Beto Richa (PSDB), que chegou a ser preso durante a campanha e não conseguiu se eleger ao Senado. Outro ex-governador, Anthony Garotinho (PR), ficou de fora da eleição no Rio de Janeiro por conta de uma condenação por improbidade administrativa, em um dos vários casos em que juízes e procuradores influíram diretamente na eleição.

A operação policial que dita os rumos da política nacional desde 2014 desarrumou a dinâmica partidária estabelecida desde a redemocratização, enfraquecendo os polos PT e PSDB. "Os eleitores sempre buscam simplificar a realidade para tomar uma decisão, porque a realidade é muito complexa. O que fica no meio termo acaba perdendo força para os polos binários enquanto referência. Se o Bolsonaro ou o PSL vão conseguir consolidar isso, é um dúvida. Leva tempo. O fato é que o PSDB perdeu essa força de polarização com o PT, diz Jairo Pimentel Jr.

O cientista político lembra que a próxima eleição já não terá coligações para cargos proporcionais e que a cláusula de barreira será mais rígida, o que deve contribuir para a simplificação do sistema político. "O ideal é que a dinâmica partidária seja mais estável, para que o eleitor tenha referências de longo prazo, de como os partidos pensam e atuam, tanto no Governo quanto na oposição", diz, acrescentando que a tendência é que surja um novo arranjo do sistema partidário. "A simplificação da política importante para que o eleitor se sinta seguro com o sistema. Ele não tem tempo para ficar estudando ou pensando sobre a política, quer uma referência mais elementar, basilar, para tomar a melhor decisão possível".


Eliane Brum: “O ódio deitou no meu divã”

Relatos de psicanalistas revelam a violência que cresce e se infiltra no Brasil com a possibilidade de Jair Bolsonaro chegar à presidência da República

Ele entra sem dizer uma palavra e logo começa a chorar. Pergunto o que aconteceu e ele me diz, assustado, que foi abordado por um cara da faculdade, com as seguintes palavras:

Depois, é a menina que já entra chorando e me diz:

— Sil, me ajuda... não sei o que fazer... você não vai acreditar no que aconteceu comigo hoje... Eu estava na escola e fui pegar um livro no meu armário... Tinha uma folha de papel...

Aí ela me mostra uma foto no celular, porque entregou a tal folha na diretoria, com esta mensagem aqui:

– Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!!

O relato, feito pelas redes sociais, é da psicanalista Silvia Bellintani, pouco antes do primeiro turno das eleições. Devidamente autorizada pelos pacientes, ela conta o que escutou de dois deles no seu consultório, numa mesma tarde: ele, homossexual, 19 anos; ela, heterossexual, 17 anos, feminista.

Nos últimos dias, começaram a circular posts de psicanalistas e psicólogos que decidiram levar para o debate público o que escutam no seu consultório. Sem expor os pacientes, mas apontando o que vem acontecendo na sociedade brasileira apenas pela possibilidade, bastante grande, de um homem como Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura e da violência, assumir a presidência do país.

Em um post intitulado “Ser analista sob o ódio”, Ilana Katz escreveu:

“Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como fake news o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro, e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro. Essas não são conversas de WhatsApp. Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula. Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos”.

"Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar"

Várias instituições de psicanálise fizeram manifestos pela democracia –e contra a opressão representada pela candidatura de extrema direita. Entre elas, a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano:

“A política da psicanálise se associa à ética do bem-dizer e nos leva a fazer frente ao discurso do ódio ao outro, em pleno Estado democrático. O discurso do analista deve circular na pólis e, quando nos dirigimos ao mundo, o silêncio do ‘terror conformista’ não nos cabe”.

Psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise também posicionaram-se, propondo “um movimento de circulação de breves relatos do que tem sido escutado nas ruas do país sobre os efeitos nefastos que a ameaça do fascismo é capaz de provocar”. Em texto veiculado nas redes, afirmam:

“Quando o valor das palavras é banalizado, a ponto de o pior poder ser dito por um candidato à presidência da República, como se fossem apenas palavras ao ar, perdemos a noção de que estamos escrevendo, com elas, nossa história. Perdemos a noção de que palavras se cravam na história, nos ouvidos e nos corpos de um país. Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar. E nunca se sabe ao certo, de antemão, onde será. Não será sem consequências nos fazermos de surdos para o pior. Escutemos, pois”.

Em seguida, enumeram alguns relatos escutados nas ruas do Brasil nos últimos dias:

“Uma amiga estava amamentando seu filho, que tem menos de um ano, em uma padaria próxima à sua casa, quando passaram dois caras e um deles gritou, olhando pra ela: ‘Quando ele ganhar, essas vagabundas não vão mais poder fazer isso!’”;

“Um casal de meninas anda na rua e ouve de um passante: ‘Aproveita, porque o 17 vem aí!’”;

“Depois de uma longa conversa com alguém, na tentativa de argumentar contra o que representa o ‘Coiso’, o alguém perde os argumentos e enuncia a verdade velada. 'Ah, quer saber, foda-se se ele defende a tortura. Comunista pode ser torturado!’”;

“Meu enteado andando na rua com camiseta da faculdade (UERJ) ouviu de cinco homens passando de carro: isso vai acabar quando o mito ganhar, você estuda nessa merda e nunca vai ganhar dinheiro”;

“Minha filha, ontem, na saída da escola, foi abordada por um cara, que, por conta do adesivo do Haddad, que ela trazia colado na camisa, mandou essa: 'Fica esperta que eu sou do exército Bolsonaro que esfola comunista'".

A crise no Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra

Tenho escrito há anos que a crise do Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra. Quando tudo pode ser dito, nada mais diz. As palavras, no Brasil, se tornaram palavras fantasmas, porque nada movem. Essa realidade ficou explícita quando Jair Bolsonaro, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores da ditadura, responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas e pela tortura de centenas –e nada aconteceu.

Nesta eleição, seus filhos e apoiadores vestiram camisetas com o rosto do torturador e as palavras “Ustra vive!” – e, mais uma vez, nada aconteceu. Enquanto isso, mães ainda choram por seus filhos assassinados por Ustra – e mulheres torturadas por ele, que levaram choques elétricos nos seios e vaginas e tiveram baratas e ratos enfiados nos seus corpos, ainda acordam gritando à noite.

Se as palavras se tornam cartas extraviadas, cartas que não chegam ao seu destino, o diálogo é interditado, e o ódio se instala. O fenômeno Bolsonaro pode ser compreendido também a partir do esvaziamento das palavras. É uma resposta possível para o fato de que quase 50 milhões de brasileiros foram capazes de votar em alguém que diz o que Bolsonaro diz. Muitos deles, inclusive assistindo a vídeos em que ele diz o que diz, negam que ele disse o que diz. Veem, mas não veem. Ouvem, mas não escutam.

Sem diálogo, as palavras perfuram os corpos. É urgente que as palavras voltem a dizer no Brasil –ou elas serão cada vez mais balas perdidas. E sabemos que balas perdidas acham corpos. É este o movimento dos psicanalistas que escolheram não se omitir neste momento de tanta gravidade para o Brasil, certamente o momento mais grave da história recente do país, talvez o momento mais grave desde o golpe de 1964.

Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país

O ódio ao PT, explicação dada por parte dos que votam em Bolsonaro e por muitos que pretendem votar em branco ou anular o voto ou se abster de votar não é a doença, mas o sintoma. Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país. É no divã dos psicanalistas, em que a palavra tem espaço e carne, que essa escuridão emerge em todo o seu horror.

Ao iniciar o seu relato, Silvia Belintani afirma: "Eu poderia dizer que estou sem palavras para descrever o que testemunhei hoje no meu consultório. Mas tive o dever de encontrá-las, para não deixar que algo assim, gravíssimo, fique sem registro”. E, mais adiante: “O cenário das eleições sequer foi definido, mas já encoraja o sadismo e promete ser palco do terror. Fico imaginando o que vem pela frente”.

Em seu post, Ilana Katz faz uma análise profunda sobre o papel de um analista também neste momento (abaixo reproduzo o post). E afirma: “O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?”

E termina:

“Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio. Para que os odiadores e os odiados possam seguir se deslocando de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim”.

"Ser analista sob o ódio"

Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como “fake news” o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro.

Essas não são conversas de WhatsApp.

Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula.

Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos. Ouço as histórias, tento escutar, procuro as sutis diferenças. No esforço de escutar esses sujeitos, brigo comigo para abandonar o ritmo do WhatsApp. Aqui, assim como lá, não há trégua porque não há outro tema. Há odiados e odiadores. E eu aprendo, mais uma vez, que ódio varia pouco, e permite poucas variações também.

As palavras, em looping, não permitem que o sujeito possa se dizer. São as mesmas palavras que ocupam o discurso de uns (corrupção-ladrão- quadrilha-dinheiro-justiça. Eu-não-sou-idiota), e o mesmo medo que distribui os termos dos outros (fascismo-direitos sociais-apanhar-fugir-lutar. Medo-pânico-medo).

O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?

O estancamento do dizer é uma tarefa do analista na clínica. É preciso fazer isso trabalhar. É preciso procurar a ligação particular entre esses termos em cada história. Drenar o ódio e oferecer a chance da subjetivação das experiências. Como direção, tocar o gozo, alçar responsabilidade subjetiva.

Por força e exercício do ofício de psicanalistas, sabemos o que a palavra quer dizer como possibilidade para o sujeito e para suas formas de laço. Para que seja possível um viver com os outros. É assim que aprendemos que psicanálise e democracia se fazem valer do mesmo princípio condicionante, que é a circulação livre das palavras. A diferença entre clínica e espaço público guarda a também fundamental diferença dos níveis de tratamento que a palavra que circula deve receber. A tão famosa neutralidade do analista só vale se, sustentada no Desejo do Analista, garantir a possibilidade de que aquele que fala seja o mais livre possível na sua relação com o que diz.

No exercício do seu ofício, um psicanalista suporta, em sua clínica, a hiância entre o singular e o coletivo que o sintoma sustenta. Por força e exercício do ofício, um psicanalista se responsabiliza pelo que a psicanálise e a clínica lhe ensinam sobre o que é o controle do dizer, que é também o controle do pensar e do limite do gesto de um outro. Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio.

Para que os odiadores e os odiados possam seguir deslocando-se de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim.”

(Ilana Katz, psicanalista, São Paulo)


Manuel Castells: Carta aberta aos intelectuais do mundo

O Brasil está em perigo: pode eleger um presidente fascista, defensor da ditadura militar, misógino, sexista, racista e xenófobo 

Amigos intelectuais comprometidos com a democracia:

O Brasil está em perigo. E, com o Brasil, o mundo. Porque após a eleição de Trump, a tomada do poder por um Governo neofascista na Itália e a ascensão do neonazismo na Europa, o Brasil pode eleger um presidente fascista, defensor da ditadura militar, misógino, sexista, racista e xenófobo, que obteve 46% dos votos válidos no primeiro turno das eleições presidenciais. Não importa quem seja seu oponente. Fernando Haddad, a única alternativa possível, é um acadêmico respeitável e moderado, candidato do PT, um partido hoje desprestigiado por ter participado da corrupção generalizada do sistema político brasileiro.

Mas a questão não é o PT, e sim uma presidência de um Bolsonaro capaz de dizer a uma deputada, em público, que "não merecia ser estuprada por ele". Ou que o problema da ditadura não foi tortura, e sim que não tenha matado mais em vez de torturar. Em tal situação, nenhum intelectual, nenhum democrata, nenhuma pessoa responsável no mundo em que vivemos pode permanecer indiferente. Não represento ninguém além de mim mesmo. Não apoio nenhum partido. Simplesmente acredito que seja um caso de defesa da humanidade, porque se o Brasil, o país decisivo da América Latina, cair nas mãos deste desprezível e perigoso personagem e dos poderes fáticos que o apoiam, os irmãos Koch entre outros, teremos nos precipitado ainda mais na desintegração da ordem moral e social do planeta a qual estamos presenciando.

Por isso escrevo a todos vocês, àqueles que conheço e aos que gostaria de conhecer. Não para que subscrevam esta carta como se fosse um manifesto aos ditames dos políticos. E sim para pedir que cada um torne pública e, em termos pessoais, sua petição para uma participação ativa no segundo turno das eleições presidenciais em 28 de outubro, e nosso apoio contra o voto em Bolsonaro, argumentando, segundo a opinião de cada um, e divulgando sua carta por meio de seus canais pessoais, redes sociais, meios de comunicação, contatos políticos, qualquer formato que transmita nosso protesto contra a eleição do fascismo no Brasil. Muitos de nós temos contatos no Brasil, ou temos contatos que têm contatos. Contatemo-los. Uma mensagem por WhatsApp é suficiente ou uma chamada telefônica pessoal.

Não precisamos de uma hashtag. Somos pessoas, milhares, potencialmente falando para milhões, no mundo e no Brasil. E, como ao longo de nossa vida adquirimos, com nossa luta e integridade, uma certa autoridade moral, vamos utilizá-la neste momento antes que seja tarde demais. Farei isso, já estou fazendo. E simplesmente rogo para que cada um faça o que puder.


Limongi: “Líderes responsáveis não têm o direito de se isentar diante da insanidade de Bolsonaro”

Doutor em Ciência Política se diz chocado com inércia de lideranças, como o ex-presidente Fernando Henrique, diante do risco que candidato representa. “Está em jogo a barbárie”

Por Carla Kiménez, do El País

Fernando Limongi, doutor em ciência política, não esconde a angústia com o resultado do primeiro turno das eleições do último domingo. Para ele, a vitória de Jair Bolsonaro joga o país no escuro e aqueles que o apoiam estão minimizando riscos extremamente perigosos que o candidato do PSL trará caso vença o segundo turno. Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições (NIPE/ CEBRAP), Limongi se mostrou chocado com a neutralidade assumida por grandes lideranças como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso neste segundo turno da eleição. Cardoso é um dos fundadores do CEBRAP, criado em 1969 por um grupo de professores afastados das universidades pela ditadura militar. “Isso é uma covardia inadmissível”, diz. Leia os principais pontos da conversa, em tópicos.

Covardia inadmissível de Fernando Henrique
Essa direita brasileira, o centro incluído, criou um fantasma e foi gerando um temor desproporcional e descabido ao PT, como se nós estivéssemos de volta à Guerra Fria e o PT fosse uma ameaça comunista, totalitária, o que não é. Não há nenhum elemento, nenhuma informação objetiva que permita chegar a essa conclusão. O PT cometeu erros, cometeu erros sérios, mas eles são fichinhas se comparados ao que o Bolsonaro ameaça fazer e diz que vai fazer e cresceu fazendo. Uma parte do centro está se dizendo diante de uma escolha de Sofia e não está. Só tem um lado que não pode ser escolhido em hipótese alguma e as pessoas estão minimizando isso. Me deu arrepio ver que o Fernando Henrique Cardoso se declarou neutro, isso é uma irresponsabilidade, isso é uma covardia inadmissível. Eu fui presidente do CEBRAP, eu sou herdeiro do Fernando Henrique, eu salvei o CEBRAP de fechar. Eu estou até emocionado [a voz de Limongi fica embargada]. Não é possível que ele não se lembre do que ele sofreu, do que ele passou e que ele minimize isso. E pior! Ele declarou, inicialmente, que seria contra o Bolsonaro e que votaria no PT, agora ele que resolveu usar o Twitter, ele, covardemente, cede à pressão popular. Um intelectual não pode fazer isso, um intelectual tem compromisso. O Fernando Henrique não pode fazer isso.

“Cria cuervos”
Eu salvei o CEBRAP que ele [FH] criou, ia fechar. E eu assumi a presidência para salvar. Sacrifiquei parte da minha carreira acadêmica, fiquei quatro anos lá sem fazer nada, a não ser administrar cozinha de um lugar pra agora ouvir que isso aí [Bolsonaro] não é nada?! Esse cara não envolve risco? Não é possível que não se tenha parâmetro de comparação entre um cara que é apologista de um regime militar, o regime que perseguiu o senhor Fernando Henrique Cardoso, certo? O Fernando Henrique foi parar no pau-de-arara. Um cara que declara ter ódio ao Rubens Paiva, tem uma verdadeira fixação em falar mal do Rubens Paiva, do Vladimir Herzog, acha que aquilo foi um acidente de trabalho, [assassinato de ambos na ditadura], acha que aquilo estava certo. Alguém pode em sã consciência dizer que existe comparação entre o risco que o PT representa e o risco que o senhor Bolsonaro representa? Quem acha que vai tourear esse cara está sendo de uma ingenuidade absurda. Nós já vimos esse filme várias vezes, esse é o famoso Cria Cuervos. Nós estamos aceitando como se não fosse um risco um cara que é apologista da violência da ditadura militar, um cara que votou o impeachment da Dilma elogiando o [Brilhante] Ustra.

Em jogo, a barbárie
Ninguém que critique o Bolsonaro está defendendo a Dilma ou necessariamente dizendo que PT é santo. É esse maniqueísmo que o centro e a direita brasileira aceitaram jogar e estão agora sendo vítimas dele sem perceber ou o que? Isso é uma insanidade que está acontecendo nesse país. Nós ainda temos chance de corrigir, mas só vai corrigir se gente como o Fernando Henrique Cardoso vier a público e falar como um intelectual e pensar na sua responsabilidade política. É um risco inacreditável que nós estamos correndo, uma irresponsabilidade que essas pessoas que começaram a nutrir um terror ao PT, um horror ao PT, vieram agora a público deixar escapar. Isso não tem cabimento! Isso não tem um termo de comparação. Uma tristeza ouvir a declaração do Xico Graziano dizendo que agora ia apoiar o Bolsonaro. Xico Graziano não tem memória? Não lembra o que aconteceu com ele quando ele se colocou contra, nas redes sociais, o Bolsonaro dizendo que as eleições de 2014 estavam sendo fraudadas? Quando ele saiu a público, corajosamente, para dizer que aquilo era uma besteira ele foi trucidado nas redes sociais por esse grupo de trogloditas que está por trás do Bolsonaro. Não tem meia palavra com esse cara, ele é um troglodita. Isso tem que ser dito, não tem como minimizar isso. Em nome do quê? De um temor que o PT volte a fazer uma política macroeconômica e expansionista? Tudo bem, o PT cometeu erros e tem uma dificuldade de fazer autocrítica. Mas e o senhor Bolsonaro fez alguma autocrítica? Ou, por que que nós devemos acreditar no senhor Bolsonaro paz e amor? O que está em jogo é a barbárie.

Ódio cego ao PT
As pessoas estão sendo vítimas do monstro que criaram, da imagem que criaram. [...] Depois de ser derrotado pela quarta vez pelo PT, ali o centro e a direita perderam a razão, saíram paro tudo ou nada. Mas se eu falo isso as pessoas vão minimizar dizendo "Ah, o cara é petista!" Eu quero falar: "Vamos pensar o que nós temos que fazer?". Não é possível sequer ficar neutro diante deste cenário. Não é uma Escolha de Sofia, só tem um lado, o resto é defesa pra gente sobreviver. E isso eu tô falando digamos assim dos "velhos": [José] Serra, Aloísio [Nunes], Fernando Henrique Cardoso, Xico Graziano [que saiu do PSDB para apoiar Bolsonaro]. Gente que não pode esquecer do que passou. Não pode se esquecer de Rubens Paiva, não pode se esquecer do [Vladimir] Herzog. Isso não pode ser minimizado. Não pode! Não tem como! Esse gênio que está saindo da garrafa, você não põem de volta. Vamos fazer um experimento mental e imaginar que o Haddad declarasse que o seu ministro da Economia será Marcos Lisboa. Cada um tem o [Paulo] Guedes que merece, certo? Então, por que o Fernando Haddad não poderia declarar que o seu ministro da Economia vai ser o Marcos Lisboa? O Marcos Lisboa hoje, por um acaso, é o patrão do Fernando Haddad porque o Fernando Haddad trabalha no Insper, então, ele tá lá dentro. O Marcos Lisboa já trabalhou para o PT, foi parte da equipe do PT. Por que a informação de que o Guedes trabalharia para o Bolsonaro dá mais garantia do que uma possibilidade do PT vir para o centro e ser pragmático.

Perseguição e censura
Lógico [que haverá perseguição]! É disso que estamos falando, censura vem aí se esse cara ganhar! Ele não tem trato com tolerância. Óbvio, vai testar as nossas instituições. Mas as nossas instituições têm se provado muito pouco capazes de lidar com esse perfil.

Desconfiança com urnas, levantada por Bolsonaro
Ele disse que não são capazes de lidar com fake news. E o pessoal diz, “eu não voto mais no PT porque o PT mente”. Sim, e aí vocês votam num cara que é apologista da fake news. Um cara que disse hoje que não vai assinar nada contra a fake news, porque ele pratica fake news, porque ele surfa nisso e é dado a teorias conspiratórias. Ele declarou que existe uma internacional fundada pela Dilma -está lá na entrevista que ele deu para Jovem Pan-, que existe uma internacional da fraude eleitoral da América Latina cuja sede está em Quito, no Equador. O cara é louco, o cara é um desequilibrado. Ele acredita nessas histórias. Essa história da fraude eleitoral é uma das teorias da conspiração mais malucas, a la época da Guerra Fria. [...] E o TSE e a Justiça brasileira foram brandos nisso, ao afastar qualquer hipótese de que isso teria acontecido lá no passado.

Entrevista do Bolsonaro à Record no dia do último debate
A lei eleitoral regula minuciosamente cada acesso à televisão. Isso não existe, tanto que quando há um debate há uma série de regulações: quem pode ser convidado, quem não pode ser convidado. Ninguém pode ser tratado diferente, ninguém pode ter mais tempo. Por que se abriu essa exceção para o Bolsonaro? Isso é inadmissível. Então, tem alguma coisa que está deixando as eleições se tornarem um vale tudo. Há uma sucessão de erros estratégicos. A gente sabe e qualquer estudos de ciências sociais, de interações sociais de pessoas agindo racionalmente com o horizonte limitado, quando você junta todas essas ações o resultado pode ser um resultado péssimo para todos. Está todo mundo agindo racionalmente, todo mundo defendendo seus interesses, lutando pelo seus interesses, mas na hora que interage o resultado é péssimo para todos. A maior parte dos eleitores não quer nenhum dos dois. Mas a elite política criou esse fantasma e o PT agiu equivocadamente, no meu ponto de vista, quanto a sua estratégia. O PT apostou em salvar o Lula, em se agarrar ao Lula e isso foi um erro. Tanto que o PT teve tantos votos quanto ele tem de preferência partidária. Ele ficou reduzido a sua base. Não se ganha eleição assim.

 A razão não veio
Acho que ninguém, ninguém imaginou que viria essa violência que veio. Todo mundo achou que em algum momento a razão viria. E eventualmente o "se" não é possível. Você tem o contra factual. Você fala "se" isso tivesse acontecido talvez não tivesse ocorrido a facada, se o Bolsonaro não tivesse sido retirado da campanha, se ele não fosse calado de forma inadvertida, talvez nada disso tivesse ocorrido. O Bolsonaro ficou quieto e foi beneficiado. Receptador de todo esse ódio que se criou na sociedade brasileira pela sua própria elite.

Sem experiência
Eu falo: olha, você ganha mais do que 10 salários mínimos, você que optou pelo Bolsonaro, olha o vídeo desse pessoal quebrando a placa da Marielle, vê em quem você está votando. Quem você acha que está chamando? Está chamando a raposa pra tomar conta do galinheiro, quer dizer, e que garantias lhe dá o senhor Paulo Guedes? Esse cara não tem experiência pública nenhuma, é um desconhecido. Guedes vai nos fazer ter saudades de Guido. Guido vai ser um gênio comparado a Guedes. Não é porque passou por Chicago que você vira gênio. E não é só a esquerda que tem ideologia, a direita - e isso é o que é mais preocupante agora - está gerando uma ideologia perigosíssima. Uma ideologia de intransigências, de radicalismos, de negação de qualquer moderação.

Campanha no WhatsApp
Tem um subterrâneo acontecendo nas redes sociais que é a mesma coisa que aconteceu no Brexit, na Colômbia, nos Estados Unidos. Então, a gente está lutando com este demônio aqui, mas tem também o demônio do WhatsApp. Tem uma loucura rolando e tem uma nova tecnologia para se fazer campanha. Isso mudou. Eu estudo eleições e histórias das eleições há muito tempo e entendo como isso foi se transformando. Se você for olhar nos anos 40, quando o Brasil se redemocratiza, o principal recurso para se ganhar eleições era o caminhão, você precisava tirar eleitor do campo e transportar para cidade. Então, o recurso essencial pelo qual se brigava era o caminhão. Você tirava o caminhão do seu adversário, você ganhava as eleições. Daí chegou um momento que se começa a ter rádio, televisão e agora tem as redes sociais. Isso muda. Vai ter um momento em que essa novidade vai mais ou menos equiparar, os dois lados vão saber usar igual, mas por enquanto a direita está usando melhor, está sabendo usar, está pondo recurso nisso. Está havendo uma “Internacional de Direita”, como tem a “Internacional de Esquerda”. Tem uma tecnologia que está rolando, tem um know-how que está rolando, e esse pessoal se pôs a favor do Bolsonaro. E é um pessoal inconsequente. Nós temos uma direita inconsequente nascendo aqui e que está presente no mundo.

Extrema direita no Brasil
Sempre teve uma extrema direita no Brasil, tem uma parte dizendo que tem uma grande novidade, mas acho que a novidade é menor. Não pode esquecer que Paulo Maluf ganhou todas as eleições na cidade de São Paulo, depois da redemocratização, mesmo quando ele perdeu no Estado pra governador, ele ganhou na capital. Então sempre teve direita, não tem problema ter, é parte do jogo. Se o Bolsonaro ganhar não tem conversa, ele assume o poder e todo mundo aceita, o jogo é esse e o jogo só continua se você aceita brincar dentro das regras do jogo. A questão é se o Bolsonaro aceita jogar com as regras do jogo daqui pra frente.

Educação com Bolsonaro
Vamos pegar os economistas formados em Chicago, formados em Princeton, formados em Harvard que aceitam a ideia de que o grande problema do Brasil é a falta de investimento em capital humano, que o problema é a educação, que o brasileiro é pouco produtivo e que por isso estamos atrasados, por tanto toda e qualquer atenção no Brasil deve estar para a política pública. Essas pessoas têm medo do PT e da política macroeconômica do PT, mas não têm medo da política educacional que o senhor Bolsonaro vai aplicar. Porque ele quer colocar criança de volta pra casa, quer tirar criança de dentro da escola, porque isso faz parte do programa de governo dele [programa sugere a valorização da educação à distância]. Não pode dizer que não leu. O senhor Guedes não vai dar garantia para isso. Ele quer tirar criança da escola, porque ele não quer que as crianças sejam expostas a professores marxistas [programa de Bolsonaro destaca em vermelho ”um dos maiores males atuais é a doutrinação”]. E se as crianças voltam pra casa quem vai tomar conta de criança? Quem vai trabalhar? Olha o desarranjo econômico que esse cara pode gerar por uma insanidade ideológica. Todo mundo falou "ah, o PT é muito ideológico". E o senhor Bolsonaro é um poço de razão e de ciência? Ele é um energúmeno ideológico. Ele vai acabar com a educação no Brasil. Ele vai mandar a gente de volta para a Idade Média. Esse cara é um obscurantista. Ele vê um comunista em cada agente estatal. Aí ele se junta com a direita mais radical, neoliberal, que acha que todo agente do Estado é um paternalista protegendo um looser.

Arrecadações e possível corrupção
Quem vai ser o novo PC Farias [tesoureiro do ex-presidente Collor de Mello]? [Gustavo] Bebiano [presidente do PSL] será o PC Farias 2, certo? Sempre tem que ter um cara que controla todos os contratos, centraliza toda rede de negociações com os interesses, que precisam ser atendidos porque eles vivem de fornecer coisas para o Estado, etc. Essa negociação rola, vai rolar. Então, quem que vai fazer isso? Ou vai ser um dos filhos do Bolsonaro ou vai ser o Bebiano ou vão ser todos eles, cada um em uma área. A corrupção que vai rolar vai ser inacreditável porque é um bando de amadores, uns caras que nunca mexeram com Educação, nunca mexeram com Saúde, nunca mexeram com Ciência e Tecnologia, não sabem o que rola lá. O que vai aparecer de gente para eles vendendo projetos. A hora que muda o governo tá todo mundo caçando onde encaixar o projeto que ele não conseguiu vender ao governo anterior para o novo governo. E obviamente atrás de cada um deles tem um interesse se organizando. Foi isso que o PC Farias fez, vai ser isso que o senhor Bebiano vai fazer ou qualquer um que assumirá esse papel. Tudo bem a Dilma e a política econômica do Guido Mantega e a nova matriz econômica é inadmissível, é um erro crasso, ninguém justifica. Foi uma política macroeconômica eleitoral para ganhar eleição, quebrou o Brasil, foi uma irresponsabilidade. O PT não fez uma autocrítica, um absurdo, jogou dinheiro pela janela, delirou, tudo errado. PSDB também não fez diferente, mas não vamos falar que fizeram igual. Agora o que se está fazendo é uma escolha sem igual entre Bolsonaro e PT.

Crise mundial da democracia
Se for pensar internacionalmente, nós temos uma crise na democracia. Está todo mundo aturdido, é Trump, é Brexit, é Hungria, é Polônia, movimentos aparecendo em tudo quanto é canto, um desequilíbrio muito grande. Acho que tem uma coisa que é geral que deu uma desbalanceada, que talvez tenha a ver com essa mudança de tecnologia, de fazer campanha e o ritmo das tecnologias e adaptação que precisa ter entre o modelo antigo de se conquistar voto e o modelo atual. Mudou e acho que está todo mundo meio baratinado. A forma como a opinião pública reage aos fatos, a velocidade agora é outra. O eleitor está muito mais volátil e uma parte do eleitorado está saindo da política totalmente. O turnout [comparecimento nas urnas] na Europa foi lá pra baixo, nos Estados Unidos foi lá para baixo, então, o centro moderado está saindo, os radicais ficam e a política ganha outra dimensão. Tem alguma loucura acontecendo. Nós não sabemos se isso vai se reequilibrar.

Salvação
O Bolsonaro foi candidato a presidente da Câmara dos Deputados há dois anos, sabe quantos votos ele teve? Quatro. Então, ele era um patinho feio e era desconsiderado, mesmo. Ele era um marginal que ninguém considerava como um player. O pessoal do mercado financeiro o adotou, muito provavelmente trouxe junto essas tecnologias de comunicação e ele foi feito. Uma parte do empresariado o elegeu como a salvação contra o PT.

Partido de Bolsonaro forte no Congresso
Ele ganhou um Congresso mais próximo para ele [elegeu 52 deputados, a segunda bancada da Câmara]. Mas boa parte desses caras não fizeram política, está chegando lá. Kim Kataguiri, que já acha que pode ser presidente do Congresso, é um cara sem senso. Ele tem lá um monte de gente que acha que vai resolver tudo no grito. Sabe-se lá, o [Alexandre] Frota... como vai se comportar? Uma incógnita. Em geral caras como esse desaparecem porque não sabem fazer política. E política é um saco.. Tem de se conversar o dia inteiro.

Política no WhatsApp X política real
No Congresso a política é outra coisa. Tem gente que quando vai lá se prova bom. Caso do Romário. Fez uma agenda legal. É um cara que se deu ao trabalho de aprender um novo business. Essa ideia de que político profissional é um mal... ainda bem que tem político profissional. Houve uma renovação grande, e criou-se um espaço vazio que ninguém sabem quem vai ocupar. E quem vai chegar à presidência do Senado? Da Câmara? Ninguém vai dar a presidência da Casa ao Kim Kataguiri [eleito deputado federal por São Paulo], aquilo é extremamente complexo. O que fez do Eduardo Cunha aquela pessoa imensamente poderosa? A capacidade de conhecer aquilo, como aquilo funciona. O cara era uma máquina. Sabe tudo, tinha controle sobre absolutamente tudo, com três celulares. Não é coisa para amador. Tem um voluntarismo bobo que tomou conta da juventude e empresários. De que tudo com boa vontade se resolve... as pessoas entram em conflito.

Maldição do impeachment
Foi um erro cavalar em todas as dimensões. Procurei alertar naquela época sobre com quem centro e a direita estava se aliando. Foram para Temer e Cunha. Eles só queriam salvar a própria pele. Pensou-se no dream team na economia e estaria tudo salvo. Você não faz a sociedade com o diabo e não paga um preço.Sociedade com o Bolsonaro você vai pagar um preço e é altíssimo. O preço com o PT é extremamente mais baixo. O PT tem uma reputação. Bolsonaro é um novato. É alguém que não se pode confiar. Quem acredita em racionalidade da informação, pega passado, balanço, futuro, como você pode pegar as informações dele, e dizer que é confiável? É um cara mentiroso, de maneira asquerosa e populista dizendo que adotou o mercado. Claramente para obter o poder. Daí criticam PT porque faz algumas coisas. [Bolsonaro] é um cara que começou a vida como terrorista durante a democracia. É esse cara que vão querer? Lideranças responsáveis não têm o direito de não se posicionar e deixar passar esta insanidade. O caso mais terrível é o nazismo. Pensava-se que [Hitler] era um tonto que a gente controla.


Eliane Brum: Como resistir em tempos brutos

Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo

Cubro eleições como jornalista desde que elas voltaram a existir no Brasil. Minha estreia como repórter, junto com o Brasil que recém havia emergido do longo e tenebroso inverno da ditadura, foi em 1988, nas eleições para prefeito. A primeira eleição presidencial foi em 1989. Fernando Collor de Mello, segundo a capa da revista Veja, “o caçador de marajás”, foi eleito. O filho do coronelismo de Alagoas proclamava que Lula, o filho do sertão nordestino, tinha um aparelho de som maior que o dele em casa. As pessoas acreditavam que Lula era mais rico que Collor, porque muita gente gosta mesmo é de acreditar, em qualquer coisa que lhe convém. Na época, Edir Macedo, o poderoso dono da Igreja Universal do Reino de Deus, já se chamava de bispo e era o feliz proprietário de um império religioso. Mas bem mais modesto do que hoje, quando seu império tornou-se religioso-político-midiático.

Naquela época Edir já conversava diretamente com o Estado Maior do Céu e anunciou aos fiéis que o próprio Espírito Santo havia lhe informado que Collor era o cara. Ou Edir foi enganado pelo Espírito Santo, os mais estudados em temas bíblicos podem nos dizer se isso é possível, ou ele ouviu sussurros mais terrenos e se confundiu. Ou então ele simplesmente mentiu. Entre a possibilidade de o Espírito Santo ter mentido ou Edir Macedo ter mentido usando o nome do Espírito Santo, me parece mais prudente apostar na idoneidade do Espírito Santo. Mas as pessoas evangélicas, as realmente evangélicas, que me digam se meu pensamento tem lógica ou não. Nesta eleição, Edir declarou que Jair Bolsonaro (PSL) é o cara. É acompanhado na preferência por outros coronéis da religião, como Silas Malafaia, que me chamou de “vagabunda” em 2011, em entrevista ao The New York Times. Um exemplo do tratamento destinado às mulheres por esses homens que dizem falar em nome de Deus enquanto contam o dinheiro suado dos fiéis. E uma perfeita identificação com seu candidato a presidente, que afirmou não estuprar uma deputada porque ela não mereceria por ser “muito feia”, assim como afirmou que as mulheres são produto de uma “fraquejada” do macho no ato sexual.

Me dou a licença deste primeiro parágrafo porque completo, neste primeiro turno de 2018, 30 anos cobrindo eleições. Acompanhei todas as campanhas eleitorais da redemocratização do Brasil, do que se convencionou chamar de Nova República. E nunca, em 30 anos, vi o que vi nesta eleição de 2018.

Vi as pessoas adoecendo, estranguladas por uma espécie de pânico paralisante. Vi amigos combativos, acostumados à dureza da luta, prostrados pelo sentimento de impotência diante da possibilidade de um homem como Jair Bolsonaro, um homem que diz o que ele é capaz de dizer, vencer. Vi pessoas chorando dia após dia. Recebi centenas de mensagens no WhatsApp com as mesmas quatro frases, a maioria delas vindas de mulheres.

“Estou em pânico.”

“Estou assustada.”

“Estou com medo.”

“Estou apavorada.”

1) Na eleição determinada pelo fenômeno da autoverdade, a melancolia adoece o corpo

Jair Bolsonaro, aquele que é chamado de “coiso” nas redes sociais, ganhou esta eleição mesmo antes da votação no primeiro turno. O Brasil está mergulhado numa crise ampla, complexa, que é muito mais do que uma crise econômica e política. É uma crise também de identidade e de palavra, como tantas vezes já escrevi aqui nos últimos anos. A pobreza está aumentando, a mortalidade infantil voltou a crescer, doenças que estavam erradicadas são novamente ameaças, por falta de cobertura vacinal eficiente. A malária retornou com toda a força na região amazônica. E a febre amarela ressurgiu no Sudeste do país. A violência no campo aumentou, e a Amazônia e o Cerrado estão ainda mais ameaçados pelo desmatamento. O Brasil tem ainda 13 milhões de desempregados e um número crescente de pessoas que parou de procurar uma vaga porque sequer tem esperança de voltar a ter trabalho.

A campanha de Bolsonaro reduziu a eleição a uma batalha de memes e de ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp

Jair Bolsonaro venceu mesmo antes deste domingo, 7 de outubro, porque, num cenário tão grave, sua candidatura conseguiu impedir qualquer debate sério. Sua candidatura interditou a discussão das ideias, a criação de um projeto para o Brasil. A campanha eleitoral ficou reduzida a uma batalha de memes e a ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp, onde cheguei a receber uma mensagem que dizia o seguinte: “Já está encomendado daqui de Novo Hamburgo-RS, 100 touros para serem sacrificados para Satanás em favor do babuê Luiz Inácio Lula da Silva, bruxo, pela perturbação das eleições, e para favorecê-lo. Crianças também serão sacrificadas no altar de Belzebu”. E as pessoas do grupo de evangélicos, ligado à Assembleia de Deus, pareciam acreditar seriamente nisso. Várias pessoas deste grupo têm dificuldades para escrever, mas o português deste post era corretíssimo. Em áudios e vídeos amplamente disseminados pelo WhatsApp, líderes religiosos desenhavam o apocalipse caso Bolsonaro fosse derrotado —ou caso o PT vencesse. Sem serem incomodados pelas instituições que têm a obrigação de preservar a lisura das eleições.

Jair Bolsonaro venceu porque em vez de usarmos o momento da campanha para debatermos projetos, o tempo foi gasto em explicar o autoexplicável: explicar por que razão não é aceitável votar num candidato que diz que negros de quilombos não servem nem para a procriação, que é melhor ter um filho morto num acidente de trânsito do que namorando “um bigodudo” (certamente ele nunca perdeu um filho para dizer algo assim), que seus filhos jamais vão namorar uma negra porque “são muito bem educados”, que as mulheres têm que ganhar menos porque engravidam, que é a favor da tortura e que a ditadura civil-militardeveria ter matado pelo menos uns 30 mil e que se morrerem inocentes tudo bem (desde, claro, que não sejam da sua família). Alguém que é vítima de um ataque à faca e, em vez de convocar o país para a paz, como cabe a um líder responsável em momentos de gravidade, faz sinal de atirar da cama de hospital como se tivesse cinco anos de idade. Alguém que diz uma coisa e depois disse que não disse o que está gravado em áudio e vídeo que disse. Alguém que os apoiadores têm que começar o discurso dizendo: “Ele não é o mais inteligente... nem o mais preparado, mas...”.

Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ser o mais votado no primeiro turno porque, mesmo defendendo a barbárie, foi o escolhido de quase 50 milhões de brasileiros. E, quando é preciso explicar por que não é possível escolher um candidato que faça essas declarações e acredite nelas, esta batalha já está perdida. Explicar que uma mulher não nasce de uma fraquejada de um homem nem deve ganhar menos porque engravida? Explicar que não é melhor ter um filho morto em acidente do que gay? Explicar que não é possível falar que um negro nem para procriar serve? Explicar que não é possível matar e torturar? Não faz sentido ter que explicar isso. Nenhum sentido.

Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade

Por não fazer nenhum sentido, também não faz nenhuma diferença explicar. Vivemos o que tenho definido como “autoverdade”: o conteúdo não importa, importa o ato de dizer. Assim, checar os fatos também não importa, porque os fatos não importam. O ato de dizer é confundido com “autenticidade”, com “sinceridade”, com “verdade”. Não importa o que seja dito. A estética foi colocada no lugar da ética. A “verdade” tornou-se uma escolha pessoal. É o indivíduo levado à radicalidade. Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade. E, tanto quanto a pós-verdade, ela ecoa a lógica das redes sociais na internet e suas bolhas.

A democracia pode ser uma grande festa em que cabem todas as diferenças. A democracia só é democracia, aliás, quando cabem todas as diferenças. Projetos que não acolham as diferenças, que querem eliminar —e inclusive exterminar— as diferenças e executar aqueles que encarnam as diferenças, estes não cabem na democracia. Porque defender a eliminação dos diferentes, dizendo que não deveriam existir ou que valem menos que os outros, não é uma opinião, mas um crime. Um crime previsto pela legislação brasileira, mas curiosamente este crime persistente nesta campanha não tem sido identificado como crime e punido pelas instituições responsáveis.

Bolsonaro ganhou mesmo antes de ganhar porque não apenas ampliou o ódio, mas também sequestrou o debate

Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ficar em primeiro lugar no primeiro turno da eleição porque todos os debates importantes para o Brasil foram suspensos, todas as discussões em andamento se perderam, e o cotidiano foi reduzido a espasmos. Ele não apenas ampliou o ódio, ele também sequestrou o debate. Este tempo já foi perdido por quem aposta na democracia. Mas o tempo não foi perdido para os que apostam no caos, porque o ódio foi ampliado e os muros ficaram ainda maiores e mais difíceis de serem atravessados por qualquer diálogo.

Jair Bolsonaro vem ganhando há muito tempo porque nem mesmo precisou explicar como seu guru econômico e futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, o ultraliberal que é desprezado pelos liberais moderados, propõe uma mudança que cobrará mais impostos dos pobres e menos dos ricos. Ou como seu vice, Hamilton Mourão, chama o décimo-terceiro salário do trabalhador de “jabuticaba”. Nem isso ele precisou explicar, até porque o médico teria desaconselhado debates na Globo mas permitido entrevistas no mesmo horário para a Record.

Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ter ganhado um número expressivo de votos no primeiro turno porque conseguiu mergulhar uma parte das pessoas numa paralisia amedrontada, como se estivessem estragadas por dentro. Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens.

É o seguinte.

Jair Bolsonaro ganhou, mesmo antes de ganhar, mas não pode continuar ganhando. E a primeira luta acontece dentro de cada um. Não renunciem à sua subjetividade. Não permitam que roubem a sua voz e a sua força. Não deixem a vida ser tomada pelo medo. É preciso lutar neste segundo turno para o autoritarismo não se instalar no Brasil pelo voto, mais uma contradição da democracia. E é preciso resistir primeiro nas pequenas coisas do cotidiano. No amor, na amizade, no sexo, no prazer de ver um filme ou ouvir uma música, num café bem coado. No que uma amiga minha chama de “cotidianices”. E, principalmente, no prazer de estar junto. Como disse alguém na minha página do Facebook: “Mesmo se tudo der errado, o que me interessa agora é que meus filhos saibam que a mãe deles lutou contra o horror”.

Não permitam que “o coiso” corrompa seu espírito. Aprendam com as crianças que leram Harry Potter: se os dementadores (criaturas que controlam, oprimem e derrotam roubando a alegria) se aproximarem, comam chocolate para combatê-los. Parece uma referência demasiado infantil, mas J. K. Howling sabia o que escrevia: a comida e a música são o que faz a maioria dos refugiados conseguirem viver longe das suas pátrias e mátrias, porque acionam lugares da mente que a opressão não alcança. Só com a batalha ganha dentro de cada um, é possível ter mais força no que o poeta do Xingu Élio Alves da Silva refere-se como “Eu+ Um”. Sozinhos nós contamos apenas como um. Como Um+Um+Um... nós somos milhões.

2) Democracia, autoritarismo e a omissão das instituições que deveriam combater os crimes

Há muitos desafios neste segundo turno de Jair Bolsonaro com Fernando Haddad (PT). Se Lula fosse um estadista, ele teria apoiado um nome fora do PT. Alguém que pudesse aglutinar a esquerda e o centro, como Ciro Gomes (PDT). E Haddad poderia ter sido o vice. Mas Lula, infelizmente para o país, não é um estadista. Lula é um grande líder, mas não um estadista. Moveu-se nesta eleição por vingança, não pelo bem do Brasil. Quis mostrar que, mesmo de dentro da cadeia, poderia dominar a campanha.

É possível entender a sua raiva, já que estava em primeiro lugar nas pesquisas e foi impedido de ser candidato. Nem mesmo dar entrevista pode. Como jornalista, já fiz entrevistas com dezenas de presos, essa proibição é uma arbitrariedade. É possível entender a sua raiva, mas de uma liderança se espera que domine a raiva e seja capaz de pensar nos interesses do país acima dos seus. Lula não foi capaz. E cá estamos.

A eleição do contra vai se acirrar no segundo turno – e muito

Essa eleição, desde o início, foi a eleição “do contra”. E a eleição do “contra” vai se acirrar no segundo turno. Contra Bolsonaro X Contra o PT. O país inteiro sabe que há uma avalanche antipetista. Que se manifesta como ódio. Os motivos são variados. Uma parte concentra, inclusive, ódio pelas virtudes do PT no poder, como as cotas raciais nas universidades e a ampliação dos direitos das empregadas domésticas.

Estas duas ações do PT no governo explicam grande parte do ódio, sem que assim ele seja nomeado. Foram essas duas políticas que alteraram as relações de poder e confrontaram de fato privilégios, já que Lula jamais mexeu na renda dos mais ricos. Mas ele e Dilma Rousseff mexeram, sim, no equilíbrio de poder, concreto e simbólico, quando os negros entraram nas universidades e quando as domésticas deixaram de ser uma versão contemporânea da escravidão para se tornar mais uma categoria explorada de trabalhadores, entre tantas outras. Essas políticas, não concessões do governo, mas reconhecimento de lutas históricas, geraram mudanças que são imparáveis e seguiram confrontando privilégios mesmo depois que o PT foi afastado do poder pelo impeachment de Dilma Rousseff.

Uma parte, na qual me incluo, terá que segurar o estômago para votar num partido que reeditou o projeto da ditadura civil-militar na Amazônia, reduzindo a floresta a objeto de exploração, evidenciado nas grandes hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, e na expulsão dos povos da floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá que tampar o nariz para votar num partido que assinou a lei antiterrorismo e que usou a Força Nacional para perseguir e reprimir manifestantes e trabalhadores nas cidades e na floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá pesadelos para votar num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...). Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha. Nada que mereça esse nome.

Uma parte dos eleitores de Bolsonaro usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável: é um truque

Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma — ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar —então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é.

Ou então você estava muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo. Acontece. E em geral a gente se arrepende do que faz nestes momentos quando a respiração volta ao normal, mas as consequências se estendem, às vezes pela vida toda. Mas agora tem outra chance, e essa é definitiva. É preciso deixar a raiva de lado e votar com a razão, escolher com consciência. Porque se a dupla de “profissionais da violência”, como o próprio Hamilton Mourão definiu, assumir o poder, será muito grave para o país. Quando se vota em profissionais de violência é preciso saber o que esperar.

Quem defende a violência contra outras pessoas apenas porque são diferentes ou porque confrontam seus privilégios é um corrupto. Mesmo que nunca tenha se corrompido pelo dinheiro, é a alma que é corrompida. Então, não é possível se esconder atrás da corrupção. Nem começar nenhum discurso com “Ele não é inteligente nem preparado, mas...”. Neste caso, é preciso assumir o real desejo de exterminar os que são diferentes. Não dá para votar num racista sem ser racista, num homofóbico sem ser homofóbico, num machista sem ser machista. Este é um limite. Ao fazê-lo, se você não era, se torna um. Mesmo que você for mulher ou homossexual ou negro. E este voto fará parte de sua história. É também o seu legado para os que virão.

O fato de a eleição ser “do contra” não autoriza a imprensa e outros espaços de documentação, análise e interpretação da realidade a igualar o inigualável. Não se trata de dois iguais. Não é isso o que acontece hoje no Brasil. Há um projeto autoritário para o país, que está negando a própria democracia. Jair Bolsonaro efetivamente disse que só aceitaria o resultado da eleição se fosse o vencedor. Depois voltou atrás, mas voltar atrás não elimina aquilo que disse quando exerceu sua tão propagada “sinceridade”. Seu vice, Hamilton Mourão, efetivamente disse que era possível, depois de eleito, em caso de “anarquia”, dar um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.

Bolsonaro já deixou claro, mais de uma vez, que só aceitará o resultado das eleições se vencer, e mesmo assim as instituições não tomam providências à altura da gravidade dessa campanha contra a democracia

A primeira declaração de Bolsonaro, logo após o resultado do primeiro turno, foi justamente questionar a lisura do sistema de apuração dos votos: “Se tivesse confiança no sistema eletrônico, já teríamos o nome do novo presidente”. Mais uma vez ele ataca o avançado sistema de apuração do Brasil, uma das poucas coisas que dão inveja em países muito mais ricos, de não funcionar. E deixa claríssimo que, se não ganhar no segundo turno, é porque as urnas eletrônicas foram fraudadas. É uma ameaça nada velada ao processo democrático, a de que não aceitará o resultado de eleição, a não ser em caso de vitória. E é um ataque persistente com o objetivo de corroer a confiança do eleitor nas urnas eletrônicas, para tê-lo do seu lado caso o resultado do segundo turno não lhe dê a vitória. Isso é gravíssimo. E as instituições não tomam providências à altura.

E há o outro projeto que disputa este segundo turno, que tem vários problemas que precisam ser apontados e radiografados, mas que não está confrontando a democracia. O PT confrontou a democracia, quando foi governo, na sua atuação na Amazônia e na repressão aos manifestantes e às manifestações contra as grandes hidrelétricas e contra a Copa do Mundo. Mas o projeto de Fernando Haddad não é um projeto antidemocrático nem o candidato ameaça se rebelar contra o resultado das urnas ou contra a própria democracia, como faz seu oponente. Haddad precisa esmiuçar muito mais o seu projeto durante o debate do segundo turno, e se comprometer muito mais com os direitos dos povos da floresta, mas não representa um projeto autoritário como seu adversário.

Estes são os fatos.

3) Parte da imprensa e do judiciário atuam partidariamente, mas se declaram imparciais

A cobertura —ou a não cobertura— do movimento #EleNão serviu de alerta para um problema que pode se agravar neste segundo turno. Uma mulher negra, de origem periférica e anarquista iniciou um protesto autônomo pelo Facebook: Mulheres Unidas Contra Bolsonaro. Hoje, a página, que só aceita mulheres, tem quatro milhões de seguidoras. A partir deste espaço, foi gerado um movimento com a hashtag #EleNão. Este movimento levou às ruas do Brasil e do mundo, em 29 de setembro, centenas de milhares de pessoas para protestar contra o que a candidatura de Bolsonaro representa. Só essa história já é extraordinária, além do grande potencial simbólico de que são as mulheres pobres, a maioria negras, que se colocaram no caminho do projeto autoritário de Jair Bolsonaro. #EleNão realizou a maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil.

O que a TV fez? Quase ignorou as manifestações. Qualquer um pode lembrar com riqueza de detalhes como a Globo cobriu ao vivo as grandes manifestações pelo impeachment e contra o PT. Nunca poderemos saber com precisão o quanto a própria cobertura influenciou o número de pessoas nas ruas. Em qualquer manual de jornalismo, centenas de milhares de pessoas nas ruas do Brasil e do mundo, pela primeira vez não a favor de um candidato ou de ideias, mas contra um candidato e suas ideias, é uma tremenda notícia. Mas a manifestação foi quase ignorada. E, quando foi abordada, em alguns casos os movimentos pró e contra foram apresentados como se tivessem tido a mesma proporção.

Os grandes jornais deram fotos na capa, mas preferiram outras manchetes. A maioria também se limitou a dizer que houve manifestações contra e houve manifestações a favor, como se tivesse sido tudo igual. A quem isso ajuda? Não ao país, e certamente não ao bom jornalismo. A cobertura que dá o mesmo peso a dois lados com pesos diferentes lembrou muito a cobertura da mudança climática durante vários anos: meia dúzia de cientistas, parte deles financiada por grandes emissores de CO2, defendendo que o aquecimento global não era causado por ação humana, ganhavam o mesmo espaço nos jornais que o consenso de mais de 95% dos cientistas mais respeitados do mundo, afirmando que a o aquecimento global é causado por ação humana. Essa distorção da realidade era chamada de “isenção”. E cá estamos, o planeta corroendo-se a cada dia mais.

A Polícia Militar, que costuma dimensionar o número de pessoas nos eventos e nas manifestações, desta vez preferiu não fazer a contagem. Simples assim. Um movimento histórico ficou sem números porque a força de segurança do Estado serviu a seus próprios interesses privados ( e à sua própria escolha eleitoral), sem maiores contestações. Como se isso pudesse ser de alguma forma normal ou aceitável.

A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo depois da entrevista chapa-branca com Bolsonaro

Será preciso observar com toda a atenção como o que se chama de “grande imprensa” ou “mídia tradicional” se comportará neste segundo turno, especialmente as TVs. A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo ao colocar a entrevista chapa-branca com Jair Bolsonaro no horário do debate da Globo entre os presidenciáveis, em 4 de outubro. Eram só perguntas para Bolsonaro chutar para o gol. Um assessor de imprensa de Bolsonaro não faria melhor.

O candidato disse-que-não-disse-o-que-disse-e-que-está-gravado-que-disse e não houve nenhuma contestação por parte do entrevistador. Sem contar a edição apelativa. Em nenhum outro momento da história, Edir Macedo, comandante da Igreja Universal do Reino de Deus e do grupo Record, fundiu tão completamente o projeto de poder, mídia e religião como nesta entrevista, ocorrida dias depois de ele ter apoiado Bolsonaro publicamente. Ao contrário. A Record, por vários anos, fez um visível esforço para separar as esferas, pelo menos para o público ver, com o objetivo de ganhar credibilidade como um grupo sério de comunicação. Essa farsa acabou. E o fato de Edir acreditar que não é preciso mais fazer de conta é um forte indicativo do que está por vir.

Por outro lado, a Globo continua cada vez mais perto do outro lado do paraíso. Apostou todas as suas fichas no impeachment de Dilma Rousseff. Conseguiu, articulada a várias outras forças. Apostou todas as suas fichas na renúncia de Michel Temer após as denúncias de corrupção que divulgou com exclusividade. Não conseguiu, porque as outras forças seguiam achando que era melhor continuar com ele, já que a corrupção, se importou para o povo, nunca importou para os articuladores do impeachment. A aposta num candidato de centro, que poderia reacomodar as forças que sempre estiveram no poder, falhou.

A Globo vive o inferno de ser odiada pelos dois candidatos que disputam o segundo turno

A Globo encontra-se no momento entre duas oposições que têm em comum apenas o ódio à Globo: Bolsonaro e o PT. Em resumo: o próximo presidente, que determinará o destino das grandiosas verbas publicitárias do governo, odiará a Globo. Mas este é apenas o retrato do momento. As forças sempre tendem a se reacomodar para manter seu poder ou o que é possível manter dele. No governo Lula, o então presidente esqueceu até a edição fraudulenta do debate de 1989, decisiva para a sua derrota, e empreendeu uma espécie de namoro sério com o maior grupo de comunicação do Brasil.

Para que lado será acomodado —e a que preço— é o que será preciso acompanhar. Contra a acomodação da Globo com Bolsonaro há um adversário poderoso: esta é a grande chance da Record e do projeto de poder de Edir Macedo. A divulgação da entrevista com Bolsonaro na Record, na mesma hora do debate na Globo, a que o candidato em primeiro lugar nas pesquisas disse que não poderia comparecer por razões de saúde, deverá ser só o primeiro confronto. Quem assistiu ao debate esvaziado da Globo, com aqueles candidatos engravatados, exceção para Marina Silva e para Guilherme Boulos, e aquele formato sonolento de sempre, com aquela descontração de maquete, comprovou mais uma vez que esta foi a campanha do WhatsApp. O ritmo agora é outro —e a linguagem também.

Sergio Moro é o que mais envergonha o judiciário, mas está longe de ser o único

Como se comportará a parcela da imprensa que apostou numa saída de centro (e não levou) deverá ser observado de muito perto neste segundo turno. Este também será o grande desafio para o jornalismo ou se fortalecer, mostrando o quanto é insubstituível numa democracia, ou então descer pelo ralo da irrelevância como nunca antes. Se a pauta jornalística servir para rearranjar os projetos de poder das empresas de mídia, acabou. Ainda falta uma autocrítica profunda de parte da imprensa sobre o seu papel no impeachment e já vem outro desafio muito mais intrincado. Vamos torcer para que a maior parte da imprensa se mostre à altura, porque o Brasil precisa muito de jornalismo sério.

Outro protagonista que precisa ser observado com muita atenção é o judiciário que não faz justiça, mas faz muita política partidária. A liberação de Sergio Moro de parte da delação de Antonio Palocci, uma delação feita em abril, sem novidade e escassas provas, a seis dias da eleição, é uma afronta ao Brasil. E já não é a primeira afronta ao Brasil feita por Moro. Esse personagem acredita que é herói, mas corre o risco de entrar para a história como um vilão. As palavras usadas por Tasso Jereissati para definir o que aconteceu com o PSDB servem para Moro: “engolido pela tentação do poder”. O juiz se comporta como se a lei fosse a sua vontade, transformando-se não num xerife, como gostam de chamá-lo, mas num coronel pago por dinheiro público.

Moro é o que mais envergonha o judiciário, seguido de pertíssimo por Gilmar Mendes, e agora também por Luiz Fux e Dias Toffoli. Mas está longe de ser o único. Toda essa crise é também a história de uma longa série de abusos de juízes, de todas as instâncias, incluindo os do Supremo Tribunal Federal, que esqueceram que são servidores públicos, o que significa servir à população cumprindo à Constituição, não aos seus projetos privados de poder e aos seus egos mais inflados que boneco de manifestação. É preciso ficar muito atento a como o judiciário vai se comportar no segundo turno mais complicado da jovem democracia brasileira.

Há ainda o que se chama de “Mercado”. Quem é este “Mercado”, algo que é pronunciado como se não se tratasse de gente. Basta ver as manchetes dos jornais da Europa e dos Estados Unidos, para constatar que uma vitória de Bolsonaro é vista como a vitória de um ditador. Como isso ajudaria o Brasil nas relações econômicas e políticas internacionais? A própria The Economist, a bíblia dos liberais, definiu Bolsonaro “como a maior ameaça da América Latina”. Mas os porta-vozes do “Mercado” no Brasil estão eufóricos com a possibilidade de um homofóbico, racista, misógino defensor da ditadura assumir o poder. Bolsonaro cresce nas pesquisas, a Bolsa sobe e o dólar cai. Como disse um destes iluminados, Felipe Miranda, da Empiricus, em entrevista ao El País Brasil, ao avaliar uma “situação hipotética”: caso o Congresso fosse fechado e uma reforma da previdência aprovada na marra, a bolsa subiria.

É autoexplicativo.

4) Como tornar a eleição do contra uma eleição a favor

A corrosão do cotidiano no Brasil é uma imagem explícita nas ruas de cada dia. Nos últimos anos, as calçadas voltaram ser habitadas por vivos que parecem cadáveres. E nós, que não perdemos nossas casas, passamos por esses seres humanos como mortos que parecem vivos. Porque fingir que não vemos a dor dos outros também mata. Esse Brasil precisa mudar. E não será com as pessoas apontando armas umas para as outras que isso vai acontecer.

Nem será com o medo. Quando sinto que a opressão me estrangula, e o medo tenta se infiltrar nos meus ossos, recorro à literatura. A arte conversa com o mais profundo da gente, por isso foi tão atacada pelas milícias da internet. A arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós.

Recorro especialmente a uma autora que viveu a repressão de uma forma muito intensa, uma alemã que viveu a ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Em um livro de ensaios, Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio(Companhia das Letras), Herta Müller, ganhadora do Nobel de Literatura de 2009, escreve sobre a resistência, a resistência nas pequenas coisas, naquilo que chama de “naturalidade”. E que a minha amiga chama de “cotidianices”.

“Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”

Compartilho um trecho com vocês, em que ela fala da infiltração do nazismo nos corações e mentes dos “cidadãos de bem”:

“A naturalidade, aprendi a partir dos poemas de Theodor Kramer, é a coisa menos extenuante que temos. Ela está no momento e não tem um nome, para existir ela precisa se manter despercebida, porque nós também precisamos nos deixar despercebidos dela. Os poemas mostram de uma maneira agudamente clara como a naturalidade pode se extraviar quando é cassada pela arbitrariedade política.

Os poemas de Kramer mostram que o escândalo não começa pelo extermínio dos judeus nos campos de concentração, mas anos antes, com o roubo da naturalidade nas casas, cafés, lojas, bondes ou parques pela maioria dos correligionários. Que, no nazismo, a política era feita não somente pelos convictos, mas também pelos ignorantes subservientes. (...) Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”.

Todos aqueles que não se viraram contra essa política eram parte dela.

Herta conta que os judeus viviam neste tempo o roubo diário da naturalidade. Me parece que, neste primeiro turno, com a ameaça concreta do domínio da opressão, ainda que o projeto autoritário alcance o poder pelo voto, parte dos brasileiros, os mais frágeis muito antes, viveram o roubo diário da naturalidade de uma outra maneira. A ameaça de perder a possibilidade já foi vivida como perda da possibilidade. E então a possibilidade dos pequenos atos deixou de existir. E, vale repetir: esta é a primeira vitória do opressor.

Mais uma vez, a tessitura do presente foi suspensa por um projeto autoritário. A democracia, no Brasil, vive aos soluços, interrompida pela exceção. Tem sido essa a nossa história. Quando começamos a discutir um projeto original de país, quando os indígenas e os negros e as mulheres começam a ocupar novos espaços de poder, o processo é interrompido. Quando começamos a ter paz, a guerra recomeça. Porque, de fato, a guerra contra os mais frágeis nunca parou. Arrefeceu, algumas vezes, mas nunca parou. Desta vez, a perversão é que, até agora, o projeto autoritário vem se estabelecendo com a roupagem da democracia.

Mesmo votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos favor

Bolsonaro define esse momento: aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas realizando crimes previstos na legislação desta democracia, como racismo, sem ser punido; aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas se perder no segundo turno é porque o sistema de apuração foi fraudado, se perder não aceitará a derrota; disputa dentro da democracia, mas só aceita um resultado, o da sua vitória. Essa deslógica é a lógica dos perversos. E enlouquece. Viemos sendo adoecidos – e enlouquecidos – desde que Eduardo Cunha (MDB) afirmava os maiores absurdos e nada acontecia, porque ele só podia ser afastado e preso depois de fazer o serviço sujo do impeachment.

Mais uma vez o tecimento do presente foi suspenso. Mas não podemos permitir que nossos dias sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas. Há que se resistir ao devoramento das almas.

Essa eleição foi sequestrada pelo “contra”. Ser contra é —e foi— muito importante. E será. Em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra. Contra o autoritarismo. Contra a opressão. Contra a ameaça da ditadura. Contra o extermínio das minorias. Contra o sequestro da liberdade. Mas, mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor. Ou as almas se envenenam. E a gente adoece por dentro, o estrago interno que Freud chama de melancolia.

Temos que ser contra e ao mesmo tempo ir tecendo um projeto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. Um projeto de futuro onde possamos viver. O presente no Brasil não será possível sem voltar a imaginar um futuro. É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo. Sonhar com um país, sonhar com uma vida. É pelo desejo que nos humanizamos. Resistir nas próximas três semanas é principalmente desejar uma vida viva – vivendo uma vida viva. Se conseguirmos, voltaremos a ganhar mesmo antes de ganhar.

Aprendi com os povos da floresta amazônica, que tiveram suas vidas destruídas junto com a floresta mais de uma vez, e que resistem e resistem e resistem, que o principal instrumento de resistência é a alegria. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. Mas eles já sabiam disso muito antes. Metem o dedo na cara do opressor, que continua lá, e riem por gostar de rir. Riem só por desaforo.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

 


El País: Plano econômico de Paulo Guedes, guru de Bolsonaro, depende de uma ‘bala de prata’ para funcionar

Propostas de privatizações e reformas "radicais" na Previdência e no sistema tributário demandam a arte de negociar com 30 partidos que estão representados no Congresso

O mercado demorou em começar a levar a sério a candidatura à presidência de Jair Bolsonaro (PSL). A carência de pessoas do campo econômico no seu entorno e a mistificação de sua figura, tanto pela carreira militar quanto no Congresso, onde revelava uma postura estatista e intervencionista, eram motivo de receio para os investidores. Tudo mudou com a chegada do economista Paulo Guedes à campanha, que rapidamente converteu-se no "Posto Ipiranga" de Bolsonaro. PhD pela Universidade de Chicago – berço dos Chicago Boys, economistas que na segunda metade do século XX influenciaram as reformas liberais de países como Chile, EUA e Reino Unido –, Guedes tornou-se o selo de qualidade de Bolsonaro com uma agenda liberal que defende privatizações e reformas tributárias e da Previdência “radicais”. No dia em que foi anunciado como Ministro da Fazenda em um eventual governo do PSL (em 27 de novembro de 2017), a Bolsa de Valores, que havia começado o pregão em queda, subiu.

Apesar de as propostas econômicas serem lidas como “uma boa carta de intenções” e gerarem entusiasmo entre os jovens operadores das mesas de negociação, os atores mais experientes do mercado financeiro se mostram mais céticos e levantam dúvidas sobre a viabilidade de tais promessas.  A leitura geral é que o plano econômico de Guedes para o governo de Bolsonaro depende de uma “bala de prata” para dar certo. Ele propõe a reestruturação da área econômica, com dois organismos principais, o Ministério de Economia e o Banco Central, formal e politicamente independentes. Quanto à Reforma da Previdência, cuja necessidade é um consenso entre os analistas de mercado, o plano prevê a mudança do sistema atual de repartição (pagamento dos aposentados é feito pelos trabalhadores ativos)  pelo modelo de contas individuais de capitalização (cada trabalhador contribuirá durante a vida para sustentar seu benefício previdenciário). E aqui surgem as primeiras críticas. “Essa proposta de reforma radical da Previdência é suspeita, porque eles falam de capitalização, mas não deixam claro como seria feita essa transição. O Guedes diz que pagaria o custo com as privatizações, mas o processo de privatização é longo, então isso não está claro”, avalia Silvio Cascione, analista para o Brasil da consultoria de risco Eurasia.

Cascione acrescenta que também há desconfiança sobre o “amplo programa de privatizações” que aparece no plano de governo de Bolsonaro, mas sem especificar quantas ou quais das 147 empresas da União seriam vendidas. O objetivo seria utilizar todos os recursos obtidos com as privatizações para pagar a dívida pública. “Muita gente gosta da ambição do Guedes, quando ele fala nas privatizações radicais, mas também há investidores que acham que esse discurso vai desinflar com o tempo”, comenta o analista.

Para Amaury Fonseca Júnior, sócio fundador da Vision Brazil Investments, gestora de recursos focada em investidores institucionais, para resolver a questão da dívida pública, qualquer Governo deve priorizar a reforma tributária. O plano esboçado por Guedes prevê a simplificação e unificação de tributos federais e a descentralização e municipalização de impostos. O economista chegou a afirmar, conforme revelado pela Folha de S. Paulo, que pretendia recriar um imposto nos moldes da CPMF, que incide sobre movimentação financeira, além de criar uma alíquota única do Imposto de Renda de 20% para pessoas físicas e jurídicas – e aplicar a mesma taxa na tributação da distribuição de lucros e dividendos. Por outro lado, ele estudava eliminar a contribuição patronal para a Previdência, que incide sobre a folha de salário – que tem a mesma alíquota, de 20%. “Para chegar nesses 20%, as contas públicas precisariam estar muito bem equilibradas. Essa coisa da CPMF não agradou o mercado”, comenta Júnior.

Bolsonaro e seus aliados, que sempre defenderam que em um eventual governo do candidato os impostos seriam reduzidos, apressaram-se em tentar explicar as declarações de Guedes, que chegou a rebaixar a cifra para os 15%, mas o estrago já estava feito. “O país tem um problema clássico de déficit fiscal. As cifras de 20% ou mesmo 15% são totalmente impraticáveis”, afirma Ricardo Sennes, economista e diretor da consultoria Prospectiva. Para Sennes, esse é “só o primeiro exemplo de inconsistência” na campanha. “Ele foi fazendo cálculos e viu que em vez de diminuir, tinha era que aumentar impostos, porque a conta não fechava. Parece fazer declarações sem ver números básicos de economia”, critica ele, que vê no “guru econômico” do candidato alguém “tão neófito quanto Bolsonaro”.

Em entrevista ao Jornal Nacional, Jair Bolsonaro voltou a tratar do tema: "A proposta do nosso economista Paulo Guedes é que quem ganhe até 5 mínimos não descontará Imposto de Renda. E acima disso, uma tabela de 20% para todos. Não pretendemos recriar a CPMF, eu fui um dos que votou contra a CPMF no passado",  afirmou. A reportagem entrou em contato com Paulo Guedes para responder aos comentários dos analistas, mas não obteve resposta.

Trajetória

Guedes, de 68 anos, de fato, tem uma breve experiência na carreira política. Ele assessorou o então candidato à presidência Guilherme Afif Domingos, em 1989, sendo um crítico dos projetos econômicos do período, principalmente do Plano Real. Tendo feito fortuna no ramo financeiro do Rio de Janeiro, o economista foi um dos fundadores do Ibmec, criado como instituto de pesquisa voltado para o mercado financeiro, do think thank Instituto Millennium e do Banco Pactual. Também investiu na Abril Educação com Roberto e Giancarlo Civita, donos da Editora Abril, até criar, em 2006, a BR Investimentos (comprada depois) pela Bozano Investimentos. Hoje, concilia seu tempo entre a assessoria de Bolsonaro e a empresa. Guedes acredita que o deputado, que construiu sua carreira como estatista, está “aprendendo” a ser um liberal-democrata, mesmo elogiando a ditadura militar, conforme contou em entrevista a EL PAÍS realizada em agosto.

O “Posto Ipiranga” de Bolsonaro se apresenta como um intelectual que não foi devidamente reconhecido por seus colegas. “Nos anos 80, participei de todos os debates econômicos do Brasil a favor do tripé macroeconômico e da reforma da Previdência. E de fazer no Brasil as reformas que foram feitas no Chile: banco central independente, câmbio flutuante, equilíbrio fiscal e o regime de capitalização da previdência”, contou durante a entrevista para este jornal, lamentando que, em vez disso, se realizassem as “tolices” do Plano Cruzado e do Plano Collor.

Sua estadia no Chile, como professor universitário durante o regime do ditador Augusto Pinochet, é justamente um dos pontos mais controversos de sua trajetória. “Eu não me sinto nem um pouco culpado ou responsável por ser um bom economista. É a mesma coisa que você ser dono do Starbucks e aí entra um ditador e toma um café lá na sua loja. Eu era um professor. O Brasil tinha reserva de mercado na universidade. Minha produção acadêmica era muito superior ao que se praticava nas universidades aqui. Mas, por ser de Chicago, eu fui convidado pra dar aula na FGV, no IMPA e na PUC em tempo parcial. Não podia ser tempo integral porque eu não pertencia a nenhuma tribo ideológica. Não é que fui pro Chile, pra ditadura... Eu recebi um convite de tempo integral na Universidade do Chile e fiquei seis meses”, justificou-se.

Guedes afirma que tinha “um sonho acadêmico”, mas alguns dos seus pares desmentem a afirmação. Edmar Bacha, um dos responsáveis pelo Plano Real e contemporâneo de Guedes na PUC, afirmou à revista Piauí que o colega “nunca nem sequer tentou o tempo integral. Até porque, para isso, precisaria publicar artigos, escrever textos para discussão, e ele não demonstrou disposição”. Já Elena Landau, diretora do BNDES durante o governo de FHC, classifica o ex-professor como “megalomaníaco”. “Ele tem as mesmas ideias de vender ativos para solucionar a dívida pública desde 1990 e já era criticado naquela época”, disse ela ao EL PAÍS.

Governabilidade

Mesmo entre os que veem com bons olhos as propostas econômicas de Guedes, admitem que sua implementação está sujeita a um cenário político amigável. E, caso chegue ao Planalto, Bolsonaro, , terá de coordenar um Congresso com 30 partidos. Muito embora tenha eleito 52 deputados pelo PSL, e tenha o apoio declarado da bancada dos ruralistas e evangélicos, na prática será necessário alinhar muitos interesses que afetam diretamente a população que não deve assistir a tudo impassível. “A política é a arte do possível. Muitas das ideias são esboçadas de maneira genérica e é preciso ver se, na prática, seria de fato possível aprová-las. É o caso da reforma tributária, que envolve diferentes interesses no pacto federativo”, explica Ricardo Schweitzer, sócio-fundador e analista de ações na Nord Research. “Privatização, reforma da Previdência... são temas difíceis em qualquer governo de coalizão. Acredito que Bolsonaro consiga aprovar parte dessas propostas, mas vai ser um processo muito arrastado”, concorda Silvio Cascione, da Eurasia. Após ter apoio dos deputados para a reforma trabalhista e o teto de gastos, a reforma da Previdência ficou travada no Governo Temer.

Monica de Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos e Mercados Emergentes da Universidade Johns Hopkins, em Washington, é mais categórica: "Há uma “síndrome de ingenuidade aguda” do mercado em relação a Guedes e Bolsonaro. O presidencialismo de coalizão não permite conduzir reformas tão radicais. Temer era um operador de chão do Congresso e não conseguiu. Presidencialismo e Estado mínimo são incompatíveis". A especialista considera que o entusiasmo de parte do mercado financeiro pela candidatura do ex-militar "só se explica pelo medo de que o PT ganhe" as eleições.

Ricardo Sennes, da Prospectiva, explica que a agenda de privatizações agrada o mercado financeiro de curto prazo, mas não aos investidores internacionais, que "realmente injetam dinheiro no país". Ele pondera que o enxugamento de políticas de fomento e isenção fiscal feriria o interesse de vários setores. "Se você desmonta a Caixa Econômica Federal, a construção civil e setores de infraestrutura perdem crédito. Pode-se dizer o mesmo da relação entre o agronegócio e o Banco do Brasil, que faz até perdão de dívida quando as safras não vão bem. Essas propostas seriam, então, o desmonte da política de financiamento agrícola", diz.

Sobre a possibilidade de conseguir apoio político para essa agenda, Sennes diz que fazer um plano de governo em dois meses é "muito complicado". "Há uma leitura de que governabilidade se consegue depois de eleito, mas essa postura me parece mais um wishful thinking [um excesso de otimismo] do mercado do que uma avaliação de fato do panorama atual", conclui.