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El País: Após críticas, Sergio Moro pede exoneração e deixará a magistratura

Juiz estrela da Lava Jato entregou seu pedido de exoneração no TRF-4. A partir de segunda, ele se dedicará exclusivamente à transição do Governo Bolsonaro

Por Afonso Benites, do El País

A partir da próxima segunda-feira, Sergio Moro, o juiz símbolo da operação Lava Jato, deixará a magistratura. Ele entregou nesta sexta seu pedido de exoneração ao desembargador Thompson Flores, presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A partir de janeiro, Moro será ministro da Justiça e Segurança Pública no Governo do ultradireitista Jair Bolsonaro (PSL). A exoneração de Moro foi assinada pelo desembargador horas depois de entregue.

O futuro ministro estava afastado da 13ª Vara Federal de Curitiba desde o início deste mês, quando aceitou o convite do presidente eleito para ingressar em seu Governo. Em princípio, ele gozaria de férias até janeiro e só depois pediria seu desligamento do cargo, que ocupa há 22 anos.

Mesmo estando em período de férias, Moro participou das reuniões da equipe de transição de Bolsonaro, em Brasília, na semana passada. Como não estava desligado de sua função, recebeu críticas por estar atuando concomitantemente em dois poderes, Executivo e Judiciário. “Houve quem reclamasse que eu, mesmo em férias, afastado da jurisdição e sem assumir cargo Executivo, não poderia sequer participar do planejamento de ações do futuro governo”, afirmou Moro. Ele chamou essas queixas de “controvérsias artificiais”.

Na justificativa de seu pedido de exoneração, o ainda juiz justificou que não havia solicitado a demissão porque gostaria de manter a “cobertura previdenciária” de seus familiares até que pudesse assumir o ministério. Na prática, ele queria que seus dependentes recebessem pensão caso ele viesse a sofrer algum acidente ou morrer antes de assumir o ministério. No documento, ele cita que é alvo de ameaças.

Em 22 anos de carreira, Moro se destacou no combate a crimes financeiros. Primeiro, entre 2003 e 2007 quando tocou o caso Banestado. Depois, a partir de 2013, quando foi o responsável por julgar as ações em primeira instância da operação Lava Jato. Era a assinatura dele que constava das condenações de uma série de políticos, doleiros e empreiteiros envolvidos no esquema de desvio de recursos públicos.

Entre as estrelas retiradas do cenário político por Moro estão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu (PT) e o ex-deputado federal Eduardo Cunha (MDB). Todos condenados por ele nos últimos anos. Foi por conta de uma decisão do juiz que Lula foi impedido de concorrer à presidência da República neste ano contra Bolsonaro.

No Ministério da Justiça, caberá a Moro debelar as suspeitas de que ele teve uma atuação política enquanto era juiz. Nos últimos dias, ele começou a fazer um rascunho da equipe que o assessorará na pasta. Entre os cotados para ocuparem cargos especiais estão três delegados que atuaram na Lava Jato: Érika Marena, Luciano Flores e Igor de Paula.

Com a saída de Moro da Justiça Federal, a magistrada Gabriela Hardt, que é a substituta dele, assume interinamente suas funções. Nas próximas semanas, deve ser aberto um concurso interno de remoção para a 13ª Vara Federal. Apenas os magistrados que atuam na 4ª região (nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) participam da disputa. Só depois da análise dos documentos dos inscritos é que o novo titular será definido. Pra definir o responsável, primeiro leva-se em conta o tempo no cargo de juiz federal. Depois, a antiguidade no exercício no cargo de juiz substituto na 4ª Região. Por último, o critério de classificação no concurso público.


El País: Ernesto Araújo, o chanceler contra o “marxismo cultural” que mira Trump

Presidente eleito ignora indicações de diplomatas mais moderados e nomeia ‘trumpista’ convicto para o Ministério de Relações Exteriores

Por Ricardo Della Coletta, do El País

Assim que o diplomata Ernesto Araújo foi anunciado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro como futuro ministro das Relações Exteriores, começou a circular nas redes sociais o texto pelo qual ele ficou mais conhecido entre os servidores do Itamaraty. Intitulado Trump e o Ocidente, Araújo rende ao longo de 36 páginas loas ao mandatário dos Estados Unidos, a quem vê como uma espécie de cavaleiro cruzado pelo resgate da identidade do Ocidente no mundo moderno. Para o novo chanceler, Donald Trump não é o chefe da superpotência mundial que toma decisões desconexas, arbitrárias e caóticas. Longe disso: Araújo o vê mais como alguém que atua "na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais".

Publicado no segundo semestre de 2017, o artigo, segundo um diplomata ouvido pelo portal UOL, gerou forte impacto nas filas do Itamaraty, um ministério marcado pela rígida hierarquia da carreira diplomática e por uma tradição de independência e de não alinhamento automático aos grandes blocos internacionais. Araújo se posicionou ali claramente como um trumpista, partidário da visão altamente nacionalista —e antiglobalista— que o presidente dos Estados Unidos encampa.

Com esse histórico, parece apenas natural que Araújo tenha apoiado abertamente Jair Bolsonaro, o político que desfruta do apelido de Trump tropical,apesar das diferenças que o separam. Em plena campanha presidencial, o novo chanceler começou a publicar um blog com fortes críticas ao PT (para ele o Partido Terrorista) e elogios a Bolsonaro. É nesse blog, por exemplo, em que ele comparou uma das manifestações pró-Bolsonaro em Brasília a campanha pelas Diretas Já e aos protestos de rua que levaram ao impeachment de ex-presidenta Dilma Rousseff. "O movimento popular por Bolsonaro não se nutre de ódio, mas de amor e de esperança...", escreveu.

O agora chefe do departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Henrique Fraga Araújo passou na frente de outros diplomatas que estavam cotados para comandar a política externa brasileira no Governo Bolsonaro. Ao longo dos últimos dias circularam nomes de funcionários de carreira que eram considerados mais moderados, embora distantes do pensamento de alianças sul-sul que foram a digital dos Governos do PT no Itamaraty (e que Bolsonaro promete extirpar). O próprio vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, havia dito que um dos cotados era o atual secretário-executivo do ministério, Marcos Galvão.

Nesse sentido, a escolha de Araújo, de 51 anos, um pregador contra o "marxismo cultural", não deixa de ser uma surpresa. Principalmente por mostrar que, ao invés de uma escolha menos polêmica, que evitaria ainda mais rusgas com países cruciais como a China, principal parceiro comercial do Brasil, Bolsonaro optou por não abrir mão de alinhar o Brasil ao movimento global de ascensão da direita populista —em muitos lugares pela extrema direita— liderado por Trump. Um alinhamento que começou ainda antes de o capitão reformado do Exército ter sido eleito, quando seu filho, Eduardo Bolsonaro, visitou nos Estados Unidos o ex-estrategista do Republicano, Steve Bannon.

‘Interesse nacional’

O presidente eleito apresentou o novo chanceler em uma coletiva de imprensa nesta quarta-feira em Brasília. Em um rápido pronunciamento, Araújo defendeu que o País mantenha "relações excelentes" com todos os seus parceiros comerciais. "Antes de tudo [é preciso] garantir que este momento extraordinário que o Brasil está vivendo, com a eleição do presidente Bolsonaro, se traduza dentro do Itamaraty numa política efetiva, numa política em função do interesse nacional, de um Brasil atuante, feliz e próspero".

No texto que publicou no ano passado, Araújo faz uma forte defesa do nacionalismo e apresenta Trump como um representante do que define como "anticosmopolitismo radical". "Cada Estado tem o dever, e não só o direito, de trabalhar pelo seu povo, o Estado só se legitima se for nacional, enraizado numa comunidade, e cada pessoa se desenvolve como membro", diz, ao comentar um dos discursos do presidente norte-americano.

De forma bastante erudita, Araújo traça um histórico da civilização ocidental, que ele afirma reunir "laços de cultura, fé e tradição que nos fazem quem somos". Valores que estariam ameaçados pelo globalismo e por um abandono da própria identidade ocidental, que incluiria aí, entre outras coisas, a rejeição ao conceito do nacionalismo. "Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação —inclusive e talvez principalmente a nação americana", conclui Araújo em seu texto.


El País: Fernando Azevedo e Silva, o mais político dos generais, fica com a Defesa no Governo Bolsonaro

General que entrou no radar por inusual assessoria no STF já serviu a três Governos. Militares da Marinha são os únicos fora do primeiro escalão até o momento

Por Afonso Benites, do El País

Um militar político com trânsito em todos os Poderes e que costuma dialogar com vários partidos. Assim é definido dentro das Forças Armadas e entre especialistas o futuro ministro da Defesa de Jair Bolsonaro (PSL), o general Fernando Azevedo e Silva. Aos 66 anos, o general Fernando, como é chamado, ocupou funções políticas em ao menos três governos federais. Na gestão Fernando Collor de Mello (1990-1992) foi ajudante de ordens do presidente. Em parte do Governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) esteve na assessoria parlamentar da força, um órgão em contato direto com o Congresso Nacional. E nos anos de Dilma Rousseff (2011-2016) chefiou a Autoridade Pública Olímpica. Ainda foi o número dois do Exército, já quando o comando era do atual chefe, o general Eduardo Villas Bôas. Atualmente era assessor especial do presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Dias Toffoli.

Para além do currículo político, o que pesou para Bolsonaro decidir por ele foi a proximidade com o general Augusto Heleno, ambos trabalharam nas operações de paz no Haiti, e a indicação do atual comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas. O futuro ministro também é amigo do vice-presidente eleito, o general Hamilton Mourão. Durante a campanha, ele ofereceu um almoço ao então candidato. Fernando é o terceiro militar a ser indicado para o primeiro escalão de Bolsonaro. Os outros foram o estratégico Heleno, para o Gabinete de Segurança Institucional, e Marcos Pontes, que é tenente-coronel da Aeronáutica e chefiará o Ministério de Ciência e Tecnologia.

Ainda que não se fale publicamente, outro fator que interferiu na escolha por Fernando foi a proximidade dele com o presidente do STF, num momento que não faltam indicações de que a principal corte do país pode ser uma barreira para alguns dos planos de Bolsonaro. Desde a redemocratização do país, na década de 1980, o Supremo jamais teve um militar como assessor de um presidente do Supremo. Foi Toffoli quem trouxe o general para os holofotes em setembro, quando o nomeou assessor especial. “Bolsonaro procurou alguém com um perfil político. E, certamente, houve essa conversa de cúpula com o comando do Exército e do Supremo”, afirmou o cientista político, Eurico de Lima Figueiredo, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Quando questionado quem indicou Fernando para o cargo, Bolsonaro disse: “Não foi sugestão do ministro Toffoli. Foi uma questão entre nós. E eu ouço muito o general Heleno para bater o martelo nessas questões.” Heleno chegou a ser anunciado pelo presidente eleito para a Defesa. Mas depois foi “promovido” para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), pasta que fica mais próxima do presidente e que passou a ter papel centralizador da segurança desde a criação da força-tarefa de Inteligência, criada o mês passado pela gestão Michel Temer.

Com a vacância da Defesa, uma disputa se abriu entre os militares. O Exército queria manter o ministério, hoje ocupado pelo general Joaquim Silva e Luna. A Aeronáutica corria por fora. E a Marinha era a favorita com o almirante Eduardo Leal Ferreira, atual comandante da Força. Com a escolha pelo general Fernando, a única sem representação no primeiro escalão do futuro governo de extrema direita é a Marinha, por enquanto. “Até onde eu sei, o atual ministro tem desempenhado muito bem, inclusive na composição dos interesses das três forças. O general Fernando vai tentar seguir esses passos, de apaziguar, conciliar e estabelecer um consenso entre todos os militares”, avaliou o professor Figueiredo, da UFF.

Não será um ministro qualquer. O Governo Temer já deu protagonismo sem precedentes aos militares desde 1988. Foi o atual presidente que convocou os militares para atuar na intervenção federal do Rio - tema sobre o qual a nova gestão terá de deliberar até o fim de dezembro, quando expira o mandato legal da medida. Foi também Temer que rompeu a tradição estabelecida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de nomear um civil para a pasta da Defesa. Agora, com a escolha de um general para o posto, Bolsonaro ignora o conselho de general Villas Bôas, que à Folha de S. Paulo havia dito que preferia alguém de fora da caserna. Na mesma entrevista, ele foi explícito sobre o temor de partidarização nos quartéis com o novo Governo.

Nesta terça, ao saber da nomeação, o atual comandante do Exército elogiou a escolha, mas voltou a reforçar a mensagem de que a chegada de Bolsonaro ao poder –algo que não acontecia a um militar pela via eleitoral desde 1945– não deve implicar um maior envolvimento dos militares no Governo. “Embora muitos militares estejam sendo chamados a participar do Governo, isso não significa que o Exército, como instituição, esteja fazendo isso. O Exército continua no seu papel de instituição de Estado, apolítica e apartidária", frisou.

Corrida nas Forças

A substituição nos comandos das forças deve ser uma das primeiras pautas a serem tratadas pelo general Fernando. A depender do grupo que hoje orbita o presidente, os atuais comandantes da Aeronáutica, Nivaldo Rossato, e da Marinha, Leal Ferreira, devem ser mantidos. No Exército a troca é dada como certa, pois o general Villas Bôas sofre de uma doença degenerativa.

Entre a força terrestre a tradição prevê que o general mais antigo assuma o comando. A maioria dos presidentes costuma seguir essa regra informal, nos últimos anos –apenas Dilma Rousseff (PT) a quebrou.

Os três generais da ativa mais antigos no topo da hierarquia militar foram colegas de Bolsonaro nos anos em que frequentou a escola de formação de oficiais, a Academia Militar dos Agulhas Negras (Aman). Pela ordem de antiguidade: Edson Leal Pujol, chefe de do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército, Paulo Humberto César de Oliveira, chefe do Estado Maior (o número dois da corporação), e Mauro César Lourena Cid, chefe do departamento de Educação e Cultura do Exército. Três fontes relataram ao EL PAÍS que o favorito para a função é o general Paulo Humberto porque teria maior proximidade com o presidente eleito. Pujol e Cid correriam por fora.


El País: Planos de Bolsonaro elevam risco de expansão de milícias e grupos de extermínio

Presidente eleito e filhos têm discursos ambíguos sobre tema. Estudiosos avaliam que estímulo à violência de PMs e ao armamento da população tem potencial para provocar descontrole nas corporações policiais

Por Felipe Betim, do El País

Violência no Rio de Janeiro é quase sempre sinônimo de traficantes de drogas armados com fuzis, mas são as milícias que, mais do que medo, impõem silêncio. Para quem convive com elas, falar sobre esse fenômeno requer uma série de cuidados e, principalmente, sigilo. Sentada em um bar do centro da capital, P. F. está afastada de qualquer perigo iminente, mas ainda assim fala baixo. “Não confio nem no tráfico nem na milícia, mas enquanto no primeiro estão meninos da comunidade, as milícias são algo institucionalizado... São o próprio Estado”, afirma ela, que tem casa e parentes em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio sob influência de milicianos —grupos armados formados principalmente por agentes públicos, como policiais e bombeiros, da ativa ou reformados, que extorquem, aterrorizam e assassinam sob a justificativa de que estão fazendo a segurança do local.

“Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, disse Bolsonaro em fevereiro deste ano, quando já era pré-candidato, durante entrevista ao programa Pânico, da Jovem Pan, quando questionado como combateria as milícias. A frase forma parte de um conjunto de posicionamentos considerados ambíguos sobre o tema. Seu filho, o senador eleito Flavio Bolsonaro, votou contra a instalação de uma CPI das milícias da Assembleia do Rio, em 2007, e o próprio presidente eleito taxou milicianos como "defensores da ordem" no plenário da Câmara, em 2008. Questionado pelo jornal O Globo em julho deste ano, disse: "Hoje em dia ninguém apoia milícia mais não. Mas não me interessa mais discutir isso."

Mudanças profundas são incertas porque dependem do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos Governos Estaduais. Contudo, o discurso linha-dura e permissivo —em entrevista no Jornal Nacional, Bolsonaro chegou a defender a condecoração dos agentes que mais matem— pode por si só estimular a ação desses grupos de extermínio, avaliam os especialistas. Até agora, serviu para mobilizar o eleitorado. "Agora chegou a hora de vocês! Tem que matar esses bandidos! Quem rouba merece morrer!", bradou uma mulher que passava por um grupo de policiais militares fortemente armados na noite de 28 de outubro. Eles acompanhavam o ato de algumas centenas de pessoas que celebravam a vitória do ultradireitista em frente ao seu condomínio, na praia da Barra da Tijuca. O que mais fizeram naquele dia foi tirar fotos com manifestantes, que chegavam a fazer filas. "Eu acho que a violência vai aumentar, sim, mas para os bandidos. Para o cidadão de bem vai melhorar", explicou um homem.

“Se existe uma área em que sinalização é fundamental é a de segurança. Um aperto de mão ou uma palavra podem significar várias mortes e tragédias", explica Daniel Cerqueira, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e conselheiro do Fórum de Segurança Pública. Um menor controle social do uso da violência deixaria os policiais livres para subornar ou se unir a grupos de extermínio ou milicianos, argumenta. "Quando falam que a polícia vai matar sem controle, estão pregando uma ação criminosa, que não sigam o Estado Democrático de Direito. Vamos sentir saudades de quando só traficantes eram o problema", acrescenta.

Nessa mesma linha opina Ignacio Cano, sociólogo da Universidade do Estado de Rio de Janeiro (UERJ). “Se incentivamos a polícia a matar ainda mais e as pessoas a ter armas, apelando para a violência e o ódio, estamos criando um terreno fértil para que esses grupos se expandam”, argumenta. “Os policiais brasileiros reconhecem que matam mais de 5.000 pessoas por ano, sem contar as execuções sumárias. Quando Bolsonaro diz que não serão processados, isso tende a aumentar. Policiais já quase nunca são processados", destaca. Ele lembra que o ultradireitista visitou o BOPE ((Batalhão de Operações Especiais) antes do segundo turno e disse era hora de os capitães mandarem no país. E que o governador eleito do Rio, Wilson Witzel, pretende dissolver a Secretaria de Segurança e "devolver o poder aos policiais". Para Cano, tudo isso "manda mensagem de descontrole e autonomia totalmente contrária a lógica militar tradicional". Ele afirma: "Talvez nem precise de grupo de extermínio. No Rio, a polícia já faz esse trabalho".

Para Jaqueline Muniz, antropóloga e cientista política da Universidade Federal Fluminense (UFF), o fenômeno das milícias "tem a ver com um processo de autonomização predatória da polícia", tornando-a ingovernável. "Não podemos falar em estado policial, mas sim em governo policial, algo que já temos. É a espada chantageando o político e multiplicando ameaças e medos na população. Aconteceu também em Nova York, em Chicago...", explica a especialista, para quem esse processo significa desprofissionalizar as corporações policiais, empurrando-as para a clandestinidade e informalidade. Os efeitos disso, argumenta, são perversos. "Toda espada autonomizada corta a língua do verbo da política e rasga a letra da lei. Porque não é a espada que define o seu alcance e a profundidade de seu corte, quem decide é a sociedade. Quem segura a espada é a mão civil".

Expansão do modelo milícia

No Rio, as milícias dominam bairros inteiros da zona oeste da capital e, nos últimos anos, se expandiram para São Gonçalo e municípios da Baixada Fluminense. Um levantamento do portal G1 indica que 2 milhões pessoas da região metropolitana vivem em áreas sob influência dessas facções. Quando surgiram, há pouco mais de 20 anos, prometiam levar segurança para áreas dominadas pelo tráfico. "Nem sempre ostentam armas como o tráfico", conta P. F., "mas o morador tem que fazer o que mandam". O poder econômico não vem com a venda de drogas, mas sim com o controle de serviços como o de gás, água e Internet, além de comércios. "Se uma pessoa compra determinando produto, precisa mostrar que comprou no lugar certo, controlado por eles, se não é punido". Tortura e homicídios fazem parte do cardápio de terror. No campo político, as milícias também financiam candidaturas e até elegem seus membros para o parlamento local.

Violência policial "sempre vem acompanhada com a corrupção", o que significa que se o agente "tem autorização para matar, também tem para extorquir, porque ele troca segurança por dinheiro", explica a socióloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. Assim surgiu esse modelo tão aperfeiçoado de controle de território e extorsão. Contudo, a atuação de grupos extermínio é antiga e conhecida em todo o Brasil. Nos anos 60 e 70, ganharam poder nas ruas do Rio e de São Paulo os chamados esquadrões da morte, grupos de policiais formados dentro das delegacias e secretarias de segurança com um viés moralista —intensificado durante o regime militar— e carta branca para matar. Um dos mais conhecidos foi chefiado por Sergio Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo e conhecido torturador da ditadura.

Execuções extrajudiciais e ações de vingança estão disseminadas em todo o país ainda hoje, independentemente da existência formal de grupos paramilitares. Os alvos podem ser quaisquer pessoas: em 2015, nove policiais militares foram acusados em Salvador de assassinar 12 jovens, um episódio que ficou conhecido como Chacina de Cabula; naquele mesmo ano ocorreu também a chacina de Osasco, na qual ao menos 19 pessoas foram assassinadas por policiais militares e guardas civis metropolitanos, que agiram por vingança em razão da morte de dois agentes, segundo o Ministério Público; em março deste ano, a favela da Rocinha, no Rio, viu pelo menos seis de seus moradores morrem, um deles o dançarino Matheus da Silva Duarte Oliveira, como reação a morte de um policial três dias antes.

"No Norte e no Nordeste o que predomina são os acertos de conta. Os grupos matam mais à noite, no carro preto e sem farda. No Rio eles têm também interesses comerciais. Esse é o modelo milícia, que pode se generalizar no Brasil", opina Ramos. Cerqueira, do IPEA, também acredita na disseminação desse modelo consolidado no Rio, um Estado que é "vitrine" para o resto do Brasil. "Historicamente, o que acontece aqui vai varrendo o resto do país. Na década de 70 começou o Comando Vermelho e hoje temos 81 facções que nascem dentro dos presídios. Se você não tem controle sobre as polícias, a tendência é uma capilarização das milícias", argumenta.

"Zumbis de policiamento" e tensão com Sérgio Moro

Se por um lado a licença para matar desqualifica o trabalho policial e fortalece as milícias, por outro também resultará em mais agentes mortos, avalia Muniz. "Se todo encontro com a polícia vai ser violento, sem a possibilidade de rendição, então vou levar o outro comigo. Pode ser a polícia ou a vítima", argumenta. "Isso já acontece, mas veremos isso de uma maneira ainda mais perversa. Policiais vão virar zumbis de policiamento, mortos-vivos". Os planos de Bolsonaro também não tem o endosso completo de seu futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro. "Não pode construir uma política criminal, mesmo de enfrentamento ao crime organizado, baseado em confronto e tiroteio. O risco de danos colaterais é muito grande. Não só de danos colaterais, mas risco para o policial", disse Moro em entrevista ao programa Fantástico, no domingo. O juiz da Operação Lava Jato já havia feito ressalvas em entrevista na semana passada e uma das questões é como essas divergências vão se acomodar no exercício do poder.

Soma-se isso a intenção do presidente eleito de flexibilizar o porte de armas, com potencial de transformar pequenos conflitos entre vizinhos, parentes e conhecidos em tragédias. "É o Estado dando uma banana para o cidadão. Vamos viver num regime da esculachocracia, onde todo mundo esculacha todo mundo. Os indivíduos já se veem empoderados em suas próprias razões, porque as autoridades em cima estão deseducando. Já estamos vendo patrulhas morais, pessoas sendo agredidas, perseguidas...", lamenta Muniz, que ainda adverte: "O fraco armado vai seguir sendo fraco diante do forte armado. Por isso que existe polícia e Estado. Além disso, o dedo nervoso, a cabeça quente e o coração aflito impedem que o cidadão tenha vantagem em qualquer situação em que esteja exposto".

COMPLACÊNCIA DAS AUTORIDADES

Apesar de atuarem ilegalmente, grupos de extermínio e milícias já contaram, em diferentes períodos, com a complacência e até apoio explícito de políticos e autoridades — até uma CPI mostrar, em 2008, as barbaridades da milícias do Rio, elas chegaram a ser vistas como solução para o tráfico de drogas. Em agosto de 2003, em discurso na Câmara, o próprio Bolsonaro expressou sue apoio a um grupo da Bahia que cobrava 50 reais para matar jovens da periferia: "Quero dizer aos companheiros da Bahia que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro", discursou.

Na época da CPI das milícias no Rio, voltou a falar a na tribuna da Casa sobre o tema: “Nenhum deputado estadual faz campanha para buscar, realmente, diminuir o poder de fogo dos traficantes, diminuir a venda de drogas no nosso Estado. Não. Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes", discursou. "Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet [serviço irregular de TV por assinatura] e com venda de gás. Como ele ganha 850 reais por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet, venda de gás ou transporte alternativo. Então, senhor presidente, não podemos generalizar”.


Eliane Brum: A revanche dos ressentidos

Depois da eleição de Bolsonaro, os demônios interiores saíram para passear 

Eu acompanhava uma amiga no aeroporto, em São Paulo. Os elevadores que levavam do estacionamento aos terminais demoraram. Quando finalmente entramos, estava lotado. Um homem com um bebê no colo, possivelmente seu neto, gritou: “Quando Bolsonaroassumir, isso aqui vai andar rápido!”. E acrescentou: “Pá! Pá! Pá!”. Abri a boca para perguntar: “Você está atirando no seu neto?”. E então percebi que não poderia fazer isso sem me arriscar a sofrer violência. O homem e a família que o rodeava realmente pareciam acreditar que Bolsonaro dará “um jeito em tudo”, dos “comunistas” que supõem existirem aos milhões, à velocidade dos elevadores.

Gays são ameaçados de espancamento se andarem de mãos dadas, ou simplesmente por existir, mulheres com roupa vermelha são xingadas por motoristas que passam, negros são avisados que devem voltar para a senzala, mulheres amamentando são induzidas a esconder os seios em nome da “decência”. Aquele amigo de infância de quem se guardava uma boa lembrança escreve no Facebook que chegou a sua vez de contar o quanto o odiava em segredo e que pretende exterminá-lo junto com a sua família de “comunistas”. Um conhecido que passou a vida adulta acreditando merecer mais sucesso e reconhecimento do que tem, agora espalha sua barriga no sofá da sala e vocifera seu ódio contra quase todos. Outro, que se sempre se sentiu ofendido pela inteligência alheia, sente-se autorizado a exibir sua ignorância como se fosse qualidade.

Mensagens no Facebook anunciam que vão caçar todos os que votaram contra Bolsonaro e jogá-los na fronteira. Aqueles que se opuseram ao autoritarismo são tratados por essa multidão enraivecida como se fossem estrangeiros – e o país tivesse deixado de pertencer também a eles. Como nos princípios do regime totalitário do cada vez mais atual 1984, clássico de George Orwell: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.

A atmosfera tóxica do Brasil atual pode ser resumida por um trecho da carta que chegou ao Centro Acadêmico da Geografia, na Universidade Federal do Pará, em Altamira: “Bem vindos ao fascismo! Agora é a nossa vez, agora é o nosso momento, vocês vão ter que engolir porque vamos passar por cima de cada um de vocês, cada gay, cada sapatão, preto e preta. Vamos exterminar cada um de vocês. (...) Vão morrer um por um, cada preto e preta que acham que podem sair da senzala”. A carta anônima termina com: “Viva Bolsonaro! Viva a ditadura! Viva o Fascismo! Viva o Carlos Alberto Brilhante Ustra!”.

Como as palavras se esvaziaram de sentido no Brasil, “comunismo” e “comunista” virou o nome para tudo e todos que se odeia, seja pela orientação sexual, pela cor da pele ou pela atuação política. O termo não tem mais nenhuma relação com seu conceito, mas foi apropriado como o pecado da parcela da população que denunciou o autoritarismo criminoso de Bolsonaro, um apologista da tortura e dos torturadores. E assim o Brasil inaugura um outro tipo de Guerra Fria.

O pacto civilizatório, aquele que permitia a convivência, já vinha sendo rompido nos últimos anos no país. Agora foi rasgado por completo. Este é o primeiro sinal.


El País: Nações Unidas apontam aumento dramático da desnutrição na Venezuela

É o país das Américas que teve o maior aumento de desnutrição, segundo novo relatório da FAO apresentado na última semana

Por Alonso Moleiro, do El País

A Venezuela é o país latino-americano que teve os maiores aumentos em matéria de fome e desnutrição no biênio 2016-2018. É o que indica o novo estudo apresentado na última semana pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) juntamente com o Programa Mundial de Alimentos e a Organização Pan-Americana da Saúde.

A Bolívia e a Argentina são os outros dois países que acompanham a Venezuela neste quadro, que integra o tóxico coquetel de subnutrição, má nutrição e obesidade. A República Bolivariana responde por 1,3 milhão do total de 1,5 milhão de pessoas com novos problemas estruturais em sua ingestão cotidiana de calorias. O estudo mostra que, em termos gerais, os quadros de desnutrição aumentaram em média de 5% a 6% da população dos países latino-americanos e caribenhos no período de 2015 a 2018. Haiti, Antígua e Barbuda, Bolívia e Granada são as nações com maiores níveis de desnutrição em relação ao total de suas populações.

O novo relatório da FAO sobre a segurança alimentar na Venezuela reflete um dos muitos paradoxos da crise econômica atravessada pelo país caribenho. Em 2012, com Hugo Chávez ainda vivo, a mesma organização havia feito um reconhecimento público ao Governo venezuelano por seus avanços na quantidade e na qualidade do consumo diário de calorias. A instituição parabenizava a Venezuela “por ter alcançado antecipadamente a meta número um do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio: reduzir pela metade a proporção de pessoas que sofrem de fome em 2015”.

Durante aquele 2012 em que Chávez foi reeleito, o Governo bolivariano orquestrou com o certificado da FAO uma poderosa campanha de propaganda para alcançar seus objetivos. Na época, a economia venezuelana continuava crescendo na esteira dos altos preços do petróleo, a inflação não chegava aos brutais índices de hoje e o Governo, diante dos imperativos eleitorais, havia elaborado um ambicioso sistema de distribuição de alimentos baratos, expressado sobretudo nos estatais Mercados de Alimentos (Mercal) e nas Casas de Alimentação. Durante um tempo, ambos os programas tiveram uma inquestionável penetração nas zonas populares e empobrecidas do país.

O período compreendido entre a doença e a morte de Chávez e a chegada ao poder de Nicolás Maduro veio acompanhado de uma grave crise cambial que gerou uma sangria de divisas no país. Os programas sociais do Mercal declinaram e desapareceram entre as propinas e a corrupção desenfreada. Muitos alimentos importados começaram a apodrecer na alfândega e nos portos. A decisão de Maduro de radicalizar o modelo político chavista produziu a histórica derrubada da economia venezuelana, que se traduziu numa contração de 44% do PIB entre 2014 e 2018. Algumas organizações especializadas, como a Fundação Bengoa e o Centro de Estudos do Desenvolvimento da Universidade Central da Venezuela, questionavam havia tempo o pronunciamento da FAO, alertando quanto à piora violenta das condições sociais da população e ao crescimento da fome no país – um dos aspectos sobre os quais o chavismo considera que tem conquistas concretas para mostrar. Nem os líderes do governista Partido Socialista Unido da Venezuela nem o gabinete de Maduro se pronunciaram sobre o novo relatório da FAO.

A desnutrição e a fome, embora jamais tenham deixado de ser um problema que gera inquietudes e polêmicas, historicamente não haviam ocupado um lugar de destaque no radar das preocupações imediatas do venezuelano médio, segundo as pesquisas de opinião. Nos melhores tempos de Chávez, esse ponto inclusive tinha desaparecido da lista de preocupações imediatas dos habitantes, afetados tradicionalmente por outros assuntos, como a segurança cidadã, os serviços públicos e o desemprego.

Hoje, a ingestão de alimentos, a escassez de produtos e o aumento de preços estão no topo de todas as respostas da população nas consultas feitas pelos institutos de pesquisa.


El País: Contradições preocupam entorno de Bolsonaro, mas não afetam campanha permanente no WhatsApp

Presidente eleito lança nomes para testar aceitação de seus ministeriáveis e, na imprensa, sofre críticas pelo improviso. Nos grupos do aplicativo, um dos motores da campanha, apoiadores seguem mobilizados

Por Afonso Benites, do El País

Por três meses, um grupo de 50 pessoas esboçou um plano de Governo para Jair Bolsonaro (PSL). Coordenado pelo general Augusto Heleno, os especialistas em diversas áreas tentaram detalhar dados para que, caso eleito, o capitão reformado pudesse tomar as decisões da maneira mais célere possível já no período da transição governamental. O plano, no entanto, parece ter subestimado a sanha de políticos e aliados por cargos, as reações que parte da sociedade civil com relação aos cortes de determinados ministérios e com as falas do futuro presidente que estremeceram as relações com países árabes e a China.

Apesar de parecer caótica para quem vê de fora, preocupar alguns membros de sua equipe e provocar críticas de analistas que detectam improviso, a estratégia bolsonarista parece não afetar seus apoiadores nas redes sociais. Pelo contrário. Nos grupos de WhatsApp, a campanha não terminou e a mensagem plataforma, surte efeito. Nem se fala das idas e vindas do presidente eleito. Tecem críticas ao exame nacional do ensino médio (Enem) – que apresentou questões sobre o uso de dados na Internet para manipular usuários e sobre um dialeto utilizado por gays e travestis—; mobilizam-se contra o reajuste dado pelos senadores aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF); seguem fazendo piadas e memes com os candidatos derrotados Fernando Haddad (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB). Também elogiam o capitão reformado quando ele anuncia quatro mulheres entre os membros de sua equipe de transição, ainda que essas quatro não representem nem 10% do total de vagas do grupo. Em outros momentos sugerem uma lista de veículos ou sites alternativas que não teriam sido "aparelhadas pela esquerda", reproduzem os tuítes de Bolsonaro falando sobre seus indicados para o Governo ou dizendo que vai “abrir a caixa-preta do BNDES”.

Nos discursos oficiais e informais, os balões de ensaio são lançados a todo momento. E não só por assessores ou políticos satélites do novo grupo do poder, mas pelo próprio Bolsonaro. Até agora, o presidente eleito se mostra sensível a uma reação nas redes: à possível avaliação de que está se aliando com corruptos. Por exemplo, ele já disse que o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), candidato derrotado ao governo do Distrito Federal, teria uma função em sua gestão. Depois de centenas de reclamações pela Internet, as quais lembravam que Fraga já fora condenado por receber propina, ele parece ter recuado. Outro caso é o do senador Magno Malta (PR-ES), apontado pelo futuro mandatário como o ministro da Família, cargo esse ainda a ser criado. Depois das reações, Bolsonaro afirmou que talvez o parlamentar pudesse colaborar de alguma maneira, mesmo que não fosse com um cargo formal, nenhuma decisão foi anunciada até o momento. Malta era o vice-presidente dos sonhos de Bolsonaro por que traria maior tempo de TV e por compartilhar as mesmas ideias conservadoras nos costumes. Por opção própria, preferiu disputar a reeleição ao Senado, e depois de dois mandatos seguidos perdeu. Um dos eleitos no seu Estado, Fabiano Contarato, é o primeiro senador declaradamente homossexual.

Enquanto isso, entre apoiadores de Bolsonaro, o que viraliza são vídeos de seu ídolo cumprimentando policiais militares ou boatos, sem qualquer base factual, de que o STF fará sessões secretas. Administrador de 75 desses grupos no WhatsApp, o empreendedor Carlos Nacli, que vive em Portugal, diz que essa estrutura nas redes foi mantida para dar suporte às “pautas que serão importantes ao desenvolvimento do Brasil”. Tudo porque eles entendem que a imprensa não apoia o futuro mandatário. “Ficamos assustados com a perseguição que grande parte da mídia faz com o Bolsonaro. Parecem especialistas em tentar sabotar o presidente eleito”.

Nada está decidido e racha entre ruralistas
Entre analistas e no mundo político de Brasília, o jogo é outro e para ele Bolsonaro também faz testes e calibra mensagens. Na quarta-feira, lançou mais um: afirmou que extinguirá o Ministério do Trabalho, que é uma das pastas mais antigas do Governo com 88 anos de fundação. Mas não detalhou como isso ocorreria. As reações foram quase imediatas. Parte da elite industrial já havia sugerido a unificação desse ministério com o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio exterior. Mas o próprio Ministério do Trabalho emitiu uma nota se queixando da possibilidade de extinção. "O futuro do trabalho e suas múltiplas e complexas relações precisam de um ambiente institucional adequado para a sua compatibilização produtiva, e o Ministério do Trabalho, que recebeu profundas melhorias nos últimos meses, é seguramente capaz de coordenar as forças produtivas no melhor caminho a ser trilhado”. Ainda não houve uma definição formal também.

Na prática, nesta primeira semana de funcionamento da equipe de transição, ainda não se sabe qual será o tamanho da estrutura ministerial. Oscila entre 16 e 18 pastas. Ora a Agricultura será unificada ao Meio Ambiente, ora não. Em um momento a Indústria se junta à Fazenda, em outro estão separadas. Nem mesmo ministro que era dado como certo na Defesa, o general Augusto Heleno, segue assim. Ele acabou sendo promovido para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), bem mais próximo do presidente. Ao invés de comandar as três forças armadas, chefiará uma área responsável pela segurança do presidente e que tem o controle da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

O anúncio mais recente, a escolha da deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, Tereza Cristina (DEM-MS), para o ministério da Agricultura abriu um racha entre conselheiros do presidente eleito. Nabhan Garcia, amigo de Bolsonaro há duas décadas e presidente da União Democrática Ruralista, esperava ser ele o indicado para a pasta. Ou ao menos de ter sua indicação, do deputado Jeronimo Goergen (PP-RS), aceita. Perdeu uma queda de braço para o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), e acabou jogado para escanteio.

A equipe de transição de Bolsonaro também teve sua primeira baixa e uma ameaça de demissão. Marcos Aurélio Carvalho, dono de uma das agências responsáveis pela venda ilegal de pacotes de disparos de mensagens pelo WhatsApp durante a campanha, estava entre os nomeados remunerados para o grupo. Depois da divulgação de seu nome e as críticas consequentes, pediu para deixar de receber pela participação nos trabalhos e disse que seria voluntário na equipe. Houve ainda uma ameaça de demissão. O economista Marcos Cintra, um dos membros da equipe, escreveu um artigo defendendo uma mudança nos tributos para transações bancárias, o que foi interpretada como a criação de novos impostos. Em entrevista à Band, Bolsonaro reclamou de Cintra. “A decisão que eu tomei, quem criticar qualquer um de nós publicamente, eu corto a cabeça”, afirmou.

Os embates também ocorrem com o seu vice, o general Hamilton Mourão. Enquanto Bolsonaro diz que não sabe quem indicará para a Defesa, já que Heleno foi para o GSI, Mourão afirma que a tendência é de que um oficial da Marinha ocupe o posto. Mais uma vez, o presidente eleito precisar intervir para dizer apenas que um “quatro estrelas” ocupará o cargo. Ou seja, alguém que esteja no topo da carreira militar, independentemente da força que ocupar.


Eliane Brum: Bolsonaro quer entregar a Amazônia

Transformar as terras protegidas da floresta em mercadoria é a principal missão do presidente eleito

Ninguém se iluda com o vaivém da fusão ou não do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. É jogo de cena. Bolsonaro pode fingir que é democrata e ouviu a população, especialistas e o suposto agronegócio moderno, fingir que recuou porque escuta, mas o fato é que já está tudo decidido. Não é necessário fundir os ministérios para fazer o serviço sujo de abrir ainda mais a Amazônia para a exploração. Se concluir que é mais conveniente manter o ministério, basta escolher um ministro identificado com o projeto de comercializar a floresta. Quando o populista de extrema direita que, na prática, já governa o Brasil desde 29 de outubro, diz que botará alguém “sem o caráter xiita” à frente da gestão ambiental, é isso que está dizendo. Bolsonaro pode apregoar que não tem compromisso com nenhum partido, mas esta é apenas mais uma bravata. Os fatos mostram que ele deve bastante do sucesso de sua candidatura a dois grandes “partidos” não formais e poderosos, com atuação fora e dentro do Congresso: os ruralistas e os evangélicos. Essa conta ele vai ter que pagar. E, dado o seu perfil, vai pagar com gosto. A conta dos ruralistas é a Amazônia. E o que ainda resta do Cerrado.

O problema, e este é um enorme problema, é que todos pagaremos muito caro pela operação na Amazônia que Bolsonaro e seus articuladores já anunciaram de várias maneiras. Muitos com a vida. E não apenas a vida dos que morrem à bala, mas a vida dos que morrerão pelos efeitos da mudança climática. Há algumas coisas que quem ainda não entendeu precisa entender agora, já, se não quiser continuar fazendo papel de bobo.

Bolsonaro quer transformar o que é terra pública protegida em terra privada comercializável

As terras dos indígenas são terras públicas, de domínio da União. São minhas, são suas, são do país. Os indígenas, segundo a Constituição de 1988, que é a constituição da democracia, têm apenas o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais. Podem viver nelas e delas, sem destruí-las, mas não podem fazer negócio com elas. Estas terras não são, portanto, mercadoria. Este é o ponto.

São muitos os fogos de artifício lançados por Bolsonaro, mas é na Amazônia que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados

Tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazônica em mercadoria. Este é o trabalho prioritário de Bolsonaro para uma parcela poderosa dos articuladores de sua candidatura. Por uma razão bastante objetiva: é na Amazônia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais.

Basta acompanhar os números da agropecuária, especialmente a partir dos anos 90, para constatar como tem crescido a importância da região amazônica para o gado e para a soja. Só de bois já são 85 milhões, três bois para cada humano. Também basta checar o congestionamento de pedidos de licenças de mineração na floresta. A Amazônia é a região do Brasil onde o capitalismo ainda vê espaço para a exploração predatória num país que vem sendo dilapidado desde as capitanias hereditárias. Enquanto Bolsonaro e seus estrategistas criam jogos de cena e fogos de artifício em outras áreas, é na floresta que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados.

Os indígenas têm sido tratados como “entraves para o progresso” – ou para “o desenvolvimento” – há vários governos, inclusive os do PT. Porque os indígenas são de fato “entraves”. Mas entraves para a destruição da Amazônia. De novo, basta olhar os mapas e os números. É nas terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, onde a floresta está mais preservada. Como o direito ao usufruto das terras ancestrais é garantido pela Constituição, os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria.

Há uma mudança recente na estratégia de desqualificação dos indígenas. Em anos anteriores, a campanha que buscava tirar a legitimidade do seu direito às terras ancestrais concentrava-se em convencer a população que: 1) os indígenas teriam terras demais; 2) uma parcela dos indígenas seria composta por falsos indígenas ou, como chegaram as ser chamados, “indígenas paraguaios”. Ser índio e usar celular ou uma camiseta da seleção brasileira era propagandeado como incompatível por aqueles que querem botar a mão em suas terras. Os indígenas eram tratados como uma espécie de estrangeiros nativos, uma contradição em si, mas vista como normal por uma parcela dos brasileiros.

Houve uma mudança de tática para botar a mão na terra dos indígenas: de “índio falso” a “ser humano como nós”

Bolsonaro tem uma expressão estúpida, claramente não é um leitor assíduo, os olhos perseguem cursos erráticos quando fala, mas ele não é burro. Ninguém passa 28 anos no Congresso e mesmo assim consegue se vender como “não político” e “antissistema” e se eleger presidente, sem alguma inteligência. Talvez aqueles do seu círculo que pensam manipulá-lo facilmente terão alguma surpresa. Mais espertos ainda são aqueles que estão ao redor dele, dentro e fora do país, sustentando seu projeto autoritário.

Essa esperteza marca a mudança de tática de Bolsonaro com relação aos indígenas durante a campanha e também após eleito. O discurso passa a ser o de que “o índio é um ser humano como nós”. O que é óbvio e que jamais precisaria ser dito não houvesse uma intenção oculta. Segundo Bolsonaro, o indígena quer “empreender”, quer “evoluir”. O que significa isso? Significa, como Bolsonaro já explicou, que os indígenas deveriam ter o direito de vender e arrendar a terra, algo que está em curso no Governo e no Congresso há bastante tempo.

Os indígenas supostamente gostariam de ser como os brancos. Mas ser como brancos em qual sentido? No sentido de poderem tornar a terra mercadoria, uma característica intrínseca “dos brancos”. E então a terra pode ser vendida e aberta à exploração. “Evoluir” e “empreender”, no entendimento de Bolsonaro, é dar à floresta o mesmo status que um carro, uma mesa, um celular ou um pirulito. Mas, atenção. O presidente eleito também diz: “Os índios não querem ser latifundiários”.

Não é difícil adivinhar quem vai comprar as terras ou explorar suas riquezas. É bastante esperto o discurso de “ser humano como nós”, que converte o que é sequestro das terras dos indígenas em um “direito” dos indígenas a poderem fazer o que querem com elas, inclusive e principalmente vendê-las, arrendá-las ou abri-las para exploração. Assim, o que hoje é terra pública – minha, sua, do país – passaria para a mão privada de poucos.

Esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousseff já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo de Lula. Figuras como Kátia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que, até 2016, quando foi afastada por um impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas.

Já com os quilombolas, povos muito mais frágeis que os indígenas, a estratégia empregada para avançar sobre as suas terras ainda é a antiga. Por que Bolsonaro falaria tanto em quilombo e quilombolas durante a campanha? Porque um de seus serviços no poder é botar a mão nas terras a que os descendentes de escravos rebelados têm direito constitucional.

Bolsonaro se vende como alguém de língua solta, mas ele é um homem que calcula e sabe por que lança frases racistas para consumo midiático

Como as terras dos indígenas, as dos quilombolas já deveriam estar demarcadas, mas há uma grande parcela que ainda não está. Como o Brasil é um país estruturalmente racista e, nos últimos anos, o protagonismo negro alcançado com medidas como as cotas raciais nas universidades incomodou muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro, desqualificar os quilombolas se revelou um caminho mais fácil. Sem contar que os quilombolas têm muito menos expressão internacional e ecos no imaginário do que os indígenas.

Quando Bolsonaro escolhe contar sobre uma visita a um quilombo na palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, não é algo que surge do nada na sua cabeça, como parece à primeira vista. Ele está calculando. Quando ele diz que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, seguida por “nem para procriar servem mais”, ele não está sendo apenas o racista habitual. Ele está calculando. E atingindo o alvo, preparando-se para “legitimar” para a opinião pública a futura retirada de direitos dos quilombolas às suas terras.

Depois de ter sido denunciado por racismo, Bolsonaro mudou de tática e uniformizou o discurso: “Eles (os quilombolas) querem ser libertos. (...) Acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda, opinião minha. Se quiser explorar, tirar minério, ter maquinário, a exemplo do seu irmão fazendeiro do lado...”. É fundamental prestar atenção na operação de linguagem para botar as mãos nas terras ancestrais: o indígena “é ser humano como nós”, o quilombola quer ser “liberto”. Para tornar-se humano como nós e ser liberto tem que ter o “direito” de vender as terras hoje protegidas. O complacente Supremo Tribunal Federal absolveu Bolsonaro da denúncia de racismo pouco antes da eleição.

O discurso da “indolência” e da “malandragem”, associado a indígenas e negros, também aventado por seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, é o capítulo anterior ao capítulo do “ser humano como nós”. Ambos estão no manual sobre como transformar terras públicas protegidas em terras privadas exploradas por poucos. O capítulo introdutório, como todos sabem, é o extermínio direto dos povos da floresta, seguido pelo dos negros. As três estratégias ainda convivem simultaneamente no Brasil, como os números de assassinados mostram. Mas, no mundo globalizado, é sempre melhor evitar o sangue e eliminar os corpos de uma maneira mais “limpa”.

E esta maneira será tentada primeiro dentro da lei, também no governo populista de extrema direita de Bolsonaro. Esta é uma característica dos governos autoritários que estão sendo produzidos dentro da democracia. Basta olhar para outros casos do mundo. Bolsonaro vai intensificar e acelerar o que já vinha acontecendo nos últimos anos. O “novo” Código Florestal, um tremendo retrocesso na proteção do meio ambiente, é um exemplo. Mas talvez o exemplo mais cristalino seja o daquela que foi chamada de “Lei da Grilagem”.

Grilagem, como se sabe, é o roubo de grandes porções de terras públicas. Houve casos de “grilos” maiores do que países da Europa na floresta amazônica. Por muito tempo, a grilagem foi feita na base da pistolagem. Ainda é. Mas também vem sendo feita na base da lei. Em julho de 2017, Michel Temer (MDB) sancionou uma lei “regularizando” terras públicas que foram tomadas até 2011 no limite de 2.500 hectares, o equivalente a 57 Vaticanos. Bastava expandir a produção de “laranjas”, legalizando de 2.500 em 2.500 hectares, para tornar legal o roubo de enormes porções de floresta.

Enquanto for possível, a barbárie será consumada dentro da lei; depois, pode valer a alternativa de Mourão

Esta foi a “Lei da Grilagem número 2”. A “Lei da Grilagem número 1” é de 2009, ainda no governo Lula (PT), quando foram “regularizadas” terras públicas ocupadas até 2004, no limite de 1.500 hectares. Ou seja: a “lei” foi só melhorando para os ladrões de terras públicas. Em seguida, eles passam a ser chamados de “fazendeiros”, “desbravadores” ou representantes do “agronegócio”. São duas as operações: uma no plano da lei, outra no plano da linguagem. “Regularizar”, em vez de “legalizar”, arranca pela linguagem o caráter criminoso da operação de grilagem, responsável pelo maior número de mortes no campo e na floresta.

É também por esse caminho que a Amazônia vem sendo destruída. Assim como não foi o PT que inventou a corrupção no Brasil, também não será Bolsonaro que inventará a legalização do crime de grilagem. Essa operação já vem acontecendo há muito, se acelerou enormemente no governo Temer e deverá ganhar proporções inéditas no governo de Bolsonaro. Tudo dentro da lei. A princípio. E enquanto for possível. O judiciário já deu provas contundentes de que não é capaz – e em muitos casos não deseja – barrar essa operação de legalização do crime.

Para botar a mão na terra ancestral dos indígenas, porém, é mais complicado. O agrobanditismo vem atacando por vários flancos. Um deles é o que chamam de “marco temporal”. Sempre colocam um nome esquisito, que pouco diz para a maioria, para confundir a população. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada.

Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. Mas esta é uma maneira “legal” de consumar algo criminoso. E assim impedir a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.

Bolsonaro já declarou que não vai “demarcar nem um centímetro a mais de terras indígenas”. A aprovação da tese do “marco temporal” é só uma das maneiras e depende do Supremo Tribunal Federal, este que o filho do presidente eleito disse que “basta um cabo e um soldado para fechar”. Talvez nem isso, já que o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já se submete ao autoritarismo por gosto pessoal, como quando fraudou a história ao dizer que o período de 21 anos de regime de exceção no Brasil não foi ditadura, mas um “movimento”.

O “marco temporal” é uma das estratégias legais para roubar os direitos dos indígenas determinados pela Constituição de 1988

Na segunda-feira, na mesma entrevista para a TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou suas intenções e deixou claro com qual parte da população tem compromisso: “Afinal de contas, temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. O presidente eleito tenta vender a falsa ideia de que as terras indígenas é que são “novas” e que o fazendeiro, que já as ocupou sabendo disso, é “surpreendido” pela notícia. Sem contar que o processo de demarcação é longo e criterioso, impossível de representar qualquer surpresa para quem invadiu terras indígenas ou foi lá colocado por projetos de governos passados.

A aprovação do marco temporal ajudaria a evitar novas demarcações de terras, mas não resolveria o problema das terras já demarcadas. Para abrir a Amazônia para a exploração do agronegócio e da mineração, além de estradas, ferrovias, pontes e hidrelétricas, Bolsonaro vai ter que mudar a Constituição de uma forma mais radical. Por isso o general Mourão, sempre falando na hora errada, já antecipou em setembro uma “nova Constituição”, feita por uma “comissão de notáveis”. Uma Constituição sem povo, portanto.

Como a declaração produziu mal-estar, Bolsonaro, notável por sua delicadeza de linguagem e de gestos, afirmou que “faltou um pouco de tato” ao seu general. O que significa isso? Que não era hora de mencionar a intenção. Nem era a forma de sugeri-la. Se não conseguir mudar a Constituição ou fazer uma nova Constituição, sempre há o que o mesmo Mourão já antecipou: a possibilidade de um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.

Alguns indicativos sobre o que está em curso. Em pesquisa recente, a antropóloga Ana Carolina Barbosa de Lima e os biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado mostraram que os municípios amazônicos que mais desmataram desde 2000 teriam elegido Bolsonaro já no primeiro turno. Nos municípios bolsonaristas, a média do desmatamento foi duas vezes e meia maior do que nos municípios que preferiram Fernando Haddad (PT). Segundo o Observatório do Clima, dados do Deter B, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora a Amazônia em tempo quase real, a taxa de desmatamento subiu 36% entre junho e setembro, período da pré-campanha e campanha eleitoral.

No governo Temer, o agrobanditismo está no poder. No governo Bolsonaro, eles serão o poder

Na Amazônia, fazendeiros e grileiros já apoiavam Bolsonaro quando a maior parte dos brasileiros ainda duvidava que ele seria capaz de vencer a eleição. Assim como muitos dos prefeitos do PSDB da região, que nunca cogitaram votar em Geraldo Alckmin. Também será interessante observar como Bolsonaro, que mesmo antes de assumir já está de namoro avançado com Donald Trump, vai lidar com os interesses da China, cada vez mais presente na floresta e uma das principais importadoras de soja do país.

É na Amazônia que vai se dar a disputa do governo de Bolsonaro. O Brasil já é o país mais mortal para defensores do meio ambiente, segundo a organização Global Witness, e o estado amazônico do Pará é o lugar mais letal do planeta. O “agronegócio” superou a mineração como causador das mortes. Todas as variáveis apontam que esta violência vai se multiplicar com Bolsonaro. Até o governo Temer o agrobanditismo estava no poder. Agora, ele será o poder. E com autorização para matar dada pelo próprio presidente, em suas várias manifestações durante a campanha.

A Amazônia pode parecer longe para a maioria dos brasileiros. Mas nada afetará mais o futuro próximo de todos do que o destino da floresta. No Brasil, a agropecuária e o desmatamento, ambos relacionados, são as principais fontes de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Em outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertaram que a humanidade tem apenas 12 anos para limitar o aquecimento da Terra em 1,5 graus Celsius. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Sem a maior floresta tropical do mundo em pé não será possível atingir essa meta. É por isso que Bolsonaro se tornou também uma ameaça para o planeta. Para enfrentar a crise climática e recuperar a floresta seria necessário um presidente com ideias opostas às de Bolsonaro.

Somente a Bacia do Xingu, segundo monitoramento do Instituto Socioambiental, teve 150 milhões de árvores derrubadas em 2018, e o ano ainda nem acabou. A floresta amazônica chega aos dias atuais já desmatada em cerca de 20%. Um estudo publicado no início deste ano na Science Advances, assinado por cientistas de renome internacional, o americano Thomas Lovejoy e o brasileiro Carlos Nobre, mostrou que a floresta alcançará um “ponto de inflexão” se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%. A partir daí, a Amazônia sofreria mudanças irreversíveis, tornando-se uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade.

Se a eleição de 2018 foi brutal, pelo resultado e pela decepção com os políticos de centro-esquerda, graças à sociedade civil democrática também foi uma das mais belas campanhas da história

Estamos muito perto deste ponto de não retorno. E Bolsonaro ainda nem assumiu oficialmente. Querendo ou não, gostando ou não, acreditando ou não, estamos todos implicados neste futuro bem próximo. Os sinais estão todos aí para quem é capaz de ver. Mas, se preferir não ver, também não vai adiantar nada. É rápido. É no tempo da sua vida e na da vida de seus filhos. E não é porque a gente finge que não existe que a crise climática vai deixar de existir.

Eleger Bolsonaro foi a pior ação para o Brasil e para o planeta. Mas está feito. A pergunta agora é: o que faremos para resistir ao que está por vir e proteger a floresta e com ela a nossa vida? A eleição de 2018 revelou algo duro, mas importante: os candidatos estavam aquém da população. Primeiro, Lula e o PT mostraram-se incapazes de articular uma candidatura de centro-esquerda que pudesse vencer o projeto autoritário. Depois, Ciro Gomes e Marina Silvaprovaram-se incapazes de subir no palanque do segundo turno para defender a democracia.

Mas as pessoas se moveram. Apesar da brutalidade de, mesmo assim, ter sido eleito um defensor da ditadura e da tortura, esta foi uma das campanhas mais bonitas da história recente. Poucas cenas são tão memoráveis quanto a de pessoas anônimas, sozinhas, que na tentativa de virar o voto para o projeto democrático, levantaram um cartaz no centro das cidades dizendo: “vamos conversar?”.

É dessa força que precisamos agora para, unidos com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, lutarmos pela Amazônia e pela vida de todos. Mesmo que os eleitores de Bolsonaro não sejam capazes de perceber, resistir ao projeto destruidor da floresta já anunciado pelo presidente de extrema direita é também lutar pela vida deles e de seus filhos.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Bolsonaro diverge de Guedes sobre Previdência e nomeia só homens para transição até agora

Presidente eleito concedeu longa entrevista a Datena, na Band. Equipe de transição do futuro Governo deve cortar 13 pastas e fundir Meio Ambiente e Agricultura

Por Afonso Benites e Flávia Marreiro, do El País

Jair Bolsonaro (PSL) mostrou, mais uma vez, não ter constrangimento em desautorizar seu futuro superministro da Economia, Paulo Guedes. Se na campanha ele dizia que Guedes era seu guia e "Posto Ipiranga" com respostas para os dilemas em matéria econômica, o presidente eleito disse nesta segunda-feira na TV "desconfiar" da proposta de seu auxiliar para a reforma da Previdência, que prevê uma mudança do modelo atual para um sistema de poupanças individuais para os futuros aposentados. Na longa conversa, ao vivo, com o apresentador José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, o futuro mandatário aplicou a estratégia de ser o calibrador e multiplicador, em várias direções, das mensagens do futuro governo. O presidente eleito sugeriu fazer "alguma" mudança no sistema de aposentadorias "sem colocar em risco e sem levar pânico à sociedade” e descartando mudanças profundas para categorias que lhe são próximas, como militares e policiais. Disse ainda que deseja que alguma proposta seja aprovada ainda neste ano — algo considerado remoto pelo Congresso que está de saída — ou no começo do ano que vem.

"Nós não queremos salvar o Estado quebrando o cidadão brasileiro", afirmou Bolsonaro. O eleito negava assim mais uma vez a proposta ventilada na imprensa e atribuída a seu auxiliares de recriar uma CPMF, tributo sobre movimentações financeiras, como um dos caminhos para mitigar a grave crise das contas públicas. O futuro mandatário também questionou a metodologia do IBGE para medir o desemprego — algo alinhado com padrões globais da área — e falou até que Guedes vai conduzir "renegociações" da dívida interna.

Transição só com homens, nenhuma demarcação indígena

Se na parte econômica as declarações provocam dúvidas se o futuro mandatário entregará a guinada liberal prometida com a nomeação de Guedes, em outras matérias, o presidente eleito repetiu à risca a cartilha de extrema direita. Voltou a defender que policiais e pessoas comuns possam matar até para defender o patrimônio e disse que, em seu Governo, não haverá mais demarcação de terras indígenas, apesar de esse ser um passo previsto na Constituição.

Enquanto isso, em Brasília, o coordenador da transição e futuro ministro da Casa Civil, o deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM), se utilizou da estratégia de liberar informações à conta-gotas para sinalizar que a equipe de transição do futuro governo deverá cortar 13 dos 29 ministérios hoje existentes no Brasil. A relação exata das 16 pastas sobreviventes ainda não foi divulgada. Nesta segunda-feira parte da equipe se reuniu pela primeira vez em Brasília, durante início oficial dos trabalhos. Serão ao todo 28 nomes — todos homens — que começarão a atuar nessa troca de bastão e na criação de dez grupos técnicos para o planejamento do Governo.

Antes desta segunda, apenas Lorenzoni havia sido oficializado. Conforme esse desenho inicial, em princípio, os ministérios de Agricultura e de Meio ambiente deverão ser fundidos. Um desses grupos de trabalho foi batizado de “produção sustentável, agricultura e meio ambiente”. Analisando as outras equipes setoriais, ainda é possível concluir que, os ministérios dos Esportes e da Cultura serão anexados pela Educação, o de Desenvolvimento Social se juntaria à Saúde e a confirmação de que a Segurança Pública e a Transparência seguem para o guarda-chuva da pasta da Justiça. Esta última a ser comandada pelo juiz Sérgio Moro, o juiz  Operação Lava Jato que desistiu da magistratura para aceitar o cargo político.

Até o momento os dois principais empecilhos de Bolsonaro na redução de sua Esplanada dos Ministérios estão no Meio Ambiente e na pasta de Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Ele já deu declarações no sentido de unir esses órgãos com outros e depois voltou atrás. Nesta semana, um grupo de dez associações de industriais levou uma sugestão a Lorenzoni para que, ao invés de unir a pasta de Indústria à da Fazenda, Bolsonaro poderia juntá-la ao ministério do Trabalho. A ideia deles é criar a pasta de Produção, Trabalho e Comércio. Seu temor é o de perder a interlocução com o governo federal.

Com relação ao Meio Ambiente, o futuro governo de Bolsonaro ouve críticas de todos os lados. De ambientalistas e de ruralistas. Ainda assim, não anunciou qual será sua decisão. A expectativa é que ao longo desta semana ele anuncie ao menos mais um ou dois ministros, assim como o número total de seus ministérios.

Visita a Brasília e declaração de Moro

Na terça-feira, o presidente eleito retorna pela primeira vez à Brasília para participar da solenidade do Congresso Nacional em alusão aos 30 anos da Constituição Federal. No dia seguinte, reúne-se com o presidente Michel Temer(MDB) e deve fazer um pronunciamento na sequência. “Estamos na fase do muito trabalho e pouca conversa”, repetiu o seu mantra o deputado Lorenzoni. Moro, por sua vez, convocou os jornalistas e deve falar em Curitiba: trata-se de uma aguardada fala pública já que se especula que o juiz pode não endossar as propostas mais radicais de Bolsonaro, como licença para matar sem punição dada a policiais. Ao Datena, Bolsonaro disse que o juiz só terá que chegar a um "meio termo" sobre algumas propostas.

Até o momento, além do futuro chefe da Casa Civil e de Sérgio Moro, foram definidos como ministros o general Augusto Heleno (Defesa), o astronauta Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) e Paulo Guedes (Economia). Um dos próximos a ser anunciados deve ser o ministro da Infraestrutura. O principal nome para a função é do general Oswaldo Ferreira, que já coordenava os trabalhos prévios desta área.

A LISTA DA TRANSIÇÃO

Até o momento, 28 nomes foram apontados como membros do grupo de transição. São eles:

Abraham Bragança De Vasconcellos Weintraub;

Adolfo Sachsida;

Alexandre Xavier Ywata De Carvalho;

Antônio Flávio Testa;

Arthur Bragança De Vasconcellos Weintraub;

Augusto Heleno Ribeiro Pereira - futuro ministro da Defesa;

Bruno Eustáquio Ferreira Castro De Carvalho;

Carlos Alexandre Jorge Da Costa;

Carlos Von Doellinger;

Eduardo Chaves Vieira;

Gulliem Charles Bezerra Lemos;

Gustavo Bebianno Rocha;

Ismael Nobre;

Jonathas Assunção Salvador Nery De Castro;

Luciano Irineu De Castro Filho;

Luiz Tadeu Vilela Blumm;

Marcos Aurélio Carvalho;

Marcos César Pontes - futuro ministro de Ciência e Tecnologia;

Marcos Cintra Cavalcanti De Albuquerque;

Onyx Lorenzoni - futuro ministro da Casa Civil;

Pablo Antônio Fernando Tatim Dos Santos;

Paulo Antônio Spencer Uebel;

Paulo Roberto Nunes Guedes - futuro ministro da Economia;

Paulo Roberto;

Roberto Da Cunha Castello Branco;

Sérgio Augusto De Queiroz;

Waldemar Gonçalves Ortunho Junior;

Waldery Rodrigues Junior.


El País: Como reinventar a esquerda latino-americana

A guinada conservadora na região e o desvio autoritário de Venezuela e Nicarágua obrigam as forças progressistas, exitosas no início do século, a buscar novas fórmulas

Por Javier Lafuente, do El País

A orgia de poder da esquerda latino-americana no início do século XXI acabou. O vermelho que tingia o mapa do continente até há pouco tempo assumiu uma tonalidade azul. O último golpe foi a vitória de Jair Bolsonaro há uma semana no Brasil. O maior país da América Latina será governado a partir de 1º de janeiro por um político nostálgico da ditadura militar, que uma semana antes de sua vitória prometeu “varrer os vermelhos do mapa”, e a eles ofereceu duas saídas: a prisão ou o exílio.

Em menos de um ano, o Chile voltou-se novamente à direita, e Iván Duque, na Colômbia, conseguiu deter a ascensão da esquerda. Só a vitória de Andrés Manuel López Obrador nas últimas eleições do México ofereceu uma leve esperança à esquerda. Que logo foi minada pelo interesse nulo do novo presidente mexicano —que assume o cargo em dezembro— a olhar mais ao sul de seu país. Entretanto, o desvio autoritário dos governos de esquerda na Venezuela e Nicarágua se aprofunda. O desafio para evitar que o caminho de volta ao poder se torne uma travessia no deserto é imenso.

José Mujica, o octogenário ex-presidente uruguaio e grande referência da esquerda latino-americana, lançou um tipo de SOS depois da vitória de Bolsonaro para quem quisesse ouvir: “É preciso aprender com os erros cometidos e começar de novo. Tampouco acreditar que quando vencemos tocamos o céu com a mão e chegamos a um mundo maravilhoso. Mal subimos um degrau. Não há derrota definitiva, nem triunfo definitivo”.

A esquerda que chegou a governar em quase toda a região na última década era diversa. O pêndulo oscilava da centro-esquerda de Concertación chilena e Frente Amplio do Uruguai até o extremo mais autoritário do militar Hugo Chávez na Venezuela, apoiado pela Cuba de Fidel Castro. No meio, Néstor e Cristina Kirchner reformularam o populismo de esquerda na Argentina, e Lula no Brasil e Evo Morales na Bolívia —ambos sindicalistas, vindos dos movimentos sociais antiliberais— desenvolveram, pelo menos em seus primeiros mandatos, uma política macroeconômica estável e uma política externa pragmática, sobretudo no caso brasileiro, e mais difusa no caso do presidente boliviano.

Diferentemente dos atuais Governos conservadores, que não agem como bloco, aquela esquerda se aglutinou em órgãos de integração como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) e a Aliança Bolivariana para os Povos de nossa América (ALBA), todos eles hoje em ruínas. “Na segunda metade do século XX as elites e muitos eleitores passaram durante anos a imagem de que a esquerda não podia governar por ser violenta e revolucionária, ou que quando o fez, como com Allende no Chile, tinha fracassado. Seu desafio no século XXI era demonstrar que podia governar, e em boa medida o fizeram”, afirma Steven Levitsky, professor de Harvard e coautor de Como morrem as democracias.

A esquerda que chegou ao governo era diversa. O pêndulo oscilava desde a Frente Amplio do Uruguai até o extremo mais autoritário de Hugo Chávez na Venezuela

A força da esquerda no continente foi alimentada —quando não engordada— pela bonança petroleira e os altos preços das matérias-primas, que permitiram desenvolver projetos ambiciosos de redistribuição de riqueza. Os governos reduziram a pobreza, a desigualdade. Também —exceto em casos como os do Brasil, Uruguai e Chile— intensificaram o controle sobre os meios de comunicação, e os dirigentes buscavam, seguindo a estrela do onipresente Chávez, ser reeleitos ou perpetuados no poder.

A queda do preço do petróleo freou drasticamente o crescimento de muitos países, mas não parece ser o único motivo do colapso da esquerda. “No processo de reconstrução das elites econômicas, a corrupção escalou”, opina o historiador cubano Rafael Rojas, que aponta a trama da Odebrecht, o gigantesco caso de subornos e oferta de obras públicas que estourou no Brasil e salpicou a classe política de quase todo o continente, como paradigma regional.

De alguma maneira, a esquerda não soube administrar o sucesso, consolidá-lo. O discurso antiestablishment com o qual se destacavam da oligarquia e das classes políticas tradicionais, que lhes serviu para chegar ao poder, virou. “Milhões de pessoas que não necessariamente compartilhavam uma ideia positiva do que a esquerda fazia no Governo se ativaram politicamente”, opina Sandra Borda, cientista política da Universidad de los Andes, na Colômbia. “O grande erro foi não construir instituições sólidas. Em muitos casos os objetivos propostos foram alcançados, mas sem mudar a maneira, e a maneira é importantíssima. As pessoas acabaram esquecendo os fins, porque os meios para alcançá-los foram os mesmos. E a direita sabia que a esquerda seria ainda mais cobrada por isso, e se encarregaria de fazê-la pagar”, acrescenta.

A força da esquerda no continente foi alimentada pela bonança petroleira e pelos altos preços das matérias-primas

O pêndulo começava a oscilar de novo ao mesmo tempo que a Venezuela, destacado expoente do socialismo do século XXI, aprofundava sua deriva autoritária e com isso a crise da esquerda na América Latina. Caracas se situa no epicentro desse colapso. Chávez, como em seu momento fez Castro, desenvolveu um trabalho político e dialético que o colocou no centro de tudo. A máxima de que ninguém podia ser de esquerda sem gostar de Chávez calou no imaginário de milhões de pessoas, não só latino-americanas. Apesar da heterogeneidade dos Governos progressistas, a Venezuela petrolífera de Chávez, com o apoio da Cuba castrista, se tornou líder regional. Só o carismático Lula conseguiu se erguer em contrapeso ao líder venezuelano até o fim de seu segundo mandato. Mas na época a subordinação a Caracas era majoritária.

“A crise atual da esquerda está diretamente relacionada à morte de Hugo Chávez e Fidel Castro e ao colapso da Venezuela. A maior evidência foi a guinada abertamente ditatorial dada nos últimos anos por Nicolás Maduro, na Venezuela, e Daniel Ortega, na Nicarágua”, opina nesse sentido o historiador Rafael Rojas. No entanto, enquanto a repressão empreendida pelo outrora inspirador líder sandinista foi criticada sem qualquer condescendência pela esquerda em nível global, certa ambiguidade segue pairando sobre a Venezuela. A crítica sem rodeios é um dos principais desafios para a nova geração de dirigentes. “Qualquer construção de uma liderança de esquerda na América Latina passa pelo ato de dissociar-se da Venezuela de Maduro. Com ele, o chavismo se viu reduzido a uma mera máquina para perpetuar-se no poder”, considera Humberto Beck, professor do Colegio de México. “Isso não deve ser confundido, no entanto, com uma condenação categórica de todas as experiências bolivarianas, muito diversas e complexas, incluindo a própria história, já quase de duas décadas, do chavismo”, acrescenta. Nesse sentido, Manuel Canelas, vice-ministro do Planejamento da Bolívia, de 36 anos, um dos novos dirigentes com mais projeção, opina que os que chegam agora “não têm por que comprar o ciclo anterior por inteiro, mas é necessário evitar que a direita imponha que você é herdeiro do Governo de Maduro ou dos últimos anos de Cristina Kirchner. Você deve poder criticar e evitar que a direita caracterize tudo que veio antes. E a primeira onda de dirigentes não precisa exigir continuidade de forma alguma”, acrescenta.

Chávez, como fez Castro em seu momento, desenvolveu um trabalho político e dialético que o colocou no centro de tudo

“O principal desafio da esquerda é reinventar-se para além dos dois modelos predominantes nas últimas décadas: o modelo bolivariano e o modelo social-democrata”, continua Beck. “Por vários motivos, ambos estão esgotados e exige-se algo mais.” Com os Governos conservadores, os avanços na conquista de direitos individuais foram bloqueados. Macri na Argentina recusou-se a apoiar a legalização do aborto; os líderes sindicais caem como insetos na Colômbia posterior à assinatura do acordo de paz; e a vitória de Bolsonaro alarmou mulheres, negros e ativistas LGBT, e colocou em evidência o poder da Igreja evangélica e sua agenda conservadora. Além disso, a xenofobia caminha de mãos dadas com os migrantes que continuam fugindo da América Central e da Venezuela. Porque a última contribuição do chavismo para a crise da esquerda foi forçar um êxodo em massa de venezuelanos, que deu asas aos conservadores mais recalcitrantes da região.

A rejeição às minorias é, no entanto, um fenômeno que não cabe apenas à América Latina. “Ninguém esperava esse tipo de reação diante do progressismo mundial. A aversão se internacionalizou mais do que esperávamos”, admite o professor de Harvard Steven Levitsky.

Com os Governos conservadores os avanços na conquista de direitos individuais foram bloqueados

Outro dos desafios que se propõem hoje é que nenhum dirigente de esquerda é capaz de assumir a liderança que um dia teve Chávez ou, em menor medida, Lula. Gustavo Petro, na Colômbia, e Fernando Haddad, no Brasil, não conseguiram, em boa parte pelo silêncio de outros líderes progressistas que preferiram não lhes dar um apoio explícito, à custa de que a direita e a extrema direita obtivessem a vitória. Em julho passado, as eleições no México deixaram um sabor agridoce para as forças progressistas. A vitória de López Obrador alçou a esquerda ao poder pela primeira vez, nem tanto talvez por seu credo, mas pelo das equipes que o rodeiam. Todos os líderes ao sul do México consideraram sua vitória um tipo de renascer da esquerda, mas as declarações do presidente eleito —“a melhor política externa é uma boa política interna”— prenunciam que não tem a menor intenção de unir esforços.

A esperança para a esquerda talvez resida nas mulheres, como Verónika Mendoza no Peru, Beatriz Sánchez no Chile ou Manuela D’Ávila (candidata a vice-presidente com Haddad), de quem se espera uma longa carreira política. E muitos olhares se concentram na gestão como prefeita de Claudia Sheinbaum na capital do México, a maior cidade de língua espanhola do mundo, como antessala de maiores aventuras.


El País: Educação, o primeiro ‘front’ da guerra cultural do Governo Bolsonaro

Adepta do Escola sem Partido, futura gestão cogita revisionismo sobre a ditadura, além de incentivar vigilância a professores para “expurgar Paulo Freire” das escola

Antes mesmo de ganhar a eleição, Jair Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores. Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.

Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a “doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.

Na Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto, adiada. "Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático", prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).

Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais, onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas semelhantes.

De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC), os casos de denúncias por suposta "doutrinação ideológica" têm crescido no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais. Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.

Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte. “Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco. Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.

Paulo Freire e os grandes males
O plano de governo em educação é considerado vago em vários pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a equipe de Bolsonaro explícita bem suas prioridades. Aponta que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”

Cara não está sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional) Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.

Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o criacionismo no ensino de ciências. “Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa”, afirmou Souto.

Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor aposentado da Unicamp. “Enxergam qualquer pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já a  educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.

Os obstáculos para colocar as ideias em prática
Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Por muito tempo nossas instituições de ensino foram tomadas por ideologias nocivas e inversão de valores, pessoas que odeiam nossas cores e Hino. Hastear uma bandeira do Brasil não tem relação com política, mas com o orgulho de ser brasileiro e a esperança de tempos melhores.

Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um rompimento institucional com o Conselho.”

Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro, cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”

PAGAR POR UNIVERSIDADE PÚBLICA DEPENDE DE MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO
No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.

Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).


El País: Onyx Lorenzoni, de escanteado no DEM a novo todo poderoso de Brasília

Futuro ministro da Casa Civil de Bolsonaro começa a despachar transição e recebe romaria no gabinete. "É um novo modelo e, se isso vai dar certo, só o tempo vai dizer", diz o senador Ciro Nogueira

Por Ricardo Della Coletta, do El País

Tudo indicava que Onyx Lorenzoni (Porto Alegre, 1954) seria escolhido o líder do Democratas na Câmara dos Deputados para o ano de 2015. Havia uma regra informal de rodízio entre os líderes e o gaúcho, com a experiência de quem então iniciava o seu quarto mandato consecutivo, considerava que tinha o posto garantido para si. Acabou derrotado depois de uma articulação de bastidores do então líder Mendonça Filho, que conseguiu vencer o correligionário e ser reeleito com 16 dos 21 votos. Foi uma traição para Lorenzoni, que à época acusou seu colega de quebrar o acordo de revezamento.

Começava ali um distanciamento entre o deputado e o seu partido que o deixaria escanteado na Câmara pelo restante do seu mandato. Mas isso não quer dizer que ele tenha ficado imóvel nesse tempo. Pelo contrário. Lorenzoni foi um dos primeiros a perceber a força das redes sociais como canal de comunicação direto com o eleitor e diagnosticou que os protestos de rua pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff pavimentavam o caminho para uma candidatura ao Palácio do Planalto de direita, sintonizada com esses movimentos. Isso fez com que, a partir de 2017, ele entrasse de cabeça no projeto presidencial de outro deputado que literalmente "falava sozinho" pelos corredores do Congresso Nacional. Era Jair Bolsonaro, eleito presidente da República com 55% dos votos válidos nas eleições de 28 de outubro. Terminado o pleito, Lorenzoni foi indicado como o futuro titular da Casa Civil, o órgão responsável por coordenar o trabalho dos demais ministérios e que também deve acumular as negociações do Executivo com o Legislativos. Os tempos de isolamento ficaram para trás: não há hoje em Brasília um deputado tão procurado quanto ele.

Lorenzoni viajou à capital federal nesta semana para se encontrar com o atual ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, e dar início à transição de governo. Na quinta-feira, passou a manhã no seu pequeno gabinete no oitavo andar de um dos anexos da Câmara, onde recebeu uma verdadeira romaria de parlamentares. Passaram por ali a presidenta da Frente Parlamentar Agropecuária, Tereza Cristina, e o senador eleito Luis Carlos Heinze, ambos expoentes da bancada ruralista. Também foram cumprimentar o novo todo poderoso da Esplanada os deputados Leonardo Quintão (MDB), Osmar Serraglio (PP) e Danilo Forte (PSDB), que não conseguiram se reeleger. Ao saírem, tanto Heinze quanto Forte disseram que esperam que seus partidos apoiem o governo Bolsonaro no Congresso.

Médico veterinário de formação, Lorenzoni será um dos três superministros de Bolsonaro —os outros dois são Paulo Guedes, o guru da área econômica, e Sergio Moro, da turbinada pasta da Justiça. Entre as atribuições do deputado, está a montagem de uma base parlamentar para o capitão reformado do Exército no Congresso Nacional, principalmente na Câmara. O presidente eleito sinalizou que pretende buscar esse apoio nas frentes temáticas, principalmente na que fincou conhecida como bancada BBB (Bíblia, boi e bala), numa sinalização aos seus eleitores de que pretende abandonar o característico toma lá, dá cá que marca o modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil.

É aí que começam os problemas que Lorenzoni terá de contornar. Embora o Congresso Nacional que emergiu das urnas tenha um perfil eminentemente conservador, são poucos os que acreditam que o novo governante do País conseguirá construi uma base de sustentação no Legislativo apenas pelas tratativas diretas com as frentes temáticas. A bancada BBB pode ter números superlativos, mas, ao contrário dos partidos políticos, não tem como punir eventuais dissidentes.

"Partidariamente não tem tido nenhum tipo de discussão porque parece que ele [Bolsonaro] não quer fazer escolhas via partidos. É um novo modelo e, se isso vai dar certo, só o tempo vai dizer", afirma o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, que elegeu a terceira maior bancada na Câmara. "Não é fácil, porque quem conduz a bancada é a liderança partidária. Acho muito difícil ele conseguir no varejo um apoio para temas polêmicos, em especial a Previdência."

Com 16 anos nas costas só na Câmara dos Deputados, Lorenzoni sabe que dificilmente conseguirá escapar dos acordos com as cúpulas dos partidos políticos, que costumam envolver o loteamento da máquina pública em troca da ajuda dos parlamentares para aprovar projetos de interesse do Palácio do Planalto. Um dirigente de uma legenda que deve apoiar Bolsonaro avaliou ao EL PAÍS que, embora a redução do número de ministérios —fala-se em 15 pastas na Esplanada, frente às 29 que existem hoje— possa passar a imagem de uma administração menos política, as demandas dos deputados por espaços nos cargos do chamado segundo escalão devem continuar as mesmas. "Acho que vai compor igual aos outros governos. Pode ser que o partido não fique com o ministério, mas vai contemplar os parlamentares [em estatais e órgãos reguladores]. Tudo igual", diz.

A força que o capitão reformado do Exército terá no Parlamento também passa pelas eleições, em fevereiro, das presidências da Câmara e do Senado. Na primeira, a disputa promete reacender um velho embate já vivido pelo deputado gaúcho. No início dos anos Michel Temer, o deputado gaúcho e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, estiveram em lados opostos no debate sobre a adesão ou não do Democratas ao governo do emedebista. Maia, que defendia a entrada do DEM no governo Temer, saiu vitorioso e está no seu segundo mandato à frente da Casa, posto que espera manter. Lorenzoni não esconde de seus interlocutores que, no que depender dele, Maia não terá êxito.

Ainda não está claro se os antigos ressentimentos desencadearão numa disputa aberta entre o novo chefe da Casa Civil e o atual presidente da Câmara. O próprio Bolsonaro sinalizou que, em nome da governabilidade, quer adotar o caminho que lhe garanta uma posição mais confortável na Casa. Disse, por exemplo, que o seu partido, o PSL, não deve pleitear o posto.

Numa transição com vários superministros, também já houve atritos entre Lorenzoni e o futuro titular da Economia, Paulo Guedes. O parlamentar havia afirmado que o projeto de reforma da Previdência de Temer não deveria ser aproveitado, na contramão do que dissera Guedes. O guru econômico de Bolsonaro desautorizou o aliado. "É um político falando de economia. É a mesma coisa do que eu sair falando de política. Não dá certo, né?", disparou Guedes. Nesta quinta, Lorenzoni tentou minimizar a primeira canelada entre membros do governo eleito. "Está tudo na paz do senhor. Paulo Guedes é meu ídolo", disse ao jornal O Estado de S. Paulo.

Caixa dois
Entre a sua derrota para a liderança do Democratas em 2015 e a meteórica ascensão de Bolsonaro, Lorenzoni tinha visibilidade em Brasília principalmente por ter sido o relator das Dez medidas contra a corrupção, pacote de medidas encampado pelo Ministério Público para combater malfeitos no setor público. O deputado considerou que o seu relatório foi "desfigurado" por seus colegas na votação final da proposta na Câmara. Essas declarações deixaram-no ainda mais escanteado na Casa.

Sua atuação como paladino contra os crimes de colarinho branco não impediram que ele mesmo se visse envolvido em casos de corrupção. Sua reação às acusações, no entanto, foi incomum: após uma delação, Lorenzoni admitiu ter recebido 100.000 reais do conglomerado JBS como caixa dois para a sua campanha. Pediu desculpas aos eleitores e se colocou à disposição para ser investigado - o caso visto como crime grave por seu futuro colega de gabinete, Moro, acabou arquivado no Supremo Tribunal Federal. Ao menos os eleitores gaúchos parecem ter aceitado o pedido de desculpas: Lorenzoni foi o segundo mais votado do Estado, com 183.518 eleitores.